PARTILHA
NULIDADE
INEFICÁCIA
Sumário

I - A partilha é um negócio meramente declarativo que se destina à concretização do objeto de um direito que já existia anteriormente, embora sobre uma quota ideal.
II - Esta natureza jurídica da partilha tem como corolário que lhe não seja aplicável o regime das nulidades de bens alheios, nos casos em que a mesma ocorre sem que estejam presentes todos os herdeiros, ou nos casos em que incide sobre bens que não pertencem à herança. Não lhe são aplicáveis as regras dos artigos 1404º e 1408º, n.º 2 do CC, porque não significa disposição ou oneração de parte especificada da comunhão hereditária.
III - Feita a partilha com preterição de alguns herdeiros, verifica-se a sua ineficácia em relação aos preteridos. Os seus outorgantes vêm subsistir aquilo que as suas vontades livres e não viciadas quiseram. Os herdeiros preteridos poderão, por força da ineficácia do negócio, exigir nos termos dos artigos 2101º e 2102º do C.C., a efetivação da partilha, a que têm direito, dando-se sem efeito a anteriormente realizada.

Texto Integral

Processo: 95/16.5T8ARC.P1

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC)
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

A A. AA e outros (admitidos em sede de incidente de intervenção principal provocada com vista a suprir a preterição de litisconsórcio necessário ativo) intentaram a presente ação contra BB e mulher CC e outros.
Foram formulados os seguintes pedidos:
1) Ser reconhecido o direito da A. à copropriedade dos bens imóveis, deixados pelos avós DD e EE, na parte que lhe cabe.
2) Ser anulada a partilha por óbito de FF e GG.
3) Serem anuladas as vendas feitas a HH e II, com consequente anulação dos registos.
4) Ser ordenada a atualização das descrições dos imóveis registados a favor de DD e EE, com a composição e inscrição atuais.
5) Serem os RR condenados, solidariamente, a pagar, à A. uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, em valor a apurar e liquidar em execução de sentença, englobando a manifesta má-fé.
A ação invoca a qualidade de herdeira da Autora na mesma herança em que são herdeiros todos os intervenientes e 1º a 5º RR. A partilha da herança efetuada pelos RR, com preterição da Autora e dos Intervenientes e na posterior venda dos bens da herança assim partilhada aos 6º e 7º RR.
Todos os RR contestaram, tendo os 6ºe 7º RR vindo invocar factos constitutivos da boa fé. A sentença julgou a ação improcedente.
É a seguinte a Fundamentação de Facto constante da mesma (com supressão dos factos que são absolutamente irrelevantes para o direito aplicável, seja porque não são constitutivos, impeditivos ou extintivos de direitos ou de exceções, seja porque não são factos instrumentais (artigo 5º, n.ºs 1 e 2 do CPC) e, bem assim, a supressão da matéria de facto repetida no acervo da fundamentação e impertinente à decisão deste recurso que foi restringida aos pedidos formulados sob os nº 2 e 5 da petição inicial).

FACTOS PROVADOS:

1. A A. é neta de DD e de EE, sendo filha do filho deles, JJ.
2. O referido DD – avô da A. – faleceu em 13 de Outubro de 1943.
3. A referida EE - avó da A. – faleceu em 3 de Abril de 1957.
4. O casal deixou os seguintes bens imóveis: prédios rústicos com os artigos matriciais n.º ... e n.º ... e dois prédios urbanos com os artigos matriciais n.º .. e n.º .., sitos no Lugar ..., na freguesia ..., concelho de Arouca.
5. Os cônjuges não deixaram testamento, nem outra disposição de última vontade.
6. A propriedade destes imóveis passou para os herdeiros legítimos deles, os filhos do casal, entre os quais o pai da A., JJ.
7. O pai da A. – JJ – faleceu em 16 de Dezembro de 1992
8. Por óbito do pai, a A. sucedeu-lhe como herdeira legítima de parte dos bens deixados pelos avós, acima identificados.
9. Estes bens nunca foram partilhados.
10. No início de Dezembro de 2015, a A. tomou conhecimento de que uma das casas de habitação, bem como os terrenos rústicos, propriedade dos avós, tinham sido vendidos a terceiros, os ora 6.º e 7.º RR.
(…)
20. No dia 7 de Janeiro de 2016, a A. recebeu a resposta do Serviço de Finanças de Arouca, informando que: “… foi efetuado o averbamento dos prédios em nome de BB, com base na escritura de partilha, exarada em 27-11-2015 Livro D 43/15, Fls. 4 e seg.,
b) uma escritura de habilitação de herdeiros, lavrada em 15 de Outubro de 2015, a fls. 19 do livro 174, do Cartório Notarial de Viseu, a cargo da Notária KK.
c) um documento particular de “Partilha”, autenticado pela referida Solicitadora LL, em 27 de Novembro de 2015
d) um documento particular denominado “compra e venda”, autenticado pela referida Solicitadora, no mesmo dia 27 de Novembro de 2015.
e) um documento particular denominado “compra e venda”, autenticado pela referida Solicitadora, na mesma data.
25. As irmãs e sobrinhas do 1.º R, ora 2ª,3ª,4ª e 5ª RR, outorgaram procurações para aceitarem que ele partilhasse bens imóveis, que sabiam não pertencer aos pais e avós delas e receberam tornas do 1º R..
26. Os 6º e 7º RR. foram nascidos e criados no aglomerado populacional que engloba ..., ... e ... - uma terra de reduzidas dimensões.
27. O comprador HH tem residência na Suíça, desloca-se a ... por vezes, ficando a habitar na casa dos pais dele e circulando pela terra, onde frequenta os estabelecimentos comerciais, cafés, restaurantes.
28. O comprador BB, primo do HH, reside na localidade “ao lado”, .... 29.Os 1ºs a 5º RR. conseguiram novas descrições prediais em detrimento das existentes, com aquisição registada desde 1934 a favor de DD.
30. No dia 27 de novembro de 2015, foi realizada uma “venda” a HH, 6.º R
31. uma outra “venda” a II, ora 7º R.
32. A aquisição dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Arouca sob os números ... (artigo rústico ...) e ... (artigo urbano ...) – da freguesia ... foi registada a favor do comprador HH, ora 6.º R., em 15 de dezembro de 2015.
33. A aquisição do prédio descrito na citada Conservatória do Registo Predial sob o número …. (artigo rústico ...) – da freguesia ... foi registada a favor do comprador II, ora 7.º R., também em 15 de dezembro de 2015.
34. A aquisição do prédio descrito na referida Conservatória sob o número ... (artigo urbano ...) – da freguesia ... foi registada a favor de BB, ora 1º R, igualmente em 15 de dezembro de 2015.
(…)
36. Em 9 de Abril de 2004, todos os prédios ora vendidos estavam inscritos na matriz em verbete nº ......./.... a favor de DD Herdeiros.
37. A 12 de outubro de 2004, o R BB, intitulando-se cabeça de casal na herança do avô dele – DD – requereu a criação do NIF da herança indivisa,
38. Ali declarando ser essa “a primeira inscrição para efeitos de atribuição de número fiscal de herança indivisa” .
(…)
41. Os imóveis objeto da presente ação foram averbados a esse NIF de herança indivisa, reconhecendo aquele BB, em 2004, que os bens deixados pelos avós eram propriedade de vários herdeiros, que ele por si enumerados e nos quais se incluiu a ora A. AA, com NIF ..., bem como os irmãos dela, DD, AA e MM
(…)
44. Os artigos matriciais urbanos ... e ... e os rústicos ... e ... de hoje correspondem aos artigos matriciais de que era proprietário DD.
45. Os RR. tinham perfeito conhecimento que a conduta deles era proibida por Lei.
46. Sabiam que estavam a dispor de um património que pertencia a todos os herdeiros de DD e EE.
47. Não se coibiram de o fazer. (...)
62.Os Réus, através de documentos particulares autenticados, outorgaram, a 27 de Novembro de 2015, cada um, contrato de compra e venda, tendo adquirido respetivamente, os seguintes prédios:
- HH - prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo n.º ..., pelo preço de 15.000,00€, e um prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo ..., pelo preço de 10.000,00€, ambos da freguesia ..., Concelho de Arouca;
- II – prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo ..., pelo preço de 15.000,00€, da freguesia ..., concelho de Arouca;
63.Aquisições que ocorreram após terem tido conhecimento através de outro interessado na compra dos referidos prédios de que os mesmos se encontravam à venda, e através de quem obtiveram o contacto do vendedor, que não conheciam.
64.Bem como desconheciam de que modo os referidos prédios tinham vindo à posse do referido vendedor, o que só no momento da outorga dos referidos contratos tiveram conhecimento após a sua leitura.
65.Desconhecendo a existência da A. e a sua alegada relação familiar com os demais RR., designadamente, o Réu BB.
66. Os Réus adquiriram os referidos prédios a título oneroso, tendo pago os respetivos preços e efetuados os respetivos registos de aquisição, convictos que não prejudicavam nem ofendiam qualquer direito de terceiro.
67.Os Réus, compradores, estavam convictos de que estavam a comprar ao verdadeiro e único proprietário.

II - Os factos não provados: (…)

DESTA SENTENÇA APELOU A AUTORA TENDO LAVRADO AS SEGUINTES

CONCLUSÕES:
(…) O recurso é restringido aos pedidos formulados sob os nº 2 e 5 da petição inicial.
XIV. Tal como provado nos factos 1), 2), 3), 6), 7) e 8), a A./Recorrente é legítima herdeira da herança aberta de DD e EE.
XV. Prescreve o artigo 2078.º do Código Civil, que havendo vários herdeiros, qualquer um deles tem legitimidade para pedir, separadamente, a totalidade dos bens em poder do demandado.
(…)
XVIII. A verdadeira pretensão material, ou seja, o efeito jurídico que visava alcançar era o da defesa do acervo hereditário,
XIX. Visto que este foi desfalcado pelos 1.º a 5.º RR., arrogando-se estes como únicos e legítimos proprietários,
(…)
XXI. Esta é a leitura mais consentânea com a defesa homogénea sustentada pela A./Recorrente
tanto na petição inicial, como ao longo de todo o processo. Relativamente ao pedido constante da alínea b) “Ser anulada a partilha por óbito de FF e GG.”,
(…)
XXIX. Data Vénia, não se descortina a construção lógica exigível e sindicável que levou o Tribunal a quo ao não julgar o pedido da A., ora Recorrente de anulação da partilha por óbito de FF e GG por não terem sido “carreados elementos que permitam concluir pela existência de partilha que os AA. invocam, não podendo o tribunal apreciar e anular um acto que não se consegue apurar que existiu e em que termos”.
XXX. Pelo contrário, existe uma contradição lógica evidente entre a linha de raciocínio que vinha seguindo o Tribunal na fundamentação da douta Sentença e a subsequente decisão.
(…)
XXXIV Os bens que são os discutidos– os prédios rústicos com matriz .. e .. e os prédios urbanos com matriz ... e ... da freguesia ... – que já foi dado, como facto provado, que pertencem ao acervo hereditário de DD e EE,
XXXV. Tendo FF e GG somente direito a uma quota hereditária.
XXXVI. Conclui-se que a construção da decisão do Tribunal a quo, no que a este aspeto concerne, é viciosa, pois que o documento de “Partilha” in casu se reporta à uma partilha de bens por óbito de FF e GG, pais e avós dos 1.ºs a 5.º RR., constando unicamente bens que não pertenciam na totalidade a FF e GG.
XXXVIII. Nos termos do artigo 615.º, n.1, alínea c) do Código do Processo Civil, é nula a Sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Razão pela qual se invoca expressamente a nulidade, seguindo-se o processamento subsequente, nos termos do artigo 617.º do Código do Processo Civil.
XL. Não se deixe de considerar que, deveria o documento de Partilha, uma vez julgado como relevante na fundamentação, ter legitimado (conjugado com a restante prova produzida e já exposta) o pedido de anulação da “Partilha”, nos termos e para os efeitos do artigo 289.º n.º 1 do Código Civil,
XLI. Sendo restituído tudo o que tiver sido prestado e, não sendo possível a restituição em espécie, ser restituído o valor correspondente na medida do enriquecimento dos RR.
(…)
Quanto ao pedido descrito na alínea e) “Serem os RR. condenados, solidariamente, a pagar à A. uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, em valor a apurar e liquidar em execução de sentença, englobando a manifesta má-fé.”,
(…)
LI. Mais do que alegado, foi indubitavelmente provada a responsabilidade civil, como se segue: LII. Os pressupostos da responsabilidade civil conforme prescreve do art.º 483.º do Código Civil são facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
LIII. Ora, relativamente à factualidade acima descrita e já conhecida do Tribunal, dúvidas não restaram ao Tribunal a quo sobre a ilicitude da conduta dos 1.º a 5.º RR.,
LV. Resultando também óbvia a culpa por parte dos RR, visto que eles – encabeçados pelo 1.º R. BB - venderam bens que sabiam não lhes pertencer por Lei,
LVI. Perfeitamente conscientes que lesavam direitos de outrem.
LVII. Culpa esta que se vislumbra dolosa – veja-se factos descritos nos números 37), 40), 41) e 43), ainda que para a responsabilidade bastasse a mera culpa.
LVIII. Avaliando-se o dano, em termos patrimoniais, num valor não inferior a € 16.000,00 (dezasseis mil euros).
LIX. No que se refere ao dano, este não é só de natureza patrimonial.
LX. Os bens subtraídos ao acervo hereditário de DD e EE integravam o património da família há décadas, tendo um grande relevo identitário,
LXI. E acabaram por ser vendidos a terceiros…
LXII. Absolutamente desconhecidos da família, sem que esta tenha tido, pelo menos, conhecimento das referidas vendas.
LXIII. Mesmo sabendo os AA. que provavelmente não conseguirão reaver os bens de família, não pode deixar o Direito de tutelar a sua pretensão indemnizatória deles,
LXIV. por ser esta da mais elementar Justiça!
LXV. Segue cristalino o nexo de causalidade entre a conduta dos 1.º e 5.º RR – venda de património que lhes era alheio – e o dano sofrido, pelos restantes herdeiros, de privação dos bens sonegados à herança.
LXVI. Quanto ao valor da indemnização, a A. remeteu, na petição inicial, o apuramento para execução de sentença,
LXVII. Todavia, como foi este pedido julgado improcedente, entende a A. dada toda a factualidade provada no decorrer da acção que deve a indemnização ser fixada em valor nunca inferior a € 20.000,00 (vinte mil euros), correspondente a € 16.000,00 (dezasseis mil euros) a título de danos patrimoniais e € 4.000,00 (quatro mil euros) a título de danos não patrimoniais. Deve ser dado provimento ao recurso e:
a) Ser considerada nula a Sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão na parte em que concerne à anulação do documento de Partilha por óbito de FF e GG, julgando procedente o pedido da A., ora Recorrente, de anulação da referida partilha.
b). Serem os 1.ºs a 5.º RR. condenados, solidariamente, a pagar, à A., como herdeira da herança aberta de DD e EE, uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.
Não concedendo, deve,
a). Ser anulada a partilha por óbito de FF e GG com os devidos efeitos do 289.º n.º 1 do Código Civil;
b). Serem os 1.ºs a 5.º RR. condenados, solidariamente, a pagar, à A., como herdeira da herança aberta de DD e EE, uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais;
Não houve resposta.

OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).
Em consonância, e atentas as conclusões da recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
I. Saber se a sentença é nula por contradição entre os fundamentos e a decisão quanto ao pedido formulado sob o nº 2 da petição
II. Saber se há erro de direito quanto ao julgamento de improcedência dos pedidos formulados sob os nº 2 e 5 da petição

O MÉRITO DO RECURSO:

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Dá-se aqui por reproduzida a factualidade supra

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

Questão prévia:

1.
O Tribunal da Relação conhece oficiosamente da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto que repute obscura ou contraditória (…) artigo 662, n.º 2, alínea c) do CPC.
Identifica-se nos factos declarados assentes na sentença e convocados ao recurso, conforme transcrição supra, contradição e obscuridade entre os factos provados sob os nº 6, 8 e 9.
Com efeito a sentença declara que (…)
(4. O casal deixou os seguintes bens imóveis: prédios rústicos com os artigos matriciais n.º ... e n.º ... e dois prédios urbanos com os artigos matriciais n.º .. e n.º .., sitos no Lugar ..., na freguesia ..., concelho de Arouca.
5. Os cônjuges não deixaram testamento, nem outra disposição de última vontade. 7. O pai da A. – JJ – faleceu em 16 de dezembro de 1992)
Nos factos 6º e 8º, a sentença declara que:
6. A propriedade destes imóveis passou para os herdeiros legítimos deles, os filhos do casal, entre os quais o pai da A., JJ.
8. Por óbito do pai, a A. sucedeu-lhe como herdeira legítima de parte dos bens deixados pelos avós, acima identificados.
E, no facto 9º, que:
9. Estes bens nunca foram partilhados
Ora, se o tribunal decide “provado que não houve partilha” não pode declarar “provado que a propriedade dos bens passou para os herdeiros”.
Sem prejuízo do facto da asserção “propriedade dos bens” ser obscura, pois não se percebe se esta asserção tem o sentido jurídico da titularidade do direito de propriedade dos imóveis que constituem o acervo hereditária (caso em que seria conclusiva pois não especifica a forma de aquisição do direito), é também contraditória com o facto provado de que “não houve partilha”.
Também é obscura e contraditória com o facto assente em 9 a resposta dada ao facto descrito em 8, já que, não tendo havido partilha, não pode a Autora suceder senão no quinhão hereditário que, como se sabe, não se confunde com os bens concretos e individualizados.
“As respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente. São obscuras quando o seu significado não pode ser apreendido com clareza e segurança” (A Reis, CPC anot Vol IV p 553; apud A Geraldes Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina 2013, p 239)
Consequentemente, eliminam-se as respostas dadas aos pontos 6 e 8 da matéria de facto, porquanto a qualidade de herdeira da Autora e do seu pai na herança dos avós resulta dos factos provados por documento e transcritos nos pontos 1 e 7 da fundamentação de facto, estando também assente que não houve partilha da herança dos seus avós.
2.
A suscitada nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615º/1 alínea c) - CPC):
Verifica-se contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, quando, no seu texto, constem posições inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito.
No caso dos autos, a sentença discorre, na sua fundamentação, que não tendo havido partilha da herança dos avós da Autora, não é mesma proprietária dos bens partilhados pelos 1º a 5º RR. Que a lei não lhes faculta o direito de impugnar a validade deste ato (que não existiu), omitindo a apreciação da legalidade da partilha identificada no pedido formulado sob o nº 2 da petição inicial o que constitui omissão de pronuncia que se suprirá no presente acórdão.
3.
Apreciando o recurso quanto ao pedido formulado sob a alínea 2) da petição inicial de “Ser anulada a partilha por óbito de FF e GG”:
Fundamentos factuais: a causa de pedir: (i)Alegada qualidade de sucessora da Autora na herança indivisa aberta por morte de seu pai, que integra o direito deste à herança, ainda indivisa, aberta por morte dos avós da Autora. (ii) Partilha dos bens pertencentes à herança dos avós da Autora, pelos RR (também herdeiros na herança dos avós, por serem netos) com preterição da Autora e Intervenientes no processo) e subsequente alienação dos imóveis que compõem a herança os 6º e 7º RR.
Constitui-se, em tais termos, a causa de pedir na sucessão mortis causa (qualidade de herdeira da Autora) e subsequente apropriação por outrem de bens da massa hereditária (mediante outorga de partilha dos bens que a compõem) e subsequente invalidade da partilha.
4.
Perante esta fisionomia fática, estaremos em face de uma ação de petição de herança, a qual tem um duplo fim: (i) o reconhecimento judicial do título ou estatuto (de herdeiro) que o autor se arroga; (ii) a integração dos bens que o demandado possui no ativo da herança ou da fração hereditária pertencente ao herdeiro. São requisitos da procedência da ação de petição de herança: (i) qualidade de herdeiro; (ii) que as bens peticionados pertençam à herança; (iii) posse das coisas peticionadas nos RR.
Com efeito, vem sendo entendido pela jurisprudência e doutrina que na petição da herança “a causa de pedir consiste na sucessão mortis causa e na subsequente apropriação por outrem de bens da massa hereditária” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, pág. 131; Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, pág. 41, nota 598). Neste sentido os Acórdãos dos STJ de 29-10-2009 (Cons.º Oliveira Rocha) 577/04.1TVLSB; Acórdão do TRL de 20-01-2011 (Des. Carlos Marinho) 37/08.1TCFUN.L1-8.
Cunha Gonçalves (Tratado, Vol. X, pág. 479) refere que ela não é pessoal, nem real, mas mista: é pessoal, quanto ao reconhecimento da qualidade de herdeiro; é real, quanto à entrega do quinhão de herança, pertencente a este herdeiro".
5.
Trata-se de ação que pode ser intentada por qualquer herdeiro, ainda que desacompanhado dos demais, sem prejuízo dos poderes de administração do cabeça-de-casal (2078º do CC), a todo o tempo, embora sem detrimento das regras da usucapião e da caducidade do direito de aceitar a herança (artigos 2075º, n.º 2, e 2059º, n.º 1, ambos do CC).
As raízes desta demanda petitio hereditatis remontam ao Direito Romano (Santos Justo, “Direito privado romano – V (Direito das sucessões e doações)”, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica, 97, 2009, pp. 147 ss apud acórdão do TRL de 11-12-2018 (Diogo Ravara) 5262/17.1T8FNC.L1-7)
6.
À qualificação da ação como petição de herança não obsta o facto de não ter sido formulado pela Autora pedido expresso de reconhecimento da sua qualidade de herdeira. Neste sentido, decidiu o Acórdão do TRP de 15-12-2010 (Maria Catarina) 802/05.1TBLMG.P1, in dgsi “(…) na ação de petição de herança, não existe verdadeira independência entre os pedidos de reconhecimento da qualidade de herdeiro e o pedido de restituição dos bens pertencentes à herança, sendo que o primeiro constitui apenas o pressuposto no qual tem que assentar a procedência do segundo”.
Este aresto convoca, por analogia, os ensinamentos de Alberto dos Reis quanto à ação de reivindicação (Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, pág. 148) de que a cumulação entre o pedido de restituição e de reconhecimento da qualidade de proprietário é meramente aparente, “na medida em que esses pedidos não são substancialmente distintos e apenas correspondem a duas operações ou atividades que o tribunal tem de desenvolver para atingir o fim último da ação: a condenação na entrega ou restituição da coisa, do que decorre que no pedido de restituição da coisa, sem formulação expressa do pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, este pedido deve considerar-se implícito naquele” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 113, em anotação ao art. 1311º) e os Acórdãos do STJ de 02/12/2008, (Consº Helder Roque) 08A2353 e Acórdãos da Relação do Porto de 18/01/2007 (Des Pinto de Almeida) 0636918; e de 08/11/2001 (Des Mário Fernandes) 0131367; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
7.
Sufragamos este entendimento, também acolhido no Acórdão do STJ 17-12-2014 (Consª Maria Clara Sottomayor) 1313/11.1TBCTB.C1. S1, no qual se defende uma posição substancialista e desformalizadora do processo civil (consultáveis no site www.dgsi.pt).
8
Nos termos expostos, o pedido formulado pela Autora de “Ser anulada a partilha por óbito de FF e GG” não é tecnicamente adequado à petição de herança. No entanto, perante a causa de pedir em que se funda a petição, este pedido concreto cabe quantitativa e qualitativamente na interpretação de ser o mesmo apreciado em função da sua qualidade de herdeira, na herança em que a mesma é titular de quinhão.
9
A petição de herança e a densificação da situação de “posse de bens” (artigo 2017º, n.º 1 do CC), em face da requerida “anulação da partilha” de bens da herança dos avós efetuada pelos RR:
Embora a doutrina frequentemente afirme que os atos possessórios têm natureza material, não têm estes necessariamente de implicar um contacto físico com a coisa, antes podem também assumir a forma de atos jurídicos.
Com efeito, a jurisprudência tem vindo a entender que a posse exercida pelo(s) réu(s) sobre bens imóveis da herança não tem de ser necessariamente constituída por atos materiais, podendo consubstanciar-se em atos jurídicos: Acórdãos do TRL de 11-12-2018 (Des. Diogo Ravara) 5262/17.1T8FNC.L1-7 e de 25 -2- 2021 (Des. Manuel José Aguiar Pereira) 26477/16.4T8LSB-A.L1-6 (consultáveis no site www.dgsi.pt)).
Neste patamar, encontra-se a partilha de bens que consubstancia a adjudicação em concreto de bens a herdeiro, operando uma modificação que viabiliza a correspondente prática de todos os poderes inerentes ao direito respetivo.
Configurado, assim, o direito da Autora como direito ao quinhão hereditário do seu pai na herança indivisa aberta por óbito dos avós da Autora e dos RR, pode esta socorrer-se desta ação para fazer valer o direito estabelecido nos artigos 2075º, n.º 1 e 2078º, ambos do CC.
10.
Cabe finalmente apreciar a anulabilidade da partilha, o que demanda uma prévia incursão sobre a natureza jurídica do negócio.
A partilha é um negócio meramente declarativo já que, como é consabido, é “um negócio certificativo que se destina à concretização do objeto de um direito que já existia anteriormente, embora sobre uma quota ideal” apenas modificado no seu objeto (neste sentido Abílio Neto, Código Civil anotado, Ediforum, 19ª ed-p 1579).
Esta natureza jurídica da partilha tem como corolário que lhe não seja aplicável o regime das nulidades de bens alheios, nos casos em que a mesma ocorre sem que estejam presentes todos os herdeiros, ou nos casos em que incide sobre bens que não pertencem à herança.
11.
Efetivamente, do caráter declarativo da partilha decorre que: (i) a partilha de bens que não pertencem ao acervo hereditário ou sem que nela participem todos os herdeiros, não é nula mas ineficaz em sentido estrito; (ii) não lhe é aplicável o regime previsto para a venda de bens alheios, no artigo 892º por força do artigo 939º, ambos do CC; (iii) também não se poderia atingir a solução da nulidade por força da aplicação conjugada dos artigos 1404º e 1408º, n.º 2 do CC, referentes à aplicação das regras da compropriedade a outras formas de comunhão de direitos, por não significar a partilha a disposição ou oneração de parte especificada da comunhão hereditária; (iv) feita a partilha com preterição de alguns herdeiros, os seus outorgantes vêm subsistir aquilo que as suas vontades livres e não viciadas quiseram, os herdeiros preteridos poderão, por força da referida ineficácia, exigir, como se outra não tivesse existido, a efetivação da partilha, a que têm direito, dando-se sem efeito a anteriormente realizada; (v) enquanto tal não suceder, a primeira partilha permite àquele a quem o bem foi adjudicado o exclusivo da sucessão na posse; (vi) o detentor será, em princípio, um verdadeiro possuidor, salvo se se provar que possui em nome alheio; a não prova da factualidade que integraria o animus, não basta para excluir aquela presunção legal (artigo 1252º, n.º 2 do CC)” in Acórdão do STJ de 20-06-2000 em anotação ao artigo 2119º do CC apud Abílio Neto, Código Civil anotado, Ediforum, 19ª ed-p 1579). 12.
Acresce que não se pode falar de nulidade ou anulação da escritura de partilha de bens se tiverem sido observados os requisitos formais exigidos pela lei. Os efeitos decorrentes de serem falsos os factos declarados são os desta perder a sua capacidade probatória em relação aos factos declarados perante a autoridade pública, quando se demonstre a sua falsidade.
Anota-se que esta questão da validade da escritura foi abordada, quanto à habilitação de herdeiros, por forma que é para aqui válida, mutatis mutandis, no Acórdão do STJ de 1-03-2012, (Consº Granja da Fonseca 180/2000.E1.S1 consultável em www.dgsi.pt): “I - Apesar da escritura notarial de habilitação de herdeiros ser um documento autêntico, o notário que a exarou não garante a veracidade nem a eficácia das declarações que lhe foram feitas (…). Ou seja, os atos e declarações que o notário atesta como tendo sido praticados, emitidos ou prestados perante ele terão o valor jurídico que lhes competir, podendo ser impugnadas pelos interessados, nos termos gerais de direito. II -Provada a falsidade dessas declarações, o documento perde, consequentemente, a sua eficácia como fonte de prova dos factos cobertos pela presunção legal, mas não perde, por isso, a sua existência jurídica nem a sua validade. iii - porque na formação dessa escritura não se preteriu qualquer formalidade que a lei exige, encontrando-se os efeitos da falsidade circunscritos à perda da força probatória do documento, os vícios apontados não geram a nulidade ou anulabilidade da escritura notarial de habilitação de herdeiros (…)”.
Acresce que decorre do artigo 17.º n.º 2 do Código de Registo Predial que da declaração de nulidade do registo efetuado com base em título de aquisição falso não resultam afetados os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, desde que – e esse é o índice da boa fé dos adquirentes que o legislador assumiu – o registo desses atos seja anterior ao registo da ação de anulação, pelo que não tem qualquer interesse para esta ação, atentos os factos provados (ser esta ação posterior ao registo das aquisições dos 6º e 7º RR).
13.
Concordamos que, em face dos factos provados na sentença a partilha efetuada pelos 1º a 5º RR é ineficaz em relação à Autora, enquanto herdeira, e apenas nesta qualidade. A Autora, consequentemente, pode vir exigir a partilha da herança dos avós, nos precisos termos dos artigos 2101º e 2102º, ambos do CC.
O facto de ter sido formulado pedido de anulação da partilha não obsta a que o tribunal decrete a ineficácia da mesma de acordo com a jurisprudência do acórdão uniformizador n.º 3/01, de 23 de Janeiro (DR I-A, de 9-2-01), que facultou ao juiz a correção oficiosa, em ação de impugnação pauliana, do pedido de «declaração de nulidade ou anulação» do negócio impugnado para o de «ineficácia» do ato em relação ao autor.
Procede, assim, parcialmente este segmento do recurso. 14.
Quanto ao pedido formulado pela Autora, cuja reapreciação vem suscitada de:
“Serem os RR condenados, solidariamente, a pagar, à A. uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, em valor a apurar e liquidar em execução de sentença, englobando a manifesta má-fé”.
É manifesta a improcedência desta parte do recurso.

A autora funda esta pretensão na responsabilidade extracontratual consagrada no artigo 483º do CC.
Se, por um lado, litigando a Autora na reclamada qualidade de herdeira, não pode vir invocar outros pretensos direitos desgarrados dessa qualidade e, como tal, reportados ao património hereditário encabeçado pelos herdeiros fundados em alegada lesão na sua esfera jurídica pessoal, por outro lado, caber-lhe-ia provar os factos constitutivos do pretenso direito indemnizatório (facto, culpa, nexo de causalidade e dano), os quais não resultam sequer dos factos provados, contrariamente, ao sustentado no recurso.
Os factos descritos na sentença atenta a invocada qualidade de herdeira da Autora não preenchem tais requisitos, desde logo no que respeita ao pressuposto da “lesão de direito ou de norma destinada a proteger direito…”, pois a Autora não detém um direito individualizado e concretamente determinável sobre os bens que compõem a herança, mas apenas o direito a uma quota ideal.
Não se impõe por desnecessário neste segmento do recurso um maior desenvolvimento para fundamentar a sem razão da Recorrente.
15.
Cabe, a este respeito referir, que, conforme resulta do artigo 2076º, n.º 2 do CC, não havendo lugar à restituição de bens na ação de petição de herança, porque os bens da herança foram alienados a terceiro de boa fé pelo herdeiro aparente, o disponente fica responsável pelo valor dos bens alienados. Mas, esta responsabilidade é em relação à herança, ou seja, à totalidade dos co-herdeiros nos quais se inclui a Autora, sendo o respetivo montante a apurar precisamente na partilha que vier a ser efetuada.

SEGUE DELIBERAÇÃO:

PROCEDE PARCIALMENTE O RECURSO, REVOGA-SE PARCIALMENTE A SENTENÇA DECLARANDO-SE INEFICAZ EM RELAÇÃO À AUTORA A PARTILHA DE BENS EFETUADA PELOS 1º A 5º RR EM 27-11-2015 DOS BENS IMÓVEIS DESCRITOS NO PONTO 4 DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO DA SENTENÇA.
Custas, por ambas as partes, na proporção do decaimento.

Porto, 21 de Abril de 2002
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
Madeira Pinto