CONTRA ORDENAÇÃO
LICENÇA
DEFERIMENTO TÁCITO
Sumário

I - O deferimento tácito não depende do cumprimento dos requisitos legais que condicionam o deferimento expresso do pedido de licenciamento, nem o prazo legal para se formar o deferimento tácito poderia ser “interrompido” por uma actividade administrativa, ocorrida depois de esse prazo se ter consumado. Decorre do mero decurso do tempo e da existência de uma norma legal que atribua ao silêncio o efeito jurídico do deferimento. É o que nos diz o art. 130º, 1 do CPA: “1 - Existe deferimento tácito quando a lei ou regulamento determine que a ausência de notificação da decisão final sobre pretensão dirigida a órgão competente dentro do prazo legal tem o valor de deferimento”.
II - Assim, não obsta à formação de deferimento tácito a falta de requisitos legais que condicionam o deferimento. E estamos perante um silêncio a que a lei atribui o efeito jurídico de deferimento sempre que se verifiquem os respectivos requisitos, ou seja, sempre que a lei atribua ao silêncio o valor de deferimento da pretensão e tenha decorrido o respectivo prazo.
III - O artigo 17º da Lei nº 64/2007, de 14/3, estipula que, para que o deferimento tácito valha como licença, é necessário: “o documento comprovativo da regular submissão do respectivo pedido, acompanhado do comprovativo de pagamento das taxas eventualmente devidas”. No presente caso, (i) está demonstrada a submissão do pedido de licenciamento, (ii) está demonstrado que decorreu um prazo superior a 30 dias, sem notificação da decisão administrativa, (iii) mas não está demonstrado o pagamento das taxas devidas. Deste modo, não havia uma licença tácita válida para todos os efeitos legais, por falta de um dos respectivos requisitos. Nos termos do art. 11º do Dec. Lei 64/2007, de 14/3, “1 - Os estabelecimentos abrangidos pelo presente decreto-lei só podem iniciar a actividade após a concessão da respectiva licença de funcionamento, sem prejuízo do disposto nos artigos 37º e 38º; 2 - A instrução do processo e a decisão do pedido de licença de funcionamento são da competência do Instituto da Segurança Social, I. P.” E nos termos do artigo 39º-B do mesmo diploma, “Constituem infrações muito graves: a) A abertura ou o funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado nem disponha de autorização provisória de funcionamento válida.”
IV - Do referido regime legal resulta que constitui contra-ordenação muito grave a abertura e funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado. No presente caso não havia licenciamento, pois, como vimos, apesar do deferimento tácito, faltava o outro requisito legalmente exigido - pagamento das taxas devidas. Daí que, embora com uma fundamentação diversa, a decisão recorrida esteja certa, ou seja, em 05-02-2018 (data da acção inspectiva) a arguida não tinha um licenciamento válido para o estabelecimento ora em causa.

Texto Integral

Recurso Penal 304/21.9T9MAI.P1

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
1.1. Nos autos de contraordenação acima referenciados, a sociedade “O... Unipessoal, Lda.”, com sede na Rua ..., ..., Maia, cm o NISS ..., foi condenada pela prática da contraordenação p. e p. nos termos do artigo 30º do DL n.º 133-A/97, de 30.05, por remissão do n.º 1 do artigo 45º do DL n.º 64/2007, de 14.03.
1.2. Inconformada com a condenação, a arguida impugnou judicialmente a decisão da autoridade administrativa, tendo a final sido proferida a seguinte decisão:
“(…)
1. Não declarar a nulidade da decisão administrativa.
2. Não considerar inconstitucional o montante da coima aplicada.
3. Negar provimento ao recurso, assim se mantendo a decisão administrativa em apreço no sentido de condenar a recorrente “O..., LDA” pela prática da contra-ordenação prevista no disposto no artigo 11º, do DL n.º 64/2007, de 14.03, nos termos do artigo 30º do DL n.º 133-A/97, de 30.05, por remissão do n.º 1 do artigo 45º do DL n.º 64/2007, de 14.03, na coima de €20 000,00 (vinte mil euros).
4. Condenar a recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (artigo 8º, n.º 7 e Tabela III anexa ao R. C. Processuais).
Notifique e comunique à Unidade de Apoio à Direcção, Núcleo de Assuntos Jurídicos e Contencioso da Segurança Social (artigo 70.º, n.º 4 do R.G.C.O.).
(…)”
1.3. Inconformada com a decisão judicial que confirmou a decisão da autoridade administrativa e, consequentemente, manteve a respectiva condenação, a arguida recorreu para este Tribunal da Relação do Porto, concluindo:
1º A Arguida e Recorrente vem condenada, por decisão confirmada na douta sentença recorrida, em coima de € 20.000,00 pela prática da contraordenação prevista na alínea a) do art. 39º-E do DL 64/2007 de 14/03, na sua última redacção, por violação do disposto no n.1º do art. 11º do mesmo diploma.
2º Conforme referido no requerimento de recurso da decisão administrativa o facto imputado à Arguida subsume-se à abertura de estabelecimento de apoio social sem que para tanto possua prévio licenciamento.
3º A decisão aplicada, e confirmada pela douta sentença ora recorrida, baseia-se nos factos dados como provados, os quais constam da parte A) de tal decisão, onde são referidos dois estabelecimentos de apoio social.
4º Desconhece-se a que estabelecimento respeita tal decisão, o que inquina todo o processado e a douta sentença ora recorrida.
5º A decisão tomada pela entidade administrativa é nula.
6º A douta sentença ora recorrida manteve tal condenação, tentando corrigir o erro em causa, situação que é legalmente inadmissível, sendo por conseguinte igualmente nula.
7º O pedido de licenciamento em causa encontrava-se tacitamente deferido, não podendo prevalecer o entendimento da douta sentença recorrida quanto à interrupção de tal prazo por força da notificação a que alude.
8º O montante da coima é atentatório dos princípios da proporcionalidade e legalidade sendo, por conseguinte, inconstitucional.
9º O conteúdo essencial do preceito previsto no n.º1 do art. 61° da Constituição da República Portuguesa é atingido de forma desproporcionada.
10º A coima em causa deveria ter no seu valor mínimo o mesmo que se encontra estabelecido para as pessoas singulares, devendo ser proferida nestes autos decisão neste sentido.
11º Encontra-se demonstrado que a Arguida e Recorrente terá agido com negligência.
12º O regime sancionatório não prevê distinção para a punição para negligência ou dolo.
13º Teremos, assim, que mantendo-se a decisão de aplicação da coima em causa tal como configurada pela entidade administrativa e pela douta sentença recorrida, terá o valor da coima de ser reduzida a metade conquanto se tratará de comportamento negligente.
14º A douta decisão recorrida viola o disposto nos arts. 18º, 61º n.º 1 e 204º da Constituição da Republica Portuguesa e o art. 32º do DL n.º 433/82 de 27 de Outubro.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso em causa ser admitido, com subida imediata, sendo julgando procedente e, por via disso, proferida decisão que dando cumprimento ao disposto no art. 75º n.º 2 do DL n.º 433/82 de 27 de Outubro determine a revogação da sentença proferida, absolvendo a Arguida e Recorrente ou, assim não entendendo, reduzindo a coima ao valor mínimo previsto para as pessoas singulares ou a metade do valor previsto como mínimo legal no regime existente, assim se fazendo Douta e Sã Justiça.”
1.4. Respondeu o MP junto do Tribunal “a quo”, pugnando pela improcedência do recurso, referindo que o mesmo “(…) não deverá terminar de outra forma que não pela manutenção da decisão administrativa, concordando, plenamente, com os fundamentos que constam da aludida sentença de fls. 261 a 277.
Aliás, o presente recurso não acrescenta qualquer argumento novo relativamente ao já alegado em sede de recurso de impugnação da decisão administrativa, tendo sido já, a nosso ver, devidamente apreciadas todas as questões suscitadas, pelo que não temos qualquer argumento novo a acrescentar à sentença recorrida (…)”.
1.5. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, sublinhando que “(…) o DL 64/2007 de 14/03, que define o regime jurídico de instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social geridos por entidades privadas, posteriormente alterado pelo DL 33/2014 de 4.03, no seu Preâmbulo lê-se, designadamente, “a necessidade de combater estas práticas ilícitas sancionando-as de forma rigorosa é premente, particularmente no que concerne ao exercício ilegal de atividades de apoio social, que funcionam ao arrepio dos mais elementares direitos dos cidadãos, adultos e crianças ou, jovens institucionalizados, e que o Estado tem o dever de proteger, regulando mais eficazmente, porque envolvem pessoas de grande vulnerabilidade social.”
Na verdade o legislador pretende que o sancionamento de estabelecimentos como aquele que está em causa nos autos, que funcionam ilicitamente, à margem da lei e das instituições reguladoras ou de supervisão, deve ser sancionado de forma dissuasora, de modo a impedir a sua proliferação, até porque se trata de atividades associadas frequentemente a situações de exploração económica, desumanidade e maus tratos a pessoas vulnerabilizadas.
Termos em que deve improceder o recurso e manter-se a decisão recorrida (…)”
1.6. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º, 2, do CPP.
1.7. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto:
1. A arguida “O... Unipessoal, Lda.” NISS ... e NIF ... é proprietária de um estabelecimento lucrativo de apoio social a idosos, a funcionar na Rua ... – ...- Maia, que tem como ..., AA, NISS ....
2. Em 11.10.2017 deu entrada no Instituto de Segurança Social, IP, um requerimento da arguida dos autos, a solicitar o licenciamento para abertura da actividade de Lar e Centro de Dia, para a morada do estabelecimento dos autos.
3. Em 15.11.2017, deu entrada no Instituto de Segurança Social, IP, um requerimento da arguida dos autos, a solicitar o licenciamento para a abertura da actividade de Lar e Centro de Dia para o estabelecimento da arguida sito na Rua ..., ....
4. Em data que não foi possível apurar, foi dado início ao Processo de Licenciamento n.º ../2018, para a resposta social de Centro de Dia (CD) para o estabelecimento sito na Rua ..., ....
5. Em data que não foi possível apurar, foi dado início ao Processo de Licenciamento n.º 03/2018, para a resposta social de Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI), para o estabelecimento sito na Rua ..., ....
6. No dia 5.02.2018, pelas 10h45, data da acção de fiscalização, o referido estabelecimento encontrava-se a funcionar, sem para tal estar titulado por licença ou autorização provisória de funcionamento.
7. Na data da acção inspectiva, o estabelecimento acolhia 8 utentes, a saber: BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II.
8. Os utentes, pelos serviços prestados, pagavam mensalidades que variavam entre os €750,00 (setecentos e cinquenta euros) e os €800,00 (oitocentos euros).
9. Em 7.02.2018, o Núcleo de Respostas Sociais solicitou à entidade Gestora “O... Unipessoal, Lda.”, o envio da documentação em falta, no processo de Licenciamento n.º ../2018, para a resposta social de Centro de Dia, a funcionar na Rua ..., ..., Maia.
10. Em data que não foi possível apurar, a entidade requerente veio apresentar um requerimento a desistir do pedido de licenciamento que originou o processo n.º ../2018.
11. Em 23.12.2019, a arguida veio aos autos apresentar uma declaração, na qual refere que desde o dia 19.11.2019, a sociedade não se encontra a prosseguir qualquer actividade de Lar e/ou Centro de Dia, em Portugal ou no estrangeiro.
12. Em 14.01.2020, foi a arguida notificada para a presentar o documento (cópia do Acordo de Revogação do Contrato de Arrendamento) relativo ao espaço sito na Rua ..., ..., Maia.
13. Até à presenta data, a arguida não deu resposta ao solicitado.
14. Por despacho de 14.01.2020, foi a arguida notificada pelo Núcleo de Respostas Sociais da UDS do Centro Distrital do Porto da extinção do procedimento referente ao Processo de Licenciamento n.º 01/2018 nos termos do disposto no artigo 131º do CPA.
15. A arguida não agiu com o cuidado e o dever a que estava obrigada e lhe era exigível em função das circunstâncias do caso em apreço, não tendo observado as regras inerentes ao exercício da actividade social da ERPI, sujeita ao prévio licenciamento e/ou autorização provisória de funcionamento e prosseguiu a referida actividade social ilicitamente.
Uma última nota para assinalar que não levamos à factualidade provada ou não provada os factos constantes da impugnação judicial, por se tratarem de meros conceitos de direito e/ou factos conclusivos.
MOTIVAÇÃO
O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações das testemunhas inquiridas, interpretadas em função das regras da experiência comum e da normalidade e mais considerando o acervo documental junto aos autos.
Tivemos assim em consideração as declarações da legal representante da recorrente, AA, que confirmou quase na íntegra a factualidade que demos como apurada, esclarecendo que adquiriu o estabelecimento em causa, sito na Rua ... por trespasse e que aquando da aquisição a anterior proprietária lhe verbalizou que o lar se encontrava já licenciado, no que acreditou, pois, segundo as suas palavras, estava afixada à entrada o Alvará para funcionamento.
Todavia, jamais indagou junto da Segurança Social da veracidade de tal informação, enviando os documentos para licenciamento e aguardando a resposta daquela entidade.
Esteve presente aquando da fiscalização efectuada, confirmando o número de utentes que ali se encontravam acolhidos e o valor pelos mesmos pago, sendo certo que informou as inspectoras que havia já dado entrada de um processo de licenciamento e as mesmas nada lhe disseram no sentido de que teria que fechar o estabelecimento, mas tão só que aguardasse a resposta da Segurança Social.
Desde então não mais respondeu a qualquer solicitação da Segurança Social.
Já a testemunha JJ, inspectora da Segurança Social e que de forma objectiva e circunstanciada esclareceu ter efectuado a inspecção ao lar que a recorrente explorava, constatando que se encontrava em funcionamento sem o respectivo licenciamento, sendo certo que nada viu afixado nesse sentido, nem nada informou pois não lhe competia essa função.
A recorrente informou que tinha dado entrada de um processo de licenciamento, mas o mesmo corre noutro departamento ao qual não pertence e após a inspeção enviou toda a documentação com a informação que recolheu, onde apontou diversas fragilidades, para outro departamento, propondo a sanção acessória de encerramento.
A testemunha KK, inspectora da Segurança Social, e que acompanhou a anterior testemunha na inspecção efectuada, esclareceu de forma descomprometida e serena aquilo que havia constatado aquando da inspecção ao lar de idosos explorado pela recorrente, apontando diversas falhas no seu funcionamento, que exarou no relatório remetido ao centro distrital com a proposta da sanção acessória de encerramento.
Mais adiantou que lhe foi exibido um pedido de licenciamento e que existindo licença em nome de outros proprietários, tem que existir a instrução de novo processo, não permitindo que o lar esteja aberto.
Por fim, a testemunha LL, marido da proprietária AA, esclareceu que aquando da aquisição do lar, através de trespasse, os anteriores proprietários asseveraram que o mesmo estava legalizado. Todavia, passados poucos dias, já na Segurança Social foram informados que inexistia qualquer licença de funcionamento e que o mesmo estava ilegal.
Aquando do trespasse, estava afixado no lar a licença e o alvará, tanto mais que o Lar se encontrava já em funcionamento, motivo pelo qual adiantou que aquando da deslocação à Segurança Social, a técnica os informou que não ia enviar qualquer inspecção, mas que teriam que dar início ao processo de licenciamento de imediato.
Todavia, em 2019 acabaram por encerrar o estabelecimento que abriram em 2017.
Quanto a este depoimento, não se mostrou credível a versão apresentada, no sentido que de, mesmo sendo ilegal, a técnica da segurança social lhes assegurou que não seria inspecionado, mas que o processo de licenciamento teria de ser instruído rapidamente.
Não nos merece qualquer credibilidade o depoimento em causa quando aduz que uma técnica lhe assegurou que jamais iria enviar uma inspecção ao lar, sabendo que o mesmo se encontrava em situação ilegal, sabendo nós, tal como os demais, que uma das prioridades da Segurança Social quanto a este assunto é não permitir a abertura ou manutenção em funcionamento de lares que estejam em situação ilegal, através de diversas inspecções que vai realizando, sobretudo sendo do conhecimento que o mesmo não obedecia a uma série de requisitos impostos legalmente.
Por isso que este depoimento não logrou convencer-nos na parte respeitante a esta temática.
Finalmente, a nossa convicção assentou ainda na análise dos documentos juntos aos autos e que sedimentam a nossa convicção no sentido de que a recorrente tinha pleno conhecimento da ilegalidade em que incorria ao manter o estabelecimento em funcionamento sem licença ou autorização provisória de funcionamento, designadamente o auto de notícia de fls. 3-34 onde são apontadas as diversas falhas do lar, designadamente a ausência de licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento, mencionando por diversas vezes que se tratava do Lar sito na Rua ..., ..., Maia, inexistindo qualquer equívoco quanto à sua identificação, tal como havia invocado a recorrente para concluir pela nulidade da decisão administrativa por falta de factos que identificassem o estabelecimento a que se aludia.
Ora, resulta à saciedade deste “relatório” que todo o processo inspectivo versou sobre o lar em causa, bastando para tanto uma leitura, ainda que mais cuidada daquele documento para inexistirem quaisquer dúvidas. Aliás, aquando da notificação para proceder ao pagamento da coima, a mesma foi dirigida à recorrente, indicando-se na morada a Rua ..., ... (fls. 34.1-34.2), missiva enviada pela Segurança Social solicitando a documentação em falta de fls. 46-47, com a informação de que “(…) Informa-se que, caso a documentação acima mencionada não seja enviada a este Centro Distrital, no prazo estipulado, o requerimento será indeferido por falta de elementos necessários à instrução do processo de emissão da licença de funcionamento, podendo, contudo, o mesmo ser prorrogado a pedido da entidade gestora (…)”; missiva enviada à ACT de fls. 48.1 a 48.5; Declaração de fls. 75; acto societário de fls. 86-87; email de fls. 97-98; sentença de de declaração de insolvência da recorrente de fls. 122-124; acordo de revogação de contrato de arrendamento de fls. 163-165.
Face ao exposto, da concatenação da prova testemunhal produzida e documental junta aos autos, constatamos que a recorrente tinha em pleno funcionamento o Lar em questão sem para tanto ter obtido a respectiva licença ou autorização provisória de funcionamento.

2.2. Matéria de direito
A arguida insurge-se contra a sentença que confirmou a decisão da autoridade administrativa e, consequentemente, manteve a respectiva condenação na coima de €20 000,00 (pela prática da contra-ordenação prevista no disposto no artigo 11º, do DL n.º 64/2007, de 14.03, nos termos do artigo 30º do DL n.º 133-A/97, de 30.05, por remissão do n.º 1 do artigo 45º do DL n.º 64/2007, de 14.03), imputando-lhe vários vícios: (i) nulidade da decisão administrativa, por desconhecimento do “estabelecimento a que respeita” a decisão”, sendo que essa nulidade “inquina todo o processado e a douta sentença recorrida”; (ii) nulidade da sentença recorrida por ter “tentado corrigir o erro em causa”; (iii) existência de deferimento tácito do pedido de licenciamento em causa, “não podendo prevalecer o entendimento da douta sentença recorrida, quanto à interrupção de tal prazo, por força da notificação a que alude”; (iv) inconstitucionalidade do montante da coima, por violação do art. 61º, 1 da CRP; (v) redução a metade do montante da coima, por estar demonstrado que agiu com negligência.
Vejamos as questões suscitadas, seguindo a respectiva ordem de arguição.
(i) Nulidade da decisão administrativa por desconhecimento do “estabelecimento a que respeita a decisão”, sendo que tal nulidade “inquina todo o processado e a douta sentença recorrida”.
Alega a recorrente que, conforme disse logo no requerimento de impugnação judicial da decisão administrativa, o facto imputado à arguida subsume-se à abertura de estabelecimento de apoio social sem que, para tanto, possuísse prévio licenciamento. A decisão aplicada (e confirmada pela sentença ora recorrida) baseia-se nos factos dados como provados, constantes do segmento A) de tal decisão, onde são referidos dois estabelecimentos de apoio social. Desconhece (a arguida) a que estabelecimento respeita tal decisão, o que inquina todo o processado e a sentença ora recorrida. Conclui assim que a decisão tomada pela entidade administrativa é nula.
Esta alegação é, como vamos ver, manifestamente improcedente.
A sentença recorrida demonstrou exuberantemente ser possível saber, ainda que com uma leitura mais cuidada, qual o estabelecimento de apoio social aberto ao público, sem prévio licenciamento, ou seja, o situado na Rua ..., .... Com efeito, na fundamentação da matéria de facto, referiu a sentença:
“(…)
Ora, resulta à saciedade deste “relatório” que todo o processo inspectivo versou sobre o lar em causa, bastando para tanto uma leitura, ainda que mais cuidada daquele documento para inexistirem quaisquer dúvidas. Aliás, aquando da notificação para proceder ao pagamento da coima, a mesma foi dirigida à recorrente, indicando-se na morada a Rua ..., ... (fls. 34.1-34.2), missiva enviada pela Segurança Social solicitando a documentação em falta de fls. 46-47, com a informação de que “(…) Informa-se que, caso a documentação acima mencionada não seja enviada a este Centro Distrital, no prazo estipulado, o requerimento será indeferido por falta de elementos necessários à instrução do processo de emissão da licença de funcionamento, podendo, contudo, o mesmo ser prorrogado a pedido da entidade gestora (…)”; missiva enviada à ACT de fls. 48.1 a 48.5; Declaração de fls. 75; acto societário de fls. 86-87;
(…)”.
A sentença esclareceu ainda que:
“(…)
Finalmente, a nossa convicção assentou ainda na análise dos documentos juntos aos autos e que sedimentam a nossa convicção no sentido de que a recorrente tinha pleno conhecimento da ilegalidade em que incorria ao manter o estabelecimento em funcionamento sem licença ou autorização provisória de funcionamento, designadamente o auto de notícia de fls. 3-34 onde são apontadas as diversas falhas do lar, designadamente a ausência de licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento, mencionando por diversas vezes que se tratava do Lar sito na Rua ..., ..., Maia, inexistindo qualquer equívoco quanto à sua identificação, tal como havia invocado a recorrente para concluir pela nulidade da decisão administrativa por falta de factos que identificassem o estabelecimento a que se aludia.
(…)”
Como vimos, a sentença recorrida deu como assente que uma leitura (ainda que mais cuidada) do relatório inspectivo permitia saber qual a localização do estabelecimento de apoio social aberto ao público, sem prévio licenciamento. Esta circunstância – isto é, o conhecimento pela arguida do concreto estabelecimento aberto sem prévio licenciamento – é matéria de facto. Os factos podem ser “do mundo exterior (factos externos: uma convenção oral ou escrita, um choque de viaturas, a morte de uma pessoa, etc.), como os da vida psíquica (factos internos: o dolo, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção, etc.)” – MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1976, pág. 193
No domínio das contraordenações, não é admissível recurso da decisão judicial proferida em primeira instância sobre matéria de facto – art. 75º, 1º, do Dec. Lei 433/82, de 27/10. Tanto basta, pois, para que o recurso não seja, nesta parte, admissível.
É certo que, não obstante o disposto no art. 75º, 1 do Dec. Lei 433/82, de 27/10, é sempre admissível recurso, nos termos e com o âmbito do art. 410º, 2 do CPP, designadamente por erro notório na apreciação da prova. Todavia, exige-se que este erro, para além de ser “notório”, resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum (art. 410º 2 do CPP). No presente caso, a avaliação que a decisão recorrida fez do texto da decisão administrativa e respectivo procedimento prévio, quanto ao facto de estar em causa o estabelecimento situado na Rua ... ..., não enferma de erro notório. A fundamentação da sentença (acima transcrita) indica os elementos objectivos através dos quais era possível saber qual o estabelecimento em causa, sem que seja evidente qualquer erro de avaliação.
Deste modo, é manifesta a improcedência do recurso, também neste segmento.
(ii) Nulidade da sentença recorrida, por ter “tentado corrigir o erro em causa”.
Considera a arguida/recorrente que a sentença é nula, por ter “tentado corrigir o erro” da decisão administrativa. Esta questão está logicamente prejudicada pelo que anteriormente decidimos sobre a ausência de qualquer nulidade (desconhecimento ou erro notório). Não existindo a apontada nulidade da decisão administrativa, também não existe a alegada tentativa de correcção desse vício.
Daí que, também nesta parte, seja manifesta a improcedência do recurso.
(iii) Existência de deferimento tácito do pedido de licenciamento em causa, “não podendo prevalecer o entendimento da douta sentença recorrida, quanto à interrupção de tal prazo, por força da notificação a que alude”.
Alega no essencial a arguida que, no caso, houve um deferimento tácito do pedido de licenciamento e, portanto, o estabelecimento estaria licenciado, não se verificando assim a contraordenação por que foi condenada.
Vejamos.
A sentença recorrida apreciou esta questão nos seguintes termos:
“(…)
Ademais, dispõe ainda o artigo 17º do mesmo diploma legal (Dec. Lei DL n.º 64/2007, de 14.03) já que invocado pela recorrente que “1. O Instituto da Segurança Social, I.P., profere decisão devidamente fundamentada, sobre o pedido de licenciamento no prazo de 30 dias a contar da data de recepção do requerimento. 2. Decorrido o prazo referido no número anterior sem que o Instituto da Segurança Social, IP, tenha proferido decisão sobre pedido de licenciamento, a pretensão considera-se tacitamente deferida, valendo como licença para todos os efeitos legais o documento comprovativo da regular submissão do respectivo pedido, acompanhado do comprovativo de pagamento das taxas eventualmente devidas. 3- O requerimento é indeferido quando não forem cumpridas as condições e requisitos previstos no presente decreto-lei.”
Ora, pretendia a recorrente beneficiar deste deferimento tácito, em virtude, segundo alega, após a apresentação do pedido de licenciamento, a Segurança Social não se ter pronunciado decorridos que se mostravam cerca de 77 dias.
Sucede porém que pra poder beneficiar deste deferimento tácito, impor-se-ia que o pedido de licenciamento estivesse instruído com todos os elementos solicitados, o que, in casu, não ocorreu.
Aliás, decorre da lei que vale como licença para todos os efeitos legais o documento comprovativo da regular submissão do respectivo pedido.
Olvida, porém, a recorrente que lhe foi enviada notificação por banda daquela entidade solicitando a remessa de um conjunto de documentos com a expressa INFORMAÇÃO de que “(…) caso a documentação acima mencionada não seja enviada a este Centro Distrital, no prazo estipulado, o requerimento será indeferido por falta de elementos necessários à instrução do processo de emissão da licença de funcionamento, podendo, contudo, o mesmo ser prorrogado a pedido da entidade gestora (…).”
Por este motivo, jamais poderia a recorrente beneficiar do deferimento tácito que invoca, por falta de cumprimento dos requisitos impostos para tanto, concluindo-se assim que se encontrava em funcionamento em clara violação da lei, pela ausência de licença ou autorização provisória de funcionamento.
(…)”.
Por seu turno, dos factos provados resulta o seguinte:
1. A arguida “O... Unipessoal, Lda.” NISS ... e NIF ... é proprietária de um estabelecimento lucrativo de apoio social a idosos, a funcionar na Rua ... – ...- Maia, que tem como ..., AA, NISS ....
2. Em 11.10.2017 deu entrada no Instituto de Segurança Social, IP, um requerimento da arguida dos autos, a solicitar o licenciamento para abertura da actividade de Lar e Centro de Dia, para a morada do estabelecimento dos autos.
9. Em 7.02.2018, o Núcleo de Respostas Sociais solicitou à entidade Gestora “O... Unipessoal, Lda.”, o envio da documentação em falta, no processo de Licenciamento n.º ../2018, para a resposta social de Centro de Dia, a funcionar na Rua ..., ..., Maia.
(…)”.
Tendo em atenção os factos dados como provados e o direito aplicável é, desde logo, patente que a argumentação da sentença recorrida não está certa. Com efeito, o deferimento tácito não depende do cumprimento dos requisitos legais que condicionam o deferimento expresso do pedido de licenciamento, nem o prazo legal para se formar o deferimento tácito poderia ser “interrompido” por uma actividade administrativa, ocorrida depois de esse prazo se ter consumado.
Na verdade, o deferimento tácito decorre do mero decurso do tempo e da existência de uma norma legal que atribua ao silêncio o efeito jurídico do deferimento. É o que nos diz o art. 130º, 1 do CPA:
1 - Existe deferimento tácito quando a lei ou regulamento determine que a ausência de notificação da decisão final sobre pretensão dirigida a órgão competente dentro do prazo legal tem o valor de deferimento”.
Assim, não obsta à formação de deferimento tácito a falta de requisitos legais que condicionam o deferimento. E estamos perante um silêncio a que a lei atribui o efeito jurídico de deferimento sempre que se verifiquem os respectivos requisitos, ou seja, sempre que a lei atribua ao silêncio o valor de deferimento da pretensão e tenha decorrido o respectivo prazo.
No caso dos autos, em 11.10.2017, deu entrada no Instituto de Segurança Social, IP, um requerimento da arguida a solicitar o licenciamento para abertura da actividade de Lar e Centro de Dia, do estabelecimento sito na Rua ..., ..., Maia (factos 1 e 2), e só em 07-02-2018 a entidade administrativa solicitou o envio da documentação em falta.
Os factos em causa neste processo, isto é, a abertura ao público do estabelecimento de apoio social (Lar e Centro de Dia), sem licenciamento prévio, ocorreram no dia 05-02-2018 (data da acção inspectiva).
O artigo 17º do Dec. Lei DL n.º 64/2007, de 14.03 dispõe o seguinte:
1. O Instituto da Segurança Social, I.P., profere decisão devidamente fundamentada, sobre o pedido de licenciamento no prazo de 30 dias a contar da data de recepção do requerimento.
2. Decorrido o prazo referido no número anterior sem que o Instituto da Segurança Social, IP, tenha proferido decisão sobre pedido de licenciamento, a pretensão considera-se tacitamente deferida, valendo como licença para todos os efeitos legais o documento comprovativo da regular submissão do respectivo pedido, acompanhado do comprovativo de pagamento das taxas eventualmente devidas.
3- O requerimento é indeferido quando não forem cumpridas as condições e requisitos previstos no presente decreto-lei.
Dado que na data da acção inspectiva - em 05-02-2018 - já tinham decorrido mais de 30 dias desde o requerimento dirigido ao Instituto de Segurança Social, IP, a pedir o licenciamento da actividade, a pretensão da ora arguida estava “totalmente deferida(tacitamente).
O argumento da sentença, de que a pretensão não satisfazia os requisitos legais, não afasta, assim a existência, em 05-02-2018, de um deferimento tácito. Mesmo que esse deferimento tácito fosse susceptível de anulação (por ser ilegal) e o acto proferido em 07-02-2018 pudesse ser visto como uma intenção de proceder ao indeferimento expresso (o que equivaleria à intenção de proceder à anulação do acto tácito, com fundamento em ilegalidade, art. 168º, 1, do CPA), ainda assim, enquanto não fosse proferido o acto expresso, valia na ordem jurídica o acto de deferimento tácito.
Daí que, nesta medida, a sentença não tenha uma fundamentação exacta.
Todavia, daí não resulta que a arguida, em 05-02-2018, estivesse em condições de exercer a actividade e estar aberta ao público.
O citado e transcrito artigo 17º da Lei nº 64/2007, de 14/3, estipula que, para que o deferimento tácito valha como licença, é necessário: “o documento comprovativo da regular submissão do respectivo pedido, acompanhado do comprovativo de pagamento das taxas eventualmente devidas”. No presente caso, (i) está demonstrada a submissão do pedido de licenciamento, (ii) está demonstrado que decorreu um prazo superior a 30 dias, sem notificação da decisão administrativa, (iii) mas não está demonstrado o pagamento das taxas devidas. Deste modo, não havia uma licença tácita válida para todos os efeitos legais, por falta de um dos respectivos requisitos.
Nos termos do art. 11º do Dec. Lei 64/2007, de 14/3, “1 - Os estabelecimentos abrangidos pelo presente decreto-lei só podem iniciar a actividade após a concessão da respectiva licença de funcionamento, sem prejuízo do disposto nos artigos 37º e 38º; 2 - A instrução do processo e a decisão do pedido de licença de funcionamento são da competência do Instituto da Segurança Social, I. P.” E nos termos do artigo 39º-B do mesmo diploma, “Constituem infrações muito graves: a) A abertura ou o funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado nem disponha de autorização provisória de funcionamento válida.”
Do referido regime legal resulta que constitui contra-ordenação muito grave a abertura e funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado. No presente caso não havia licenciamento, pois, como vimos, apesar do deferimento tácito, faltava o outro requisito legalmente exigido - pagamento das taxas devidas. Daí que, embora com uma fundamentação diversa, a decisão recorrida esteja certa, ou seja, em 05-02-2018 (data da acção inspectiva) a arguida não tinha um licenciamento válido para o estabelecimento ora em causa.
Assim, improcede também esta vertente do recurso, embora com fundamentação diversa.
(iv) inconstitucionalidade do montante da coima, por violação do art. 61º, 1 da CRP.
Alega a arguida que a norma que prevê o montante da coima é inconstitucional, por violação do art. 61º, 1 da CRP.
A sentença recorrida abordou esta questão, concluindo: “não se vislumbra que a fixação do montante mínimo da coima em € 15.000,00, relativamente às pessoas colectivas, viole o princípio da proporcionalidade”.
O regime sancionatório aplicável vem regulado no Dec. Lei 64/2007, de 14/03, na redacção do Dec. Lei 33/2014, de 04/03, nos seguintes termos:

Artigo 39.º-B
Infrações muito graves
Constituem infrações muito graves:
a) A abertura ou o funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado nem disponha de autorização provisória de funcionamento válida;
(…)
Artigo 39.º-E
Coimas
Às infrações previstas nos artigos 39º-B a 39º-D são aplicáveis as seguintes coimas:
a- Entre 20 000,00 EUR e 40 000,00 EUR, para a infração muito grave referida na alínea a) do artigo 39.º-B;
(…)”.
Artigo 39.º-F
Negligência e tentativa
1 - Os ilícitos de mera ordenação social previstos no presente capítulo são punidos a título de dolo ou de negligência.
(…)”
Artigo 39.º-G
Limites máximos e mínimos das coimas
1 - Os limites máximos e mínimos das coimas previstas no presente decreto-lei aplicam-se quer às pessoas singulares quer às pessoas coletivas, sendo reduzidos a metade quando aplicáveis a entidades que não tenham finalidade lucrativa.
(…)”
O arguido questiona, como vimos, a constitucionalidade do art. 39º-B, al. a) do Dec. Lei 64/2007, na redacção do Dec. Lei 33/2014, de 04/03, na medida em que fixa o limite mínimo da multa em € 20.000,00. Entende que este regime sancionatório viola o art.61º, 1 do CRP, segundo o qual “1. A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”.
Importa sublinhar desde logo que a norma do art. 61º, 1 da CRP, ao garantir o direito ao exercício livre da iniciativa económica privada, é uma norma programática e, portanto, dirigida ao legislador ordinário. Tal decorre literalmente do teor do referido preceito, quando remete para “os quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”. Quer isto dizer que a Constituição remete para o legislador ordinário a competência para regular a iniciativa privada, tendo em conta (além do mais) o interesse geral.
Ora, a fixação do limite mínimo da coima em €20.000,00, para a contraordenação em causa, não se mostra desproporcionada, atenta a gravidade da actividade ilícitaabertura ou funcionamento de um estabelecimento que acolhe pessoas idosas, sem prévio licenciamento válido. O legislador pretendeu garantir o regular funcionamento desse tipo de estabelecimento, tendo em conta a especial vulnerabilidade dos seus utentes. A existência de coimas de montante significativo para quem se aventure, sem licença, nessa actividade, é adequada à defesa dos respectivos bens jurídicos.
De resto, foi este o sentido da alteração dos montantes das coimas, como decorre do preâmbulo do Dec. Lei 33/2014, de 04/03:
“(…)
A necessidade de combater estas práticas ilícitas sancionando-as de forma rigorosa é premente, particularmente no que concerne ao exercício ilegal de atividades de apoio social, que funcionam ao arrepio dos mais elementares direitos dos cidadãos, adultos e crianças ou jovens institucionalizados, e que o Estado tem o dever de proteger, regulando mais eficazmente, porque envolvem pessoas em situação de grande vulnerabilidade social.
(…)”
Deste modo, julgamos que o regime sancionatório ora em causa, acima transcrito, não exorbita o âmbito dos poderes de conformação da Ordem Jurídica atribuído ao legislador ordinário, improcedendo assim a invocada inconstitucionalidade.
v) Redução a metade do montante da coima, por estar demonstrado que a arguido agiu com negligência.
Neste segmento, a arguida alega que agiu com negligência e, portanto, o montante da coima deve ser reduzido a metade, uma vez que o regime não prevê distinção para a punição do dolo ou da negligência.
Como é bom de ver, esta argumentação é manifestamente improcedente.
Em matéria de escolha das sanções, a autoridade administrativa e o tribunal estão vinculados à lei.
No domínio da lei anteriormente aplicável, havia efectivamente uma distinção entre as contraordenações praticadas com dolo e com negligência. O art. 34º do Dec. Lei 133-A/97, de 30 de Maio, estabelecendo o regime de licenciamento e fiscalização dos estabelecimentos e serviços de apoio social no âmbito da segurança social, para onde remetia a Lei 64/2007, antes da alteração introduzida pelo Dec. Lei 33/2014, de 04/03, dizia: “Os limites mínimos e máximos das coimas previstas neste diploma aplicam-se quer às pessoas singulares quer às pessoas colectivas, sendo reduzidos a metade quando aplicáveis a entidades que não tenham finalidade lucrativa, ou nos casos de negligência”.
O regime em vigor na data em que foi cometida a contraordenação aqui em causa, acima transcrito, manteve a redução dos limites a metade, apenas relativamente às entidades que não tenham finalidade lucrativa.
A alteração da lei mostra-nos assim que o legislador quis efectivamente que a mera negligência apenas relevasse na escolha concreta da coima e não na delimitação dos seus limites abstractos, e daí que a lei nova tivesse excluído essa circunstância na definição da moldura abstracta da coima (redução a metade do limite mínimo, nos casos de negligência) como ocorria anteriormente. Deste modo, não tem qualquer fundamento a pretensão da arguida (redução a metade do montante da coima aplicada), uma vez que essa pretensão está, por força do princípio da legalidade, excluída do âmbito de poderes do Tribunal. Os Tribunais, apesar de independentes, “(…) estão sujeitos à lei”, como refere expressamente o artigo 203º da CRP. É certo que os Tribunais podem não aplicar as normas que julguem inconstitucionais (art. 204º da CRP) mas, como já vimos, não é esse o caso dos presentes autos.
Daí que, também neste segmento, o recurso não mereça provimento.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela arguida, fixando a taxa de justiça em 4 UC.

Porto, 27/04/2022
Élia São Pedro
Donas Botto
Francisco Marcolino