LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
QUEIXA
EXERCÍCIO DE DIREITO
Sumário

Do teor do requerimento do ofendido, invocando essa qualidade, onde alega ter apresentado queixa na GNR, e solicita a apensação dos autos a outro processo mais antigo, onde as situações aí descritas são conexas, por terem sido os mesmos agentes a praticar os mesmos crimes contra o mesmo ofendido, e bem assim do requerimento de constituição como assistente, onde invoca a qualidade de ofendido, ambos deduzidos antes de decorrido os 6 meses para apresentação de queixa, é manifesto que o ofendido, invocando essa qualidade, revelou de forma nítida e sem qualquer dúvida, a sua vontade de que tivesse lugar procedimento criminal contra o arguido e pelos factos que descreveu, sendo tal suficiente para que se considere ter exercido o direito de queixa, e dentro do prazo previsto no artigo 115º, do C.Penal.

Texto Integral

Processo nº 626/19.9GDGDM.P1
Relatora: Amélia Catarino

Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
No processo comum (Tribunal Singular) nº 626/19.9GDGDM, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Gondomar, juiz 2, foi proferida, com data de 06.09.2021, a decisão seguinte:
“1. RELATÓRIO
O Ministério Público deduziu acusação, requerendo o julgamento pelo tribunal singular, de AA, filho de BB e de CC, ..., Gondomar, nascido a .../.../1970, casado, titular do cartão de cidadão n.º ..., residente na Rua ..., ..., Gondomar, imputando-lhe a prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, n.º 1 do Código Penal e um crime de ameaça p. p. pelo artigo 153º, n.º 1 do Código Penal.
O assistente DD apresentou acusação particular, imputando ao arguido a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181º, nº 1 do CP.
Apresentou ainda pedido de indemnização civil reclamando do arguido a quantia de €5.450,00.
O arguido apresentou contestação negando a prática dos factos que lhe são imputados.
Foi proferido despacho de cognição liminar e designada data para audiência de julgamento.
Realizou-se a audiência.
2. Questão Prévia
O crime de dano e o crime de ameaça pelos quais o arguido está acusado revestem natureza semipública (cfr. artºs 212º, nº 3 e 153º, nº 2 do CP).
O crime de injúria, por seu turno, reveste natureza particular (cfr. artº 188º do CP).
Atenta a economia de cada uma das acusações, verifica-se ser DD o titular do interesse legalmente protegido com cada uma daquelas condutas, maxime, o ofendido.
Compulsado o texto de cada uma daquelas peças processuais, verificamos que há factos reportados aos dias 21 e 22 de agosto de 2019 que não foram trazidos aos autos pelo ofendido, outrossim, pela sua mulher e pela sua filha durante as inquirições de fls. 60 e 62.
Porém, o vício que afeta cada uma das acusações em causa é mais fundo.
Isto porque, se verificarmos quer o auto de notícia de fls. 3 e ss., quer o auto de inquirição do ofendido de fls. 41 e ss., logo veremos que em nenhuma dessas ocasiões o mesmo referiu pretender a instauração de procedimento criminal contra o arguido.
Na nossa legislação processual penal e no tocante à legitimidade do MºPº para a promoção do processo, foi seguida a classificação tripartida dos crimes, com base num critério distintivo assente em razões de política criminal essencialmente pragmáticas (atinentes à gravidade das infrações, à natureza dos interesses ofendidos, às consequências para o próprio ofendido da instauração do processo crime) [2]. Temos, assim, crimes particulares (relativamente aos quais é necessário que a pessoa que detém o direito de queixa de acordo com o disposto no art. 113º do C. Penal se queixe, e constitua assistente e deduza acusação particular- cfr. art. 50º nº 1 do C. Penal), semipúblicos (relativamente aos quais é necessário que o titular do direito de queixa dê conhecimento do facto ao MºPº - cfr. art. 49º nº 1 do C. Penal) e públicos (relativamente aos quais o MºPº tem, em regra, legitimidade para prover o processo limitações). Na prática, a destrinça faz-se através da exigência contida na norma penal, tendo o crime natureza particular ou semipública se for exigida acusação particular ou queixa, respetivamente, e natureza pública caso a lei nada estabeleça a esse respeito.
Ora, “O simples relato dos factos no auto elaborado pela PSP e, posteriormente, o teor dos depoimentos dos ofendidos colhidos durante o inquérito, desacompanhados de manifestação inequívoca de vontade no sentido de que o arguido fosse alvo de perseguição criminal pela prática dos factos suscetíveis de integrarem crimes […], que lhe vieram a ser imputados na acusação deduzida pelo M.P., não são suficientes para conferir a este legitimidade para a promoção do processo relativamente àqueles ilícitos”. Ac. TRE de 14.10.2014 http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/cff5c1f5f9fe8b9b80257de10056ff1d?OpenDo cument
A queixa não é um mero relato de factos, é a manifestação expressa de uma vontade de que o agente do crime seja perseguido criminalmente.
Em se tratando de crimes semipúblicos ou particulares, como já vimos, a queixa será, além do mais, condição de procedibilidade para que o MºPº promova o inquérito.
No caso dos autos inexiste qualquer queixa, havendo, outrossim, um mero relato de factos desacompanhado de uma manifestação inequívoca de que o ofendido quisesse a instauração de procedimento criminal contra o arguido.
Como tal, carecia o MºPº de legitimidade para promover o processo, vício que aqui se assinala.
Como é jurisprudência pacífica, o despacho tabelar que declare não haver vícios de que cumpra conhecer, mas não aprecie em concreto questões de que só posteriormente se dá conta, não produz efeito de caso julgado.
No caso dos autos, o despacho de fls. 125 não tomou posição sobre esta concreta questão, pelo que não se esgotou aí o poder jurisdicional do tribunal.
Penitenciando-se o signatário por não ter- como devia- detetado tal vício quando proferiu tal despacho tendo deixado os autos prosseguirem para julgamento, não o pode, todavia, ignorar, agora que o mesmo se revelou de forma ostensiva no momento da prolação da sentença.
Lamenta-se, assim, o transtorno causado e a frustração das expectativas dos sujeitos processuais, mas não pode deixar de se sancionar um vício quando dele se dá fé, ainda que os efeitos no processo sejam graves.
Nessa decorrência, nada mais resta ao tribunal que determinar o arquivamento dos autos, por ilegitimidade do MºPº para prosseguir a ação penal quanto aos crimes de natureza semipública e do assistente quanto ao crime de natureza particular.
Sem custas.
Notifique.
Face ao supra decidido, sobrevém uma impossibilidade legal do conhecimento do pedido de indemnização civil (artº 71º CPP).”

Inconformado o Ministério Público veio interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação e formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

1 - Nos termos dos artigos 212º, n.º 3 e 153º, n.º 2, o procedimento criminal pelos crimes de dano e de ameaça, depende de queixa e o crime de injuria de queixa e acusação particular (artigo 188º do Código Penal);
2 – Nos termos do artigo 48º do Código de Processo Penal o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal com as restrições constantes nos artigos 49º a 52º do citado diploma;
3 – Nos termos do artigo 49º do Código de Processo Penal, o Ministério Público só pode promover o procedimento se o ofendido lhe tiver dado conhecimento dos factos através da formalização de uma queixa;
4 – A queixa é um ato voluntário, uma declaração destinada a produzir efeitos jurídicos em que o ofendido manifesta ao Ministério Público a vontade de que seja punido quem for criminalmente responsável, só assim podendo haver impulso processual quer nos crimes particulares quer nos crimes semipúblicos.
5- A queixa por crimes semipúblicos ou particulares não está sujeita a formalidades especiais;
6 - Necessário e essencial é que dos termos da queixa ou dos que se lhe seguirem se conclua que exista uma inequívoca vontade do ofendido de que seja exercida a ação penal, o que se verificou no caso sub judice.
Face ao exposto deverá a sentença proferida ser anulada e ordenado o prosseguimento dos autos.”

Admitido o recurso, o arguido veio responder pugnando pelo seu não provimento.

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de ser julgado provido o recurso porquanto, quer da denúncia, rectius, queixa, quer dos atos que se lhe seguiram, designadamente o pedido de constituição como assistente, é possível concluir ter existido inequívoca vontade do titular do direito de queixa de que fosse exercida a ação penal.

No âmbito do artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido respondeu pugnando pela improcedência do recurso.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objecto:
- decidir se nos presentes autos foi ou não exercido o direito de queixa quanto aos crimes de natureza semipública, designadamente os crimes de dano, p. p. pelo art. 212º nº 1, do C. Penal, e de ameaça, p. p. pelo art. 153º, nº 1, do mesmo diploma legal, bem como do assistente quanto ao crime dependente de acusação particular, p. p. pelo art. 181º nº 1, do C. Penal, imputados ao arguido nestes autos, e se o Ministério Público tem ou não legitimidade para prosseguir a ação penal.

II. Do Recurso
Para decidir a questão colocada nestes autos de recurso importa ter presente os factos seguintes, resultantes da consulta dos autos:
1- No dia 26 de agosto de 2019, DD deslocou-se ao Posto territorial de da GNR ..., onde declarou que nos dias 08 e 15.08.2019, pelas 23.30 horas, o suspeito AA o começou a ameaçar e a atirar tijoleiras de cerâmica contra a sua casa provocando danos nas telhas, nas persianas e nos vidros.
2- Referiu ainda que o mesmo quando o vê começa com ameaças, dizendo que o vão atropelar, que vai comprar uma arma e os vai matar, que vai fazer mal à sua família, por entre as ameaças o suspeito profere várias injurias, chamando o lesado de “filho da puta” e “corno”.
3- Esta situação começou quando a esposa do lesado testemunhou contra o suspeito, desde essa altura as ameaças e os danos têm sido constantes.
4- Por requerimento de 12 de setembro de 2019, a fls. 10, o ofendido alegando ter apresentado queixa na GNR em 26.08.2019 à qual foi atribuído o NUIPC 626/19.9GDGDM, vem solicitar a apensação ao processo nº 360/18.7GDGDM, mais antigo, onde as situações aí descritas são conexas, sendo certo que foram os mesmos agentes a praticar os mesmos crimes contra o mesmo ofendido.
5- A fls. 34, e em 29 de outubro de 2019, o ofendido veio requerer a constituição como assistente, o que foi admitido por despacho de fls. 56.
6- O ofendido foi inquirido a fls. 49 e referiu que não se recorda da data dos factos mas recorda-se que foi este ano (2019) e que foi lá a policia na data dos factos.
7- Por requerimento de fls. 92, datado de 4 de agosto de 2020. DD veio deduzir acusação particular e requerer o julgamento do arguido por crime de injúrias, ameaças e dano, e deduziu pedido de indemnização cível.
Apreciemos então, face aos factos supra enunciados, se foi ou não exercido o direito de queixa quanto aos crimes de natureza semipública, designadamente os crimes de dano, p. p. pelo art. 212º nº 1, do C. Penal, e de ameaça, p. p. pelo art. 153º, nº 1, do mesmo diploma legal, bem como do assistente quanto ao crime dependente de acusação particular, p. p. pelo art. 181º nº 1, do C. Penal, imputados ao arguido nestes autos, e se o Ministério Público tem ou não legitimidade para prosseguir a ação penal.
Nos termos do artigo 49º, nº1 do CPP “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.
E de acordo com o artigo 50.º n.º 1 e 2, do CPP “Quando o procedimento criminal depender da acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular (n.º 1); O Ministério Público procede oficiosamente a quaisquer diligências que julgar indispensáveis à descoberta da verdade e couberem na sua competência, participa em todos os actos processuais em que intervier a acusação particular, acusa conjuntamente com esta e recorre autonomamente das decisões judiciais” e 52.º n.º 1 “No caso de concursos de crimes, o Ministério Público promove imediatamente o processo por aqueles para que tiver legitimidade [...]”.
O artº 113º nº1 do CP sob a epígrafe de (Titulares do direito de queixa), dispõe que:
“1- Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.”
E no artº 115º nº1 do CP, estabelece-se que “1- O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz”.
Acerca da formalidade da efectivação da queixa constatamos que “tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto.” in Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 663, §1059.
E o mesmo autor escreve “Não se torna necessário por outro lado, que a queixa seja como tal designada; e é mesmo irrelevante que seja qualificada de outra forma pelo seu autos v.g. como denúncia, acusação etc. Tão-pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto de jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar o procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substracto fáctico que descreve ou menciona.” Adiantando ainda que a queixa é um pressuposto processual (pressuposto positivo da punição), “cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efetivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser”.
Também o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, pp. 51 e 52 refere que «A queixa não é senão a transmissão ao MP da notícia de um crime semipúblico ou particular e da manifestação de vontade que o MP abra um processo para o processamento do agente do crime // «(…) na queixa (…) exige-se (…) uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para averiguação da notícia» do crime «e procedimento contra o agente responsável.».
E, a aquisição da notícia do crime, por parte do Ministério Público, no caso por via da apresentação de queixa, dá lugar à abertura de inquérito, ressalvadas as situações previstas na lei (cfr. artigo 262º, nº. 2, do C.P.P.).
Nos termos do artigo 262º, nº. 1, do C.P.P., “1 - O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.”
Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2016, Almedina, pág. 80, diz-nos que “o inquérito compreende um conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime – investigar a existência de um conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança de acordo com o artigo 1º, alínea a), do C.P.P. – determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigos 277º e 283º do C.P.P.).”
Também a jurisprudência debruçando-se sobre o conteúdo da queixa, tem entendido que o que não se dispensa é que dos seus termos ou dos que se lhe seguirem se conclua, de modo inequívoco, a manifestação de vontade de perseguir criminalmente os autores de um facto ilícito, o que sucede claramente quando, segundo o auto de notícia, o ofendido DD compareceu no dia 26 de agosto de 2019, no Posto territorial de da GNR ..., onde declarou que nos dias 08 e 15.08.2019, pelas 23.30 horas, o suspeito AA o ameaçou dizendo que o vai atropelar, que vai comprar uma arma e os vai matar, que vai fazer mal à sua família, e que, por entre as ameaças o suspeito profere várias injurias, chamando o lesado de “filho da puta” e “corno e atira tijoleiras de cerâmica contra a sua casa provocando danos nas telhas, nas persianas e nos vidros, situação que começou quando a esposa do lesado testemunhou contra o suspeito, tendo descrito os factos que imputa ao arguido, no desenrolar da queixa, submeteu-se às diligências levadas a cabo no inquérito instaurado e, chegado o momento oportuno, constituiu-se assistente nos autos, deduzindo, com apoio judiciário, pedido cível, e acusação particular.
No mesmo sentido o Acórdão do TRP de 27 de outubro de 2010, em que é Relatora Exmª Desembargadora LÍGIA FIGUEIREDO, defende que “O pedido de constituição de assistente por quem invoca a qualidade de ofendido consubstancia uma inequívoca vontade de procedimento criminal, valendo como queixa”.
Uma referência ainda ao acórdão do TRG de 7-01-2008, CJ, 2008, T1, pág.294, no qual se defende que “Tanto a lei penal como a lei processual penal são omissas quanto à forma da queixa. Basta para tal que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra o agente do facto que descreve.”
Atentos os factos supra descritos é manifesto que o ofendido, invocando essa qualidade, revelou de forma nítida e sem qualquer dúvida, a sua vontade de que tivesse lugar procedimento criminal contra o aqui arguido e pelos factos que descreveu, sendo tal suficiente para que se considere ter exercido o direito de queixa, e dentro do prazo previsto no artigo 115º, do CP.
Acrescentamos ainda, em apoio a esta posição que, por requerimento de 12 de setembro de 2019, a fls. 10, o ofendido, invocando essa qualidade, veio solicitar a apensação ao processo nº 360/18.7GDGDM, mais antigo, onde as situações aí descritas são conexas, sendo certo que foram os mesmos agentes a praticar os mesmos crimes contra o mesmo ofendido, e aí alegou ter apresentado queixa na GNR em 26.08.2019 à qual foi atribuído o NUIPC 626/19.9GDGDM.
Ora, do teor daquele requerimento de fls. 10, datado de 12.09.2019 e bem assim do requerimento de constituição como assistente, datado de 29.10.2019, ambos deduzidos antes de decorrido os 6 meses para apresentação de queixa, se conclui que o recorrente manifesta uma vontade inequívoca de procedimento criminal contra o arguido, valendo tal como queixa, que exerceu dentro do prazo (artigo 115º, do CP).
Como refere o senhor PGA “Na verdade, foi o próprio ofendido quem denunciou o evento naturalístico, o que inculca, sem necessidade de utilização de outras fórmulas ou referências profusamente explicativas, que revelou indubitavelmente a sua vontade de que tivesse lugar procedimento criminal contra o agente denunciado.
Por isso se dirigiu ao posto policial para apresentar queixa (sendo irrelevante que fls. 3 conste como auto de noticia e se chame ao ofendido de denunciante) e não com outra finalidade, e por isso que requereu a sua constituição como assistente.
Aliás, foi notificado nos termos e para os efeitos do art. 75 e segs, do CPP, documentou que assinou – fls. 7e 8.
E requereu a apensação aos presentes autos, do nuipc nº 360/18.7GDM – fls. 10.
Se não quisesse a instauração de procedimento criminal contra o denunciado, seguramente não tinha feito denúncia, prescindia da notificação de fls. 7 e 8, não tinha atuado nos termos demonstrados a fls. 10, nem posteriormente tinha requerido a sua constituição como assistente.”
Em conclusão, entendemos que nos presentes autos foi tempestivamente exercido o direito de queixa quanto aos crimes de natureza semipública, designadamente os crimes de dano, p. p. pelo art. 212º nº 1, do C. Penal, e de ameaça, p. p. pelo art. 153º, nº 1, do mesmo diploma legal, bem como do assistente quanto ao crime dependente de acusação particular, p. p. pelo art. 181º nº 1, do C. Penal, imputados ao arguido nestes autos, e que o Ministério Público tem legitimidade para prosseguir a ação penal, julgando-se provido o recurso.

III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª secção criminal, em conceder provimento ao recurso e consequentemente:
a) revogar a decisão recorrida e considerar que foi tempestivamente exercido o direito de queixa quanto aos crimes de natureza semipública, designadamente os crimes de dano, p. p. pelo artigo 212º, nº 1, do CP, e de ameaça, p. p. pelo artigo 153º, nº 1, do CP, bem como do assistente quanto ao crime de injurias, dependente de acusação particular, p. p. pelo artigo 181º, nº 1, do CP, imputados ao arguido nestes autos, e que o Ministério Público tem legitimidade para a acção penal.
b) determinar o prosseguimento dos autos com a prolação de sentença, pelo mesmo Tribunal, em que apure e concretize a eventual responsabilidade penal do arguido, emergente dos factos provados;

Sem Custas.

Porto, 04 de maio de 2022
Amélia Catarino
Maria Joana Grácio
Francisco Marcolino

(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94º, n.º 2, do CPP)