INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS SUBORDINADOS
PESSOAS ESPECIALMENTE RELACIONADAS COM O DEVEDOR
Sumário

I - No âmbito do processo de insolvência, consideram-se créditos subordinados, entre outros, os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição.
II - No caso do devedor ser uma pessoa coletiva, são havidas como especialmente relacionados com o devedor, entre outras, as pessoas (singulares ou coletivas) que, independentemente da localização do seu domicílio, tenham exercido sobre a sociedade devedora, direta ou indiretamente, uma influência dominante, impondo de modo estável a respetiva vontade no seio da estrutura organizativa de outra sociedade, através da determinação do sentido das decisões dos respetivos órgãos deliberativos e, mediatamente, das decisões dos respetivos órgãos de administração; bem como as entidades que estejam entre si numa relação de grupo, tal qual qualificadas pelo Código das Sociedades Comerciais, seja por simples participação, mediante participações recíprocas, através de domínio ou de relações de grupo.
III - Além disso, sempre que uma pessoa singular ou coletiva, disponha da maioria dos direitos de voto, possa exercer a maioria dos direitos de voto, nos termos de acordo parassocial ou possa nomear ou destituir a maioria dos titulares dos órgãos de administração ou de fiscalização, presume-se, “iuris et de iure” uma relação de domínio, constitutiva também de uma relação especial apta a qualificar os créditos detidos pelo dominante como créditos subordinados.
IV - Essa relação de domínio, no entanto, que se destina a controlar a sociedade dominada, não se confunde com a relação de predomínio económico, que seja apta apenas a influenciá-la.
V - Provando-se apenas que o único gerente da sociedade credora é, desde determinada altura, também sócio da sociedade insolvente e que, com a aquisição desta última qualidade, a insolvente passou a ser fornecida por aquela credora com matéria-prima e esta, por sua vez, a ser a sua principal compradora do produto acabado, sem se conhecerem, todavia, as razões para esse entrosamento comercial, não se pode concluir que haja qualquer relação de domínio ou de grupo, nos termos legalmente estipulados, nem consequentemente, que haja entre as duas sociedades uma relação especial capaz de justificar a qualificação dos créditos da referida credora como subordinados.

Texto Integral

Processo n.º 1349/21.4T8AMT-A.P1

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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto,


I- Relatório
1- Declarada a insolvência da sociedade, M..., Ldª, foi pelo respetivo Administrador da Insolvência apresentada a Relação de Créditos Reconhecidos e não Reconhecidos, na qual, além do mais, reconheceu à sociedade, V... SARL, um crédito comum no montante de 508.808,60€.
2- Contra este reconhecimento manifestou-se a credora, AA, sustentando, em resumo, que o referido crédito deve ser reconhecido como subordinado, porquanto se trata de crédito detido por pessoa especialmente relacionada com o devedor.
3- A sociedade V... SARL, respondeu pugnando pela solução contrária, uma vez que, em resumo, inexiste qualquer relação de domínio ou de grupo para com a Insolvente.
4- Por sua vez, o Administrador da Insolvência, também respondeu aceitando a impugnação da credora, AA, e admitindo que o crédito da sociedade V... SARL deva ser qualificado como crédito subordinado, o que foi, de novo, refutado por esta sociedade, em contraditório subsequente.
5- Seguidamente, foi proferida sentença na qual, para além do mais, se qualificou o crédito reclamado pela sociedade, V... SARL, como crédito subordinado[1], graduando-o em conformidade.
Isto porque, em síntese, a referida credora tem um maior acesso a informação quanto à situação da insolvente, em virtude do seu gerente único ser também sócio da sociedade insolvente, o que lhe permite exercer esse domínio, uma vez que está numa situação privilegiada relativamente aos demais credores.
6- Discordando deste entendimento e decisão, recorre a aludida sociedade, V... SARL, finalizando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
1. A sentença proferida pelo Tribunal “a quo” em 13/02/2022, retificada por despacho proferido em 18/02/2022, na parte em que o crédito da Recorrente foi declarado como subordinado consubstancia uma errada aplicação da Lei.
2. O Tribunal “a quo” sustentou a referida decisão no entendimento (errado) de que a Recorrente seria pessoa especialmente relacionada coma Sociedade Insolvente, por alegadamente ter estado com a Sociedade Insolvente em relação de domínio, nos termos do artigo 21.º do CVM, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
3. A enumeração dos casos em que os créditos são considerados subordinados constante do art.º 49.º ex vi art.º 48.º, al. a) do CIRE é taxativa e corresponde, portanto, a um “numerus clausus”, ou seja, a uma norma de definição completa (cfr. transcrição supra de excerto do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 15/2014 do Supremo Tribunal de Justiça).
4. A situação fática dos autos não se subsume à previsão de nenhuma das alíneas do n.º 2 do art.º 49.º do CIRE – subsunção esta necessária à verificação de uma relação especial entre a Recorrente e a Sociedade Insolvente.
5. A Recorrente não é sócia, associada ou membro que responda legalmente pelas dívidas da Sociedade Insolvente, nem teve esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (cfr. art.º 49.º, n.º 2, al. a), “a contrario” do CIRE).
6. A Recorrente não é administradora, de direito ou de facto, da Sociedade Insolvente, nem o foi em nenhum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (cfr. art.º 49.º, n.º 2, al. c), “a contrario” do CIRE).
7. A Recorrente não é pessoa relacionada com a Sociedade Insolvente por nenhuma das formas referidas no n.º 1 do art.º 49.º do CIRE por não ter qualquer grau de parentesco, nem qualquer relacionamento com a Sociedade Insolvente por força de uma vida em economia comum com a mesma (cfr. art.º 49.º, n.º 1, als. a), b), c) e d), “a contrario” ex vi art.º art.º 49.º, n.º 2, al. d) do CIRE).
8. Finalmente, a Recorrente também não constitui uma pessoa que tenha estado com a Sociedade Insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do art.º 21.º do Código dos Valores Mobiliários (doravante, “CVM”), como exige a alínea b) do n.º 2 do art.º 49.º do CIRE.
9. Desde logo porque, no caso dos autos, a Recorrente não dispõe da maioria dos direitos de voto; nem tem poder para exercer a maioria dos direitos de voto, nos termos de acordo parassocial; nem tem poder para nomear ou destituir a maioria dos titulares dos órgãos de administração ou de fiscalização, como exige o disposto no art.º 21.º, n.º 2 do CVM.
10. Também não colhe o argumento de uma alegada influência dominante sobre a Sociedade Insolvente decorrente da circunstância de o gerente da Recorrente, o senhor BB, ser também sócio da Sociedade Insolvente.
11. Tanto que a quota do gerente da Recorrente era meramente minoritária, não resultando da mesma qualquer posição de domínio ou situação de informação privilegiada da Recorrente relativamente aos demais credores da Sociedade Insolvente.
12. Aliás, o gerente da Recorrente nem sequer era gerente da Sociedade Insolvente, nem credor da mesma (não tendo sequer reclamado quaisquer créditos nos autos).
13. Há igualmente uma distinção entre a personalidade jurídica do gerente da Recorrente, o senhor BB (pessoa singular) e a personalidade jurídica da própria Recorrente, a V... SARL (pessoa coletiva), que afasta qualquer confusão de interesses entre as esferas jurídicas patrimoniais de um e de outra.
14. No caso dos autos, o titular do crédito impugnado é a Recorrente V... SARL, pessoa coletiva que nada tem a ver com a Sociedade Insolvente, a não ser a qualidade de credora sobre esta.
15. O crédito cuja natureza se discute consubstancia um crédito proveniente de fornecimentos, realizados no âmbito do objeto social de ambas as sociedades, no mais elementar exercício do comércio, nada tendo a ver com créditos detidos pelo gerente da Recorrente.
16. O facto de se ser o principal cliente de uma empresa que depois vem a ser declarada insolvente não estabelece qualquer relação de domínio ou de grupo nem torna o respetivo crédito subordinado...
17. Acresce que a impugnante AA incumpriu com o ónus da prova que sobre ela recaía, designadamente da alegada relação de domínio existente da Recorrente para com a Sociedade Insolvente (cfr. art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil e art.º 25.º, n.º 2 ex vi art.º 134.º, n.º 1 do CIRE).
18. A impugnante limitou-se a aventar normas sem concretizar qualquer subsunção dos factos às normas, nada tendo demonstrado sobre a possibilidade da Recorrente (pessoa coletiva): discorda maioria dos direitos de voto (cfr. art.º 21.º, n.º 2, al. a) do CVM); exercer a maioria dos direitos de voto, nos termos de acordo parassocial (cfr. art.º 21.º, n.º 2, al. b) do CVM); e nomear ou destituir a maioria dos titulares dos órgãos de administração ou de fiscalização (cfr. art.º 21.º, n.º 2, al. c) do CVM).
19. A impugnante nem sequer refere qual dos referidos índices entendeu encontrar-se preenchido no caso dos autos.
20. Por sua vez, o Tribunal “a quo” tampouco concretizou o quer que fosse, ficando-se por um breve e vago apontamento sobre uma pretensa “superioridade informativa”, nada mais referindo a respeito.
21. O Tribunal “a quo” parece ter configurado (erradamente) a situação “sub judice” como uma situação de “lacuna oculta” (cfr. pág. 13 da sentença recorrida).
22. O Tribunal “a quo”, ao ter atribuído (erradamente) à Recorrente o estatuto de pessoa especialmente relacionada por se lhe afigurar que a situação do respetivo gerente ser simultaneamente sócio (minoritário) da Sociedade Insolvente assim o justificava, fez uma integração analógica (art. 10.º do Código Civil),
23. Uma vez que a interpretação levada a cabo pelo Tribunal “a quo” envolveu a introdução de uma nova categoria de pessoa especialmente relacionada com o devedor insolvente que não consta do elenco taxativo resultante do artigo 49.º do CIRE.
24. O Tribunal “a quo” usa o argumento de uma pretensa teleologia da classificação dos créditos como subordinados para justificar a aplicação da regra contida no art.º 49.º do CIRE à situação dos autos.
25. Acontece que não se pode concluir sem mais que o legislador tivesse deixado de ponderar a hipótese em questão nos autos.
26. Pelo contrário: na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. art.º 9.º, n.º 3 do Código Civil).
27. O legislador optou por uma solução mais restrita no art.º 49.º do CIRE, não tendo, propositadamente, contemplado a hipótese dos autos.
28. E, neste contexto, o Tribunal “a quo” não podia ter invocado uma justificação idêntica para ultrapassar a solução legal.
29. Tratando-se o disposto no art.º 49.º do CIRE de uma tipologia taxativa, não se admite quaisquer outros casos além dos previstos naquele dispositivo legal, encontrando-se vedado o recurso à analogia.
Em suma,
30. Ao julgar procedente a impugnação efetuada pela credora AA e, consequentemente, ao declarar como subordinado o crédito da Recorrente, o Tribunal “a quo” violou as disposições conjugadas dos art.º 48.º e 49.º do CIRE, do art.º 21.º do CVM e ainda do art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil e do art.º 25.º, n.º 2 ex vi art.º 134.º, n.º 1 do CIRE, uma vez que as normas jurídicas decorrentes de tais disposições deveriam ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal “a quo” no sentido da improcedência daquela impugnação e, consequentemente, no sentido da declaração como comum do crédito da Recorrente, o que se requer”.
Termina pedindo que se conceda provimento ao presente recurso e, revogando a sentença recorrida, se declare como comum o crédito de que é titular.
7- A credora, AA, respondeu pugnando, com base essencialmente na sua anterior posição, pela confirmação do julgado.
8- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso
A- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do presente recurso, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações da recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil (CPC)], cinge-se a saber se o crédito reclamado pela Apelante deve ser classificado como um crédito comum ou como um crédito subordinado.
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B- Fundamentação de facto
Na sentença recorrida, julgaram-se provados os seguintes factos:
1- O Sr. Administrador de Insolvência reconheceu como comum, o crédito da credora V... SARL, no valor de 508.808,60€, titulado pelas faturas que se encontram juntas com a reclamação de créditos, e cuja emissão e vencimento, reportam ao período compreendido entre 29/10/2018 e 28/07/2021;
2- A sociedade V... SARL é credora da sociedade insolvente, por fornecimentos;
3- O sócio único e gerente da referida sociedade credora, BB, é, desde 24 de junho de 2011, também sócio da sociedade insolvente.
4- Com a entrada do legal representante da credora para sócio da insolvente esta passa a ser fornecida por aquela com matéria-prima e a credora a ser a principal compradora do produto acabado da insolvente.
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C- Fundamentação jurídica
Nada mais se discute neste recurso que não seja a classificação a atribuir ao crédito da Apelante sobre a Insolvente. Mais precisamente, está em causa a questão de saber se esse crédito deve ser qualificado como crédito subordinado, como se decidiu na sentença recorrida, ou, ao invés, como crédito comum, como defende a Apelante.
Esta diferente qualificação não é indiferente; nem para a Apelante, nem para os demais credores.
Na verdade, o que distingue os dois tipos de créditos é, entre outros aspectos[2], a circunstância dos créditos subordinados só poderem ser pagos depois de integralmente satisfeitos os créditos comuns [artigo 177.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)]. Daí a relevância desta qualificação.
Tendo presente, pois, esta distinção, aquilo que verificamos, antes de mais, é que a qualificação adotada na sentença recorrida foi determinada pela circunstância de aí se ter considerado [tal como defendido pela Impugnante deste crédito[3] e pelo Administrador da Insolvência na última posição assumida[4] que a Apelante exerceu sobre a Insolvente uma influência dominante. Designadamente, através do seu único sócio gerente que, em simultâneo, era também sócio da Insolvente. Através dele, refere-se na mesma sentença, a Apelante tinha um maior acesso à informação quanto à situação da Insolvente, ou seja, tinha, nesse aspeto, uma superioridade informativa relativamente aos demais credores e, por essa razão, o seu crédito foi qualificado como subordinado.
Acontece que, embora essa superioridade informativa tenha sido, efetivamente, uma das razões para a instituição, no âmbito do processo de insolvência, desta nova categoria de créditos (os subordinados)[5] , não está ela, como veremos, verificada e comprovada, no caso em apreço. Ou melhor, não está verificado, nem comprovado que, à data do vencimento do conjunto de créditos reclamados pela Apelante, a mesma tivesse a qualidade que a sentença recorrida lhe imputa; ou seja, que fosse uma pessoa especialmente relacionada com o devedor, na aceção que lhe é conferida por lei e para o fim que aqui nos importa. Nessa medida, não se pode concluir que o crédito por ela reclamado deva ser qualificado como crédito subordinado.
Vejamos porquê.
Consideram-se créditos subordinados, entre outros[6], “[o]s créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência” – artigo 48.º, al. a), do CIRE.
E, sendo o devedor uma pessoa coletiva, como sucede na situação presente, são havidas como especialmente relacionados com ele:
“a) Os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b) As pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do artigo 21.º do Código dos Valores Mobiliários, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
c) Os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
d) As pessoas relacionadas com alguma das mencionadas nas alíneas anteriores por qualquer das formas referidas no n.º 1” – artigo 49.º, n.º 2, do CIRE[7].
Interessa-nos, para a situação presente, desde logo, o que se prevê na citada alínea b). A sentença recorrida deu-lhe particular ênfase, ao chamar à colação o que se dispõe no artigo 21.º, do Código de Valores Mobiliários (CVM), para integrar o caso em apreço, e, por isso mesmo, impõe-se começar por verificar como se articulam estes preceitos e o que é que deles é possível extrair.
Como resulta do já exposto, são havidas como especialmente relacionadas com o devedor (pessoa coletiva) “[a]s pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do artigo 21.º do Código dos Valores Mobiliários, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
Isto é, aquelas pessoas (singulares ou coletivas) que, independentemente da localização do seu domicílio, tenham exercido sobre a sociedade devedora, “direta ou indiretamente, uma influência dominante”, ou seja, que tenham tido a possibilidade de “impor de modo estável o cunho da respetiva vontade no seio da estrutura organizativa de outra sociedade, através da determinação do sentido das decisões dos respetivos órgãos deliberativos e, mediatamente, das decisões dos respetivos órgãos de administração”[8], bem como as entidades que estejam entre si numa relação de grupo, tal qual qualificadas pelo Código das Sociedades Comerciais (CSC)[9] - artigo 21.º, n.ºs 1 e 4, do CVM. Seja por (i) simples participação (artigos 483.º); (ii) através de participações recíprocas (485.º do CSC); (iii) através de domínio (486.º); ou (iv) relações de grupo, que abrangem as situações de domínio total, contrato de grupo paritário ou contrato de subordinação (artigos 488.º a 508.º do CSC).
Em qualquer uma destas hipóteses, provados os respetivos pressupostos, considera-se que há uma relação especial com o devedor.
A lei, no entanto, foi mais longe. E, assim, sempre que uma pessoa singular ou coletiva:
“a) Disponha da maioria dos direitos de voto;
b) Possa exercer a maioria dos direitos de voto, nos termos de acordo parassocial;
c) Possa nomear ou destituir a maioria dos titulares dos órgãos de administração ou de fiscalização”, presume-se, “iuris et de iure” (presunção absoluta) uma relação de domínio – artigo 21.º, n.º 2, do CSC. Isto é, presume-se, de modo inilidível, esse domínio (artigo 350.º, n.º 2, 2ª parte, do Código Civil)[10] .
Neste conspecto, verificamos que, como sintetiza, José Engrácia Antunes[11], “no universo geral dos instrumentos jurídico-económicos suscetíveis de ser fonte de influência dominante sobre uma sociedade existem instrumentos que permitem fundar ipso iure e inilidivelmente essa influência (os referidos no citado elenco de presunções do n.º 2), sendo que, relativamente aos demais (por exemplo, uma participação minoritária de capital ou votos, um vínculo contratual especial, um “interlocking directorate”), haverá que ser feita demonstração positiva de que eles terão constituído, no caso concreto, fonte dessa mesma influência para o seu titular”.
Por outro lado, como já vimos, são ainda havidos como especialmente relacionados com o devedor (quando pessoa coletiva), “os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência” – artigo 49.º, n.º 2, al c), do CIRE. O que, em articulação com a previsão constante da alínea imediatamente antecedente (al. b), tem sido considerado por alguma jurisprudência, como fundamento para a integração dos casos em que a administração da sociedade credora e da insolvente é ou já foi exercida, pela mesma pessoa[12] .
Acontece que, na situação em apreço, não ocorre nenhuma das hipóteses referenciadas.
Em primeiro lugar, não se provou que a Apelante tivesse alguma participação de capital, direito de voto ou outro instrumento jurídico que lhe permitisse interferir diretamente no governo da sociedade Insolvente.
Em segundo lugar, se é verdade que o seu único gerente, BB, é também sócio da Insolvente, mas não seu gerente, já não se provou, por outro lado, qual a medida da sua participação societária, nem qualquer outro tipo de indicador que nos permita o recurso à presunção, contida no artigo 21.º n.º 2, do CVM, já citada.
Assim, a relação especial e, particularmente, a relação de domínio de que temos estado a tratar só poderia resultar de outra qualquer circunstância que permitisse à Apelante ou ao referido gerente condicionar os destinos da sociedade Insolvente. Isto porque, como é sabido, as situações enumeradas no artigo 21.º, n.º 2, do CVM, não esgotam o conceito de domínio que aqui está em causa[13] e, por conseguinte, pode ele ser preenchido por recurso a outras realidades que o expressem. Referimo-nos, por exemplo, a prerrogativas ou privilégios convencionados que permitam determinar o sentido do governo da sociedade dominada e/ou a sua atividade; outros convénios de direito comum que sejam aptos a criar relações de domínio de uma sociedade por outra; ou mesmo uma mera administração unitária, de facto, das duas sociedades.
Acontece que, como já adiantámos, nada disto se provou. Provou-se apenas, de relevante nesta matéria, que o sócio único e gerente da Apelante é, desde 24/11/2011, também sócio da sociedade Insolvente e que, a partir dessa altura, esta última sociedade passou a ser fornecida por aquela com matéria-prima e a sua principal compradora do produto pela mesma acabado. Nada mais.
Ora, esta factualidade, por si só, não permite concluir que entre a Apelante e a Insolvente houvesse, efetivamente, qualquer relação de domínio, nos termos já assinalados. Quando muito, o que dela se pode retirar é que, a partir da já referida data, passou a haver algum predomínio económico da Apelante sobre a Insolvência. Mas mesmo isso, não se sabe porquê. Isto é, não sabe se foi devido a algum quadro de direção unitária de facto ou a qualquer outra circunstância de mercado que levou ao entrosamento das duas sociedades nos termos assinalados. Até porque não se provou também que tipo de convénios foram estabelecidos entre as duas referidas sociedades, com que características, ou mesmo quem concretamente os desencadeou ou outorgou.
Daí que, neste contexto, não se possa concluir que o dito relacionamento contratual revele, necessariamente, uma manifestação de domínio da Apelante sobre a Insolvente.
É importante, de resto, ter presente que o predomínio económico, de que já falámos, que permite influenciar, não se confunde com a influência jurídica, que permite dominar[14]. Nem sequer com o domínio de facto resultante, por exemplo, da direção unitária, à margem dos instrumentos legais para o estabelecer. Ora, só estas duas últimas realidades teriam a virtualidade de condicionar decisivamente o governo da Insolvente. E isso não se provou ter existido.
É verdade, que, como já dissemos, o sócio gerente da Apelante é também sócio da Insolvente. E, nessa qualidade, tinha direito a ser informado sobre o modo como estavam a ser conduzidos os negócios sociais e sobre o estado da sociedade Insolvente (artigos 214.º a 216.º, do CSC). Mas essa qualidade, não lhe permitia, por si só, condicionar, em termos jurídicos, a atividade da Insolvente. Sob pena de ter de se considerar que, qualquer sócio, só pelo facto de o ser e independentemente da medida da sua participação social, determina, decisivamente, o destino da sociedade por si participada. Raciocínio que não se aceita como válido.
De resto, no caso, nem se provou, por um lado, que o nível da relação comercial havida entre a Apelante e a Insolvente tenha resultado do exercício do referido direito informativo, nem, por outro lado, a Apelante poderia ser penalizada por o seu gerente ter, eventualmente, obtido essa informação, de modo legítimo, aliás, sem lhe estar associado, como já aflorado, o necessário nexo em relação ao falado domínio.
Como vimos, fora da previsão contida no artigo 21.º, n.º 2, do CVM, é necessária a demonstração positiva dos factos que, no caso concreto, constituíram a fonte da influência e domínio para o seu titular e, portanto, não tendo isso sucedido na situação presente, não pode reconhecer-se à Apelante nem a qualidade que a sentença recorrida lhe imputa, nem, consequentemente, a classificação dos seus créditos aí exarada. Tratam-se, portanto, de créditos comuns.
Daí que, em resumo, o presente recurso só possa ser julgado procedente e revogada a sentença recorrida, na parte impugnada.
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III- Dispositivo
Pelas razões expostas, acorda-se em julgar procedente o presente recurso e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida, na parte impugnada, classificando o crédito reclamado pela Apelante sobre a Insolvente como crédito comum.
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- Em função deste resultado, porque se bateu pela solução contrária, as custas deste recurso serão pagas pela Apelada, AA - artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC.

PORTO, 4/5/2022
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Lina Baptista
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[1] Conforme despacho retificativo, datado de 18/02/2022.
[2] Referidos, por exemplo, nos artigos 17.º-F, n.º 5, 66.º, n.º 1, 73.º, n.º 3, 99.º, n.º 4, al. d), 197.º, b) e 202.º, al. f), do CIRE.
[3] A credora, AA.
[4] Na primeira, como vimos, este Administrador tinha pugnado pela qualificação de tal crédito como comum.
[5] Como se refere no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março (que aprovou o CIRE), “[a] categoria dos créditos subordinados abrange ainda, em particular, aqueles cujos titulares sejam ‘pessoas especialmente relacionadas com o devedor’ (seja ele pessoa singular ou colectiva, ou património autónomo), as quais são criteriosamente indicadas no artigo 49.º do diploma. Não se afigura desproporcionada, situando-nos na perspectiva de tais pessoas, a sujeição dos seus créditos ao regime de subordinação, face à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores”.
[6] Contemplados no artigo 48.º do CIRE, cuja enunciação é maioritariamente entendida como taxativa – Neste sentido, por exemplo, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Juris, pág. 309 e Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, 3ª edição, Almedina, pág.357.
[7] Há divergências na doutrina e jurisprudência a propósito do caráter taxativo ou não desta enumeração, propendendo, no entanto, a maioria da doutrina e da jurisprudência para a resposta afirmativa. Neste sentido se pronunciam na doutrina, por exemplo, os Autores já citados (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob cit. pág. 314, e Alexandre de Soveral Martins, ob cit. págs. 362 a 365) e, na jurisprudência, entre outros, AC. STJ de 27/10/2020, Processo n.º 3030/18.2T8AVR-A.P1.S2, Ac STJ de 26/01/2021, Processo n.º 908/19.0T8OAZ-B.P1.P1.S1, e Ac. RP de 19/11/2013, Processo n.º 1445/12.9TBPFR-A.P1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[8] José Engrácia Antunes, “As Relações de Domínio no CVM: o artigo 21.º, n.º 3, em particular”, in Estudos em Honra de João Soares da Silva, 2021, Almedina, pág. 434.
[9] Embora não qualificados como tal no CSC, pode questionar-se se não devem integrar também, pelo menos as relações de domínio, os chamados “grupos de facto”. Isto é, aquelas sociedades que, embora agregadas por uma direção unitária, não o fazem, porém, com base num instrumento tipificado por lei.
Como refere Ana Perestrelo Oliveira (Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª edição revista e atualizada (2ª Reimpressão), 214, pág. 1215), “no CSC, sempre que uma sociedade dispõe de influência dominante sobre outra, verifica-se uma relação de domínio (486.º); ora, se a sociedade dominante exercer uma direção económica unitária das sociedades envolvidas, existirá um grupo de facto, que, todavia, não dispõe de regulamentação expressa na lei portuguesa (…), ficando sujeito às regras do Direito societário geral”.
[10] Cfr. Sobre a noção de presunção inilidível, Rita Lynce de Faria, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCP, pág. 825.
[11] José Engrácia Antunes, ob. cit., pág. 437.
[12] Ac. RLx de 29/05/2008, Processo n.º 1548/2008-2 e Ac.RC de 02/02/2010, Processo n.º 171/07.5TBOBR-C.C1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt
[13] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 316.
[14] Cfr. sobre esta distinção, Raul Ventura, in Participações Dominantes: Alguns Aspetos do Domínio de Sociedades por Sociedades, ROA, Ano 39, I, pág. 34 (consultável em https://portal.oa.pt/upl/%7B67053fcd-0653-4abf-b18b-b56aa5c47415%7D.pdf).