NULIDADE DE SENTENÇA
Sumário


I- Não existe qualquer nulidade, nem por omissão de pronúncia, nem por contradição entre a fundamentação e a decisão, quando o autor do recurso de revista impugna a decisão do Tribunal da Relação de aceitar o recurso de apelação relativamente à decisão em matéria de facto, sem concretizar em que é que o contraditório foi afetado, tanto mais que compreendeu perfeitamente o sentido do recurso da contraparte.
II- A reclamação não é um novo recurso e não é o meio processualmente adequado para, mediante a invocação de uma nulidade, pretender nova decisão quanto aos critérios a atender para a reparação do dano sofrido pelo trabalhador por força do comportamento ilícito do empregador.

Texto Integral




 Processo n.º 2837/19.8T8MTS.P1.S1

Acordam em Conferência na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia do ... veio arguir nulidades do Acórdão de 17 de março de 2022, proferido neste processo, ao abrigo do disposto no artigo 666.º do CPC (aplicável por força do artigo 685.º do CPC).

Na referida Reclamação arguiu as seguintes nulidades:

- 1. Omissão de pronúncia relativamente às questões que constavam das suas Conclusões no recurso de revista 26.ª a 54.ª e que seriam, em concreto, duas questões:
a) “Violação por parte do Digno Tribunal da Relação ... no seu, se bem que douto, acórdão de 2021.06.23 do disposto no art. 640.º, n.º 1 als. a), b) e c) e n.º 2 al. a) e, por extensão, no art. 662.º, n.º 1, ambos do CPC, ao admitir e não sancionar com a sua rejeição a apelação interposta pela A., por incumprimento dos requisitos previstos no ora indicado primeiro normativo para a válida impugnação da decisão sobre a matéria de facto proferida em Primeira Instância em sede do seu recurso de apelação;
b) Omissão por parte do ora referenciado Tribunal ... do seu dever de garantir à parte então recorrida, ora Reclamante e Recorrente, do efetivo exercício do seu direito ao contraditório por parte da R, e de salvaguardar a igualdade das partes na presente lide, com prejuízo desta, previstos nos arts. 3º, nºs 1 e 3 e 4º do CPC”.

- 2. Omissão de pronúncia relativamente “às questões de direito e de facto plasmadas nas conclusões de revista 33.ª a 35ª e 51.ª”, com a consequência de que se teria ficado “designadamente por se saber qual o juízo que o Venerando Tribunal Supremo faz dos arguidos vícios do recurso de apelação da A. à luz do disposto designadamente no artigo 640.º, n.º 1 e n.º 2 al. a) do CPC, a par das suas concretas consequências em termos de lesão e menosprezo da salvaguarda do direito ao contraditório do recorrido, bem como omitiu qualquer juízo concreto ou sequer comentário crítico do julgamento que essas questões mereceram por parte da Segunda instância em sede do respetivo acórdão objeto da presente revista”.

- 3. Omissão de pronúncia relativamente às questões enunciadas nas Conclusões 36.ª a 41.ª.

- 4. Omissão de pronúncia relativa a todos os outros arguidos vícios e incumprimento dos requisitos da impugnação da matéria de facto previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC por parte da A. em sede da sua apelação, na sua generalidade não sancionados pela Relação ... no seu acórdão de 2021.06.23, conforme foi arguido em sede da presente revista nas suas conclusões 26ª a 34ª, 36º, 39.ª 42.ª, 43ª a 54.ª.

- 5. Contradição entre os fundamentos e a decisão ou, em todo o caso, ininteligibilidade, no que toca à decisão da questão constante das Conclusões 55.ª a 59.ª, referentes ao prazo de interposição do recurso.

- 6. Contradição entre os fundamentos e a decisão, “ao decidir que se apliquem os IRCT’s, por um lado, e manter a reclassificação da Autora (desde setembro de 1995) como Auxiliar de Educação”.

- 7. Omissão de pronúncia “relativamente ao vertido nas Conclusões 93 a 95 do recurso de revista”.

- 8. Violação do artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) (contradição entre os fundamentos e a decisão, ambiguidade ou ininteligibilidade, omissão de pronúncia, excesso de pronúncia) relativamente à decisão quanto às quantias a liquidar, porquanto “as diferenças salariais reconhecidas e liquidadas pela Relação, agora confirmadas por este Supremo Tribunal, não estão de acordo com o IRCT aplicável uma vez que são computadas logo pelo nível XII”.

- 9. Violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas c), d) e e), quanto ao disposto nas Conclusões 109.º e 110.º, não se tendo, na tese da Reclamante, cumprido o disposto nos IRCT’s aplicáveis.

Cumpre analisar.

Começando pelas omissões de pronúncia que por conveniência na exposição enumeramos de 1 a 4, prendem-se rodas elas com o segmento do recurso de revista interposto pela ora Reclamante em que impugnava a decisão do Tribunal da Relação de não rejeitar o recurso na parte atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Tal decisão, sublinhe-se, desde já, insere-se na linha deste Tribunal que tem afirmado que “o cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, no que respeita aos aspetos de ordem formal, deve ser norteado pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, devendo entender-se que este conjunto de exigências se reporta especificamente à fundamentação do recurso não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil” (Acórdão de 24/06/2020, proferido no processo n.º 6745/17.9T8VNF.G1.S1, Relatos Chambel Mourisco). Como afirmou ABRANTES GERALDES, “com bastante frequência se verifica que uma leitura concertada das alegações, e não apenas das respetivas conclusões, permite afirmar o preenchimento dos requisitos mínimos a que deve obedecer uma peça processual para a qual não está legalmente prevista uma estrutura rígida nem para a motivação, nem sequer para segmento conclusivo”, acrescentando, em seguida, que “em lugar de atribuir um excessivo relevo a algum pormenor formal, parece bem mais ajustado – e conforme com os objetivos do processo civil e com a função destinada a Juízes Desembargadores – que se faça uma apreciação global das alegações de recurso, extraindo desse conjunto o que verdadeiramente importa para a aferição da existência, ou não, de algum erro de julgamento da matéria de facto”.

Foi o que precisamente fez o Tribunal da Relação ..., com uma motivação, aliás, muito cuidada, da qual nos permitimos extrair esta passagem bem esclarecedora:

“Se é certo que, podemos concordar que, a alegação da recorrente, nem o epigrafado sob “CONCLUSÃO”, de modo algum, se podem considerar as “proposições sintéticas” de que falou Alberto do Reis, cujo escopo deveria ser o de indicar de modo claro, objetivo e sucinto os fundamentos da discordância da decisão recorrida assim simplificando não só a tarefa do tribunal “ad quem” como dos recorridos. Ou na enunciação, em forma abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso…, nas palavras do Conselheiro Jacinto Rodrigues Bastos. O certo é que, apesar de se constatar que a A. continuou a alegar, motivar, referindo o que foi dito nos depoimentos, ao longo dos 73 pontos daquelas, as mesmas enunciam com suficiente clareza, o âmbito do recurso e os seus fundamentos o que, nota-se foi entendido pela recorrida, conforme decorre das suas contra-alegações e foi entendido por este Tribunal “ad quem”, que não sentiu necessidade de formular qualquer convite com vista à sua correção (…)

O cumprimento pelo Recorrente dos ónus previstos no artigo 640.º n.º 1 do CPC é, sem dúvida, relevante também para permitir o contraditório.

A Ré e ora Reclamante queixou-se de que as Conclusões do recurso de apelação da Autora eram, entre outras coisas, numerosas (73 Conclusões), impressas em letra miúda, deficientemente organizadas e prolixas (Conclusão 34), criando as maiores dificuldades à contraparte e violando o dever de cooperação (Conclusão 35), sendo “as alegações e conclusões de recurso da A. (…) confusas, contraditórias e de difícil ou mesmo impossível inteligibilidade” (Conclusão 51).

A Ré e ora Reclamante afirma que “os vícios ora expostos prejudicaram efetivamente o exercício do direito do contraditório”, mas nunca demonstrou em que é que o exercício do contraditório lhe foi impedido ou sequer sobremaneira dificultado por não poder apreender o sentido do recurso de impugnação da decisão em matéria de facto e das conclusões atinentes a esse segmento do recurso. Pelo contrário das suas próprias alegações de recurso resulta claro que, mesmo que não fossem perfeitas, as compreendeu inteiramente.

E como já se afirmou no Acórdão objeto da presente Reclamação o Tribunal da Relação não violou qualquer equidistância a manter entre as partes, nem prejudicou o contraditório (ao contrário do que se afirmava na Conclusão 41 do recurso de revista da Ré), limitando-se a evitar excessos de formalismo na interpretação do artigo 640.º

Importa, ainda, sublinhar que é inexato que o Tribunal da Relação tenha preenchido lacunas do recurso de apelação da Autora (como se pretende nas Conclusões 37 e 51 d).  O Tribunal da Relação limitou-se a interpretar as alegações do recurso de apelação da trabalhadora, resultando dessa interpretação que há lapsos manifestos. Assim, por exemplo, a Conclusão 48 está integrada numa secção com a epígrafe “Factos que constam da matéria julgada como provada e que deveriam ser dados como não provados”, mas reza assim: “Em função do que se disse no ponto a) relativamente à matéria que não consta do elenco dos factos provados e que aí deveriam estar, que aqui se dá por integralmente reproduzido por questões de economia processual, os factos 5), 6), 7) e 8) da matéria dada como provada, deveriam ser alterados no sentido mencionado no ponto a), pelas razões aí invocadas, deixando de estar no elenco da matéria provada nos moldes em que estão formulados”. Como se vê, não se trata de factos que deveriam ter sido dados como não provados, mas provados com outro teor que resulta das alegações. A equidistância do Tribunal não é razão para que o mesmo não leve a cabo a tarefa hermenêutica que se impõe.

No Acórdão objeto da presente Reclamação já se afirmou que “o Recorrente invoca que as deficiências do recurso prejudicaram o contraditório, mas na realidade não demonstra em que medida é que tal terá ocorrido, uma vez que não se vê em que é que a sua defesa foi prejudicada por uma incompreensão do sentido do recurso” e que “o legislador português partiu claramente da premissa de que a imparcialidade do julgador não é incompatível nem com o dever de gestão processual que cabe ao juiz, nem com convites de aperfeiçoamento que este deve dirigir às partes (por exemplo, quanto à petição inicial ou as conclusões de direito no recurso de apelação – artigo 639.º n.º 3 CPC)”, pelo que nunca existiria nestes  segmentos uma nulidade por omissão de pronúncia que exige uma total falta de fundamentação.

Relativamente à alegada contradição entre os fundamentos e a decisão ou, em todo o caso, ininteligibilidade, no que toca à decisão da questão constante das Conclusões 55.ª a 59.ª, referentes ao prazo de interposição do recurso.

O que se pretende, na Conclusão 57.ª é que para beneficiar da prorrogação do prazo prevista no artigo 80.º n.º 3 do CPC, “teria a A. de respeitar integralmente os requisitos formais da impugnação da decisão de facto constante do art. 640º, nºs 1 a) b) e c) e nº 2, al. a) do CPC, aplicável ao caso “sub judice” por remissão do art. 1º, nº 2 al. a) do CPT”. Mas tal como se disse no Acórdão não é exato: é suficiente para beneficiar de tal prorrogação que o Recorrente impugne a decisão relativa à matéria de facto, socorrendo-se para o efeito de meios probatórios constantes da gravação já realizada no processo – como inequivocamente sucedeu e resulta do recurso de apelação da Autora – independentemente da decisão subsequente de aceitar ou rejeitar o recurso nesse segmento atinente à decisão em matéria de facto. O que foi afirmado de modo inteligível no Acórdão objeto da presente Reclamação: “Quanto ao prazo suplementar de interposição do recurso previsto no artigo 638.º n.º 7 do CPC este aplica-se desde que o recurso tenha impugnado matéria de facto com base em prova gravada, independentemente de o recurso vir depois a ser admitido ou, ao invés, rejeitado com base no incumprimento do disposto no artigo 640.º, n.º 1”.

Relativamente às nulidades arguidas em 6), 7), 8) e 9), não se trataria, em rigor de nulidades, mas de erros de julgamento e a reclamação não é um novo recurso, como bem sublinha a Autora na sua Resposta à presente Reclamação.

Com efeito, não existe nesta sede qualquer omissão de pronúncia, excesso de pronúncia, contradição entre os fundamentos e a decisão ou ininteligibilidade.

Como o Acórdão destaca, no caso dos autos, “não se trata, em primeira linha, como dissemos, de reagir face à violação do princípio da igualdade de tratamento, mas sim face ao incumprimento do IRCT”. Com efeito, a própria definição de categoria e o seu núcleo essencial de funções resulta dos IRCT’s aplicáveis. Mas não decorre daqui que a reparação do dano passe necessariamente pela exata reconstrução da carreira hipotética da trabalhadora se o empregador tivesse respeitado o IRCT, com todas as inerentes incertezas. O que expressamente se aduz no Acórdão recorrido:

“O próprio empregador “em maio de 2015 alterou a categoria profissional da autora para “Auxiliar de Educação”, posicionando-a, a partir de maio de 2019, no nível remuneratório XII, escalão 5, com a retribuição mensal de € 659,35 e no nível remuneratório XII, escalão 6, a partir de setembro do mesmo ano, com o vencimento mensal de € 679,03” (facto 12), sem que se tenha provado qualquer alteração funcional relativamente ao facto 8, o que, só por si, significa que o empregador reconheceu que as funções concretamente desempenhadas pala Autora correspondiam a essa categoria, comportamento que também representa, como a Autora aduz nas suas contra-alegações, um reconhecimento da sua experiência profissional no desempenho dessas funções. Com efeito, assemelha-se a um venire contra factum proprium a conduta do empregador que, sem alegar qualquer alteração funcional, pretende atribuir uma certa categoria, mas só para o futuro (…) Não é possível reconstituir exatamente essa situação hipotética, havendo aqui que recorrer a um juízo de verosimilhança ou de probabilidade. E para tal juízo pode concorrer o comportamento referido do empregador ao reclassificar a Autora como auxiliar de educação (facto 12). O que justifica que o Tribunal da Relação tenha reposto as diferenças salariais entre o que a Autora recebeu desde setembro de 1995 e o que teria recebido como auxiliar de educação, sem que se tenha verificado qualquer erro de direito, ou contradição entre os fundamentos e a decisão”.

A Ré e Reclamante pode não concordar com o critério adotado para a determinação do dano sofrido pela Autora, mas isso não acarreta qualquer nulidade.

Decisão: Indeferida a reclamação.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 11 de maio de 2022

Júlio Manuel Vieira Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Domingos José de Morais