REVISTA EXCECIONAL
ADMISSIBILIDADE
ÓNUS DO RECORRENTE
RELEVÂNCIA JURÍDICA
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
Sumário


I- A Revista excecional prevista no art. 672.º, do C.P.C., visa temperar os efeitos da Dupla conforme, ou seja, do acórdão da Relação que, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica, confirme decisão da primeira instância.
II- O requerente da revista excecional, ao abrigo do disposto no art. 672.º n.º 1 a) e b), do C.P.C., deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição, nos termos do n.º 2 a) e b), do mesmo preceito, as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e as razões pelas quais os interesses são de particular importância.
III- Não cumpre estes ónus quem se limita a referir meras generalidades, pois de acordo com a doutrina mais relevante e a jurisprudência consolidada do STJ o requerente tem de concretizar, com argumentos concretos e objetivos, o relevo jurídico e social das questões em causa.
IV- Relevância jurídica, para efeitos da al. a) do n.º 1 do art. 672.º, do C.P.C., implicará que a questão suscitada apresente um caráter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, ou seja controversa ou, porventura, inédita, reclamando para a sua solução uma reflexão mais alargada.
V- Interesses de particular relevância social, para efeitos da al. b) do n.º 1 do art. 672.º, do C.P.C., devem ser considerados interesses importantes da comunidade e valores que se sobrepõem ao mero interesse das partes, isto é, com invulgar impacto para o tecido social e para a comunidade, em geral.

Texto Integral




Proc. n.º 1924/17.1T8PNF.P1.S1, da 4.ª S.

(Revista excecional)

Acordam na Formação prevista no art. 672.º n.º 3 do C.P.C., junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA interpôs o presente recurso de revista excecional, nos termos do disposto no art. 672.º n.º 1 a), b) e c), do C.P.C., do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., em 18/10/2021, que julgou, sem voto de vencido, totalmente improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida, proferida pelo Juízo do Trabalho ... -J..., em 05/04/2021, que decidiu também a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a Ré Ocidental – Companhia de Seguros, S.A., bem como a Interveniente L..., S.A., do peticionado pelo Autor.

Apresentou as seguintes Conclusões, que passamos a transcrever:

I. O presente recurso de revista expecional é apresentado com fundamentos nas alíneas a), b) e c) do art. 672.º do Cód. de Processo Civil porquanto a questão que constitui tema desta revista prende-se com a qualificação de um determinado evento como acidente de trabalho, circunstancialismo que a Instância Recorrida não considerou, ao arrepio da lei material de adjetiva ao arrepio de direitos com especial relevância social e jurídica.

II. Com efeito, dúvidas não existem que o Legislador Constitucional reconheceu a relevância social e jurídica à matéria dos acidentes de trabalho, conforme a consagração expressa que vislumbramos no art. 59.º n.º 1 f) da Constituição da República Portuguesa de 1976 prevendo-se como direito fundamental o direito à assistência e à justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho e doença profissional - cfr. entre outros, RAMALHO, MARIA DO ROSÁRIO PALMA, "Direito do Trabalho - Parte II -Situações Laborais, Individuais", 22 edição, 2008, ob cit. p. 747.

III. Entenderam as instâncias recorridas que o evento em que o trabalhador Recorrente foi interveniente de uma queda no quarto banho do hotel onde se encontrava por instrução da sua entidade patronal, durante um evento da entidade patronal, não é qualificável como acidente de trabalho por nos encontrarmos no domínio de atos da vida particular.

IV. Com todo o respeito pelo Tribunal a quo - que é, naturalmente, muito - o acórdão proferido carece de completo fundamento legal e factual face à prova produzida e aos elementos existentes juntos aos autos que demonstram, de forma inequívoca que o Recorrente sofreu um acidente no quarto de banho do hotel onde se encontrava ao serviço da entidade empregadora que é subsumível à qualificação como acidente de trabalho e que o sinistro ocorrido não é - ao contrário do que se lê na decisão em crise - um "ato da vida privada".

V. O que está em manifesta contradição com um outro Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que, num caso exactamente semelhante ao caso dos autos sub judice decidiu que: "É acidente de trabalho a queda sofrida pela autora na casa de banho do quarto de hotel, quando se preparava para a reunião de trabalho dessa manhã. O acidente deverá analisado no contexto da viagem de serviço que a mesma fez a ... com um grupo de trabalho, contexto esse em que o espaço cedido pela entidade empregadora era simultaneamente local de dormida, alojamento e lugar de apoio logístico do secretariado da direcção de que a sinistrada era a responsável" (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.10.2007, processo n.º 5523/2007-4 em www.dgsi.pt). pelo que, também o presente recurso é suscetível de apreciação por este Tribunal de Justiça face à manifesta contradição com o supra referenciado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o que expressamente se invoca ao abrigo da alínea c) do art. 672.º n.º l c) do Cód. de Processo Civil.

VI. Considerando o acervo de factos considerados provados e não provados poderá este Colendo Tribunal reapreciar a questão de Direito que ora se coloca ao abrigo do art. 682.º n.º 1 do CPC porquanto conforme resulta do Acórdão proferido, o Tribunal a quo fundamentou juridicamente a sua posição com base no facto de ter entendido que o acidente sofrido pelo Recorrente não poderia ser considerado como acidente de trabalho, uma vez que, segundo o mesmo, decorreu da prática de um "acto da vida privada e corrente, em que este tenha recuperado a sua independência em relação à missão profissional".

VII. Sucede que, com todo o respeito pelo Tribunal a quo, que é muito, o recorrente considera que a decisão proferida é, profundamente errada porquanto pese embora se considera que existiu um desadequado julgamento pelas instâncias recorridas da matéria de facto, o certo é que, mesmo com o acervo de factos dados como provados e não provados a decisão proferida deveria ter sido diferente, salientando-se, desde logo, os factos provados B), D), E), H), J), K), L, M), N), O), P), Q), R), S), AA).

VIII. Ficou demonstrado que o Recorrente após regressar ao hotel, vindo do stand, onde esteve a trabalhar, o recorrente continuou a desenvolver o seu trabalho, efetuando chamadas telefónicas, enviar/receber emails, etc, trabalho esse que foi desenvolvido no quarto do hotel onde o mesmo estava instalado - afirmações essas que, no essencial, foram corroboradas pelo depoimento prestado pelas demais testemunhas.

IX. Produzida a demais prova, nomeadamente documental, ficou provado que a deslocação do recorrente ao ... teve, única e exclusivamente, fins profissionais - participar em representação da empresa na feita designada de ... e contactar com potenciais clientes. Ficou também demonstrado que, no dia do acidente, e previamente ao mesmo, " (...) N) No dia 17/09/2016, entre as 7 horas e as 7h30m, o A. deslocou-se ao Stand da empresa na feira identificada em D) para levar e colocar no stand catálogos, panfletos e brindes, tendo em vista a abertura da feira às 10 horas desse dia;" -Trans. Parcial da sentença da 1.ª instância, na parte referente à matéria de facto dada por provada.

X. Conforme ficou provado, um dos deveres/obrigações laborais do recorrente era (e é) o de " (....) representar a sociedade em feiras e exposições nacionais e internacionais em que a mesma seja participante e/ou interveniente na qualidade de fornecedor e/ou cliente, bem como representar a sociedade em todos os actos em que é necessária a presença do seu legal representante;" - Trans. Parcial da Sentença recorrida (ponto H) da matéria de facto dada por provada)"; Conforme, também, ficou provado, uma das funções laborais do recorrente era a de proceder à preparação, manutenção e gestão do stand da empresa, bem como estar presente na mesma em representação da empresa (vide, nesse sentido, pontos H), J), K da matéria de facto dada por provada).

XI. Demonstrado ficou, outrossim, mesmo com a deslocação ao ..., o trabalho desenvolvido pelo recorrente (administrador) não se cingia apenas a marcar presença na feira, mas implicava continuar a administrar a empresa em toda a sua plenitude.

XII. De facto, mesmo com a deslocação ao ..., o trabalho desenvolvido pelo recorrente (administrador) não se cingia apenas a marcar presença na feira, mas implicava continuar a administrar a empresa em toda a sua plenitude e extensão, nomeadamente, recebendo clientes, contactando clientes, entidades bancárias, fornecedores, trabalhadores, etc. Para além disso, conforme resultou de depoimento do Recorrente, e foi corroborado por toda a prova testemunhal apresentada, a entidade patronal não possuía instalações (escritório) próprios no ..., pelo que, para além da feira, o trabalho do recorrente também se desenvolvia no hotel onde o mesmo estava instalado,

XIII. Nomeadamente, nas áreas comuns do mesmo, local onde recebia os clientes da sua entidade patronal, no próprio quarto do hotel, local onde guardava as coisas da feira, preparava reuniões, efetuava chamadas de trabalho, elaborava, enviava e recebia emails, etc. Factos esses, reitera-se, corroborados pelo depoimento do recorrente, e demais testemunhas questionadas sobre esse facto e, bem assim, corroborado pelas regras da experiência comum.

XIV. Como se pode pensar que ao deslocar-se para representar a sua entidade patronal numa feira internacional, sendo administrador o recorrente nada mais faria do que marcar presença na feira? Ao contrário do sustentado pelas instâncias recorridas, no dia do acidente, o recorrente não interrompeu a sua atividade laboral, pois continuou a trabalhar (fazendo chamadas, enviando/recebendo emails, etc).

XV. Conforme ficou provado, o recorrente no exercício das suas funções laborais, e por instruções, ordens e imposição da sua entidade patronal, estava adstrito ao cumprimento dos seguintes deveres: dever de apresentação com boa imagem, dever de apresentação imagem limpa e dever de apresentação com boa apresentação (vide, nesse sentido, ponto P) da matéria de facto dada por provada). E, por fim, ficou provado que " (...) Q) O A. regressou ao quarto de hotel cerca de 30 minutos depois de se deslocar ao stand, para aí tomar um duche, vestir roupa adequada às suas funções e preparar-se para os contactos comerciais, tendo ocorrido o indicado em E) em hora não concretamente apurada mas ocorrida entre esse momento e a hora de abertura da feira;" -Trans. Parcial da Sentença recorrida.

XVI. Tendo a queda ocorrido por causa do cumprimento das suas obrigações laborais, mais concretamente, atender uma chamada telefónica feita por um cliente da empresa pelo que, entende o recorrente que o Tribunal a quo decidiu mal, a considerar que o mesmo parou de trabalhar quando, cerca das 8h/8h30m regressou ao hotel, vindo do stand.

XVII. Mas, mesmo que se considerasse ter havido uma interrupção na atividade laboral após o recorrente regressar ao hotel, ainda assim entende o mesmo que o Tribunal a quo errou ao considerar que o banho em causa se tratou de um mero ato próprio da vida privada, bem como errou ao entender que, não estando a trabalhar, o mesmo não se tratou de um acto anterior à sua actividade e relacionado com esta.

XVIII. De facto, conforme ficou demonstrado, o recorrente, tomou um duche com o intuito de vestir roupa adequada às suas funções e imposta pela sua entidade patronal, conforme depoimento do Recorrente aos 32m07s das suas declarações. Daí que, face aos deveres laborais que lhe eram impostos pela sua entidade patronal, (boa imagem, uma imagem limpa, cuidada e com boa apresentação), como poderia o Recorrente, nas circunstâncias de facto ocorridas, cumprir o seu deveres/obrigações laborais de boa imagem, imagem limpa, cuidada e com boa apresentação sem tomar banho?

XIX. Salvo melhor opinião, o ato de tomar banho emerge de uma decisão da empresa e insere-se nas suas obrigações diárias decorrentes nos deveres principais e acessórios de trabalhador por conta, ordens e direção da Ré L.... Até porque o acidente ocorreu por força do cumprimento da sua obrigação laboral - atender uma chamada telefónica feita por um cliente da empresa.

XX. Mais: o Recorrente sofreu aquele acidente porque se encontrava deslocado ao serviço da sua entidade empregadora! Por conta desta! Contudo, e sem prescindir, sempre se impõe ajuizar que o duche e higiene imposto pela empresa Ré L... consubstancia um ato preparatório da sua atividade prévia à ida para a feira onde o Recorrente representaria a sua entidade empregadora no âmbito dos contactos comerciais que iria realizar.

XXI. E, também, encontrava-se naquele Hotel por decisão da empresa (facto Provado R), consubstanciando o Hotel não só o local onde pernoita, mas, também, o local onde exerce as suas funções, onde recebe clientes e onde guarda os instrumentos de trabalho e demais objetos necessários ao exercício das suas funções por conta, ordens e direção da Ré. É, aliás, facto notório (art. 5.º n.º 2 c) do CPC e 412.º do CPC), segundo as mais elementares regras da experiência comum que, na presente era em que vivemos, os hotéis constituem locais onde a prestação de trabalho é executada à distância por terem condições como wi-fi, secretárias e demais elementos que permitem a execução de trabalho.

XXII. Tal e qual o Recorrente dê-se o exemplo de um comercial ou Consultor de uma empresa que se desloca em trabalho para um outro país: onde é que presta, muitas vezes, o seu trabalho? No Hotel onde fica alojado. No caso de sofrer um acidente de trabalho durante o exercício das suas funções será de não qualificar tal sinistro como acidente de trabalho? - naturalmente que a resposta só pode ser negativa.

XXIII. Com todo o respeito pelo Tribunal recorrido, lê-se a o acórdão e não se acredita no raciocínio realizado que é, marcadamente, antiquado e negligenciador das formas de trabalho contemporâneas de milhares e milhares de trabalhadores que, no caso de fazer jurisprudência, criará profundas situações de injustiças que cumpre à mais alta instância Jurisdicional combater. Portanto, dúvidas não podem subsistir que não só o recorrente estava a exercer as suas funções durante o tempo de trabalho da empresa, como, também, estaria a exercer funções que lhe foram impostas diretamente pela empresa, não se encontrando a executar um simples acto da sua vida pessoal.

XXIV. Dispõe, aliás, o art. 197.º n.º 2 do Cód. do Trabalho que consideram-se compreendidos no tempo de trabalho: a) A interrupção de trabalho como tal considerada em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, em regulamento interno de empresa ou resultante de uso da empresa; b) A interrupção ocasional do período de trabalho diário inerente à satisfação de necessidades pessoais inadiáveis do trabalhador ou resultante de consentimento do empregador.

XXV. Para além disso, o Recorrente faz suas as palavras dos Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa em Acórdão que decidiu um caso exactamente semelhante ao julgado nos autos sub judice e que, aliás, é motivo para a admissibilidade deste recurso ao abrigo da alínea c) do art. 672.º n.º 1 c) do CPC: "É acidente de trabalho a queda sofrida pela autora na casa de banho do quarto de hotel, quando se preparava para a reunião de trabalho dessa manhã. O acidente deverá analisado no contexto da viagem de serviço que a mesma fez a ... com um grupo de trabalho, contexto esse em que o espaço cedido pela entidade empregadora era simultaneamente local de dormida, alojamento e lugar de apoio logístico do secretariado da direcção de que a sinistrada era a responsável" (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.10.2007, processo n.º 5523/2007-4 em www.dgsi.pt).

XXVI. Analisado referenciado aresto verifica-se a seguinte alegação, que o Recorrente considera integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos: "{...) Temos assim que sinistrada estava em ... por ordem, direcção e sujeita ao controlo da entidade empregadora, na dependência desta para a deslocação, com vista a um proveito económico da sua entidade empregadora. Com efeito, na ausência das instalações próprias em ... a entidade empregadora da sinistrada providenciou um espaço reservado ao alojamento dos seus trabalhadores numa estalagem durante cerca de 3 dias, e incumbiu a sinistrada de secretariar a direcção de vendas, sendo detentora de todo o suporte documental essencial ao bom desempenho desse secretariado, que guardava no único espaço disponível reservado pela entidade empregadora como espaço e local de trabalho que era o seu quarto na referida estalagem, que partilhava também com uma colega de trabalho. Afigura-se-nos assim que o acidente ocorrido no dia 28, na casa de banho do referido quarto, quando a autora se preparava para a reunião dessa manhã, deverá ser analisado no contexto da viagem de serviço que a mesma fez a ... com um grupo de trabalho, contexto esse em que o espaço cedido pela entidade empregadora era simultaneamente local de dormida, alojamento e lugar de apoio logístico do secretariado da direcção de que a sinistrada era a responsável, o que nos faz concluir que queda sofrida pela autora ocorreu em espaço que também era local de trabalho, ainda que sob forma transitória, e quando a mesma precedia a actos de preparação para reunião que iria ter lugar nessa manhã. A referida queda ocorreu assim quando a sinistrada estava sob o poder conformativo da prestação do seu trabalho que lhe havia sido determinado pela sua entidade empregadora, ou seja, as circunstâncias de tempo e lugar em que aquela queda ocorreu não podem considerar-se independentes da sua missão profissional em ... naqueles dias (...)"- cfr. idem.

XXVII. Por via disso, é inequívoco que deve ser considerado acidente de trabalho o sinistro sofrido pelo Autor conforme art. 8.º n.º 1 e 2 da Lei dos Acidentes de Trabalho[1], cumprindo salientar que os atos da vida profissional distinguem-se dos atos da vida corrente, desde que decorram diretamente da execução da missão laborativa pela qual o trabalhador esteja incumbido. Ora, resulta evidente que não só o sinistro ocorreu em pleno tempo da jornada de trabalho (após deslocação do Recorrente à feira e previamente ao retorno para a inauguração) como, também, ocorreu em cumprimento de ordens dadas pela entidade empregadora para cumprimento das regras de apresentação e higiene.

1 Discorrendo sobre os casos referidos nas alíneas do anterior n.º 2 do artigo 6.º da LAT, que correspondem a extensões do conceito de acidente de trabalho, CARLOS ALEGRE (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 45-47) afirma serem três os elementos a considerar para que o acidente seja qualificável como de trabalho: a) a execução de serviços fora do local e/ou tempo de trabalho; b) a missão ou função profissional, que pode ter carácter duradouro ou meramente ocasional ou esporádico; c) a posição subordinada do trabalhador durante o cumprimento da missão. Quanto ao elemento missão ou função profissional refere CARLOS ALEGRE que "Em regra, o cumprimento da missão impõe ao trabalhador não só a deslocação a determinados locais, como a sua permanência, mais curta ou mais longa, nesses locais, muitas vezes sem que o objecto específico da missão esteja a ser directamente trabalhado. Por outras palavras, o trabalhador que se desloca, fora do tempo e do local de trabalho, está sujeito a acidentes ocasionados directamente. Por outras palavras, o trabalhador que se desloca, fora do tempo e do local de trabalho, está sujeito a acidentes ocasionados directamente pelo cumprimento da sua missão profissional, como a acidentes ocasionados por actos da vida corrente, cujos riscos normalmente não correria".

XXVIII. Pelo que, manifestamente, o acidente de trabalho sofrido pelo Autor/Recorrente não pode deixar de ser qualificado como acidente de trabalho constituindo a decisão recorrida que confirma a decisão da l.ª instância uma decisão desapropriada face ao direito aplicável e, bem assim, profundamente injusta.

XXIX. Como salienta PEDRO ROMANO MARTINEZ (Direito do Trabalho, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 825-826) sinaliza-nos que, no exercício das funções, os trabalhadores vêm, regularmente, totalmente atenuada a linha entre o que são actos da vida privada e actos da vida do empregador, mas, é claro ao afirmar que "atendendo ao risco empresarial e, principalmente à socialização do risco nos acidentes de trabalho, algumas destas situações podem consubstanciar hipótese de responsabilidade do empregador. Compreende-se que tal suceda quando as condições de realização da prestação debitaria possam incrementar os riscos inerentes à normal vida em sociedade [...]". Ora, por conta de quem deve correr o risco do acidente sofrido pelo Recorrente? Naturalmente que a resposta só pode ser uma: por conta da sua entidade empregadora que deslocou o trabalhador para, em seu nome, exercer funções num país diferente da sua residência que o obriga a ter que praticar atos do dia a dia e atos que seriam realizados na sede ou sucursal da empresa noutros locais determinados pelas funções que executa.

XXX. Que não deixam de constituir locais da prestação efetiva de trabalho do Recorrente, pelo que, ao julgar como julgou o Tribunal recorrido violou, entre outras, as disposições dos arts. 8.º n.º 1 e n.º 2 da LAT, art. 5.º n.º 2 c) e art. 412.º do CPC, art. 197.º n.º 1 e n.º 2 a) e b) do Cód. do Trabalho, pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outro que julgue procedente a ação intentada pelo Recorrente e, por via disso, ser a Recorrida OCIDENTAL condenada nos termos melhor elencados na P.l. e requerimento de fls 296.

Nestes termos e nos mais de Direito, que V.ãs Ex.ãs mui Doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso de Revista Excecionai e, por via disso, que seja admitido o presente recurso ao abrigo das alíneas a), b) e c) do art. 672.º n.º 1 do CPC, sendo o seu conteúdo julgado procedente e, por via disso, ser Recorrida OCIDENTAL condenada no pedido deduzido pelo A. na P.I., revogando-se a o acórdão recorrido que confirmou a sentença da primeira instância, sendo o mesmo substituído por outro que julgue procedente o petitório deduzido na P.l..

decidindo deste modo, V.H. Exs. farão, como sempre a costumada

JUSTIÇA!

Por despacho do Senhor Juiz Conselheiro Relator, de 11/02/2022, transitado em julgado, foi decidido não se admitir a revista excecional, no que concerne ao fundamento previsto na alínea c), do citado art. 672.º n.º 1, uma vez que se constatava da certidão que foi junta que a decisão indicada como acórdão-fundamento foi revogada pelo STJ e, por sua vez, por despacho do mesmo Magistrado, datado de 09/03/2022, foram verificados os pressupostos gerais da admissibilidade da presente revista excecional e ordenado que os autos fossem remetidos à Formação, a que se refere o art. 672.º n.º 3, do C.P.C., para averiguação dos pressupostos referidos nas als. a) e b) do n.º 1, do mesmo preceito legal.

Cumpre, agora, apreciar.

II. Fundamentação

1. Conforme é conhecido, a figura da revista excecional foi admitida, no nosso sistema de recursos, pela Reforma de 2007 (DL n.º 303/2007, de 24/08) e visa temperar os efeitos da Dupla conforme, ou seja, do acórdão da Relação que, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica, confirme a decisão da primeira instância.

Introduziu exceções, justificadas pela necessidade de tutelar interesses de ordem social ou jurídica, ligados à melhor aplicação do direito ou à segurança e estabilidade na interpretação normativa[2].

Está sujeita a formalidades próprias, em razão da respetiva particularidade, pois impõe um especial ónus de alegação, que acresce ao ónus de alegação sobre o objeto do recurso, que recai sobre os motivos invocados para a sua admissibilidade[3].

No caso em apreço, o recorrente invoca para justificar a excecionalidade da revista que interpôs o estatuído nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 672.º, que textuam o seguinte:

«a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor apreciação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme».

Porém, atendendo ao decidido pelo Senhor Juiz Relator, no seu despacho de 11/02/2022, a que já fizemos referência, subsistem apenas as situações previstas nas mencionadas alíneas a) e b), que são as que importa, neste momento, tomar em consideração.

Ora, nos termos do n.º 2, als. a) e b), do mesmo preceito legal, o requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição, as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e, por seu turno, os interesses são de particular relevância social.

E de acordo com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, não basta afirmá-lo de uma forma genérica e vaga, sendo necessário explicitar, com argumentação sólida e convincente, as razões concretas e objetivas, suscetíveis de revelar a alegada relevância jurídica e social.

Acontece que, analisado, com pormenor, o conteúdo da alegação do recorrente, incluindo, naturalmente, as suas Conclusões, não verificamos que o recorrente tenha justificado minimamente os motivos para a admissibilidade, a título excecional, da revista que achou por bem interpor.

Na verdade, salientar apenas que a matéria dos acidentes de trabalho reveste uma relevância jurídica e social muito grande, tendo inclusive a Constituição da República, no seu artigo 59.º n.º 1 f), assegurado às vítimas o direito à assistência e justa reparação, e que o expediente da revista excecional tem, na situação concreta, o objetivo de pôr cobro a uma manifesta injustiça praticada pelas instâncias, por terem considerado o acidente sofrido como um ato da vida particular do Autor e não como um acidente de trabalho, é notoriamente insuficiente para se poder considerar cumpridos os ónus a que se encontrava obrigado o recorrente.

É, obviamente, muito pouco!...

Com efeito, deveria o recorrente ter devidamente fundamentado por que entende dever ser superada a barreira da dupla conformidade, nomeadamente, por que acha que está em causa uma questão, cuja apreciação pela sua relevância jurídica é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e, por outro lado, quais os interesses de particular relevância social que estão em causa.

Como tem sido sublinhado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[4], não basta o mero interesse subjetivo do recorrente, sendo necessário que o mesmo concretize com argumentos concretos e objetivos.

Ora, nada disto fez o recorrente, pelo que, de forma alguma, se pode entender que cumpriu os ónus estabelecidos no art. 672.º n.º 2 a) e b).

Em todo o caso, independentemente disso, diremos que não vislumbramos também que a questão crucial, subjacente à ação do Autor, o acidente que sofreu num hotel, no ..., onde participava numa feira, por instrução da sua entidade patronal, enquanto tomava banho no quarto onde estava hospedado, se deve ser qualificado como um acidente de trabalho, como pretende o Autor ou, antes, um ato da vida particular, como decidiram as instâncias, possa ter as caraterísticas para se enquadrar nas situações elencadas nas alíneas a) e b) do referido art. 672.º n.º 1, de modo a justificar a admissão da revista excecional.

Com todo o respeito por opinião contrária, não se nos afigura, na verdade, que a questão jurídica suscitada apresente um caráter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações ou seja controversa na doutrina ou, porventura, inédita, reclamando para a sua solução um aturado estudo e reflexão[5].

A matéria referente à delimitação dos acidentes de trabalho encontra-se prevista no art. 8.º e ss. da Lei n.º 98/2009, de 4/9, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 83/2021, de 6/12, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais e não se vê que levante questões de grande celeuma ou polémica quer na doutrina quer na jurisprudência.

Do mesmo modo, não nos parece que possam estar em causa, no caso em apreço, interesses de particular relevância social, com o sentido e alcance que a nossa doutrina e jurisprudência mais abalizadas[6] têm atribuído a este conceito indeterminado, isto é, interesses que extravasam, de forma inequívoca, os meros interesses das partes, tendo, antes, uma dimensão mais alargada, ou seja, com um forte impacto social e com relevância para a comunidade em geral.

Interesses normalmente associados a ações, que digam respeito, designadamente, à estrutura familiar, aos direitos dos consumidores, ao ambiente, à qualidade de vida, à saúde, ao património istórico-cultural ou quando estão em jogo interesses que interessam à comunidade, no seu todo[7], o que não é o caso sub judice.

Nesta conformidade, ponderado em tudo que fica dito, é de rejeitar a revista excecional interposta.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em não admitir, ao abrigo do disposto no art. 672.º n.º 1 a) e b), do C.P.C., a revista excecional interposta pelo Autor AA do acórdão do Tribunal da Relação ..., de 18/10/2021.

Custas pelo recorrente.

Anexa-se sumário (art. 663.º n.º 7, do C.P.C.).

Notifique.

Lisboa, 11 de maio de 2022

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Ramalho Pinto

Júlio Manuel Vieira Gomes

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[2] Veja-se António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição atualizada, Almedina, pg. 430.
[3] A este propósito, vide, com interesse, o acórdão do STJ de 28/10/2021, cujo Relator é o Senhor Conselheiro Rijo Ferreira, no Proc. n.º 382/18.8T8BRR.L1-A.S1, da 2.ª S., in www.dgsi.pt.
[4] Vejam-se, entre outros, os acórdãos de 30/03/2022, no Proc. n.º 5881/18.9T8MAI.P1.S2, de 17/03/2022, Proc. n.º 28602/15.3T8LSB.L2.S2 e de 11/05/2021, Proc. n.º 3690/19.7T8VNG.P1.S2, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Júlio Gomes, Chambel Mourisco e Abrantes Geraldes, todos disponíveis no sítio indicado.
[5] V. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª ed., Almedina, pg. 839.
[6] Cfr., por todos, António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pg. 436, e os acórdãos do STJ de 12/9/2019, na Rev. Excecional n.º 317/15.0T8TVD.L1.S1, e de 3/11/2020, Rev. Excecional n.º 3069/19.0T8VNG.P1.S2, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Alexandre Reis e Tomé Gomes, in www.dgsi.pt.
[7] Abrantes Geraldes, ibidem, pg. 436.