MEIOS DE PROVA
ADMISSÃO
Sumário


1 – O juiz tem o poder-dever de indeferir meios de prova que se antevêem inúteis.
2 – São impertinentes diligências probatórias referentes a factos cuja prova seja irrelevante para a sorte da acção.
(Sumário pelo Relator)

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – Nos presentes autos de processo declarativo comum a autora Prismafronteira Unipessoal, Lda demandou as rés Caixa Geral de Depósitos, SA e TFUEL, Lda, pedindo a concluir a sua petição inicial que fosse ela autora reconhecida como proprietária dos bens que descreve no artigo 25º dessa PI e em consequência as RR. solidariamente condenadas a procederem à restituição dos bens relacionados nesse artigo 25º da PI, ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, a fixar em montante diário nunca inferior a €50,00, a contar da prolação da sentença, por cada dia em que não efectuarem a entrega dos bens propriedade da A, ao pagamento de uma indemnização, no montante de €43.000,00 a título de danos patrimoniais, e de montante não inferior a €5.000,00 a título de danos não patrimoniais, e ao pagamento dos respectivos juros de mora.
Alega a autora que foi arrendatária, na sequência de um contrato celebrado em 2012, de um imóvel destinado a exploração de um posto de venda de combustíveis com área de serviço, que incluía um pequeno escritório, café-restaurante, oficina e instalações sanitárias, e adquiriu todos os bens móveis necessários ao desenvolvimento do mencionado negócio.
Posteriormente a autora subarrendou o local e passou o negócio a outra empresa, a Fueltejo - Combustíveis do Alentejo, SA, que entretanto foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 25 de Setembro de 2017, e em momento posterior à declaração de insolvência da subarrendatária a autora teve conhecimento que era outra a empresa que deu continuidade à exploração do mesmo negócio, no mesmo local, com os mesmos equipamentos - todos propriedade da autora – a qual verificou ser a ora ré TFUEL, que ali continua a laborar, desconhecendo a autora a que título.
São esses bens móveis que continuam no local, agora propriedade da ré Caixa Geral de Depósitos, que o adquiriu em processo de execução fiscal, e que a autora afirma serem seus e deverem ser-lhe restituídos.

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II – Contestou a ré TFUEL, para defender a improcedência do pedido, explicando que a autora tinha transmitido o estabelecimento à sociedade Fueltejo com todos os bens que o integram, logo em Abril de 2012, e que a ré contestante por sua vez adquiriu da mesma forma o estabelecimento à dita Fueltejo em Novembro de 2016, explorando no local o seu negócio com o acordo da co-ré CGD, dona do imóvel, pelo que os bens referidos pela autora (os que ainda existam) não são pertença da autora.
Contestou também a ré CGD, igualmente para defender a improcedência do pedido, impugnando a factualidade alegada pela autora, e dizendo que adquiriu o imóvel por lhe ter sido adjudicado, em venda executiva, tendo por isso caducado os contratos de arrendamento e de subarrendamento existentes.
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III - Em sede de audiência prévia, e depois de definidos o objecto do litígio e os temas de prova, a autora requereu oralmente a alteração do seu requerimento probatório nos seguintes termos:
a) - Requerendo a junção aos autos de duas facturas actuais do fornecimento de combustível e de produtos da cafetaria feitos pela Ré no estabelecimento objecto dos presentes autos;
b) - Requerendo a junção aos autos do Alvará n.º AL – 1629, emitido em 05 de Julho de 2001 que habilita o estabelecimento objecto dos autos “para explorar uma instalação de armazenagem de produtos derivados do petróleo bruto, para venda”;
c) – Requerendo que fosse oficiado o Ministério da Economia para informar os autos se a Ré TFuel tem Alvará que a habilite a explorar o estabelecimento objecto dos autos na venda de produtos derivados do petróleo bruto;
d) – Requerendo a junção aos autos por parte da Ré TFuel do documento, em seu poder, na base do qual alega a titularidade do estabelecimento objecto dos autos;
Em face do requerido pela autora, ora Recorrente, a Meritíssima Juíza a quo deferiu a junção aos autos das duas facturas a que se reporta o requerido na alínea a) e indeferiu os pedidos enunciados nas alíneas b), c) e d), nos termos do despacho que vem a ser o recorrido.
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IV - Tem o seguinte teor o despacho impugnado:
“Quanto aos requerimentos agora apresentados pelo ilustre Mandatário da Autora, ao abrigo do disposto no artigo 423.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, admite-se a junção aos autos das duas facturas, por se afigurar que dizem respeito ao objecto dos autos, atendendo, inclusivamente, que já se mostram juntas aos autos facturas similares.
No que diz respeito à junção do contrato de arrendamento que permite à Co-Ré explorar o estabelecimento mencionado nos autos, do Alvará para a exploração da referida actividade e ao pedido de ofício ao Ministério da Economia, a fim de averiguar da existência ou não de alvará próprio da Ré Tfuel no estabelecimento onde estarão os bens que a Autora reclama, não se afigura que tal pedido (e junção de documentos), tenham qualquer conexão com o objecto dos autos, onde se discute o direito de restituição de determinados bens à Autora e o eventual direito a ser indemnizada pelas Rés, por não os restituírem. Deste modo, não se vê como é que a questão do alvará (e do seu titular ou até da circunstância de a Ré Tfuel não ser titular de um Alvará para explorar bombas de combustível e um bar) e do pedido de esclarecimentos ao Ministério da Economia se conformam com aqueles pedidos.
No limite, o peticionado parece bulir com a própria legitimidade da co-Ré Tfuel, porquanto se afigura que a Autora estará a imputar a exploração do estabelecimento a entidade distinta daquelas que demandou nos autos - em contradição até com as facturas juntas e já admitidas.
Assim, por nada ter a ver com o objecto dos autos, indefere-se a requerida junção e, bem assim, as diligências/solicitação de informações pretendidas.”
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V – Contra o decidido, reagiu a autora através do presente recurso de apelação, que apresenta as seguintes conclusões:
1 - Recorre-se, deste modo, do douto despacho que indeferiu o pedido de prova apresentado pela A., ora Recorrente: “Assim, por nada ter a ver com o objecto dos autos, indefere-se a requerida junção e, bem assim, as diligências/solicitação de informações pretendidas.”;
2 - Todos os contratos celebrados, reportam-se à cedência temporária do gozo mediante retribuição quer do imóvel, quer do estabelecimento comercial;
3 - Não se reportam à sua transmissão definitiva muito menos à transmissão definitiva do estabelecimento e, ou, dos bens objecto do presente pleito;
4 - O que apenas poderia ter ocorrido por via do trespasse e não de uma cessão de exploração, conforme aliás resulta do citado arresto da Relação de Coimbra de 17.04.2012, assim sumariado, no segmento que interessa: “IV - O estabelecimento pode ser objecto de transmissão definitiva ou temporária. Trata-se, de resto, do ponto mais significativo do seu regime: a possibilidade da sua negociação unitária, através de trespasse – se essa transmissão for definitiva – ou cessão de exploração - se a cedência do estabelecimento for meramente temporária (artºs 1109º e 1112º, nº 1, a) do CC);
5 - Não obstante a Ré TFuel alega na sua douta Contestação ter comprado o Estabelecimento Comercial;
6 -Sem contudo ter junto aos autos o documento, com base no qual profere tal alegação;
7 - Esse documento, bem assim o alvará que habilita o estabelecimento de que a TFuel alega ser proprietária “para explorar uma instalação de armazenagem de produtos derivados do petróleo bruto, para venda” mostra-se essencial para validar tal alegação;
8 - Tais documentos, mostram-se muito relevantes e essenciais para a descoberta da verdade dos factos;
9 - O mesmo se diga em relação à solicitada informação junto do Ministério da Economia, para vir aos autos informar se a Ré TFuel tem Alvará que a habilite a explorar o estabelecimento objecto dos autos, na venda de produtos derivados do petróleo bruto, de que alega ser proprietária;
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se a nulidade do despacho recorrido e a sua substituição por outro que defira o requerido, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
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VI – Não foram apresentadas respostas às alegações de recurso.
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VII – Tendo presente que o objecto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (cfr. arts. 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão levantada traduz-se em saber se devem ou não ser deferidas as suas pretensões expressas no requerimento probatório que foi indeferido.
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VIII – O tribunal recorrido, na aludida audiência prévia e sem que isso suscitasse alguma reclamação ou reparo, considerou desde logo assentes os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
1 - A Autora, em 02.04.2012, celebrou um contrato de arrendamento com a empresa Petroltorres – Sociedade Distribuidora e Revendedora de Petróleos, Lda.
2 - O referido contrato foi depositado no respectivo Serviço de Finanças onde foi pago o correspondente imposto de selo.
3 - No contrato celebrado, em que consta a ora Autora como arrendatária, é dado de arrendamento o prédio urbano, sito na Herdade das Leoas, Estrada Nacional n.º 372, 7470 – 111 Casa Branca, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Sousel, sob o n.º 00909, e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 1583 da Freguesia de Casa Branca, Concelho de Sousel.
4 - O referido prédio, à data da celebração do contrato de arrendamento, era propriedade da Petroltorres – Sociedade Distribuidora e Revendedora de Petróleos, Lda.
5 - Actualmente a propriedade do imóvel é da 1ª Ré, Caixa Geral de Depósitos, que o adquiriu em 21.11.2013, através de adjudicação em processo de execução fiscal, na qual a Petroltorres, – Sociedade Distribuidora e Revendedora de Petróleos, Lda. figurava como executada - AP. 2292 de 2014.01.31.
6 - Na qualidade de arrendatária, a Autora em 2 de Abril de 2012 celebrou um contrato de subarrendamento com a Fueltejo Combustíveis do Alentejo, com início a partir da referida data.
7 - No qual, a Autora figura como Primeira Contraente e arrendatária do referido prédio e a Fueltejo - Combustíveis do Alentejo, SA., como Segunda Contraente e subarrendatária.
8 - O contrato de subarrendamento celebrado foi depositado no respectivo Serviço de Finanças, onde foi pago o correspondente imposto de selo.
9 - Resulta da cláusula quarta do referido contrato de subarrendamento, o seguinte: “O subarrendamento é celebrado conjuntamente com a cedência, do mobiliário e equipamentos que constam da Relação anexa (Anexo I), que deverão ser restituídos findo o contrato apresentando apenas o desgaste próprio de uma normal utilização, devendo nos que eventualmente se tornem incapazes de serem substituídos por outros do mesmo tipo e qualidade.”
10 - A Fueltejo - Combustíveis do Alentejo, SA., com o número único de matrícula e identificação fiscal 505 298 783 foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 25 de Setembro de 2017, com Publicação em 09.10.2017 e Registo em 03.10.2017 na Conservatória do Registo Comercial de Almada.
11 - A Autora apresentou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Competência Cível de Lisboa – Juiz 19, Notificação Judicial Avulsa (NJA) na qual notificou as Rés para no prazo de 8 dias restituírem os bens relacionados no artigo 25.º da petição inicial.”
E referindo na mesma ocasião quais são os temas de prova controvertidos declarou o tribunal que seriam os seguintes:
1. Determinar a existência e propriedade dos bens identificados no artigo 25.º da petição inicial;
2. Na hipótese de pertencerem à Autora apurar o seu valor;
3. Aferir se as Rés deviam restituir os bens à Autora e, na afirmativa, se esta sofreu danos pela não restituição dos mesmos, de que natureza e em que valor.
Foi neste contexto que surgiu o requerimento de prova da autora sobre que recaiu o despacho impugnado.
Salienta-se, portanto, que de acordo com o tribunal recorrido a decisão da causa estará dependente da prova que se fizer sobre estes pontos. Em resumo, essa decisão depende da demonstração que se fizer, ou não, de que os bens constantes da relação feita pela autora existem e são pertença da reivindicante; e na hipótese de se demonstrar que realmente existem e são da autora apurar-se o seu valor; e na sequência da prova sobre esses pontos ajuizar da obrigação de restituição que impenda sobre as rés, e ainda averiguar dos danos que a autora tenha sofrido com a não restituição.
Como facilmente se constata, a demonstração da factualidade integrante desses temas de prova fica dependente da prova que a autora consiga fazer sobre eles – são factos constitutivos dos direitos que alega, factos integrantes da causa de pedir que invocou.
O art. 342º, n.º 1, do Código Civil, estabelece a regra basilar quanto à repartição do ónus da prova (àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado), e não deixa lugar a qualquer dúvida de que neste caso o ónus da prova dos factos considerados controvertidos com interesse para a decisão a proferir recai inteiramente sobre a autora.
Como princípio geral da proposição dos meios de prova, estabelece o art.º 423º, nº1, do C.P.C., que os meios probatórios, constituendos e pré-constituídos, devem ser apresentados com os articulados (os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes).
Mas é certo também que podem as partes alterar na audiência prévia o requerimento probatório que hajam apresentado, como é de regra, nos seus articulados (cfr. art. 598º, n.º 1, do Código de Proceso Civil: o requerimento probatório apresentado pode ser alterado na audiência prévia quando a esta haja lugar nos termos do disposto no artigo 591.º).
Tal faculdade não foi negada pelo despacho recorrido: este simplesmente considerou que aquilo que foi requerido não tinha pertinência para os autos (declarou o julgador que “não se afigura que tal pedido (e junção de documentos), tenham qualquer conexão com o objecto dos autos, onde se discute o direito de restituição de determinados bens à Autora e o eventual direito a ser indemnizada pelas Rés, por não os restituírem”).
Equacionando deste modo a questão, conclui-se desde logo que a autora/recorrente labora em equívoco quando fala em “validar a posição” defendida pela ré, quanto à sua situação no estabelecimento; se as posições assumidas pela ré em sua defesa ficarem validadas ou invalidadas sobre ela recairão as consequências processuais, como sobre ela recai o ónus de provar os factos que invocar em sua defesa.
A questão da admissão ou não dos meios de prova requeridos pela autora tem que ser apreciada à luz daquilo que a ela compete provar, atentos os temas de prova e as suas pretensões processuais. E nesta perspectiva afigura-se efectivamente que não tem relação com o objecto dos autos, tal como resulta dos temas de prova, o conhecimento do alvará que habilita o estabelecimento de que a TFuel alega ser proprietária para explorar uma instalação de armazenagem de produtos derivados do petróleo bruto para venda ou saber junto do Ministério da Economia se a Ré TFuel tem alvará que a habilite a explorar o estabelecimento objecto dos autos na venda de produtos derivados do petróleo bruto.
O que a autora reivindica como seu é um conjunto de bens móveis, e provando ela que eles realmente existem e são seus a restituição só lhe pode ser negada se as rés fizerem prova de algum direito próprio que legitime a detenção (cfr. art. 1311º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil); não releva para este efeito indagar da situação do estabelecimento mencionado em face das autoridades administrativas, designadamente através dos referidos alvarás. E da mesma forma não releva para a causa saber o conteúdo do contrato pelo qual a ré TFUEL entrou na exploração do estabelecimento (se o arrendou ou comprou, se houve trespasse ou cessão de estabelecimento, e qual o conteúdo desse contrato) uma vez que perante a prova a fazer pela autora (de que são seus os bens móveis existentes a que se refere o seu pedido) será indiferente saber o que essa ré contratou com terceiros.
Entendemos, portanto, que tem razão o despacho recorrido quando julgou não serem pertinentes para os autos as pretensões probatórias que indeferiu.
E assiste ao juiz o poder-dever de indeferir provas inúteis. Logo o artigo 6.º, do CPC, com a epígrafe “Dever de gestão processual”, impõe ao juiz, no seu n.º 1, além do mais, o dever de recusar o que for impertinente ou meramente dilatório.
Sobre o conceito do que seja impertinente, e reportando-se a documentos, esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 511) que impertinente “é o que diz respeito a factos estranhos à matéria da causa, a factos cuja prova seja irrelevante para a sorte da acção”.
Perante os interesses concretos em causa, atento o objecto do processo, deve avaliar-se a relevância jurídica dos factos a que se referem os meios de prova pretendidos, sendo que essa relevância jurídica constitui uma condição da sua pertinência à prova, e consequente admissibilidade.
Não se afigurando que os meios de prova requeridos tenham potencial relevância para prova de factos objecto do litígio, esse juízo de prognose impõe a sua não admissão, nos termos do art. 6º, n.º 1, do CPC, tal como foi decidido.
Nestes termos, resta-nos confirmar a decisão em causa, julgando totalmente improcedente o recurso em apreço.
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DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 12 de Maio de 2022
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier