ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
Sumário


1 – Pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, pode fazê-lo pela forma prevista no art. 640º do CPC.
2 – Não se encontrando meio de prova que imponha uma resposta diferente em matéria do julgamento de facto daquela a que chegou a primeira instância, deve prevalecer a convicção formada nessa sede.
3 – Comprovando-se a propriedade de um imóvel, o pedido da sua restituição também procede se não for demonstrado algum direito oponível ao proprietário.
4 - Procedendo o pedido de restituição do imóvel, e provando-se prejuízos resultantes da falta dessa restituição, tem o proprietário direito a indemnização na mesma medida.
(Sumário pelo Relator)

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – O Autor M.M. intentou ação declarativa de condenação, com forma de processo comum, contra a Ré O.C., pedindo que seja reconhecido que é o dono do andar que identifica nos autos e seja condenada a Ré na sua restituição, devidamente devoluto, e ainda em indemnização pelo valor correspondente às rendas mensais de €151,50 desde Fevereiro de 2020 até à efectiva entrega do andar, bem como em indemnização por lucros cessantes no montante de €300,00 mensais desde Fevereiro de 2020 até à efectiva entrega do andar.
Alega o Autor que é proprietário, por sucessão hereditária, do prédio em causa nos autos, o qual é utilizado pela Ré contra a sua vontade e sem título legítimo, devendo esta ser condenada a restituir-lhe o imóvel que ocupa e a indemnizá-lo pela privação do uso.
Contestou a Ré, dizendo que pretende ser reconhecida como arrendatária do imóvel reivindicado, por sucessão no arrendamento na sequência de ter vivido em condições análogas às dos cônjuges com o primitivo arrendatário entretanto falecido.
Feito o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a) Declarou o Autor como proprietário da fracção autónoma correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua (…), Loulé, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de (…) sob o artigo (…) e descrita na Conservatória do Registo Civil de Loulé sob o n.º (…);
b) Condenou a Ré a restituir ao Autor o prédio urbano referido, devendo a Ré abster-se de praticar quaisquer actos que perturbem o direito de propriedade do Autor.
c) Condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de €151,50 por cada mês de ocupação do prédio urbano referido, desde Fevereiro de 2020 até à efectiva desocupação do imóvel, sem prejuízo dos depósitos liberatórios já efectuados.

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II – Contra a condenação proferida na sentença reagiu a Ré através do presente recurso, que terminou com as seguintes conclusões:
1 - Deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de facto no sentido de ser dado por provado o seguinte:
A Ré viveu com o (…) no prédio referido em 1) desde 1976 até 18 de Janeiro de 2020, aí partilhando cama, mesa e habitação com este, aí recebendo familiares e amigos, senda a Ré tratada por aquele como "sua mulher".
2- Tal facto resulta quer do atestado da Junta de Freguesia de Loulé (São Clemente) a fls. 18 quer dos depoimentos de várias testemunhas, nomeadamente das testemunhas (…), (…), (…) e (…), donde resulta inequivocamente que a relação entre a Recorrente e o falecido (…) manteve-se inalterável até à data da morte deste último.
3 - Assim, e atento este facto, dever-se-á concluir que a Recorrente efectivamente sucedeu no arrendamento controvertido nos autos por morte de (…), nos termos do disposto nos artigos 26.º n.º 2, 28.º n.º 1 e 57.º n.º 1 alínea b) do Novo Regime do Arrendamento urbano (aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro).
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III – Pelo autor foram apresentadas breves contra-alegações, defendendo simplesmente a improcedência do recurso.
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IV – Tendo presente que o objecto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (cfr. arts. 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão levantada pela recorrente traduz-se concretamente na sua discordância em relação ao julgamento da matéria de facto (a improcedência dos pedidos do Autor, como pretende, decorreria da alteração da matéria de facto no sentido pretendido).
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V – Fazendo o julgamento em matéria de facto, o tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1 - A fração autónoma correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua (…) Loulé, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de (…) sob o artigo (…) e descrita na Conservatória do Registo Civil de Loulé sob o n.º (…), encontra-se inscrita, pela Ap. (…), a favor do Autor M.M., por partilha de herança por óbito de (…) e (…), tal como resulta de fls. 9 e 109, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 1 ° da petição inicial).
2 - Em 26 de dezembro de 1976, (…), pai do Autor, cedeu o gozo temporário do prédio referido em 1), tendo à data numeração diferente da atual, a D.M.C., pelo prazo de um ano, prorrogável por iguais períodos, pela renda de PTE 4.000,00 mensais, tal como resulta de fls. 13 e 14, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 2° da petição inicial).
3 - O arrendatário D.M.C. faleceu a 18 de janeiro de 2020 e a Ré O.C., após esse óbito, remeteu ao Autor carta nos termos da qual informa desse óbito e informa que vivia em união de facto com aquele, pretendendo suceder no contrato de arrendamento, juntando um atestado de Junta de Freguesia, tal como resulta de fls. 15 a 24, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 3° da petição inicial).
4 - Não reconhecendo o Autor à Ré qualquer direito de transmissão do arrendamento e de habitação no referido andar, por aquela não coabitar com o falecido arrendatário nem com este tinha vida em comum, comunicou-o à Ré em carta datada de 26 de fevereiro de 2020 e solicitou-lhe a entrega do locado, tal como resulta de fls. 66 e 67, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 4° da petição inicial).
5 - A Ré remeteu carta a recusar a entrega do prédio referido em 1), tal como resulta de fls. 25, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 5° da petição inicial).
6 - O Autor respondeu por email de 5 de março de 2020, dirigido pelo seu mandatário ao mandatário indicado pela Ré, dr. Nelson Ribeiro da Silva, comunicando que o senhorio não reconhece que tenha ocorrido qualquer transmissão do arrendamento a favor da Ré O.C., tal como resulta de fls. 26 e 27, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 6° da petição inicial).
7 - A Ré viveu com o D.M.C. no prédio referido em 1) desde 1976 até data não concretamente apurada, mas não posterior a 18 de janeiro de 2018, aí partilhando cama, mesa e habitação com este, aí recebendo familiares e amigos, senda a Ré tratada por aquele como "sua mulher" (artigos 10°, 11 ° e 15° da contestação-parte).
8 - No prédio referido em 1) cresceu e morou, até recentemente, o filho da Ré (artigo 12° da contestação).
9 - A Ré e o D.M.C. partilhavam, entre si, as despesas e encargos da habitação e alimentação do agregado familiar no período em que viveram como marido e mulher (artigo 13° da contestação).
10 - Nos últimos meses de vida, o D.M.C. padecia de problemas de saúde e limitações físicas, pelo que foi celebrado pela Ré, enquanto responsável por aquele, o contrato de prestações de serviço de apoio domiciliário, tal como resulta de fls. 46 a 52, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 16° da contestação).
11 - O Autor recusou receber as rendas da Ré, que passou a fazer depósitos das mesmas na Caixa Geral de Depósitos, sendo atualmente a renda no valor de €151,50 por mês (artigo 14° da petição inicial).
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VI - Passemos então a decidir do objecto do recurso.
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A) Da pretendida alteração da matéria de facto
(…)
Julgamos, pois, improcedente a impugnação da matéria de facto deduzida pelo apelante, pelo que se mantém inalterado o julgado na primeira instância em matéria de facto.
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B - Resta-nos assim concluir que, estando o recurso de direito inteiramente dependente do sucesso da impugnação da matéria de facto, fracassando esta fica necessariamente prejudicado o recurso pertinente à interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto.
Efectivamente, a recorrente nada diz quanto à aplicação do Direito aos factos que foi feita na sentença recorrida, não adiantando argumentação alguma contra o decidido com base nos factos então assentes.
E compreende-se que assim seja, dado que as soluções encontradas não oferecem controvérsia.
Apurou-se que o Autor é o dono do imóvel que reivindica, facto este que se apresenta como pacífico.
Ora, como resulta do art. 1311º do CC, julgado procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, deve ser julgado no mesmo sentido o pedido de restituição da coisa, pedido que só poderá ser recusado nos casos previstos na lei (nº 2 do art. 1311º do CC).
Com efeito, o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição daquilo que lhe pertence.
Assim, não tendo a Ré logrado demonstrar que lhe assiste qualquer direito que possa opor ao Autor reivindicante, são naturalmente procedentes os pedidos deste de que seja reconhecido como dono e seja ordenada a restituição do imóvel.
Tal é a consequência inevitável da falta de prova das circunstâncias que permitiriam concluir pela transmissão do arrendamento, “por via do disposto nos arts. 26º, n.º 2, 28º, n.º 1, e 57º n.º 1 alínea b) do Novo Regime do Arrendamento Urbano”, como pretendia a Ré.
De igual modo, sabendo-se que a Ré não acatou a obrigação de restituição do local, assim privando o proprietário de fruir do seu uso e utilidades, está a mesma obrigado a indemnizá-lo, de forma a ressarcir os prejuízos daí resultantes.
Tendo ficado provado o valor desse dano, correspondente ao valor da renda mensal antes praticada (€151,50), valor este que não vem questionado, também se afigura inquestionável a condenação nos termos decididos.
Nestes termos, resta-nos confirmar a sentença em causa, julgando totalmente improcedente o recurso em apreço.
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DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Évora, 12 de Maio de 2022
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier