MODIFICAÇÃO DO CONTRATO
LIBERDADE CONTRATUAL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário


- A ordem jurídica admite que no exercício da autonomia privada as partes consolidem uma relação jurídica anterior de dívida no fornecimento de mercadorias, sob a estruturação de um contrato de mútuo. Nomeadamente um mútuo oneroso, estabelecendo as partes juros remuneratórios civis, além dos moratórios. As consequências do mútuo devem ser queridas pelos outorgantes, tomando o valor em dívida como antecipadamente “mutuado” por força dos sucessivos não pagamentos de mercadoria fornecida.
- A estruturação da relação jurídica existente em contrato de mútuo tem toda a validade para ordem jurídica, verificada que seja a autonomia da vontade dos outorgantes.
- O nº 1 do artigo 38º do Decreto-Lei 76-A/2006 de 29 de Março, veio estabelecer, no âmbito do regime de reconhecimentos de assinaturas e da autenticação e tradução de documento, que advogados e solicitadores podem autenticar documentos particulares.
- A litigância de má fé reporta-se a um conjunto de atos, não sendo legítimo penalizá-los individualmente. A reiteração do comportamento litigante mais não é que a revelação de um propósito único, em coerência com um propósito inicialmente revelado. E, punir por cada sessão de audiência em que se emitiu uma declaração falsa, contende com princípios como os da razoabilidade e da equidade, uma vez que não está na disponibilidade da parte lograr a produção de toda a prova em sessão única e contínua, o que depende de contingências que não estão ao seu alcance prevenir.
- O montante da multa, nomeadamente da multa por litigância de má fé, é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, tendo ainda em conta, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.
(Sumário pela Relatora)

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

V… instaurou por via eletrónica em 11/09/2018 a presente execução ordinária para pagamento de quantia certa, pelo valor de 49.950,41 euros, contra F…, C…, e S…, juntando como título executivo contrato intitulado de “Mútuo” de 26/06/2012, autenticado por “Termo de autenticação” com a mesma data.

No qual F… e marido C.A.… (entretanto falecido), se confessaram devedores ao exequente e sua mulher, com quem é casado no regime da comunhão geral de bens, da importância de 61.000,00€ que os devedores lhe emprestaram, pelo prazo de 5 anos, importância esta que vence juros à taxa de 4%/ano.

Alegou o exequente que de acordo com o contrato, o capital mutuado seria pago por transferência bancária em prestações mensais de 500,00€, pelo menos. Os juros devidos seriam calculados e pagos no final do integral pagamento da dívida. Mas os executados pagaram ao exequente apenas e tão só as prestações mensais vencidas desde Julho de 2012 a Outubro de 2015, isto é, 40 x 500,00€ = 20.000,00€. Estando em falta com a importância restante de capital - 41.000,00€ e a totalidade dos juros.

Assim, a título de capital e até à data, os executados devem 41.000,00€. A título de juros desde Julho 2013 atá à interposição da execução devem o montante de 8.950,41€. Daí que a totalidade do débito exequando seja de 49.950,41€, a que deverão acrescer juros de mora vincendos, à taxa acordada de 4%, sobre o capital de 41000,00€, até pagamento integral.

Em 07 de novembro de 2014, faleceu o devedor C.A…, tendo-lhe sucedido sua mulher, meeira e herdeira F… e seus filhos e também ora executados C… e S….

F…, C…e S…, vieram deduzir oposição à execução, pedindo ao Tribunal, que sejam os autos julgados extintos, sendo também o Exequente condenado, a título de litigante de má-fé, no pagamento aos Executados da quantia de 7.000,00 euros.

Alegam, para tanto, que:

Os Executados nada devem ao Exequente, sendo que a última quantia em dívida foi paga, através de cheque, no montante de 2.000,00 euros, em 25 de Junho de 2012;

No que concerne ao mútuo, o mesmo nunca ocorreu, ou seja, não foi colocada qualquer quantia à disposição dos Executados; Nem o contrato de mútuo é válido, uma vez que não foi autenticado o documento particular, limitando-se o Exequente a juntar certificação de fotocópia e com um registo desconhecido na Ordem dos Solicitadores em que a pretensa interveniente foi F…; não faz qualquer sentido que os Executados efetuem um pagamento, em 25 de Junho de 2012 e, no dia seguinte obtenham, do mesmo credor, um mútuo de 61.000,00 euros; Ardilosamente o Exequente no contrato de mútuo, não refere como é que transferiu a quantia mutuada para os mutuários; Dada a postura processual do Exequente, conhecedor que a sua pretensão é inaceitável, mesmo assim deduziu-a, sabendo que o fundamento não existia; Alterou a verdade dos factos, sendo que, primeiramente a pseudo dívida provinha de relações comerciais e posteriormente de um mútuo, qualquer delas falsa, tendo feito do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de alcançar um objetivo ilegal que sabia não corresponder à verdade.

O exequente contestou impugnando a factualidade articulada pelos oponentes, respondendo às exceções e/ou concluindo no sentido de a oposição à execução ser julgada improcedente, seguindo a execução os seus termos até final, com pagamento integral da quantia exequenda, requerendo posteriormente a condenação dos embargantes como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a favor dos embargados, que liquidou em 1.000 euros a título de honorários.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

«- julgar integralmente improcedente(s), de mérito, a(s) presente(s) oposições à execução/embargos de executado n.º 3.505/18.3T8ENT-A proposto(s) pelo(s) executado(s)/oponente(s)/embargante(s) F…, C… e S… contra o exequente V…, absolvendo o exequente V… dos respetivos pedidos,

- pelo que a executada F… e falecido marido C.A… (este último representado pelos embargantes F…, com quem estava casado, e seus filhos C… e S…) devem ao exequente V… a quantia de 41.000 (quarenta e um mil) euros, a título de capital, e respetivos juros,

- respondendo a executada F… em nome próprio, com o seu património, pela dívida exequenda,

- mas respondendo os embargantes C… e S… apenas nas forças da herança, caso hajam de receber ou tivessem recebido bens do falecido C.A…, e nas forças do património do falecido que lhe caibam,

- condenar a executada/embargante F… em multa processual que se fixa em 5 (cinco) U.C., por ter faltado à verdade em audiência de julgamento, na sessão de julgamento de 14/09/2021, o que constitui violação grave do dever de colaboração processual – arts. 417.º do NCPC e 27.º, esp. n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais (RCP);

- condenar a executada/embargante F… em multa processual que se fixa em 5 (cinco) U.C., por ter faltado à verdade em audiência de julgamento, na sessão de julgamento de 08/10/2021, o que constitui violação grave do dever de colaboração processual – arts. 417.º do NCPC e 27.º, esp. n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais (RCP);

- condenar a executada/embargante F… como litigante de má-fé, em multa processual que se fixa em 40 (quarenta) U.C. – arts. 542.º do NCPC e 27.º, esp. n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais (RCP);

- condenar a executada/embargante F… a pagar ao exequente V… a quantia de 1.000 euros (mil euros), a título de indemnização peticionada nos termos e fundamentos previstos no art. 542.º, n.º 1, e 543.º, do NCPC.

[…]

Assim, custas judiciais do(s) processo(s) a suportar pelos embargantes F…, C… e S…, que nele decaem integralmente – arts. 527.º NCPC, 7.º RCP e respetiva Tabela II-A anexa.

Custas do incidente de litigância de má-fé a suportar pela executada/embargante F..., que nele decai integralmente, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) U.C., atenta a complexidade e processado a que deu causa – arts. 527.º NCPC, e 7.º RCP e respetiva Tabela II-A anexa.

Atento o supra exposto, após trânsito, extraia certidão das atas de julgamento, e desta sentença, e remeta à UAMP junto deste Tribunal, a fim de se instaurar processo penal por crimes de falsidade de declarações/depoimento nesta Comarca por parte da executada F…»

Inconformados com tal decisão vieram os embargantes recorrer assim “concluindo” as suas extensíssimas alegações de recurso:

A) Recorre-se da douta sentença a quo que decidiu:

(…)

B) Impugna-se a decisão sobre a matéria de facto, requerendo a reapreciação da prova, a documental e a pessoal:

(…)

D) A análise que o Tribunal a quo deveria ter feito ao teor dos documentos acima identificados, tendo em conta as normas jurídicas aplicáveis, bastaria para ter dado como provado que o título em que o exequente fundou a execução não é válido, nem como documento particular autenticado, e nem como documento particular que encerre uma confissão de dívida.

(…)

K) E, modificando, o Venerando Tribunal ad quem, a decisão sobre a matéria de facto, nos termos que os Apelantes preconizam, revogando a decisão proferida pelo Tribunal a quo, substituindo-a por outra que julgue os embargos procedentes e a execução extinta.

(…)

Q) Quanto ao direito,

R) Ao caso sub judice se aplica, quanto às Espécies de títulos executivos, o previsto do Artº 46º nº1 c) da 42ª versão do CPC- DL 329-A/95 de 12 de Dezembro, dada pela Lei 63/2011 de 14 de Dezembro, conforme Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015 de 14 de Outubro.

(…)

Ora, com o devido respeito, discorda-se desta solução de direito, e, pugnam, os Apelantes pela falta de título executivo. Assim,

U) O Tribunal a quo devia ter apreciado uma questão que era do seu conhecimento oficioso e que não dependia, sequer, da alegação de quaisquer factos, e que se resumia a apreciar se o título dado à execução apresentava ou não as características de que a lei faz depender a sua exequibilidade, determinado o indeferimento liminar do requerimento executivo, como era o caso da manifesta falta ou insuficiência do título dado à execução, quer pela nulidade de substância e quer pela nulidade de forma.

V) O título dado à execução como título executivo não é um documento particular autenticado nos termos legais, porque o documento intitulado de “Mútuo” de 26/06/2012, não está autenticado, pois tem junto um “Termo de Autenticação”, mas

X) Falta-lhe o registo informático, desse “Termo de Autenticação”, na mesma data dele, junto da plataforma informática da Câmara dos Solicitadores-“ROAS”-Registo On Line dos Atos dos Solicitadores, em conformidade com as exigências e requisitos previstos nos art.ºs 3.º e 4.º da Portaria n.º 657-B/2006, de 29 de Junho, registando, naquele sistema informático, a identificação da natureza e espécie dos atos, a identificação dos interessados, com menção do nome completo e do número do documento de identificação, a identificação da pessoa que pratica o ato, a data e hora de execução do ato, o que não aconteceu.

Z) E falta-lhe a aposição, do número de registo que é gerado automaticamente, com o procedimento de autenticação previsto na plataforma informática da Câmara dos Solicitadores-“ROAS” nos termos do nº1 do Artº 4º da Portaria nº 657-B/2006 de 29 de Junho, o que não é dispensado por qualquer código de identificação que se destina à apresentação do ato sujeito a registo predial, à efetivação desse registo predial on line, nos termos conjugados do disposto nos artºs 12º, nº1, 15º e 21º da Portaria 1535/2008 de 30/12.

AA) E o que consta dos autos é que ”No ROAS 1 (registo Online de Atos de Solicitadores), em 26/06/2012 foi registado pela solicitadora P… uma fotocópia certificada dos documentos trazidos aos autos como título executivo.

BB) E falta-lhe, de acordo com o disposto no artº 38º nº1 do DL 76-A/2006 de 29 de Março, a validade da autenticação de documento particular- da própria substância do “Termo de Autenticação”, com o conteúdo previsto na lei notarial, que, nos termos do disposto nos artºs 4º, nºs 1 e 2, alínea c), 46º, nº1 alíneas d), l) e n), 150º nº1 e 2 e 151º nºs 1 alínea a) do Código do Notariado, devendo, constar de termo, no qual as partes confirmem o seu conteúdo perante a entidade autenticadora, e a declaração, delas, de que leram o documento-o “Termo”- e que estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade, o que não aconteceu.

CC) Um mútuo não faz parte dos atos sujeitos a registo predial, previstos, taxativamente, nos artºs 2º e 3º e 24º do DL 224/84 de 6 de Julho, que aprova o Código do Registo Predial, republicado pelo DL 116/2008 de 4 de Julho, e decorrente do previsto nos Artºs 1º,3º alínea a) e e) e 4º nºs 1 e 2 da Portaria 1535/2008 de 30 de Dezembro.

DD) E não é aplicável ao caso o disposto no artº 6º nº 2 da Portaria 1535/2008 de 30 de Dezembro, que regulamenta, por um lado- Artº 1º alínea a)- o depósito eletrónico de documentos particulares autenticados que titulem atos de registo predial, e por outro-Artº 1º alínea b)-e o pedido online de atos de registo predial.

(…)

RR) Não foi apurada, nos termos do disposto nos artºs 6º, 7º e 411º do CPC, a verdade material de saber se os documentos, dados como título executivo, tinham sido assinados pelos executados, mediante perícia técnica, nos termos do disposto nos Artºs 601º nº1 e 607º nº1 do CPC.

SS) A falta de prova de que os executados não assinaram, pelos seus próprios punhos, as assinaturas sub judice, não pode levar à conclusão, por parte do Mmº Juiz a quo, de que eles o fizeram e que o “Mútuo” foi assinado/outorgado.

TT) Até porque, pela análise comparativa das assinaturas que constam da prova documental dos autos, deveria ter-lhe suscitado dúvidas sobre a veracidade dessas assinaturas e dificuldades de natureza técnica cuja solução dependia de conhecimentos especiais, que não detinha,

(…)

FFF) São os exequentes e não os declarantes devedores, que têm de provar que aquela relação subjacente se constituiu validamente, sem o que é a própria existência jurídica da relação subjacente que fica por demonstrar, com a consequente falta de força executiva do título dado à execução, isto é, é o próprio direito do exequente que fica por provar visto que o documento particular que serve de título executivo não é suficiente para formalizar o negócio a que se refere como fonte da obrigação exequenda.

GGG) Nulidade aquela- de inexistência de entrega do dinheiro referido no contrato de mútuo- que, apesar de ter sido suscitada pelos embargantes, desde logo nos embargos, e também em requerimento não foi conhecida pelo tribunal a quo, por se tratar de uma formalidade “ad substantiam” necessária à própria existência da declaração negocial, daí que a questão da nulidade seja de conhecimento oficioso (art. 286.º do CCivil), dado estarem em jogo interesses de ordem pública.

HHH) Não tendo havido qualquer entrega de dinheiro - os 61.000 euros- pelo exequente aos executados o contrato de mútuo não é válido- é nulo, não existindo qualquer reconhecimento da obrigação de restituição, pelos executados, porque o dinheiro não foi colocado à disposição deles.

III) O Tribunal a quo fez uma errada interpretação dos pressupostos do art. 1143° do CCivil, quando não põe em causa a inexistência de um acordo de contrato de mútuo.

JJJ) Mas, no nosso caso, não pode extrair-se aquele efeito, porque esbarra com a falta de reconhecimento das assinaturas dos confitentes, ou seja, para que se pudesse extrair o efeito de exequibilidade da confissão de dívida, inserta num contrato de mútuo nulo por falta de forma, teria este que ser válido, no entanto, do ponto de vista ad substantiam, que o não é.

KKK) O Mmo. Juiz a quo, considerou quer que, a relação subjacente à confissão da dívida exequenda é um contrato de mútuo, quer que a relação subjacente à confissão da dívida exequenda é uma transação comercial de carnes.

LLL) Mas o Mmo. Juiz a quo deu como provada a existência e validade do contrato de mútuo, e foi esta a causa de pedir -o dinheiro mutuado, tal como ela foi configurada pelo exequente, dizendo que emprestou 61.000 euros aos primitivos executados, sendo a obrigação exequenda, tal como o exequente a configurou, a dívida exequenda que resulta da declaração confessória contida no título executivo.

(…)

RRR) E como há invalidade substancial do negócio jurídico subjacente ao título executivo tal afetará não só a constituição do próprio dever de prestar- que, no caso, seria o pagamento pelos embargantes, como afetará a eficácia do respetivo documento como título executivo.

SSS) E, com a devida vénia, entendem os Apelantes, que o Mmo. Juiz a quo não pode trazer à presente execução, uma causa de pedir diferente daquela que o exequente trouxe, e que foi a quantia de capital que, disse, emprestou aos executados.

TTT) E trazê-la para, designadamente, decidir que os embargantes apresentaram duas versões à demanda, contraditórias e falsas, e também para referir que, por causa disso (para além de negar a autoria das assinaturas constantes do título dado à execução), é a embargante F…, litigante de má fé.

UUU) Ora, o Mmo Juiz a quo transforma a quantia de capital mutuada, e que é o objeto do contrato de mútuo, (assim ele não fosse nulo de forma e ad substantiam como já alegado supra), em carne, o que não tem cabimento legal e não consiste em enquadramento jurídico de qualquer facto dado como provado.

(…)

AAAA) Pelo exposto, falta o título à execução.

BBBB) A douta decisão recorrida condena a embargante F… como litigante de má fé, e por dois motivos:

- um, porque diz que os embargantes apresentaram duas versões à demanda, contraditórias e falsas, e são relacionadas com um negócio de transação de carnes;

- e um outro, porque a embargante F… negou o mútuo, a dívida exequenda e a autoria das assinaturas constantes do título dado à execução-contrato de mútuo- imputadas aos devedores e a própria dívida exequenda.

CCCC) Ora, o douto tribunal a quo, não pode, com a devida vénia, alicerçar um Juízo sobre a má-fé no que se fez constar na motivação da decisão de facto, assim como não pode extrair um Juízo de má-fé dum facto não provado, uma vez que, num processo, um facto não provado não é sinónimo da prova positiva do facto contrário.

DDDD) A questão de saber se a Embargante alterou (ou não) a verdade dos factos é uma conclusão a extrair da comparação entre os factos que a mesma alegou e aqueles que ficam provados.

EEEE) Ora, sobre a questão das duas versões sobre o negócio da carne, não foi proferida decisão sobre esses factos, seja no sentido de os julgar provados, seja no sentido de o julgar não provados, e assim, não pode a embargante ser considerada litigante de má fé relativamente a eles.

(…)

MMMM) Ainda que a embargante merecesse a condenação, como litigante de má fé, o que não se concede, a sua condenação em multa processual a favor do embargado, desrespeitou, com a devida vénia, a lei de processo, aplicando de forma errada o regime processual da litigância de má fé.

NNNN) Efetivamente, a multa por litigância de má fé deve ser fixada tendo em conta os critérios legais constantes do n.º 4 do art.º 27º do Regulamento das Custas Judiciais, nomeadamente, a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património, o que não foi verificado, ou considerado pelo Mmo. Juiz a quo, que motivou o montante da condenação no facto de corresponder a 1/8 do valor da causa.

OOOO) Mas o Mmo. Juiz a quo não extraiu as condições económicas respeitantes à embargante, dos elementos dos autos e à míngua de elementos concludentes, deveria, com a devida vénia, respeitar o princípio da proibição do excesso, excesso esse que foi usado na pesada decisão sobre a multa processual, tanto que condena a embargante, não pela conduta no- num único processo- mas ato a ato, e não efetuando qualquer “cúmulo”, o que, nem na legislação penal acontece.

PPPP) E, sem conceder, mas por dever de patrocínio, devera ser, a multa processual, alterada, para uma multa processual única de 3 UC.

(…)

ZZZZ) devendo ser revogada a sentença proferida pelo tribunal a quo substituindo-se por outra que determine a procedência dos embargos e decida pela extinção da instância por falta de título executivo, e condene o embargado e a testemunha P…, como litigantes de má fé, em multa processual não inferior a 5UC cada, e em indemnização a favor dos embargantes, de 1000 euros cada um deles.

O embargante prescindiu do prazo para apresentação de contra-alegações.


II

É a seguinte a factualidade julgada assente pelo tribunal a quo, com a ressalva de que, toda a documentação que o tribunal a quo fez reproduzir em modo de fotografia, se dá por reproduzida quanto ao seu teor, sendo detetável no elenco dos factos assinalado pelo símbolo “[…]” face à impossibilidade técnica de a reproduzir em sistema word, estando, contudo, o respetivo conteúdo disseminado noutros factos que o tribunal a quo cuidou de explicitar:

1) V… instaurou por via eletrónica em 11/09/2018 a presente execução ordinária para pagamento de quantia certa, pelo valor de 49.950,41 euros, contra F…, C… e S…, juntando como título executivo contrato intitulado de “Mútuo” de 26/06/2012, autenticado por “Termo de autenticação” de 26/06/2012, alegando no requerimento executivo:

“Como consta do Documento Particular Autenticado, de 26 de Junho de 2012, F… e marido C.A…, confessaram-se devedores ao exequente e sua mulher, com quem é casado no regime da comunhão geral de bens, da importância de 61.000,00€ que os devedores lhe emprestaram, pelo prazo de 5 anos, importância esta que vence juros à taxa de 4%/ano. O capital mutuado seria pago por transferência bancária para o NIB. 0007…, do Banco Espírito Santo, até ao dia 22 de cada Mês, com início no mês de Julho de 2012, sendo as prestações mensais de 500,00€, pelo menos. Os juros devidos serão calculados e pagos no final do integral pagamento da dívida. Os executados pagaram ao exequente apenas e só as prestações mensais vencidas desde Julho de 2012 a Outubro de 2015, isto é, 40x 500,00€ = 20.000,00€. Os executados estão pois em falta com a importância restante de capital - 41.000,00€ e a totalidade dos juros. Como contratualmente foi estabelecido, o não pagamento de uma das prestações, implica o vencimento imediato das restantes. Assim, a título de capital e até esta data, os executados devem 41.000,00€. A título de juros desde Julho 2013 ate hoje, no montante de 8.950,41€. Daí que a totalidade do débito esta data seja de 49.950,41€, a que deverão acrescer juros de mora vincendos, à taxa acordada de 4%, sobre o capital de 41000,00€, até pagamento integral. Em 07 de novembro de 2014, faleceu o devedor C.A…., tendo-lhe sucedido sua mulher, meeira e herdeira F… e seus filhos e também ora executados C… e S…. São pois estas três pessoas, viúva e dois filhos, corresponsáveis pelo pagamento da divida exequenda”.

2) Juntou como título executivo o documento intitulado de “Mútuo” de 26/06/2012, autenticado por “Termo de autenticação” de 26/06/2012, depositado por via eletrónica no site www.predialonline.pt, com o código de identificação 7218-2545-1278-5110, onde consta:

[…]

3) C.A… faleceu em 07/11/2014, deixando F…, com quem estava casado em primeiras núpcias de ambos, no regime da comunhão de adquiridos, e seus filhos C… e S…

4) Como consta do Documento Particular Autenticado, de 26 de Junho de 2012, F… e marido C.A… confessaram-se devedores ao exequente e sua mulher, com quem é casado no regime da comunhão geral de bens, da importância de 61.000,00 €, que os devedores lhe emprestaram, pelo prazo de 5 anos, importância esta que vence juros à taxa de 4%/ano; o capital mutuado seria pago por transferência bancária para o NIB. 0007…, do Banco Espírito Santo, até ao dia 22 de cada Mês, com início no mês de Julho de 2012, sendo as prestações mensais de 500,00 €, pelo menos, o não pagamento de uma das prestações, implica o vencimento imediato das restantes, e os juros calculados e pagos no final do integral pagamento da dívida.

5) Os executados pagaram ao exequente apenas as prestações mensais vencidas desde Julho de 2012 a Outubro de 2015, isto é, 40 x 500,00 € = 20.000,00 €.

6) A executada/embargante F… sabia perfeitamente que, como consta do Documento Particular Autenticado, de 26 de Junho de 2012, F… e marido C.A… confessaram-se devedores ao exequente e sua mulher, da importância de 61.000,00 euros, tanto mais que a executada e o seu marido deslocaram-se na altura a escritório de Solicitador, e facultaram os elementos dos respetivos Bilhetes de Identidade e n.ºs de contribuinte para o efeito, sabendo perfeitamente que o ato foi praticado junto de Solicitador(a), foi autenticado por termo de autenticação, foi liquidado o imposto de selo, e depositado por via eletrónica.

7) Ainda assim, a executada/embargante F… resolveu negar a dívida exequenda e o ato praticado supra referido, quer na petição de embargos, quer ao longo do processo, designadamente nas sessões de julgamento, o que sabe ser falso.

8) A executada/embargante F…, ao atuar como referido em 6) a 7), factos aqui dados por integralmente reproduzidos, sabia estar a litigar contra a verdade, contra a Lei, o Direito e a Justiça.

9) Ao atuar da forma como o fez, a executada/embargante F…, agiu, tal como referido em 6) a 8), com plena consciência e vontade de assim o concretizar, e pretendeu, com a sua posição, agindo livre, voluntariamente e conscientemente:

- deduzir pretensão cuja falta de fundamento não ignorava,

- deduzir oposição cuja falta de fundamento não ignorava,

- alegar contra a verdade,

- faltar à verdade nas sessões de julgamento, mesmo depois de a executada/embargante F… ter sido ajuramentada, advertida das consequências penais de tal comportamento, e acareada, resolvendo manter versão que sabia perfeitamente ser falsa,

- locupletar-se ilicitamente à custa do exequente,

- prejudicar o exequente,

- praticar omissão grave do dever de cooperação e colaboração na resolução do litígio,

- fazer do processo e meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da Justiça e protelar, sem fundamento sério, os trâmites normais dos autos, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei processual;

10) Em 25/06/2012, C.A… emitiu a favor da mulher do exequente, I…, o cheque n.º 033…, da CGD, no montante de 2.000,00 euros.

11) A executada F… recebeu, em 04/06/2012, o escrito do documento 2 junto com a petição de embargos, aqui dado por reproduzido.

12) No registo online de atos dos Solicitadores, com o n.º1561599, referente ao Solicitador com a cédula 5…0, consta: “O registo não existe no sistema ou não pertence ao solicitador indicado”.

13) No ROAS 1 (Registo Online de Atos de Solicitadores), consta que o contrato intitulado de “Mútuo” de 26/06/2012 foi registado pela Solicitadora P…, que estava à data, e está, no exercício de funções, sendo que o registo obtido é aquele que já constava dos autos, anexo ao título executivo:

[…]

14) Requerimento da Solicitadora P… de 09/12/2020:

[…]

15) Foi pago à Administração Tributária o imposto de selo, no valor de 366 euros, relativo ao contrato exequendo.

*

Factos não provados:

A) Não foi outorgado, e não existiu o contrato de mútuo provado em 2) e 4).

B) O exequente não entregou a quantia mutuada.

C) Para além do pagamento provado em 5), a dívida de carnes foi paga.


III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (arts. 635º, 3 e 639, 1 e 2 CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.608º in fine), são as seguintes as questões a decidir:

I - Da impugnação da matéria de facto.

II – Do erro na aplicação do direito, nomeadamente no (indevido) reconhecimento como título executivo do documento dado à execução.

III – Da (indevida) condenação da embargante como litigante de má fé.

I - Da impugnação da matéria de facto

A reação dos apelantes cumpre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, como previsto no art. 640º do CPC.

(…).»

Aqui chegados cumpre-nos sindicar a interpretação e as conclusões a que chegou o tribunal a quo quanto à prova dos factos.

Confrontadas as gravações dos depoimentos prestados em audiência com a prova documental produzida, é nossa convicção não ter sido cometido qualquer erro de apreciação da prova, pelo que, nada se impõe corrigir, seja para decidir em sentido oposto, seja para, num plano intermédio, alterar a decisão de facto, restringindo-a ou ampliando-a.

A decisão da primeira instância relativa aos pontos de facto impugnados mostra-se conforme às regras e princípios de valoração do direito probatório.

São três os depoimentos relevantes prestados em audiência, o da embargante F…, o do exequente V… e o da testemunha P…, ainda que a relevância do primeiro acabe por se restringir à avaliação do comportamento processual da depoente.

Embargante e exequente depuseram de forma essencialmente oposta quanto à génese e finalidade do contrato dado à execução como título executivo. Negando a embargante o seu teor e a sua participação (tal como a do seu falecido marido) no mesmo.

Mas são as contradições e a ilogicidade do depoimento da embargante F…, numa valoração intrínseca, considerando a falta de coerência e consistência do mesmo, seja no primeiramente alegado, seja no posteriormente declarado e, a incompatibilidade desse depoimento com os demais elementos probatórios à luz das regras da normalidade e da experiência da vida, agora sob valoração extrínseca, que tornam desmerecedora a sua credibilidade.

Por exemplo, quando primeiramente alega que na data anterior à que se mostra aposta no contrato de mútuo saldou toda a dívida com um pagamento de 2.000 euros ao exequente e depois admite que após essa data fez vários pagamentos parciais de 500 euros, num total de 20.000 euros.

Ou, quando a propósito do contrato de mútuo, que não reconhece, declara que lhe mandaram para casa uma folha em branco, que apenas assinou um papel em branco, dizendo depois que a assinou num escritório dum solicitador, no dia anterior ao que figura no contrato de mútuo, ou seja, em 25-06-2012. Não conseguindo explicar como nele se faz constar o número de identificação pessoal, quer o seu, quer o de seu marido “assinei um papelinho, uma folha em branco”, porque foram a um escritório de solicitador, porque aparece o mesmo assinado com data de 26-06-2012 com certificação dos respetivos números de identificação. Ou, porque se a dívida era de 20.000 (2ª versão) porque não a mencionaram no papel que alegadamente assinou sem que nada estivesse nele escrito, no dia anterior.

O exequente V… deu uma explicação convincente para a celebração do contrato de mútuo nos termos e com o formalismo que nele constam. De 1995 a 2006 ele e a mulher foram fornecedores de carne à embargante e seu falecido marido, que parte das vezes não pagavam. Em 26-06-2012 fez-se o acordo de mútuo para formalizar uma confissão de dívida “fizemos o acordo no gabinete do solicitador Sr. L… e assinámos os três, estávamos os dois casais. No dia seguinte foram entregues duplicados a cada um e os executados ficaram com as faturas que constam da declaração. À data (26-06-2012) a dívida era de 61.000 euros. A carta de 04-06-2012 refere 63.000 euros, mas entretanto foi pago um cheque de 2.000 euros. Depois do contrato de mútuo pagaram 20 e tal mil euros. Nunca emprestei dinheiro mas forneci as carnes sem pagamento. No escritório do solicitador estava lá a Drª P….”

P…, solicitadora e agente de execução, sem qualquer interesse no desfecho dos autos, descreveu com total segurança o que manteve avivado na sua memória quanto à celebração do contrato de mútuo, estando a mesma em exercício de funções, “(…).»

Em diligência de acareação entre a embargante F…, o exequente V… e a testemunha P…, aquela manteve que nunca esteve presente perante a Drª P… e não assinou o contrato de mútuo. O exequente confirmou a sua versão, de que fizeram este contrato de mútuo respeitante a uma dívida de fornecimento de carne e a testemunha P… reforçou que “assinaram na minha presença”.

As demais testemunhas ouvidas não foram relevantes.

Na verdade, a única versão plausível e coerente, em consonância com toda a prova documental e que se mostra reforçada por uma prova isenta e credível, no caso o depoimento da testemunha solicitadora P…, é a versão do exequente.

O contrato de mútuo dado à execução foi celebrado na presença da testemunha P…., solicitadora, teve a presença física e a assinatura da embargante F… e de seu falecido marido C… que se identificaram dando à solicitadora os seus bilhetes de identidade, para que recolhesse os respetivos números de identificação, e demais indicações quanto ao local e data de emissão.

Por via desse contrato F… e marido C.A……, confessaram-se devedores ao exequente e sua mulher, com quem é casado no regime da comunhão geral de bens, da importância de 61.000,00 €, que os devedores lhe emprestaram, pelo prazo de 5 anos, importância esta que vence juros à taxa de 4%/ano; o capital mutuado seria pago por transferência bancária para o NIB. 0007…, do Banco Espírito Santo, até ao dia 22 de cada Mês, com início no mês de Julho de 2012, sendo as prestações mensais de 500,00 €, pelo menos, o não pagamento de uma das prestações, implica o vencimento imediato das restantes, e os juros calculados e pagos no final do integral pagamento da dívida.

Por conta desse valor foram pagas apenas as prestações mensais vencidas desde Julho de 2012 a Outubro de 2015, isto é, 40 x 500,00 € = 20.000,00 €.

Os documentos juntos aos autos principais e no apenso confluem nessa expressão probatória, ou seja, no sentido de que, os outorgantes (nomeadamente embargante e seu falecido marido) foram devidamente reconhecidos e identificados no ato de 26-06-2012, outorgaram voluntariamente no ato, assinaram o contrato nos termos que dele consta.

O original do contrato de mútuo com rúbrica e assinatura dos outorgantes, indicação dos respetivos números, datas e locais de emissão de BI, o termo de autenticação lavrado pela solicitadora P…, a prova do depósito do contrato via eletrónica no site www.predialonline com o código de identificação 7218-2545-1278-5110, e comprovativo do pagamento de imposto de selo de 366 euros, foi junto aos autos em 31-08-2020, pela mesma Solicitadora P… na sequência do determinado em despacho proferido em audiência previa de 09-07-2020. Vindo a confirmar a autenticidade da cópia anteriormente junta.

Tal como o original do bilhete de identidade exibido em audiência (14-09-2021) pela embargante F… cujos número, local e data de emissão coincidem com o referido no contrato de mútuo.

Os documentos comprovativos de 40 depósitos de 500,00€, pagos em execução do acordado no contrato de mútuo junto aos autos, juntos aos autos pelo exequente, vieram dar consistência à tese deste de que por conta do contrato decorreram 40 pagamentos parciais.

Em suma, provando-se a presença física da embargante no ato, a aposição pela mesma da sua assinatura no contrato dado à execução, prejudicada fica a sua versão e dos demais embargantes de que aquela não esteve presente no ato, logo não assinou tal contrato.

As incongruências e contradições do seu relato insistentemente reafirmadas sustentam a consciência da sua falta à verdade.

Infundamentada se mostra, por isso toda a impugnação da matéria de facto, assente que está numa versão não só não comprovada como desmentida pela adequada análise crítica da prova, no seu conjunto.

Improcedendo, por consequência, o recurso, quanto à impugnação da matéria de facto.

II – Do erro na aplicação do direito, nomeadamente no reconhecimento como título executivo do documento dado à execução.

Em diversos momentos os embargantes tecem uma particular objeção, de natureza substantiva, para tentar demonstrar o infundado contrato de mútuo, dizendo: se tivesse sido celebrado um contrato de mútuo a embargante F… e seu marido teriam recebido do mutuante, a quantia em dinheiro que se diz mutuada, o que nunca aconteceu. Entre os embargantes e o alegado mutuante, ora exequente, apenas se estabeleceram relações comerciais de compra e venda de carne. Nunca este lhes emprestou dinheiro, nem fez prova do empréstimo.

A objeção contudo, não procede. Retira-se das alegações das partes que, a anteceder o contrato de mútuo existiu, de facto, uma relação negocial prolongada no tempo, de fornecimento de carnes pelo exequente V… a F… e seu marido. Retira-se do probatório que, desse relacionamento comercial resultou um saldo a favor do primeiro de 61.000 euros à data do contrato.

A necessidade de consolidar essa dívida, de ordenar os interesses das partes e definir os efeitos jurídicos que melhor os acautelassem, nomeadamente, com pagamentos faseados e remunerados, levou a que as partes, voluntariamente optassem pela celebração de um contrato de mútuo.

Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (art. 1142º CC).

As partes podem convencionar o pagamento de juros como retribuição do mútuo; este presume-se oneroso em caso de dúvida (art. 1145º, 1 CC).

A ordem jurídica admite que no exercício da autonomia privada as partes consolidem a relação jurídica anterior de dívida, sendo o exequente credor de 61.000 euros e a embargante F… e seu marido os devedores do correspondente, sob a estruturação de um contrato de mútuo. Um mútuo oneroso, tendo as partes estabelecido juros remuneratórios civis, além dos moratórios. As consequências do mútuo foram queridas pelos outorgantes, tomando o valor em dívida como antecipadamente “mutuado” por força dos sucessivos não pagamentos de mercadoria fornecida.

A estruturação da relação jurídica existente em contrato de mútuo tem toda a validade para ordem jurídica, verificada que seja a autonomia da vontade dos outorgantes.

E dúvidas não há, no caso, quanto a esta.

Perante a existência de uma dívida (admitem os embargantes que houve uma dívida respeitante a carne fornecida no decurso de vários anos pelo exequente), em 26-06-2012 as partes decidiram outorgar um contrato de mútuo “pelo prazo de 5 anos, importância esta que vence juros à taxa de 4%/ano; o capital mutuado seria pago por transferência bancária para o NIB. 0007…, do Banco Espírito Santo, até ao dia 22 de cada Mês, com início no mês de Julho de 2012, sendo as prestações mensais de 500,00 €, pelo menos, o não pagamento de uma das prestações, implica o vencimento imediato das restantes, e os juros calculados e pagos no final do integral pagamento da dívida.”

Pelo que, na sua natureza substantiva, o contrato é válido.

Tal como é do ponto de vista formal.

O mesmo reporta-se ao valor de 61.000 euros.

Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a € 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado (art. 1143º CC).

O contrato em causa mostra-se celebrado por documento particular autenticado.

Autenticação essa feita por entidade autorizada. No caso uma solicitadora.

Dispõe o artigo 363º nº 3 do Código Civil que “Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais”.

Contudo, o nº 1 do artigo 38º do Decreto-Lei 76-A/2006 de 29 de Março, veio estabelecer, no âmbito do regime de reconhecimentos de assinaturas e da autenticação e tradução de documento, que advogados e solicitadores podem autenticar documentos particulares.

Dispondo tal artigo que:

«1. Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-Lei nº 244/92, de 29 de Outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial.

2. Os reconhecimentos, as autenticações e as certificações efetuados pelas entidades previstas nos números anteriores conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais atos tivessem sido realizados com intervenção notarial.

3. Os atos referidos no nº1 apenas podem ser validamente praticados pelas câmaras de comércio e indústria, advogados e solicitadores mediante registo em sistema informático, cujo funcionamento, respetivos termos e custos associados são definidos por portaria do Ministro da Justiça.

[…]». (sublinhados nossos)

O registo no sistema informático previsto nesta disposição veio a ser implementado pela Portaria nº 657-B/2006, de 29 de Junho.

O preâmbulo da Portaria n.º 657-B/2006 de 29 de Junho diz o seguinte:

«O n.º 1 do artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, estabelece a competência das câmaras de comércio e indústria, dos advogados e dos solicitadores para a prática de reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares e certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos. Todavia, o n.º 3 do mesmo artigo condiciona a validade desses atos a registo em sistema informático, cujo funcionamento, respetivos termos e custos associados são definidos por portaria do Ministro da Justiça, pelo que importa aprová-la».

Verifica-se face a estas normas que os atos que o referido Decreto-Lei e esta Portaria disciplinam são os seguintes:

- Reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança;

- Autenticação de documentos particulares;

- Certificação de documentos;

- Feitura e certificação de traduções.

- Certificação da conformidade das fotocópias com os documentos originais;

- Elaborar fotocópias dos originais que lhes sejam presentes para certificação.

A validade da prática destes atos depende do seu registo informático na autoridade competente, no caso dos autos, a Ordem dos Solicitadores – artigo 1.º e al. a), do n.º 1, do artigo 2.º da referida Portaria.

O n.º 4 desta Portaria estabelece:

«Execução do registo

1 - O registo informático é efetuado no momento da prática do ato, devendo o sistema informático gerar um número de identificação que é aposto no documento que formaliza o ato.

[…]».

Temos pois que, que aquela disposição passou a atribuir também aos solicitadores competências que anteriormente se encontravam exclusivamente reservadas aos notários.

Retira-se do contrato de Mútuo de 26/06/2012 apresentado como título executivo, que a autenticação do documento com a mesma data da sua celebração, foi por parte da Sra. Solicitadora sujeita a registo no sistema de «registo online dos atos dos solicitadores».

Tendo a mesma sido ainda depositada por via eletrónica no site www.predialonline.pt, com o código de identificação 7218-2545-1278-5110. Sendo essa uma plataforma pública de depósito de DPA (documentos particulares autenticados).

No ROAS 1 (Registo Online de Atos de Solicitadores), consta que o contrato intitulado de “Mútuo” de 26/06/2012 foi registado pela Solicitadora P…, que estava à data, e está, no exercício de funções, sendo que o registo obtido é aquele que consta anexo ao título executivo.

Sendo, desse modo o contrato de mútuo, formalmente válido, porque celebrado por documento particular devidamente autenticado por quem tinha competência para o efeito, considerando o valor nele aposto e a exigência formal do artigo 1143º CC.

Sendo o documento que contém o contrato, igualmente, título executivo válido.

Validade essa que existe à luz das normas processuais em vigor à data da outorga do contrato (art. 46º, 1, b) e c) do CPC antigo - DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), e subsiste à luz das normas processuais no momento da interposição da execução (art. 703, 1, b) do CPC novo - Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).

Dispondo o artigo 46.º do CPC antigo:

«Espécies de títulos executivos

1 - À execução apenas podem servir de base:

(…)

b) Os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;

(…)»

Dispondo o art. 703 do CPC novo:

«Espécies de títulos executivos

1 - À execução apenas podem servir de base:

(…)

b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

(…)»

O contrato de mútuo levado à execução, é indiscutivelmente um título executivo, enquanto documento autenticado, mas também o é enquanto documento particular, uma vez que o contrato foi celebrado no âmbito da vigência do CPC antigo e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 14/10 veio declarar “[c]om força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.”

Improcedem, pois, as alegações de recurso que pretendem a inexistência nulidade/ invalidade do mútuo seja do ponto de vista substantivo, seja do ponto de vista formal e, o seu (des)valor enquanto título executivo.

Da litigância de má fé.

O tribunal a quo decidiu:

- condenar a executada/embargante F… em multa processual que se fixa em 5 (cinco) U.C., por ter faltado à verdade em audiência de julgamento, na sessão de julgamento de 14/09/2021, o que constitui violação grave do dever de colaboração processual – arts. 417.º do NCPC e 27.º, esp. n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais (RCP);

- condenar a executada/embargante F… em multa processual que se fixa em 5 (cinco) U.C., por ter faltado à verdade em audiência de julgamento, na sessão de julgamento de 08/10/2021, o que constitui violação grave do dever de colaboração processual – arts. 417.º do NCPC e 27.º, esp. n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais (RCP);

- condenar a executada/embargante F… como litigante de má-fé, em multa processual que se fixa em 40 (quarenta) U.C. – arts. 542.º do NCPC e 27.º, esp. n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais (RCP);

- condenar a executada/embargante F… a pagar ao exequente V… a quantia de 1.000 euros (mil euros), a título de indemnização peticionada nos termos e fundamentos previstos no art. 542.º, n.º 1, e 543.º, do NCPC.

Pretendem os apelantes que não estão verificados os pressupostos da litigância de má fé ou, caso assim se não entenda, são desproporcionados os montantes fixados que além do mais não atendem à capacidade económica da embargante condenada.

Dispõe o artigo 542.º do CPC que:

«Responsabilidade no caso de má-fé - Noção de má-fé

1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

[…]»

Rege o artigo 27.º do Regulamento das Custas Processuais que:

«[…]

3 - Nos casos de condenação por litigância de má fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC.

4 - O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.

[…]»

Uma Unidade de Conta equivale no presente a 102,00 euros (OE 2021, OE 2022: valor das custas processuais – LexPoint).

Resultou provado que:

“6) A executada/embargante F… sabia perfeitamente que, como consta do Documento Particular Autenticado, de 26 de Junho de 2012, F… e marido C.A… confessaram-se devedores ao exequente e sua mulher, da importância de 61.000,00 euros, tanto mais que a executada e o seu marido deslocaram-se na altura a escritório de Solicitador, e facultaram os elementos dos respetivos Bilhetes de Identidade e n.ºs de contribuinte para o efeito, sabendo perfeitamente que o ato foi praticado junto de Solicitador(a), foi autenticado por termo de autenticação, foi liquidado o imposto de selo, e depositado por via eletrónica.

7) Ainda assim, a executada/embargante F… resolveu negar a dívida exequenda e o ato praticado supra referido, quer na petição de embargos, quer ao longo do processo, designadamente nas sessões de julgamento, o que sabe ser falso.

8) A executada/embargante F…, ao atuar como referido em 6) a 7), factos aqui dados por integralmente reproduzidos, sabia estar a litigar contra a verdade, contra a Lei, o Direito e a Justiça.

9) Ao atuar da forma como o fez, a executada/embargante F…, agiu, tal como referido em 6) a 8), com plena consciência e vontade de assim o concretizar, e pretendeu, com a sua posição, agindo livre, voluntariamente e conscientemente:

- deduzir pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, /- deduzir oposição cuja falta de fundamento não ignorava, / - alegar contra a verdade, /- faltar à verdade nas sessões de julgamento, mesmo depois de a executada/embargante F… ter sido ajuramentada, advertida das consequências penais de tal comportamento, e acareada, resolvendo manter versão que sabia perfeitamente ser falsa, / - locupletar-se ilicitamente à custa do exequente, /- prejudicar o exequente, /- praticar omissão grave do dever de cooperação e colaboração na resolução do litígio, /- fazer do processo e meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da Justiça e protelar, sem fundamento sério, os trâmites normais dos autos, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei processual.”

Tais factos são inequivocamente demonstrativos duma litigância de má fé.

Entendeu o tribunal a quo na ponderação da respetiva condenação que “[a]tenta a ilicitude elevadíssima e “temerária”, culpa agravada, persistência e reiteração, falta de reconhecimento, patente na factualidade em causa, permitindo que o processo chegasse até esta fase, incorrendo conscientemente em litigância de má-fé, decorrente de a executada/embargante F… saber perfeitamente que, como consta do Documento Particular Autenticado, de 26 de Junho de 2012,[…]; ainda assim, a executada/embargante F… resolveu negar a dívida exequenda e o ato praticado supra referido, quer na petição de embargos, quer ao longo do processo, designadamente nas sessões de julgamento, o que sabe ser falso […].”

Dando por verificado um persistente e intenso dolo no desvirtuar da realidade, o tribunal a quo, não obstante, não apurou a situação económica da embargante nem ponderou a repercussão da condenação no seu património.

Por outro lado, a litigância de má fé reporta-se a um conjunto de atos, não sendo razoável penalizá-los individualmente. A reiteração do comportamento litigante mais não é que a revelação de um propósito único, em coerência com um propósito revelado inicialmente. E, punir por cada sessão de audiência em que se emitiu uma declaração falsa, contende com princípios como os da razoabilidade e da equidade, uma vez que não está na disponibilidade da parte lograr a produção de toda a prova em sessão única e contínua, o que depende de contingências que não estão ao seu alcance prevenir.

Assim sendo, impõe-se anular os montantes arbitrados a título de multa por litigância de má fé, para que o tribunal de 1ª instância ordene a produção de prova em falta quanto à situação económica da embargante F… e a final pondere da repercussão da condenação no seu património.

Devendo tal condenação resultar igualmente de uma apreciação integrada e unificada.

O que implicará a ampliação da matéria de facto nesse segmento específico (art. 662, 2, c) e d) CPC).

Anulação essa que não abrange a fixação da indemnização da parte contrária, decorrente da litigância de má-fé da embargante F…, que foi estipulado em 1.000 (mil) euros de honorários do Ilustre Mandatário do exequente (quantia à qual acrescerá depois o IVA legal), por não estar abrangido pelo desatendimento do referido normativo.


IV

Termos em que, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, anulando-se a decisão recorrida apenas na parte respeitante à fixação das multas a que a apelante F… foi condenada por litigante de má fé, ordenando-se que a 1ª Instância sujeite essa condenação a uma apreciação integrada e unificada, apurando a situação económica da apelante e ponderando a repercussão da condenação no seu património.

Confirmando-se a sentença recorrida quanto ao mais.

Custas pela apelante, a fixar a final.


Évora 12 de maio de 2022

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Maria Adelaide Domingos

José António Penetra Lúcio