EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
CÁLCULO
Sumário

1 – Existe a obrigação de entrega imediata ao fiduciário de qualquer quantia recebida que integre rendimentos objecto de cessão, por impulso do insolvente e sem necessidade de intervenção directora do Tribunal ou do administrador judicial nomeado para fase de exoneração do passivo restante.
2 – A exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor; implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos.
3 – No apuramento do rendimento disponível o período de referência a ter em conta em tal afectação é o mensal, até porque, por norma estamos no domínio de relações laborais, o insolvente fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, ainda que se admita que, por razões de equidade, no plano concreto, de forma excepcional, a correção do método de cálculo e de transferência possa acontecer quando ocorra uma grande oscilação de rendimentos de forma a garantir que o patamar mínimo de dignidade previsto constitucionalmente não é afectado pela cessão de rendimentos.
4 – A introdução de um mecanismo correctivo em que se decida que, nos meses em que os rendimentos sejam inferiores ao valor do ordenado mínimo nacional, a entrega do montante não é realizada é suficiente para garantir a equidade concreta normativamente exigida.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 2955/20.0TBSTB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo de Comércio de Setúbal – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
(…) foi declarada insolvente e requereu o procedimento de exoneração do passivo restante. Não se conformando com a decisão que indeferiu que o cálculo do apuramento do montante disponível fosse realizado anualmente, em função do rendimento médio auferido, a insolvente veio interpor o competente recurso.
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Foi admitido liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante relativamente à insolvente (…).
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Por decisão datada de 20/10/2020, o Tribunal determinou que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que o insolvente viesse a auferir fosse considerado todo cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal correspondente a 2,25 da remuneração mínima mensal garantida, doze meses por ano.
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No primeiro ano da cessão no mês de Agosto a devedora auferiu a quantia de € 2.028,19.
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Em 26/01/2022, veio o fiduciário juntar aos autos informação anual de cessão, de onde consta que, no primeiro ano de cessão, a insolvente acumulou uma dívida no montante de € 531,94.
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Notificada dessa informação, em 10/02/2022, a insolvente pediu que o cálculo de cessão fosse efectuado anualmente e não mensalmente, pois em alguns meses não aufere o valor fixado, apenas atingindo esse valor quando recebeu o subsídio de férias.
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O fiduciário pronunciou-se, dizendo que nada tinha a opor, sublinhando que «o seguimento de tal critério tem sido divergente ao longo dos vários Tribunais e, por defeito, o signatário considera sempre o rendimento mensal e não o anual, daí ter apresentado os cálculos nesse sentido».
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Até à presente data nenhum valor foi entregue pela insolvente.
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Em 14/03/2022, o Juízo de Comércio de Setúbal indeferiu a pretensão da insolvente e ordenou que esta, em 10 dias, regularizasse a dívida de cessão ou, em alternativa, apresentasse plano de pagamentos dessa dívida, o qual não poderia terminar depois do final do período de cessão.
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A insolvente não se conformou com a referida decisão e as suas alegações contenham as seguintes conclusões:
«A) No despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo, o rendimento indisponível “necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” foi fixado no valor correspondente a 2,25 SMN.
B) No período de 12 meses do 1.º ano de cessão de rendimentos à fidúcia, o rendimento indisponível anual da recorrente importaria em € 17.752,50.
C) Nesse mesmo período a devedora insolvente apenas auferiu rendimentos salariais que somam na quantia de € 14.341,12.
D) Durante 11 meses do 1.º ano da cessão, os rendimentos salariais da devedora recorrente foram sempre inferiores ao rendimento indisponível fixado judicialmente, com exceção do mês de agosto, em que recebeu 2.028,19 €, fruto da soma do salário e do pagamento de compensação decorrente da caducidade do seu contrato de trabalho como professora do ensino público contratada a termo certo.
E) Nesse mês de agosto a devedora auferiu a quantia de € 2.028,19, correspondente à soma do salário e compensação por caducidade do contrato.
F) Relativamente ao mês de agosto, o tribunal o quo decidiu ser a insolvente, ora recorrente, devedora à fidúcia da quantia de € 531,94, correspondente ao excesso dentre o rendimento mensal recebido (€ 2.028,19) e o valor de 2,25 SMN (€ 1.498,25).
G) No caso concreto da ora recorrente, em que o rendimento indisponível é 11 meses no ano superior aos seus vencimentos, há-de ter-se por ilegal, porque inconstitucional, a decisão tomada pelo tribunal a quo de obrigar à entrega da quantia que num único mês excedeu este rendimento indisponível, por entender simplesmente que, «como os rendimentos do insolvente são recebidos mensalmente, também a entrega tem de ser mensal, afastando-se, em regra, qualquer espécie de cálculo anual ou compensação entre meses para apuramento dos rendimentos objecto da cessão (…).
Logo, nos meses em que os rendimentos excedem o que foi considerado necessário para o sustento do insolvente, terá de ocorrer a entrega dos valores em excesso ao Fiduciário.»
H) Impor uma cadência mensal estanque para apuramento das quantias a entregar/ceder à fidúcia, apenas porque é essa a periodicidade mensal que caracteriza os rendimentos auferidos pela recorrente em cada mês de cada ano do período de cessão, afigura-se carecer de fundamento e, portanto, ilegal e inconstitucional.
I) Com efeito, a mera circunstância de legalmente o rendimento indisponível ser determinado em função de salários mínimos mensais – até ao limite de 3 SMN –, não constitui fundamento bastante para concluir que é todos os meses, independentemente de as quantias auferidas serem ou não inferiores ao rendimento indisponível, que surge, ou não, a necessidade de entrega/cessão à fidúcia por parte do devedor.
J) Assim será quando os rendimentos auferidos pelos insolventes sejam sempre superiores ao rendimento indisponível.
K) Ou mesmo quando os rendimentos de um mês excedam o valor equivalente a 3 SMN, pois, do disposto em i) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, parece indubitável resultar que tudo o que exceder 3 SMN é sempre rendimento disponível, «salvo decisão fundamentada do juiz em contrário».
L) Mas o referido nas alíneas J) e K) acima é resultado unicamente decorrente das circunstâncias, e não um resultado de qualquer dispositivo legal.
M) Por força do disposto no artigo 240.º, n.º 2, do CIRE, no caso dos autos, sendo anual o período a que se reporta o Relatório a apresentar pelo Fiduciário, essa é a periodicidade com que devem ser apurados os rendimentos auferidos pela ora insolvente recorrente e, consequentemente, calculadas as quantias que nesse período são devidas à fidúcia.
N) Só assim se assegura o respeito pela garantia constitucional que o rendimento indisponível representado pelo «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar», constitui.
Mostram-se violados pelo despacho recorrido as seguintes normas: artigos 239.º e 240.º do CIRE; artigos 9.º, alínea d), 16.º, n.º 2, 18.º, 67.º e 81.º, entre outros, da Constituição da República Portuguesa.
É, pois, nestes termos e nos mais de direito cujo suprimento se invoca e espera, que se requer seja julgado procedente o presente recurso e, em consequência, revogado o despacho recorrido e em sua substituição decretado que sejam apurados anualmente os rendimentos auferidos pela devedora recorrente e, em função do rendimento indisponível anualizado, calculado o rendimento disponível a entregar/ceder à fidúcia.
Só assim se aplicará a Lei e fará Justiça!».
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as conclusões das alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito a apurar se existe motivo para determinar que o cálculo subjacente à cessão do rendimento disponível seja realizado com base numa periodicidade anual.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:
Os factos com interesse para a decisão são aqueles que se encontram enunciados no relatório inicial e, bem assim, os seguintes que constam da decisão de exoneração do passivo restante:
1) A insolvente é casada, mas encontra-se separada de facto.
2) O seu agregado familiar é constituído por si e por dois filhos, um maior de idade e um menor, ambos estudantes.
3) Reside em casa arrendada, pagando mensalmente € 500,00, a título de renda.
4) Trabalha como professora contratada, auferindo cerca de € 1.696,00 mensais.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Considerações gerais sobre a exoneração do passivo:
Como se pode ler no Preâmbulo do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no que respeita aos insolventes singulares, procura-se conjugar de «forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica».
A exoneração do passivo restante constitui uma novidade do nosso ordenamento jurídico, inspirada no direito alemão (Restschuldbefreiung), determinada pela necessidade de conferir aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo[1]. Este instituto é igualmente tributário da Discharge da lei norte-americana (Bankruptcy Code).
O procedimento de exoneração do passivo restante encontra assento nos artigos 235.º a 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com particular enfoque no regime substantivo do instituto da cessão do rendimento disponível provisionado no artigo 239.º[2] do diploma em análise.
Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, tal como resulta do artigo 235.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, na redacção vigente à data da decisão recorrida.
A exoneração do passivo restante traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento das condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante. Excepcionam-se, contudo, as dívidas abrangidas pela estatuição do n.º 2 do artigo 245.º[3] [4].
Estamos confrontados com dois interesses conflituantes, por um lado, a subsistência dos insolventes e, por outro, a finalidade primária do processo de insolvência que consiste no pagamento dos credores, à custa dos bens e dos rendimentos que deveriam ser canalizados para a massa insolvente.
Para além das obras genéricas relacionadas com o direito da insolvência, sobre a problemática específica da exoneração do passivo restante podem consultar-se as posições de Luís Carvalho Fernandes[5] [6], Catarina Serra[7] [8], Adelaide Menezes Leitão[9] [10], Ana Filipa Conceição[11] [12], Alexandre Soveral Martins[13], Catarina Frade[14], Cláudia Oliveira Martins[15], Francisco de Siqueira Muniz[16], Gonçalo Gama Lobo[17] [18], José Gonçalves Ferreira[19], Mafalda Bravo Correia[20], Maria Assunção Cristas[21], Maria do Rosário Epifânio[22], Paulo Mota Pinto[23] e Pedro Pidwell[24].
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4.2 – Da periodicidade do cálculo subjacente à cessão:
Por decisão datada de 20/10/2020, o Tribunal de Comércio determinou que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que o insolvente viesse a auferir fosse considerado cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal correspondente a 2,25 da remuneração mínima mensal garantida, doze meses por ano.
Posteriormente, a insolvente requereu que o apuramento do montante disponível fosse realizado anualmente, em função do rendimento médio auferido.
O Juízo de Comércio de Setúbal manifestou posição no sentido que os rendimentos do insolvente são recebidos mensalmente e assim a entrega dos mesmos tem de ser efectuada com essa periodicidade, afastando, assim, qualquer espécie de cálculo anual ou compensação entre meses para apuramento dos rendimentos objecto da cessão.
Por isso, nessa lógica, a decisão recorrida refere que nos meses em que os rendimentos excedam o que foi considerado necessário para o sustento do insolvente, este terá de entregar os valores em excesso ao fiduciário. Complementarmente, a decisão de indeferimento estriba-se na seguinte premissa: «nos meses em que for inferior, não há rendimento disponível e por isso não há cessão de rendimentos».
No entanto, ao mesmo passo, o julgador «a quo» alerta que, ainda assim, se deve ter em atenção os proventos globais do insolvente, a fim de evitar «que exista um grande desequilíbrio entre os montantes que lhe estão disponíveis mensalmente» e «se a diferença for mínima, entende-se que será de aplicar a regra, como sucede no caso concreto em que existiram rendimentos regulares em todos os meses».
Em primeiro lugar, cumpre sublinhar que existem dúvidas se os montantes abrangidos pela presente decisão estão cobertos pela esfera de protecção da regra da sucumbência provisionada no artigo 629.º[25] do Código de Processo Civil, na sua relação com a matéria das alçadas[26] estabelecida na Lei de Organização do Sistema Judiciário. Com efeito, aparentemente, a decisão impugnada não é desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal recorrido, ainda que sejam contabilizadas em absoluto as prestações futuras relativas ao diferencial entre o ordenado mínimo nacional e o montante efectivamente recebido pelo insolvente de acordo com um parâmetro anual. E daqui decorre que poderia existir fundamento para não conhecimento do recurso interposto.
Ainda assim, como se trata de uma dúvida sustentada sobre a matéria do decaimento, em homenagem ao princípio da maximização da possibilidade de recurso, admitindo-se que o valor da sucumbência possa ultrapassar o limite legal mínimo de admissibilidade, a impugnação será conhecida.
É certo que a informação prevista no artigo 240.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas deve ser realizada com periodicidade anual, mas de acordo com a alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do mesmo diploma os montantes objecto da cessão devem ser canalizados para o cessionário de forma imediata.
Esta imediação temporal garante um cumprimento pontual menos oneroso para o devedor e a distribuição do remanescente pelos credores da insolvência fica facilitada, nos termos e para os efeitos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
Aqui chegados, no plano jurisprudencial, a solução é controvertida, existindo arestos que optam pela escolha do método de cálculo mensal[27] [28] [29], enquanto outras adoptam o método anual de cálculo[30] [31] [32].
Entendemos que no apuramento do rendimento disponível o período de referência a ter em conta em tal afectação é o mensal, até porque, por norma estamos no domínio de relações laborais, o insolvente fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.
Porém, também se admite que, por razões de equidade, no plano concreto, de forma excepcional, a correção do método de cálculo e de transferência pode acontecer quando ocorra uma grande oscilação de rendimentos de forma a garantir que o patamar mínimo de dignidade previsto constitucionalmente – sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar – não é afectado pela cessão de rendimentos.
Neste segmento, defende-se que na fixação desse montante mínimo há que ter em conta o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana precipitado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa. E essa garantia da condição digna de existência é prosseguida através da atribuição de um quantitativo monetário que seja apto a uma sobrevivência humanamente condigna, sendo que recorrentemente o Tribunal Constitucional assume o entendimento que a salvaguarda dessa existência é minimamente perfectibilizada com a atribuição do montante equivalente ao do salário mínimo nacional, face ao preceituado nos artigos 1.º, 59.º, n.º 2 e 63.º, nºs 1 e 2, da Lei Fundamental.
O salário mínimo contém em si a ideia de que a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo[33] [34].
E a decisão aqui em causa não coloca em causa o referido mínimo de sobrevivência nem atenta contra as disposições constitucionais convocadas no recurso interposto.
Em contraponto, não nos podemos esquecer que o objectivo final da exoneração do passivo restante é a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, “aprendida a lição”, este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica[35].
Por força desta dimensão lógica-jurídica, a exoneração do passivo restante não assenta na pura desresponsabilização do devedor; implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos[36] [37].
Retornando à situação concreta, mesmo que se perfilhasse como justa a solução proposta (rendimentos auferidos pelo insolvente anualmente, que no caso até nem coincide com o ano fiscal), na decisão concreta o Meritíssimo Juiz de Comércio de Setúbal introduziu um mecanismo correctivo em que, correctamente, decidiu que, nos meses em que os rendimentos fossem inferiores ao valor do ordenado mínimo nacional, a entrega do montante antecipadamente previsto não seria concretizada.
E o acima referenciado mecanismo correctivo introduzido pela decisão recorrida tem a virtualidade de estabelecer um equilíbrio entre o interesse do credor e as necessidades básicas do insolvente. Diferente seria se existisse uma grande oscilação de rendimentos, mas isso não se verifica, tal como perspectiva a decisão recorrida.
Mais, ao contrário do afirmado, em todos os meses a insolvente recebeu a verba que lhe estava destinada pela decisão de exoneração do passivo, como se constata pela análise dos gráficos elaborados pelo fiduciário.
Aliás, da análise do relatório do fiduciário resulta que, a não ser assim, a requerente não estaria vinculada a entregar qualquer quantia à fidúcia, uma vez que apenas no mês de Agosto de 2021 resultava a possibilidade de ressarcimento parcial dos credores e a única quantia objecto da cessão é o referido valor de € 531,94.
E, nesta perspectiva, a ser validada a pretensão da insolvente, a exoneração do passivo restante mais não seria do que o perdão total da dívida aos credores. Na realidade, até à presente data nenhum valor foi entregue pela insolvente e, no futuro, se prevalecesse o seu entendimento, nenhum montante seria canalizado para a fidúcia.
E, assim, ao optar pela canalização mensal de rendimentos para a fidúcia, determinação essa que constava da decisão de exoneração do passivo e que não foi objecto de recurso, o Tribunal «a quo» agiu bem.
Além do mais, a opção por um ou outro método de cálculo não pode servir, sob pena de abuso de direito, para privar totalmente os credores de serem ressarcidos. Na verdade, tal como recorrentemente já afirmamos em anteriores arestos sobre esta temática, o instituto da exoneração do passivo restante não pode configurar «um instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas»[38].
Retornado à questão da compatibilidade constitucional, ao cabo e ao resto, a parte recorrente limita-se a categorizar de injusta a decisão. Porém, na dimensão teórico-prática, a aferição da compatibilidade constitucional é dirigida a normas e não a decisões judiciais, por o sistema jurídico não comportar o recurso de amparo. Efectivamente, o modelo de fiscalização da constitucionalidade adoptado internamente é de cariz meramente normativo, só aferindo a conformidade constitucional de actos normativos gerais e abstractos, ficando fora do controlo da justiça constitucional os actos não normativos, onde incluem, em primeira linha, as decisões judiciais.
E assim não existe aqui fundamento válido para, na sua dimensão concreta, alterar o anteriormente decidido.

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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
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Processei e revi.
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Évora, 12/05/2022
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário


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[1] Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 320.
[2] Artigo 239.º (Cessão do rendimento disponível):
1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º
2 - O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor.
6 - Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão.
[3] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição (actualizada de acordo com o Decreto-Lei n.º 26/2015, de 06 de Fevereiro, e o Código de Processo Civil de 2013), Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 848.
[4] Artigo 245.º (Efeitos da exoneração):
1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º.
2 - A exoneração não abrange, porém:
a) Os créditos por alimentos;
b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade;
c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações;
d) Os créditos tributários.
[5] Luís Carvalho Fernandes, La exoneración del passivo restante en la insolvência de personas naturales en el Derecho Português, Revista de Derecho Concursal y Paraconcursal, n.º 3-2005.
[6] Luís Carvalho Fernandes, A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares no Direito Português, in Luís Carvalho Fernandes e João labareda, Colectânea de estudos sobre a insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, a páginas 275 e seguintes.
[7] Catarina Serra, As funções do Direito da Insolvência no âmbito de life time contracts (breve reflexão), in Nuno Manuel Pinto Oliveira e Benedita McCrorie (coordenação), Pessoa, Direito e direitos, Braga, Direitos Humanos – Centro de investigação Interdisciplinar, Escola de Direito da Universidade do Minho, 2016.
[8] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 556 e seguintes.
[9] Adelaide Menezes Leitão, Pré-condições para a exoneração do passivo restante – Anotação ao Ac. do TRP de 29.9.2010, Proc. 995/09”, Cadernos de Direito Provado, 2011, 35, a páginas 65 e seguintes.
[10] Adelaide Menezes Leitão, Insolvência de pessoas singulares: a exoneração do passivo restante e o plano de pagamentos: as alterações da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, in AA. VV. Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, a páginas 509 e seguintes.
[11] Ana Filipa Conceição, Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, in I Congresso de Direito da Insolvência.
[12] Ana Filipa Conceição, A jurisprudência portuguesa dos tribunais superiores sobre exoneração do passivo restante – Breves notas sobre a admissão da exoneração e a cessão de rendimentos em particular”, Julgar on line, Junho de 2016.
[13] Alexandre Soveral Martins, A reforma do CIRE e as PMEs”, Estudos de Direito da Insolvência, Coimbra Editora, Coimbra, a páginas 15 e seguintes.
[14] Catarina Frade, O perdão das dívidas na insolvência das famílias, In Ana Cordeiro Santos (coordenação) Famílias endividadas: uma abordagem de economia política e comportamental. Causas e Consequências, Almedina, Coimbra, 2015.
[15] Cláudia Oliveira Martins, O procedimento de exoneração do passivo restante – controvérsias jurisprudenciais e alguns aspectos práticos, Revista de direito da Insolvência, 2016, ano 0, a páginas 213 e seguintes.
[16] Francisco de Siqueira Muniz, O sobre-endividamento por créditos ao consumo e os pressupostos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante no processo de insolvência, Estudos do Direito do Consumidor, 2017, n.º 12, págs. 337 e seguintes.
[17] Gonçalo Gama Lobo, Da exoneração do passivo restante, in Pedro Costa Azevedo (coordenação), Insolvência, Volume especial, Nova Causa, 2012.
[18] Gonçalo Gama Lobo, Exoneração do passivo restante e causas de indeferimento liminar do despacho inicial, in Catarina Serra (coordenação), I Colóquio do Direito da Insolvência de Santo Tirso, Almedina, Coimbra, 2014, págs. 257 e seguintes.
[19] José Gonçalves Ferreira, A exoneração do passivo restante, Coimbra Editora, Coimbra, 2013.
[20] Mafalda Bravo Correia, Critérios de fixação do rendimento indisponível no âmbito do procedimento de exoneração do passivo restante na jurisprudência e na conjugação com o dever de prestar alimentos, Julgar, 2017, 31, a páginas 109 e seguintes.
[21] Maria Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis, edição especial, 2005.
[22] Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016.
[23] Paulo Mota Pinto, Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade, in Catarina Serra (coordenação), III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2015, a páginas 175 e seguintes.
[24] Pedro Pidwell, Insolvência de pessoas Singulares. O “Fresh Start” – será mesmo começar de novo? O fiduciário. Algumas notas”, Revista de Direito da insolvência, 2016, a páginas 195 e seguintes.
[25] Artigo 629.º (Decisões que admitem recurso).
1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.
2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:
a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado;
b) Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça;
d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
3 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação:
a) Nas ações em que se aprecie a validade, a subsistência ou a cessação de contratos de arrendamento, com exceção dos arrendamentos para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios;
b) Das decisões respeitantes ao valor da causa nos procedimentos cautelares, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c) Das decisões de indeferimento liminar da petição de ação ou do requerimento inicial de procedimento cautelar.
[26] Artigo 44.º (Alçadas):
1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00.
2 - Em matéria criminal não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso.
3 - A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação.
[27] No acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03/12/2020, publicado em www.dgsi.pt, pode ler-se que. «apesar de a letra do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), do CIRE, não dizer expressamente que, ao fixar o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e da sua família, o juiz tomará, por referência, o que é razoavelmente necessário no período de um mês, é esse o pensamento legislativo (um mês)».
[28] No mesmo sentido, pode ser consultado o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/03/2017, disponibilizado em www.dgsi.pt, que também aponta no sentido de que «quando o apuramento do rendimento disponível se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), i), do artigo 239.º, do CIRE, o período de referência a ter em conta em tal apuramento é o de um mês».
[29] Acórdão deste colectivo de Juízes do Tribunal da Relação de Évora de 13/04/2021, disponível em www.dgsi.pt.
[30] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17/01/2019, consultável em www.dgsi.pt, que sublinha que: «Nos casos em que o rendimento do insolvente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida. II- Para esse efeito, terá de apurar-se o montante mensal médio dos rendimentos auferidos pelo insolvente num determinado ano fiscal e cotejá-lo com valor mensal fixado pelo Tribunal. III- Se tal montante mensal médio não exceder o valor mensal fixado pelo Tribunal, a obrigação de entrega ao fiduciário a que alude a alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do C.I.R.E. é inexistente».
[31] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/09/2020, pesquisável em www.dgsi.pt, que assinala que: «II- Do facto de o salário mínimo mensal nacional constituir um critério referência para fixação do montante necessário ao sustento minimamente condigno dos exonerandos, daí não decorre que o legislador pretendeu e previu o cálculo ou apuramento dos rendimentos disponíveis vinculado a uma cadência mensal, por referência estanque aos rendimentos auferidos em cada mês de cada ano do período de cessão, tando mais que, conforme artigo 240.º, n.º 2, do CIRE, é anual a periodicidade para a elaboração e apresentação do relatório do período de cessão pelo Fiduciário. III – Perante a irregularidade dos montantes mensais dos rendimentos auferidos pelos exonerandos, com inclusão de meses com rendimentos de montante inferior ao judicialmente excluído da cessão de rendimentos, só através do apuramento dos rendimentos objeto de cessão por referência aos rendimentos anualmente auferidos é possível garantir aos devedores disporem, em cada mês de cada ano do período de cessão e por recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, de rendimentos de montante não inferior, ou de valor o mais aproximado possível, ao rendimento mensal indisponível fixado (…)».
[32] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07/04/2022, publicitado em www.dgsi.pt.
[33] Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 318/99 de 26/04 in DR, II Série de 22/10/1999; n.º 117/2002, de 23/04/2002, in DR I-A, de 02/07/2002; n.º 96/2004, de 11/02/2004, in DR, II, de 01/04/2004.
[34] Noutro entendimento jurisprudencial é dito que na determinação desse montante deverá ter-se como critério orientador que o rendimento per capita do agregado familiar do insolvente não deve, em princípio, ser inferior a ¾ do indexante dos apoios sociais (IAS), em consonância com o regime previsto no artigo 738.º do Código de Processo Civil. Esta é a solução que parece estar contida no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/09/2012, in www.dgsi.pt.
[35] Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Almedina, Coimbra 2004, a páginas 67.
[36] Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25/09/2012 e do Tribunal da Relação de Évora de 27/04/2017, in www.dgsi.pt.
[37] Esta posição já foi assumida igualmente pelo relator e correspondente colectivo nos acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 13/07/2017 e 31/01/2019, disponíveis em www.dgsi.pt.
[38] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/12/2008, in www.dgsi.pt.