INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
INJUNÇÃO
Sumário

I - Expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão não corresponde uma simplificação ou incompletude na exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, mas sim ao resumo da sua essência.
II - É inepto por falta de causa de pedir, o requerimento de injunção em que (apenas) se alega, quanto ao facto jurídico concreto de que emerge o direito, que foi celebrado um contrato de crédito por escrito, que o pagamento devia ser feito em prestações e estas deixaram de ser pagas em determinada data e que ficou em dívida uma determinada quantia.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Proc. n.º 59047/21.5YIPRT.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. (…) STC, S.A., com sede no Edifício (…), Rua (…), nºs 6 e 6-A, Quinta da (…), Paço de Arcos, instaurou contra (…), residente na Rua (…), 10, (…), Elvas, procedimento de injunção.

Alegou, em resumo, que é cessionária do crédito emergente do contrato de crédito celebrado entre a Requerida e (…), Instituição Financeira de Crédito, S.A., que a Requerida deixou de pagar as prestações mensais e sucessivas a que se havia obrigado e que em 01/12/2010 verificou-se o incumprimento definitivo do contrato, ficando em dívida o montante de € 7.002,29.

Concluiu pela “responsabilidade” da Requerida pelo pagamento da quantia de € 7.002,29, acrescida de juros.

A Requerida deduziu oposição alegando que não se recorda de haver celebrado o contrato de crédito mas, a ser verdade o que a Requerente alega, já se passaram mais de 11 anos desde o início do incumprimento, razão da prescrição do crédito reclamado.

Concluiu, na procedência da exceção da prescrição, pela improcedência da ação.

2. Remetidos os autos à distribuição como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, foi proferido despacho a ordenar a notificação das partes para se pronunciarem quanto à falta de causa de pedir, por ausência de factos concretizadores do contrato e incumprimento invocados e a notificação da Autora para “informar se foi dado cumprimento à obrigação de integração da Ré no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), previsto no D.L. n.º 227/2012, de 25 de outubro”.

Pronunciou-se a Autora defendendo que a causa de pedir se mostra suficiente caraterizada no requerimento inicial e que não está obrigada a integrar a Ré no PERSI porque não é uma instituição de crédito.

3. Seguiu-se a prolação de sentença que julgou verificada a “exceção dilatória de conhecimento oficioso, cfr. artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 278.º, n.º 1, alínea b), 577.º, alínea b) e 578.º, todos do CPC, determinando a absolvição da Ré da instância” e julgou verificada a “exceção dilatória inominada e insuprível decorrente do artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, que constitui pressuposto da admissibilidade da ação, determinando a absolvição da Ré da instância, nos termos do disposto nos artigos 577.º, 578.º, 278.º, n.º 1, alínea e) e 279.º do CPC”, consignado, a propósito da nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, designadamente, o seguinte:

“Compulsado o requerimento de injunção, verifica-se que os únicos elementos de facto alegados pela exequente são o número do contrato e a data a que o mesmo se reporta, sendo a restante matéria aí vertida manifestamente conclusiva, o que não permite cumprir o ónus de alegação previsto no artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Face ao exposto, não se encontrado determinado o conteúdo do referido contrato (sendo que a obrigação pecuniária emergente de contrato tem por fonte o concreto acordo celebrado entre as partes – cfr. artigo 405.º, n.º 1, do CC), e, bem assim, quaisquer factos geradores do incumprimento (v.g. prazos de vencimento, etc.), conclui-se que o mesmo é omisso relativamente à causa de pedir.

Acresce que, na oposição, a Ré, apesar contestar o conteúdo da injunção, o faz, no essencial, por referência ao invocado pela Autora e por via da alegação de exceções que impedem a produção dos efeitos jurídicos pretendidos, não resultando da mesma qualquer interpretação da petição inicial subsumível ao artigo 186.º, n.º 3, do CPC (neste sentido, veja-se por exemplo o Ac. do TRL de 16-05-2019, proc. 89078/18.6YIPRT-A.L1-6, já citado, «face a esta omissão [falta de indicação de causa de pedir], nem sequer é possível a invocação da salvaguarda prevista no n.º 3 do artigo 186.º do CPC, porquanto, apesar da contestação, seria absurdo concluir que a Ré interpretou corretamente uma Petição Inicial na qual nem sequer foram invocados os atos jurídicos concretos que integram a respetiva causa de pedir»; pelo que se conclui que a ineptidão não é sanável, nos termos do artigo 186.º, n.º 3, do Código de Processo Civil”.

4. A Autora recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:

“A) A apelante intentou, em 08/09/2021, contra a Ré uma ação no âmbito da qual alegou o incumprimento, por parte da Ré, de um contrato de crédito.

B) No requerimento de injunção, a ora Autora indicou qual o contrato que foi celebrado e incumprido pela Ré – cfr. artigo 7º do referido requerimento.

C) A Autora indicou que a Ré se comprometeu ao pagamento de prestações, mensais e sucessivas – cfr. artigo 8º de idem.

D) Que a Ré nunca denunciou o contrato nos termos e nas respetivas cláusulas – cfr. artigo 9º de idem.

E) Indicou a data do incumprimento do contrato – cfr. artigo 10º de idem.

F) Indicou o montante em dívida à data do incumprimento – cfr. artigo 11º de idem.

G) E identificou devidamente as partes ativa e passiva.

H) Em suma, no requerimento de Injunção a Autora expôs sucintamente os factos que deram origem ao crédito cujo pagamento reclama e que integram a causa de pedir.

I) Tendo formulado o seu pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e quantias devidas, conforme estabelece o artigo 10.º do anexo do DL n.º 269/98.

J) Assim, no entendimento da autora não se verifica qualquer insuficiência ou falta de causa de pedir.

K) Por outro lado, entendeu o Tribunal julgar verificada a exceção dilatória inominada e insuprível decorrente do artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, por não ter sido dado cumprimento dos requisitos de integração no PERSI.

L) A Autora, atual titular do crédito, não é uma instituição de crédito, nos termos definidos pelo DL n.º 227/2012.

M) Não lhe sendo aplicável o referido diploma.

N) Termos em que a Autora não estava obrigada a instaurar o PERSI antes de intentar a injunção que deu origem aos presentes autos.

O) Ainda que assim não se entenda, o que se admite sem conceder, ao contrato de crédito em causa não é aplicável o DL n.º 227/2012, salvo douto entendimento.

P) Acresce ainda que, conforme igualmente se expôs no requerimento de injunção, a Ré entrou em incumprimento em 01/12/2010, tendo o contrato de crédito ficado resolvido.

Q) Ora, o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro entrou em vigor em 01.01.2013.

R) Sendo que nos termos do artigo 39.º do DL n.º 227/2012, apenas ficam sujeitos às disposições legais desse diploma “os clientes bancários que, à data de entrada em

S) vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor”.

T) Pelo que tendo sido resolvido o contrato em causa nestes autos em 01/12/2010, não lhe é aplicável o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro.

Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve a douta sentença ser revogada, julgando-se improcedente a alegada insuficiência na causa de pedir, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”

Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, são as seguintes as questões colocadas no recurso: (i) se a petição é inepta por falta de causa de pedir, (ii) se a Autora não se mostra obrigada a integrar a Ré no PERSI.

III. Fundamentação
1. Factos
A decisão recorrida fundamentou-se, de facto, nas seguintes alegações constantes no requerimento inicial:
1. Por contrato de Cessão de créditos a (…), Instituição Financeira de Crédito, S.A. cedeu o crédito em causa nestes autos à (…) – Serviços de Tratamento e Aquisição de Dívidas, S.A..

2. E em 17 de Julho de 2012, a (…), S.A. cedeu o crédito referido no artigo anterior à (…), Limited.

3.Por sua vez, a (…), Limited cedeu o crédito à (…) STC, S.A, ora Requerente, que o aceitou.

4. A presente ação constitui meio idóneo para dar conhecimento ao devedor da cessão de créditos em termos idênticos à notificação prevista no artigo 583.º do Código Civil.

5. Neste sentido veja-se Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30 de Setembro de 2009 e 03 de Fevereiro de 2000 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Outubro de 2009, disponíveis em http://www.dgsi.pt

6. A Requerente é, assim, parte legítima na presente ação, com interesse em demandar porque é a legítima titular do crédito resultante do incumprimento do contrato.

7. Por documento particular foi celebrado pela (…), Instituição Financeira de Crédito, S.A. com o(a) Requerido(a), um contrato de crédito, ao qual foi atribuído o n.º (…).

8. O(a) Requerido(a) comprometeu-se ao pagamento em prestações, mensais e sucessivas.

9. O(a) Requerido(a) nunca denunciou o contrato nos termos das respetivas cláusulas.

10. No entanto, o(a) Requerido(a) deixou de efetuar o pagamento mensal das prestações, pelo que em 01/12/2010, verificou-se o incumprimento definitivo do contrato.

11. Tendo ficado em dívida o montante de € 7.002,29.

12. Essa quantia venceu juros à taxa legal desde a data atrás referida até à data da propositura da presente ação os quais ascendem, neste momento, ao valor referido em juros.

13. Pelo exposto, é o Requerido responsável pelo pagamento à Requerente da quantia de € 7.002,29, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal desde 01/12/2010 até efetivo e integral pagamento, bem como de todas as custas de parte, a apurar a final.


2. Direito
2.1. Se a petição é inepta por falta de causa de pedir
A decisão recorrida depois de considerar inepta a petição inicial, por falta de causa de pedir, julgou procedente a exceção dilatória da nulidade de todo o processo e absolveu o R. da instância.
A Recorrente defende que a petição indica suficientemente a causa de pedir e, como tal, não é inepta.
Segundo o artigo 186.º, n.º 2, alínea a), a petição inicial é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.

Causa de pedir é o facto jurídico de que procede a pretensão do autor (artigo 581.º, n.º 4, do CPC), “é o princípio gerador do direito, a sua causa eficiente, a origo petionis (…) a causa petendi não é a norma de lei que a parte invoca em juízo; é o facto material e especifico que no caso concreto se imputa ao réu.”[1]
“O direito deriva, por exemplo, de um contrato? O autor há-de invocar esse contrato, reproduzindo as suas cláusulas essenciais, para que possa saber-se, com precisão, qual foi o negócio jurídico celebrado pelas partes. Se não fizer referência ao contrato, ou fizer referência vaga e confusa que não permita reconstituir, com a necessária nitidez, a espécie de convenção que os outorgantes estabeleceram, a petição será inepta, por força da alínea b) do artigo 193.º (…) a causa de pedir não é o facto jurídico abstrato, mas o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar. O facto jurídico abstrato não pode gerar o direito, pela razão simples de que é uma pura e mera abstração, sem existência real.”[2]
Por isto que na petição, com que propõe a ação, deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir (artigo 552.º, n.º 1, alínea d), do CPC), regra que, em substância, não se altera nos procedimentos de injunção e nas ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias com origem em tais procedimentos.
No modelo de requerimento de injunção, aprovado por portaria do Ministro da Justiça, deve o requerente expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão [artigo 10.º, n.º 2, alínea d), do DL n.º 269/98, de 1/9], o que significa que também nestes procedimentos o requerente deve expor os factos que constituem a causa de pedir ainda que sucintamente; ora, a síntese ou explicação resumida dos fundamentos de facto que justificam o pedido não corresponde, se bem vemos, a uma simplificação ou incompletude na exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, mas sim ao resumo da sua essência e, assim, a um acréscimo de exigência na sua estruturação [a síntese, por natureza, envolve o pleno domínio de todos os detalhes analíticos que, com ela, se visam revelar].

De igual modo, as sentenças proferidas nas ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias ainda que com origem nos procedimentos de injunção deverão ser sucintamente fundamentadas [artigo 4.º, n.º 7, do referido DL n.º 269/98], sem que tal signifique uma menor exigência na sua construção, designadamente, na especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão [artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC], a qual só é realizável se, a montante, os factos essenciais que justificam a pretensão houverem sido alegados.

No caso, a Recorrente visa o cumprimento de um contrato de mútuo e depois de justificar a sua legitimidade para a causa (pontos 1 a 6 supra) alega, quanto ao contrato, essencialmente o seguinte: (i) o contrato (de crédito) foi celebrado por escrito (ponto 7), (ii) o pagamento devia ser feito em prestações e estas deixaram de ser pagas (pontos 8 e 10) e (iii) ficou em dívida o montante de € 7.002,29 (ponto 11).

Alegação manifestamente insuficiente por menor que seja o rigor formal que se empregue.

Mútuo é o contrato pela qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artigo 1142.º do Código Civil).

E o mútuo bancário, apesar das suas particularidades, designadamente quanto à forma, taxas de juro e prazos, mantém as caraterísticas do mútuo na sua expressão civilista, o que significa que a colocação do dinheiro à disposição do mutuário é um seu elemento constitutivo ou integrante.[3]

No caso, não se alega se a quantia mutuada foi colocada à disposição da Recorrida, não se alega o montante da quantia mutuada, as prestações pagas e respetivos juros, as prestações em dívida ou o plano de pagamentos acordado e violado, ou seja, não se alegam as cláusulas essenciais do contrato, nem as circunstâncias da mora e do incumprimento definitivo.

Os factos alegados, no pressuposto da sua plena demonstração, não permitem fixar os pressupostos de facto indispensáveis à procedência do pedido formulado, assim, obstando ab initio à construção do silogismo judiciário que a sentença deve representar.

Por falta de causa de pedir a petição (requerimento) inicial é inepta, a ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo e esta a absolvição do réu da instância [artigos 186.º, n.º 1 e 2, alínea a) 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), todos do CPC], como se decidiu em 1ª instância.

Solução que prejudica o conhecimento da remanescente questão colocada no recurso – se a Autora não se mostra obrigada a integrar a Ré no PERSI – uma vez que não se altera com a solução que para esta se viesse a encontrar.
Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.


2.2. Custas
Vencida no recurso, incumbe à Recorrente o pagamento das custas (artigos 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso em confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Évora, 12/5/2022
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho



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[1] Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. III, páginas 121 e 125.
[2] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2º, páginas 370 e 375.
[3] Cfr. a este propósito, Acórdãos da Relação do Porto de 11/1/2007 (processo n.º 0635963) e de 24/11/2009 (processo n.º 117/07.0TBSJP-A.P1), disponíveis em www.dgsi.pt.