INSOLVÊNCIA
FALTA DE COMPARÊNCIA
JUSTO IMPEDIMENTO
Sumário

A verificação do impedimento não basta para que o requerente seja admitido a praticar o ato, é também necessário que a parte que alega o justo impedimento se apresente a praticar o ato logo que cessou o justo impedimento.

Texto Integral

Proc. n.º 103/21.8T8RDD.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. No processo especial de insolvência que (…), S.A., com sede na Av. (...), n.º 30, em Lisboa, instaurou a (…), com domicílio na Estrada Nacional, n.º (…), Herdade de (…), Terena, Alandroal, feita a chamada das pessoas convocadas para a audiência de discussão e julgamento e não se mostrando presente a Requerente, nem a sua Ilustre Mandatária, foi proferida a seguinte decisão:

“Foi designada para a realização audiência de julgamento o presente dia, às 09:10 horas. São, neste momento, 09:29 horas e a requerente não compareceu nem tão pouco a sua Ilustre Mandatária, desconhecendo-se as razões pelas quais a parte não compareceu em audiência.

De acordo com o n.º 3 do artigo 35.º do CIRE, a não comparência do requerente por si só ou através de representante, vale como desistência do pedido.

Assim, ao abrigo do disposto na citada norma legal e no artigo 277.º, alínea d), do C.P.C., declara-se extinta a instância por desistência do pedido”.


2. A Requerente recorre da decisão e conclui assim a motivação do recurso:
“A. O douto despacho do tribunal ad quo defende que face à não comparência do Recorrente e/ou do seu mandatário, por força do n.º 3 do artigo 35.º do CIRE, a instância outra solução não teria que a extinção por desistência do pedido.

B. Ora salvo respeito, que é muito, o douto despacho não pugnou pela análise crítica dos factos, antes aplicando uma interpretação declarativa da norma jurídica em causa, quando face à conjuntura factual, salvo melhor entendimento, poderia a norma legal em apreço ser fruto de uma interpretação extensiva, quando «o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adotada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que se pretendia dizer.”

C. Senão, seria outra poderia ser a decisão proferida.

D. Apresentou o Recorrente petição para declaração de insolvência do Recorrido (…) em 14-07-2021.

E. A 19-07-2021 ordenou o Mmo. Juiz que o Recorrido fosse citado pessoalmente para em 10 dias, querendo, apresentar oposição.

F. A Sra. Agente de Execução (…) foi designada para realização da diligência de citação por contacto pessoal do Recorrido em 06.08.2021, tendo a provisão para o efeito sido paga pelo Recorrente a 18-08-2021.

G. No entanto, não obstante diversas insistências, a Sra. Agente de Execução não levou a cabo a referida diligência.

H. A 01-10-2021, face à ausência de resposta da Agente de Execução, foi a mesma novamente advertida.

I. Face ao contínuo silêncio desta, pugnou o Recorrente a sua substituição.

J. Aceite e decorrida a substituição, foi novamente ordenada citação pessoal do Recorrido junto do novo Agente de Execução a 05-11-2021, sendo que a 22-12-2021 a segunda tentativa resultou negativa uma vez que mesmo alegadamente “se encontrava ausente do país por motivos de saúde”.

K. Após várias vicissitudes e tentativas de citação, que desde já se diga, ocorrem desde o início do processo, foi o Recorrido finalmente citado editalmente em 24-01-2022, ou seja, 7 (sete) meses após o despacho inicial para o efeito.

L. O Recorrido apresentou oposição em 02-03-2022.

M. Não foi dado conhecimento pelos mandatários do Recorrido aos mandatários do Recorrente da apresentação da contestação.

N. Quanto a este ponto desde já se deixe dito que não obstante não existir no âmbito do processo de insolvência e contrariamente aos demais atos, como a petição inicial ou a apresentação de recurso, a obrigação de notificação às partes, com o devido respeito, é o Recorrente da opinião que nada impedia os mandatários do Recorrido ao abrigo da boa-fé processual – cfr. artigos 8.º e 9.º do CPC – de notificar os mandatários da Recorrente da apresentação de contestação, dando assim cumprimento ao estipulado nos artigos 221.º e 255.º do CPC, como expressão de urbanidade entre colegas.

O. No entanto, tal não sucedeu e na sequência da apresentação da oposição pelo Recorrido a 02-03-2022, procedeu a Mma. Juiz à marcação da audiência de discussão e julgamento, conforme despacho datado de 04-03-2022.

P. De acordo com o n.º 1 do artigo 35.º do CIRE: “Tendo havido oposição do devedor (…) é logo marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes, notificando-se o Recorrente, o devedor e todos os administradores de direito ou de facto identificados na petição inicial para comparecerem pessoalmente ou para se fazerem representar por quem tenha poderes para transigir.”

Q. A referida audiência foi então marcada para dia 08-03-2022, meros dois dias úteis após o despacho de agendamento.

R. É certo que o supra referido preceito legal prevê que a marcação da audiência seja feita nos 5 (cinco) dias subsequentes.

S. No entanto, salvo o devido respeito, que é muito, não se entende razão para ter sido atendido um prazo tão curto, havendo ainda mais três dias úteis para dar cumprimento ao legalmente estabelecido.

T. Com efeito, embora cientes de que estamos perante um processo de natureza urgente, note-se que o despacho de agendamento foi proferido a uma sexta-feira com marcação da audiência de discussão e julgamento para terça-feira seguinte.

U. Sucede que, da conjugação do n.º 5 do artigo 21.º-A da Portaria 114/2008, de 6/02 (na redação dada pela Portaria 1538/2008, de 30/12), com o artigo 248.º do CPC, ex vi do artigo 17.º do CIRE, a notificação por transmissão eletrónica de dados presume-se feita na data da expedição e não na data da elaboração, ou seja, presume-se efetuada no 3º dia posterior à data certificada pelo CITIUS (…)”.

V. Assim, resulta que a notificação do agendamento se tem como efetuada no dia 07-03-2022, contados três dias após a elaboração da notificação em Citius.

W. Acresce que, “Nos termos dos artigos 248.º e 249.º do CPC, presume-se, até prova em contrário, que a notificação se efetua no terceiro dia posterior ao do registo no correio (ou da elaboração da notificação), ou seja, provado o facto base da presunção – a expedição da carta sob registo no correio dirigida a determinada pessoa ou a data da elaboração da notificação, fica assente o facto desconhecido de a carta lhe ter sido entregue (ou da realização da notificação) no terceiro dia posterior ao do registo (ou da elaboração) ou no primeiro dia útil seguinte (artigos 349.º e 350.º do CC). (…) Assim, para ilidir a presunção quanto à data da notificação da sentença de que se recorre, importará invocar, no requerimento de interposição do recurso, e provar, que a notificação da sentença ocorreu em data posterior à que resulta da presunção” – cfr. Processo n.º 32/17.0T8SEI-C.C1, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.

X. Destarte, conforme podemos aferir do registo dos CTT, com a referência RE265235853PT, a notificação apenas foi entregue ao Recorrente no dia 08-03-2022, às 09h00 – cfr. cópia do registo que se junta como Documento n.º 1 e que se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.

Y. Ora, tratando-se de uma presunção juris tantum e cabendo ao notificado poder ilidir e provar que a entrega ocorreu em data posterior à do 3.º dia posterior, salvo melhor entendimento, entende-se face ao supra exposto, que o mesmo se encontra devidamente provado.

Z. Ademais, após receção da notificação do agendamento o Recorrente procedeu imediatamente à consulta da plataforma Citius, tendo constatado com algum espanto, que a Mma. Juiz já havia proferido ata na mesma data, decidindo pela desistência do pedido por falta de comparência do Recorrente e seu mandatário.

AA. Ora, salvo o devido respeito que se reitera, ser muito, embora perante um processo de natureza urgente, parece resultar que tendo o Recorrente sido notificado da audiência de discussão e julgamento no dia 08-03-2022 às 09h00, estando esta agendada para o mesmo dia, às 09h10, era manifestamente impossível ao Recorrente assegurar a sua presença.

BB. “I – Em processo especial de insolvência, a falta de comparência à audiência de discussão e julgamento do Recorrente ou de um seu representante com poderes especiais (…) não determina o adiamento da audiência, por ser aplicável àquela falta de comparência o regime especial do artigo 35.º, nºs 1 e 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que se sobrepõe em face da natureza urgente que o ditou, ao regime de adiamentos por falta dos mandatários judiciais do artigo 651.º do Código de Processo Civil. II – É, porém, admissível a invocação do incidente de justo impedimento da comparência da parte ou do seu representante com poderes especiais. III – Para este efeito, o justo impedimento deve consistir em acontecimento não imputável à parte ou ao seu representante (…) – cfr. Processo n.º 450/08.4TYLSB.L1-2, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

CC. Assim, “(…) Face à redação dos números 1 a 4 do artigo 35.º do CIRE, explicável, como já frisámos, pela urgência deste tipo de processos, só uma situação de justo impedimento da parte, conforme prevista no artigo 146.º do Código de Processo Civil, poderá obstar ou anular o funcionamento perentório do dito regime” – cfr. Processo n.º 6428/2008-6 – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

DD. Ora, o facto de o Recorrente, sem prejuízo da notificação via Citius ter provado que a notificação apenas ocorreu em data posterior à da diligência agendada – 08-03-2022, às 09h10, considera que tal constitui um justo impedimento nos termos supra citados.

EE. Assim, requer o Recorrente que seja considerada a exceção à norma especial prevista no n.º 3 do artigo 35.º do CIRE, considerando a ocorrência de um justo impedimento, deste modo rogando o Recorrente que seja agendada nova data para audiência de discussão e julgamento, porquanto,

FF. Por tudo o supra exposto e perante a decisão de que ora se recorre, salvo melhor entendimento, não houve a devida apreciação dos factos e consequentemente, a apreciação do mérito da causa.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta ata-sentença recorrida.

Ao julgardes assim, Venerandos Juízes Desembargadores, estareis uma vez mais a fazer a tão COSTUMADA JUSTIÇA!”

Respondeu o Devedor por forma a defender a improcedência do recurso.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.

II Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir se ocorre impedimento justificativo para a comparência da Requerente e/ou da sua Ilustre Mandatária à audiência de discussão e julgamento.

III- Fundamentação
1. Factos
Para além do que consta no relatório supra, relevam ainda as seguintes ocorrências processuais:

a) O Devedor apresentou oposição à insolvência em 2/3/2022 (ref.ª citius 3193149).

b) Por despacho de 4/3/2022 foi designada a audiência de discussão e julgamento para o dia 8/3/2022, pelas 9,10 horas (ref.ª citius 31546976).

c) Os mandatários das partes foram notificados da data designada para a audiência de discussão por carta certificada pelo sistema citius em 4/3/2022 (ref.ªs citius 31547566 e 31547701).

d) A Requerente e o Requerido foram notificados da data designada para a audiência de discussão e julgamento por cartas registadas certificadas pelo sistema citius em 4/3/20221 (ref.ªs citius 31547703 e 31547752).

e) A carta de notificação foi entregue à Requerente, em Paço de Arcos, no dia 8/3/2022 às 9,00 horas e constava nela, designadamente, o seguinte: “A sua não comparência ou de um representante, na data prevista, vale como desistência do pedido, caso o devedor esteja presente ou devidamente representado” (doc. 1 junto pela Requerente em 9/3/2022 e ref.ª citius 31547752).

f) Por falta de comparência da Requerente e da sua Ilustre Mandatária, a audiência de discussão e julgamento iniciou-se pelas às 9 horas e 28 minutos do dia 8/3/2022 (ata junta aos autos a fls. 459).

g) Em 9/3/2022 a Requerente fez juntar aos autos requerimento com vista à revogação da decisão que declarou “extinta a instância por desistência do pedido” e ao “novo agendamento da audiência de discussão e julgamento” (ref.ª citius 3200240).

h) A Requerente conferiu à sua Ilustre mandatária, designadamente, “poderes forenses gerais (…) e os especiais para confessar, desistir, transigir do pedido ou da instância (…) em processos judiciais (…)” [cfr. procuração junta aos autos a fls. 313].

2. Direito

Aberto do processo de insolvência por iniciativa de um credor ou de outro legitimado e sem prejuízo do que a lei dispõe sobre a dispensa da audiência do devedor, o devedor é citado para, no prazo de dez dias deduzir oposição (artigos 12.º, 29.º e 30.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante designado por CIRE) e, havendo oposição, segue-se a audiência de discussão e julgamento a respeito da qual o artigo 35.º do CIRE dispõe o seguinte:

1 - Tendo havido oposição do devedor, ou tendo a audiência deste sido dispensada, é logo marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes, notificando-se o requerente, o devedor e todos os administradores de direito ou de facto identificados na petição inicial para comparecerem pessoalmente ou para se fazerem representar por quem tenha poderes para transigir.

2 - Não comparecendo o devedor nem um seu representante, têm-se por confessados os factos alegados na petição inicial, se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º.

3 - Não se verificando a situação prevista no número anterior, a não comparência do requerente, por si ou através de um representante, vale como desistência do pedido.

4 - O juiz dita logo para a ata, consoante o caso, sentença de declaração da insolvência, se os factos alegados na petição inicial forem subsumíveis no n.º 1 do artigo 20.º, ou sentença homologatória da desistência do pedido.

5 - Comparecendo ambas as partes, ou só o requerente ou um seu representante, mas tendo a audiência do devedor sido dispensada, o juiz profere despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.

6 - As reclamações apresentadas são logo decididas, seguindo-se de imediato a produção das provas.

7 - Finda a produção da prova têm lugar alegações orais e o tribunal profere em seguida a sentença.

8 - Se a sentença não puder ser logo proferida, sê-lo-á no prazo de cinco dias.”

O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal (artigo 9.º, n.º 1, do CIRE) e os curtos prazos de procedimento consagrados na norma refletem a preocupação de celeridade estabelecida, em geral, para o processo de insolvência.

No caso, o Devedor deduziu oposição e decorridos cerca de 18 minutos após a hora designada para a audiência de discussão e julgamento, sem a comparência da Requerente ou a sua Ilustre Mandatária, ou a apresentação de qualquer justificação para a falta de comparência, a 1ª instância, por aplicação do n.º 3 da citada disposição legal e do que dispõe o artigo 277.º, alínea d), do Código de Processo Civil, declarou “extinta a instância por desistência do pedido”.

A Recorrente diverge da solução encontrada pela decisão alinhando, se bem vemos, quatro ordens de razões: (i) o preceito justifica interpretação extensiva, (ii) não foi dado conhecimento pelos mandatários do Recorrido aos mandatários do Recorrente da apresentação da contestação, (iii) a audiência foi marcada para os dois dias úteis posteriores ao despacho de agendamento, (iv) atenta as datas e horas da audiência e da notificação para comparência era manifestamente impossível ao Recorrente assegurar a sua presença, configurando justo impedimento.

Sobre as razões acabadas de enumerar sob as alíneas (i) a (iii) pouco se nos oferece dizer, a não ser que nenhuma delas tem fundamento legal ou justificação concetual.

A interpretação extensiva justifica-se nos casos em que o intérprete conclui que o elemento literal da lei, ponto de partida de toda a interpretação (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil) é insuficiente para exprimir tudo aquilo que a lei quis dizer, destinando-se “a corrigir uma formulação estreita de mais”[1] e, na espécie, o Recorrente não indica em que consiste a estreiteza da formulação legal – artigo 35.º, n.º 3, do CIRE, cuja interpretação extensiva defende, como não indica a que casos a mesma se deverá aplicar que não se insiram já na sua previsão literal; depois, a circunstância de não haver sido dado conhecimento, pelos mandatários do Recorrido aos mandatários do Recorrente, da apresentação da contestação, não representa uma qualquer violação da lei que deva ser corrigido e traduz, como aliás se reconhece, o cumprimento da norma segundo a qual, nos processos em que as partes tenham constituído mandatário, só os atos processuais que devam ser praticados por escrito posteriores à notificação da contestação e sem a inclusão desta, são notificados pelo mandatário da parte que os pratica ao mandatário da outra parte (artigo 221.º, n.º 1, do CPC) e, por último, a circunstância de a audiência haver sido marcada para os dois dias úteis posteriores ao despacho de agendamento também não constitui qualquer compressão ou violação dos seus direitos de presença do Recorrente, uma vez que a audiência de discussão e julgamento, por exigência da lei, deve ser marcada para um dos cinco dias subsequentes à dedução da oposição e apresentada esta no dia 4/3/2022, o termo do referido prazo ocorreu no dia 9/3/2022, o que significa que a audiência de julgamento, marcada para o dia 8/3 o foi para o dia imediatamente anterior ao termo do prazo.

Com significado, se bem vemos, coloca o Recorrente a questão do justo impedimento decorrente factualmente de haver sido notificado no dia 8/3/2022, pelas 9 horas, para comparecer, nesse mesmo dia, pelas 9 horas e 10 minutos no Juízo de Competência Genérica do Redondo, o que em presença do local da notificação, Paço de Arcos, lhe impossibilitava, por via da distância, a comparência.

A lei define «justo impedimento» como o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato (artigo 140.º, n.º 1, do CPC).

A figura mostra-se prevista para a prática de atos processuais e a presença da parte na audiência de discussão e julgamento não constitui propriamente um ato processual [ato processual será já a confissão ou desistência do pedido que justificam a obrigatoriedade de comparência do requerente da insolvência e do devedor], mas admite-se que o evento não imputável à parte que obste à sua presença em audiência para a qual a lei prevê a notificação pessoal da parte, como é o caso (cfr. artigo 35.º, n.º 1, do CIRE), possa constituir justo impedimento, tanto mais que falta de comparência tem efeitos processuais de monta, ou seja, a confissão dos factos alegados na p.i., faltando o devedor e a desistência do pedido, faltando o requerente.

A atual redação do número 1 do artigo 140.º foi introduzida pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e assim justificada no preâmbulo do referido diploma: “Flexibiliza-se a definição conceitual de «justo impedimento», em termos de permitir a uma jurisprudência criativa uma elaboração, densificação e concretização, centradas essencialmente na ideia de culpa, que se afastem da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam”.

A (in)existência de culpa constitui, pois, a pedra de toque do «justo impedimento». Assim,

Lopes do Rego, “o que deverá relevar decisivamente para a verificação do “justo impedimento” – mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do ato – é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário no excedimento ou ultrapassagem do prazo perentório, a qual deverá naturalmente ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil, e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas”[2];

Miguel Teixeira de Sousa, “o justo impedimento pode ter reconhecimento mesmo quando não tenha ocorrido nenhum facto imprevisível. Basta, neste caso, que a omissão do ato resulte de um erro desculpável da parte, para que se deva considerar relevante o referido justo impedimento e para que a parte seja admitida a praticá-lo fora do respetivo prazo”[3];

Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário (ou a um auxiliar deste: cfr. artigo 800.º-1, do CC). Um evento previsível pode agora excluir a imputabilidade do atraso ou da omissão.[4]

O Recorrente por facto que não lhe é imputável (a título de culpa) não podia, é certo, comparecer à audiência de discussão e julgamento agendada para dez minutos depois da hora a que recebeu a convocatória; a distância entre Paço de Arcos, local da notificação e o Redondo, local do julgamento, não lho permitia. Mas tanto não basta para lhe dar razão.

Segundo o n.º 2 do referido artigo 140.º do CPC, a parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.

A verificação do impedimento não basta para que o requerente seja admitido a praticar o ato, é também necessário que a parte que alega o justo impedimento se apresente a praticar o ato logo que cessou o justo impedimento.

O Recorrente veio no dia seguinte à prolação da decisão que declarou “extinta a instância por desistência do pedido alegar o seu impedimento; notificado para comparecer à audiência e impossibilitado de o fazer, pelas razões já adiantadas, o Recorrente podia facilmente comunicar ao Tribunal a sua falta de comparência e as razões que a motivavam – o justo impedimento – por meio de comunicação telefónica ou outro meio análogo de telecomunicações, assim obstando à prolação da decisão recorrida.

Acresce que a presença da Ilustre Mandatária do Recorrente, portadora de poderes especiais para “confessar, desistir, transigir” [al. h) supra], bastava para obstar à prolação da mesma sentença e, quanto a esta, cuja notificação se presume efetuada no dia 7/3/22 [artigo 248.º do CPC e alínea c) supra] e a quem o sistema informático de suporte à atividade dos tribunais assegurou automaticamente a disponibilização da convocatória no dia 4/3/2022 [artigo 25.º, n.º 1, da Portaria n.º 280/2013, de 26/8 e alínea c) supra], não se alega nem se demonstra, qualquer impedimento de comparência.

Enquadramento factual que impede, se bem vemos, que se reconheça que a Recorrente se apresentou a requerer a prática do ato logo que cessou o impedimento e consequentemente que se lhe reconheça razão.

Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

3. Custas

Vencida no recurso, incumbe à Recorrente o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).


IV. Dispositivo
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 12/5/2022
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho

__________________________________________________
[1] Manuel Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, pág. 150.
[2] Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, 2.ª edição, pág. 146.
[3] “Apreciação de alguns aspetos da “revisão do processo civil – projeto” (Revista da Ordem dos Advogados, ano 55, vol. II, pág. 387).
[4] Código de Processo Civil anotado, vol. 1.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2008, pág. 274.