EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
PREJUÍZO PARA OS CREDORES
Sumário

A cessação antecipada do procedimento de exoneração com fundamento no preenchimento das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 243.º do CIRE depende da apresentação de requerimento fundamentado de algum dos legitimados – credor da insolvência, o administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou o fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor –, não podendo ser oficiosamente desencadeada pelo juiz.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo 3734/13.6 T8PTM.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo de Comércio de Olhão - Juiz 2


I. Relatório
(…), solteiro, apresentou-se a requerer a sua insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida em 17/10/2013, transitada em julgado em 7/11/2013.
Por despacho exarado a 13/12/2013 foi liminarmente admitido o incidente de exoneração do passivo restante, tendo sido determinado que “durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão)”, o rendimento disponível que o devedor viesse a auferir, salvaguardado o montante correspondente ao SMN e os restantes excluídos no n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, se considerava cedido ao fiduciário nomeado.
O insolvente foi notificado do despacho proferido por ofício datado de 16/12/2013, carta que veio devolvida, e, notificada a Il. patrona que lhe fora nomeada, nada disse.
O processo veio a ser declarado encerrado por despacho proferido em 29/11/2018, “sem prejuízo do prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante”.

Em 21 de Julho de 2021 o Sr. Fiduciário em exercício informou que o insolvente nunca respondera às suas tentativas de contacto, tendo vindo a elaborar os relatórios anuais de harmonia com informação colhida no Serviço de Finanças; todavia, não tendo o devedor procedido à entrega da declaração de rendimentos relativa a 2020, ficou inviabilizada a apresentação do respectivo relatório.
O devedor foi notificado para proceder à apresentação dos elementos em falta, tendo o Sr. Fiduciário informado que nada disse.
Notificado o devedor e o Il mandatário que, entretanto, constituiu nos autos para se pronunciarem sobre eventual cessação antecipada do incidente, nada disseram, tendo sido após proferida decisão a julgar antecipadamente cessado o incidente de exoneração do passivo restante, exoneração que foi recusada.

Inconformado, apelou o devedor e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª Por douta Sentença, proferida a 11.01.2022, que, com os seus doutos fundamentos, designadamente, ausência de entrega de Declaração de IRS relativo aos rendimentos auferidos no ano de 2020, omissão de indicação de ocupação profissional e morada actual, bem assim, que, quando notificado, nos termos do n.º 3 do artigo 243.º do C.I.R.E, o Insolvente manteve o silêncio, foi determinado, ao 5º ano de cessão de rendimentos, a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
2.ª Contudo, com a douta Sentença, não se pode o Insolvente, ora Recorrente conformar, porquanto entende, que a douta Decisão, parte de erradas premissas, quer materiais, quer formais.
3.ª Com a devida Vénia, e salvo devido respeito por diversa opinião, não se conforma o ora Recorrente com um Incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, surgido de um requerimento apresentado pelo Ilustre Sr. Fiduciário, que não alegou, provou ou sequer pediu, algo que se pareça, e de molde a preencher os pressupostos exigidos no n.º 1 alínea a) do artigo 243.º do C.I.R.E, para assim munir, o competente Juiz a quo, de poderes aptos à abertura de procedimento com vista à recusa da exoneração.
4.ª Com rigor, o requerimento apresentado pelo Ilustre Sr. Fiduciário a 21 de Julho de 2021, além de narrar factos ineficazes por caducidade, cujo seu relato em 2021, sempre viola o prazo previsto no n.º 2 do artigo 243.º do C.I.R.E., mais não faz, quanto ao restante e admissível, que vir ao Mmo. Juiz (a quo), solicitar notificação ao Insolvente (ora recorrente), para que venha apresentar a sua Declaração de IRS, relativo ao ano de 2020, em ordem à elaboração do relatório do 4º ano de cessão de rendimentos.
5.ª É o que é, conforme facilmente se retira daquele requerimento, apresentado pelo Ilustre Sr. Fiduciário, a 21 de Julho de 2021, e que conta, na plataforma CITIUS, com referência 9149244.
6.ª Nesse sentido, não podia o douto Tribunal a quo ultrapassar a falta do requerimento e pressupostos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, pelo que, ao abrir Incidente de cessão antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, nesses termos, e dando cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 3 do artigo 243.º do C.I.R.E., em ordem instrução da decisão sobre a violação gravemente negligente os deveres impostos ao devedor, previstos no n.º 4 do artigo 239.º do C.I.R.E, violou assim, o douto Tribunal a quo, desde logo, o princípio do dispositivo (com as necessárias adaptações), previsto no n.º 1 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 17.º do C.I.R.E., bem assim o n.º 1, alínea a), do artigo 243.º também do C.I.R.E. e ainda o n.º 2 do mesmo artigo, ao considerar e admitir factos ilicitamente denunciados (caducados), o que, determina nulidade do Incidente, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do Código de Processo Civil, por constituir irregularidade que influi decisivamente o exame e decisão da causa, nulidade essa, que expressamente se invoca com todas as suas consequências.
7.ª Sem prescindir do supra exposto, igualmente não se pode o ora Recorrente conformar com o douto entendimento vertido nos pontos 7, 8 e 9 da douta Sentença ora em recurso, designadamente, que o Insolvente, notificado do Despacho proferido a 19 de Outubro de 2021, para que viesse aos autos entregar a declaração de IRS, e liquidação, relativamente ano de 2020, nada haja dito, e tenha ficado em silêncio, nada trazendo ou justificando nos autos, determinando-se assim, nos termos da segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º do C.I.R.E., fundamento para automática recusa da exoneração.
8.ª Com rigor, o Insolvente ora recorrente, após ser notificado daquele Douto Despacho de 19.10.2021, enviou ao Ilustre Sr. Fiduciário – (…) “e-mail”, no dia 25.10.2021 (vide documentos 1, 2 e 3), apresentando, além do óbvio endereço electrónico, juntou a sua Declaração de IRS, bem assim, a respectiva dispensa de liquidação, relativos ao ano de 2020, e que, por razões que lhe são alheias, hoje sabe-se, aquele ilustre Sr. Fiduciário, não a fez chegar aos autos, como era seu dever, ou tampouco, elaborou o relatório do 4º ano de cessão de rendimentos.
9.ª Razão pelo qual, entende o Insolvente ora Recorrente, até porque, aquele ilustre Sr. Fiduciário, foi sempre a única pessoa/”instituição” com quem contactou, e por isso àquele dirigiu o email com a Declaração de IRS, cumpriu com o doutamente solicitado, entregando o que podia e tinha em seu poder, nunca se tendo resumido ao silêncio (fundamento utilizado para a recusa da Exoneração), pois que, conforme documentos 1, 2 e 3 ora juntos, veio 6 dias (a 25.10.2021), após o Douto Despacho de 19.10.2021, corresponder ao solicitado, entregando as necessária Declaração de IRS de 2020, apta à elaboração do relatório do fiduciário relativo ao 4 º ano de cessão de rendimentos, não podendo, contudo, juntar ou indicar recibos, rendimentos ou subsídios que não aufere, tampouco morada, que desde 2018, não tem, bem assim, qualquer familiar, que com nenhum conta.
10.ª Nesse sentido, e porque de facto o Insolvente ora Recorrente não se manteve o silêncio, vindo efectivamente cumprir com o, pelo douto Tribunal a quo solicitado, entregando a necessária Declaração de IRS, torna-se inverdadeiro e infundado a recusa da exoneração do passivo, com o fundamento na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º do C.I.R.E., sendo a decisão de recusa, além de proceder de incidente irregular, e assim, nulo, viola a segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º do C.I.R.E., bem assim, os princípios gerais da sobreposição da verdade material sobre a verdade formal, e que por influir decisivamente no exame e decisão da causa, constitui nulidade, nos termos previstos no artigo 195.º do C.P.C, nulidade essa, que expressamente se invoca com todas as suas consequências.
11.ª Em todo o caso, sempre caberá que o Insolvente ora Recorrente, é pessoa de modesto entendimento e modesta compreensão, que por conta de inúmeros conflitos familiares, decidiu ao vinte e poucos anos, por estar profissional e emocionalmente estável, arriscar e contrair crédito à habitação, para compra da sua primeira casa, e que, decorrente de cortes salariais na empresa em que trabalhava como fotojornalista, deixou de conseguir cumprir com as suas obrigações, levando a que, viesse a pedir declaração de Insolvência, acabando por perder da casa, o carro, a mulher, a auto estima, da dignidade, caindo em depressão profunda, extrema pobreza e indigência.
12.ª Não pode o Insolvente ora Recorrente deixar de dizer, até porque corresponde à verdade, e merecer devido enquadramento na análise do seu comportamento ao longo dos 9 anos de processo, que foi com a morte da sua Avó, em 2018, sua única referência familiar e com quem residia, que a sua situação psiquiátrica e de “indigência” se agudizou, sobretudo, quando, após a morte daquela avó, foi liminarmente despejado daquela morada onde vivia (a conhecida nos autos), para ser vendida pelos Herdeiros, levando a que, desde então, durma aqui e acolá, onde calha, fazendo da pesca, e da pontual apanha de alfarroba, os únicos “trocos”, que por vezes dão para uns cigarritos, e às vezes, para uma refeição quente.
13.ª O Insolvente ora Recorrente, buscou, inclusivamente, trazer aos autos os seus relatórios psiquiátricos, que inicialmente solicitou presencialmente junto do CHUA Unidade de Portimão, e depois por escrito, conforme correio eletrónico e formulário de requisição de exames (anexo), que aqui juntou e indicou como doc. 4 e 5, dando-os por integralmente reproduzidos, mas que, talvez pelo excesso de trabalho hospitalar em épocas de COVID-19, ainda não obteve resposta, mas entregará aos autos, mal os obtenha.
14.ª Caberá por último, apelar a uma certa consideração, sempre humanista e de acordo até com orientação dada pela Directiva (EU) 2019/1023, que impôs aos Estados Membros a redução do período de perdão de dívidas no âmbito do processo de Insolvência, levando criação e publicação da Lei 9/2022, de 11/01, que, não fossem os 6 meses de atraso do Estado Português na sua implementação, já, a in casu exoneração, havia sido decretada, o que sempre contraria os presentes autos, com 9 de existência, que redundam em 9 anos de vida suspensa.
15.ª Em suma, das sumas, caberá considerar que o Insolvente ora Recorrente, não se manteve no silêncio como refere o douto Tribunal a quo, antes pelo contrário, efectivamente veio corresponder, apresentando tempestivamente o que lhe foi solicitado, não podendo apresentar o que não tem, e que, nesses termos, sem prescindir da ilegalidade do procedimento, e da falta de pressupostos, atentas as suas actuais “indigentes” e psiquiátricas circunstâncias, não violou de forma gravemente negligente os seus deveres enquanto devedor, que sempre, pelas suas actuais circunstâncias emocionais, financeiras e até de inserção social, se revelam justificadas, e que nunca, fosse por falta de indicação de morada, de familiares, ou de contacto telefónico, prejudicaram os interesses dos credores e da satisfação dos créditos sobre a insolvência, pois que, já perdeu TUDO, nada mais restando.
16.ª Sem prescindir, por último, não poder deixar, o aqui Recorrente, de dizer, que se houve algum prejuízo para os credores, foi sim, decorrente da absoluta inércia e negligência quanto ao automóvel FORD Fiesta (…), apreendido nos autos em 2013, que com o decorrer dos anos, e abandono na via pública, sem que o Insolvente o pudesse utilizar, nem o serviram a si e à sua vida, nem foi promovido e vendido, por 500,00 euros que fosse, para satisfação dos créditos sobre a Insolvência”.
Conclui pela revogação da sentença, devendo ser determinado o prosseguimento do procedimento de exoneração.

Não foram oferecidas contra-alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, cabe apreciar se a cessação antecipada do incidente e consequente recusa de exoneração pode ser oficiosamente decretada e, na afirmativa, se se mostra preenchida a alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 243.º do CIRE, por referência aos deveres previstos nas alíneas a), b) e d) do n.º 4 do artigo 239.º do mesmo diploma legal.
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Questão prévia:
Da admissibilidade dos documentos oferecidos com as alegações.
Com as alegações, juntou o recorrente documentos tendentes a infirmar que não tenha fornecido ao Sr. Fiduciário informação relativa aos rendimentos auferidos no ano de 2020, o que alega ter feito mediante mail enviado dentro do prazo de 10 dias que lhe foi assinado pelo Sr. Juiz.
Cumprindo agora decidir sobre a admissibilidade dos documentos oferecidos, importa ter presente que, enquanto meios de prova, destinam-se a fazer prova dos factos (artigo 341.º do Código Civil), prevendo a lei a sua apresentação em momentos processualmente definidos.
Dispondo sobre a possibilidade da sua apresentação em fase de recurso, dispõe o n.º 1 do artigo 651.º que tal só é permitido nos casos em não foi possível fazê-lo até ao encerramento da discussão (cfr. artigo 425.º, aplicável por força da remissão operada por aquele preceito) ou ainda quando a sua apresentação se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Não tendo embora o recorrente fundamentado o oferecimento dos documentos com a alegação, a verdade é que nada justifica a sua não apresentação antes da prolação da decisão, considerando que foi notificado do requerimento apresentado pelo Sr. Fiduciário, no qual dava conhecimento do incumprimento do despacho no qual se determinava a entrega dos elementos nele discriminados, e nada disse. Caso o recorrente tivesse procedido então à junção aos autos dos documentos que agora ofereceu, podia o Sr. Fiduciário ser com os mesmos confrontados e esclarecer se o mail alegadamente por aquele enviado tinha sido por si recepcionado e, em caso negativo, procurar esclarecer os motivos por que tal ocorrera.
Verifica-se, assim, a ausência de fundamento legal para admitir a junção dos documentos, cujo desentranhamento, em consequência, se ordena.
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II. Fundamentação
De facto
São os seguintes os factos resultantes dos autos com pertinência para a decisão.
1. Em 15 de Outubro de 2013 o devedor (…) requereu a declaração da sua insolvência e mais requereu a exoneração do passivo restante.
2. A declaração de insolvência foi declarada por sentença de 17 de Outubro de 2013, entretanto transitada.
3. Em 12 Dezembro de 2013 foi proferido despacho inicial a admitir o incidente de exoneração do passivo restante, fixando-se o rendimento indispensável ao sustento do devedor e demais membros do seu agregado familiar (rendimento dispensado da cessão de rendimentos) no montante equivalente a um SMN.
4. O fiduciário nomeado fez juntar aos autos em 5 de Fevereiro de 2019 relatório nos termos do artigo 61.º, n.º 1, ex vi do n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, no qual deu a conhecer que:
- atento o disposto no n.º 6 do artigo 6.º do DL 7/20177, de 30 de Junho, o período de cessão teve o seu início no dia 1 de Julho de 2017;
- efectuou consulta ao SF, tendo constatado que no ano de 29017 o insolvente não auferiu qualquer rendimento, pelo que nada havia a ceder, concluindo que não se registou incumprimento dos deveres.
5. Em 27 de Agosto de 2019 fez juntar novo relatório no qual informou ter o insolvente auferido € 2.502,60, valor inferior ao fixado como mínimo indispensável à sua sobrevivência, não se verificando incumprimento do dever de entrega.
6. Em 6 de Agosto de 2020 o fiduciário em exercício juntou novo relatório, desta feita reportado ao ano de 2019, informando que, na sequência de consulta ao SF, averiguou que o insolvente auferiu rendimento no valor € 2.502,60, inferior ao fixado como mínimo a indispensável à sua sobrevivência, não se verificando incumprimento do dever de entrega.
7. Por requerimento junto aos autos em 21 de Julho de 2021 o Senhor Fiduciário informou o seguinte:
“1. O insolvente não respondeu às várias tentativas de contacto, comportamento assumido desde o início do período da cessão de rendimentos e oportunamente reportado aos autos.
2. Neste circunstancialismo os relatórios têm vindo a ser elaborados com base nas declarações de IRS solicitadas directamente à Autoridade Tributária.
3. Sucede que este ano, e de acordo com informação obtida junto daqueles serviços, o insolvente não apresentou a declaração de IRS relativa ao ano de 2020.
4. Pelo que, e em consequência, se desconhece se aquele auferiu rendimentos e trabalho ou subsídios e, em caso afirmativo, os montantes.
5. Do que se encontra prejudicada, por ora, a apresentação do relatório do fiduciário relativo ao ano de 2020.”
8. Na sequência do assim informado foi, em 19 de Outubro de 2021, proferido despacho que determinou a notificação do devedor para, em 10 dias, apresentar: (i) a declaração de IRS relativa ao ano de 2020 e prova da liquidação relativa a essa mesma declaração; (ii) comprovativos do recibo de ordenado ou dos subsídios obtidos no período de cessão anual de Julho de 2020 a Julho de 2021; (iii) morada actualizada, contacto telefónico e endereço de correio electrónico; (iv) outras informações relevantes, informações que poderiam ser fornecidas directamente ao Sr. Fiduciário, dando nota da data em que foi fornecida.
9. Enviada carta para notificação do devedor para a morada constante dos autos, veio a mesma devolvida.
10. Por requerimento entrado em juízo em 7/12/2021, o Sr. Fiduciário informou que após diversas tentativas de contacto com o insolvente recebera deste a informação de que estava a trabalhar no estrangeiro, escusando-se, contudo, a informar em que país, quais as funções exercidas e rendimento auferido, informando apenas que o seu Il. Mandatário entraria em contacto, o que não ocorreu, assim resultando ainda inviabilizada a elaboração do relatório em falta.
11. O Insolvente juntou aos autos em 24 de Novembro de 2021 instrumento de procuração forense a favor de Ilustre Advogado, mas notificado para se pronunciar quanto à eventual cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante manteve o silêncio.
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II. De Direito
Da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante
Conforme decorre do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, o regime da exoneração do passivo restante pretende conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem das suas dívidas, permitindo-lhes deste modo encetarem a sua reabilitação económica – um “fresh start” (novo começo), para usar a terminologia dos sistemas anglo saxónicos.
Tal novel instituto, operando a extinção de todos os créditos sobre o insolvente pessoa singular que não tenham sido satisfeitos no âmbito do processo de insolvência nem nos 5 anos posteriores ao encerramento, incluindo os que não tenham sido reclamados nem verificados (cfr. artigo 245.º do CIRE)[1], permite ao devedor honesto e de boa-fé um recomeço sem o pesado fardo da sua situação passiva, que é, deste modo, reconduzida a zero.
No entanto, e conforme resulta da lei, a extinção das obrigações só pode/deve ser concedida ao devedor que, pela sua conduta anterior e ao longo do período de exoneração, demonstre ser merecedor do benefício, actuando com honestidade, transparência e boa-fé[2]. A conduta do insolvente é avaliada aquando da prolação do despacho dito liminar e na decisão final[3], podendo no entanto ser apreciada em momento anterior para os efeitos previstos no artigo 243.º. Tal como ocorreu no caso sob apreciação, tendo sido proferida decisão no sentido da cessação antecipada do procedimento em curso.
Dispõe o art.º 243.º que
“1. Antes ainda de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
“a) o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência”.
Por expressa remissão da norma vinda de transcrever importa atender ao n.º 4 do artigo 239.° do ClRE, que elenca como obrigações do insolvente durante o período de cessão, para o que ora releva,
“a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente emprego quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
(…)
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção do emprego (…)”.
Na decisão proferida, referenciando-se como violadas as obrigações impostas pelas transcritas alíneas a), b) e d), considerou-se que “a conduta omissiva do devedor documenta grave negligência pela ausência total de informação quanto aos rendimentos auferidos nos anos de 2020 e 2021, ocupação profissional e mesmo a sua actual morada (…)”, assim se julgando preenchida a previsão da citada alínea a) do n.º 1 e o n.º 3, parte final, do artigo 243.º.
Primeira questão pertinentemente colocada pelo recorrente e de que cumpre conhecer é indagar se o Mm.º juiz podia, oficiosamente, conhecer de eventuais fundamentos da cessação do procedimento e recusar antecipadamente a exoneração sem tal lhe ter sido pedido. A resposta é, em nosso entender, negativa.
Com efeito, e conforme decidiu o TRC, em aresto de 12/10/2021 (processo 1979/19.0T8VIS-C.C1, em www.dgsi.pt), afigura-se que a declaração de cessação antecipada não se encontra na disponibilidade do juiz, podendo ser decretada apenas a requerimento fundamentado das pessoas a que o legislador entendeu conferir legitimidade para o efeito, a saber, qualquer credor da insolvência, o administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou o fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor. É o que resulta do disposto no n.º 1 do artigo 243.º e da necessidade de um requerimento pressuposta pelo n.º 2 do preceito, interpretação que sai reforçada quando se confronte com o disposto no n.º 4, aí se prevendo de forma expressa que o juiz, oficiosamente, possa declarar cessado o incidente, o que bem se compreende, uma vez que perante a satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência seria inútil o prosseguimento do incidente dada a inexistência de passivo de que o devedor pudesse vir a ser exonerado.
Deste modo, e tendo em atenção as regras de interpretação consagradas no artigo 9.º do Código Civil, nomeadamente a de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, a ter sido essa a sua intenção não teria deixado de consagrar a possibilidade de o juiz, oficiosamente, decretar a cessação antecipada do procedimento uma vez verificado algum dos seus fundamentos, tal como não deixou de o fazer no citado n.º 4 do artigo 243.º em análise.
Em suma, a cessação antecipada do procedimento de exoneração com fundamento no preenchimento das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 243.º depende da apresentação de requerimento fundamentado de algum dos legitimados, não podendo ser oficiosamente desencadeada pelo juiz, interpretação que, de resto, é a que melhor se adequa ao princípio do primado da vontade dos credores e à intenção clara de desjudicialização que permeia as soluções adoptadas no CIRE.
No caso em apreço, e conforme o recorrente faz notar, tendo o Sr. Fiduciário em exercício dado nota do incumprimento de deveres a que o devedor insolvente se encontrava vinculado, a verdade é que em parte alguma formulou a pretensão de ver antecipadamente cessado o procedimento, tal como não foi apresentado requerimento nesse sentido por qualquer um dos credores. Tem assim razão o apelante quando sustenta que o Sr. Juiz não podia, oficiosamente, decretar a cessação antecipada, tanto bastando para que a decisão não possa subsistir.
Mas tem razão ainda quando aponta a total ausência de factos que permitam concluir pela existência de prejuízo para os credores em razão do imputado incumprimento.
Com efeito, exige o artigo 243.º como requisito complementar à violação de alguma das obrigações elencadas no artigo 239.º que da mesma resulte prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência. É certo que, ao invés do que ocorre no artigo 246.º, omite-se naquela disposição qualquer qualificação do prejuízo, não faltando quem entenda que, qualquer que seja a sua dimensão, verificando-se prejuízo, tanto basta para fundamentar a cessação antecipada do incidente de exoneração. No entanto, é necessária a demonstração de que prejuízo ocorreu.
Percorrido o elenco factual apurado, o que se verifica é a ausência de qualquer facto demonstrativo da existência de prejuízo para os credores em consequência da imputada actuação da insolvente, apontando-se unicamente a violação das obrigações que sobre si recaíam, o que é insuficiente para fundamentar a decretada cessação (v., neste preciso sentido, o Ac. do STJ de 9/4/2019, no processo 8991/15.0 T8VNG.P1, em www.dgsi.pt). Daí que, também com este fundamento não possa subsistir a decisão recorrida, resultando prejudicada a apreciação da alegada caducidade dos fundamentos invocados.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida.
Sem custas.
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Sumário: (…)
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Évora, 12 de Maio de 2022
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
Vítor Sequinho dos Santos


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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Cfr. o acórdão do TRC proferido nos autos, remetendo para Assunção Cristas, Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264.
[3] E ainda no ano posterior ao trânsito em julgado do despacho de exoneração, conforme prevê o artigo 246.º.