EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
RENDIMENTO LÍQUIDO
Sumário

I – No rendimento ilíquido da insolvente já se mostra englobado o reembolso do IRS, visto este corresponder a uma parte do imposto que foi indevidamente retido.
II – Sendo o rendimento indisponível da insolvente aquele que se revela minimamente digno para o seu sustento e do seu agregado familiar, o apuramento do mesmo deve refletir os seus rendimentos líquidos, por serem estes os rendimentos de que efetivamente dispõe.
III – Deste modo, é do cálculo dos rendimentos líquidos anuais auferidos pela insolvente que se deve apurar o montante do rendimento anual disponível.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Proc. n.º 415/19.0T8STR-D.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]

I - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Comércio de Santarém – Juiz 2, nos autos de insolvência n.º 415/19.0T8STR, por sentença proferida em 12-02-2019, e já transitada, foi declarada insolvente (…), e, por despacho proferido em 08-05-2019, foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante, entendendo-se ser o necessário para satisfação do agregado familiar da insolvente o montante mensal correspondente a 1,5 SMN.
Segundo o Relatório Anual Fiduciário, junto aos autos em 31-08-2020, a insolvente deveria transferir para a conta da massa insolvente o valor de € 82,58, o que veio a transferir.
Por despacho judicial proferido em 10-11-2021, em face das dúvidas existentes, foi definido que o rendimento anual da insolvente devia ser apurado numa base anual e não mensal.
Em 15-11-2021, foi apresentado o Relatório Anual Fiduciário entre junho de 2019 a maio de 2019 e junho de 2020 a maio de 2021.
Por discordar do cálculo efetuado pelo Sr. Fiduciário, em 25-11-2021, a insolvente (…) veio requerer a alteração de tais cálculos, devendo o rendimento apurado reportar-se aos valores líquidos efetivamente recebidos e não aos rendimentos brutos.
Em 30-11-2021 foi apresentado novo Relatório Anual Fiduciário que corrigiu os valores referentes a junho de 2020 a maio de 2021, acrescentando-lhes o montante relativo ao reembolso de IRS.
Em 07-12-2021, a credora “(…) – Construções Civis de (…), Lda.” veio requerer a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Em 13-12-2021, a credora “(…), Sucursal em Portugal da S.A. francesa (…)” veio requerer a notificação da insolvente para proceder à entrega imediata da quantia em falta, de forma a se considerar cumprido o disposto no artigo 239.º, n.º 4, al. c), do CIRE.
Em 04-01-2022, foi proferido o seguinte despacho judicial:
Relatório anual: porquanto o Tribunal partilha do entendimento da maioria da jurisprudência no sentido do rendimento anual dever ser apurado numa base anual e não mensal (dando-se aqui por integralmente reproduzida a fundamentação expendida no Ac. TRG de 22-4-2021, proc. nº 338/19.3T8GMR.G2, com a qual se concorda), designadamente para evitar que haja tratamento discriminatório entre insolventes com rendimentos mensais e aqueles que têm trabalhos sazonais (e, consequentemente, rendimentos sazonais), ou entre os insolventes que recebem subsídios em duodécimos e aqueles que os recebem apenas no mês tradicionalmente fixado para o efeito, deverá considerar-se com rendimento disponível dos insolventes o valor anual apurado pelo Sr. Fiduciário.
Notifique.
Notifique os insolventes, pessoalmente e na pessoa do Il. Mandatário, para em 10 dias procederem ao depósito do rendimento disponível indevidamente retido, sob pena de, não o fazendo, serem apreciados os requerimentos de cessação antecipada apresentados pelos 2 credores.
Inconformada com o despacho proferido, veio a insolvente (…) recorrer, apresentando as seguintes conclusões:
1. A Recorrente não se conforma e recorre dos seguintes segmentos do d. Despacho recorrido:
«(…) deverá considerar-se com rendimento disponível dos insolventes o valor anual apurado pelo Sr. Fiduciário. Notifique.
Notifique os insolventes, pessoalmente e na pessoa do Il. Mandatário, para em 10 dias procederem ao depósito do rendimento disponível indevidamente retido, sob pena de, não o fazendo, serem apreciados os requerimentos de cessação antecipada apresentados pelos 2 credores.»;
2. Sendo o objecto da impugnação circunscrito à parte do Despacho recorrido que leva em conta os montantes de rendimento e os cálculos pelos rendimentos brutos efectuados pelo Senhor Fiduciário relativamente ao rendimento [anual] disponível (i.e., € 2.892,35) e que o d. Despacho recorrido considera indevidamente retido, ordenando a respectiva entrega à massa insolvente.
3. A primeira parte do douto Despacho (que considera que o rendimento anual indisponível deve ser apurado numa base anual e não mensal), é segmento não impugnado do respectivo julgado, que deve manter-se estável.
4. Discorda-se do cálculo e apuramento do valor anual indisponível e disponível da Insolvente assente na soma dos valores brutos anualmente auferidos, acrescidos dos valores dos reembolsos do IRS, conforme foi contabilizado pelo Senhor Fiduciário e entendido pela decisão recorrida.
5. Trata-se de critério/pressuposto de contabilização injusto e violador de um núcleo duro de direitos fundamentais da Insolvente, que o instituto da determinação do rendimento disponível/indisponível da Insolvente, previsto no artigo 239º do CIRE, visa, precisamente, proteger.
6. Segundo o critério de cálculo utilizado pela Decisão recorrida (rendimentos brutos), a Insolvente teria um rendimento indisponível de € 11.062,50 e um rendimento disponível de € 1.961,87, no 1º ano de Cessão (Junho 2019 a Maio 2020), com uma dívida à massa insolvente de € 1.899.29; e no 2º ano de Cessão (Junho 2020 a Maio 2021) teria um rendimento indisponível de € 11.655,00 e um rendimento disponível de € 993,06, com uma dívida à massa insolvente de € 993,06, num total de dívida [1º e 2º anos de Cessão] à massa insolvente de € 2.892,35,00.
7. Sucede que, no douto Despacho da Exoneração, de 08/05/2019 e já transitado em julgado, para efeitos do disposto no artigo 239.º do CIRE, decidiu-se que «(…) Considerando a composição do agregado familiar da devedora (composto pela mesma e um filho menor de idade), entende-se ser o necessário para satisfação das necessidades do mesmo o montante mensal correspondente a 1,5 SMN (…)» e que «…as quantias auferidas pela insolvente a título de subsídios, reembolsos ou outros ganhos pecuniários deverão ser somadas aos rendimentos laborais mensais, para contabilização do rendimento disponível (…)». [sublinhados nossos]
8. Tanto significa que durante o período de exoneração do passivo restante, a Insolvente deve poder dispor do correspondente ao valor de 1,5 SMN, ou seja, poder ter disponível, à disposição (para orientar condignamente a sua vida e do seu agregado constituído também por um menor), o correspondente a esse valor.
9. Isto é, nos meses de 2019, a Insolvente tem de ter mensalmente disponível € 900,00 (novecentos euros), nos meses de 2020, € 952,50 (novecentos e cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), e nos meses de 2021, € 997,50 (novecentos e noventa e sete euros e cinquenta cêntimos), o que equivale a ter, efectivamente, à sua disposição e do agregado, o montante anual de € 11.062,50 (no 1º ano da cessão) e de € 11.655,00 (no 2º ano da cessão).
10. Ora, o valor bruto não equivale ao valor que a Insolvente possa efectivamente dispor, porquanto aos valores brutos dos seus salários são deduzidos os descontos legais, montantes estes que não são entregues à Insolvente e que esta não tem, efectivamente, à sua disposição.
11. Além disso, a adição dos valores dos reembolsos em sede de IRS ao total dos rendimentos brutos anuais auferidos pela Insolvente, conforme foi efectuado pelo Senhor Fiduciário e é entendimento da Decisão Recorrida, significa uma dupla contabilização de rendimentos, uma vez que os rendimentos brutos já incluem os valores devidos para efeitos de IRS, que, posteriormente, integram aqueles reembolsos.
12. Só os valores líquidos efectivamente percebidos pela Insolvente é que são colocados à sua disposição quando do pagamento dos respectivos salários;
13. Pelo que, na contabilização dos rendimentos anuais disponíveis e apuramento das quantias a ceder são os valores líquidos efectivamente auferidos/recebidos pela Insolvente que devem considerar-se (não os brutos), a eles se somando eventuais subsídios, reembolsos (nomeadamente de IRS) e outros ganhos.
14. Assim vem considerando a melhor Jurisprudência, de que é exemplo o Ac. Rel. Coimbra de 04/02/2020 [«Para o cálculo do que seja o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, para efeito de o excluir dos rendimentos a ceder, haverá que ter-se em consideração o valor dos rendimentos líquidos.» [sublinhado nosso] ].
15. Se o cálculo dos valores da cessão tivesse considerado, como devia, os valores líquidos recebidos pela Insolvente, no 1º ano da cessão estará apenas por entregar à massa insolvente o montante de € 64,13 (o rendimento indisponível anual é de € 11062,50 e o total dos rendimentos líquidos no período + o reembolso de IRS 2019 foi de € 11.209,41. A Insolvente já entregou € 82,58); e no 2º ano da cessão, nada há entregar à massa insolvente (porquanto o rendimento total líquido auferido no ano, i.e., de € 10.526,85 foi inferior ao rendimento indisponível anual, que é de € 11.655,00).
16. Não se verifica, por conseguinte e salvo melhor opinião, o incumprimento da Insolvente relativamente aos deveres de cessão, conforme se expende no último relatório da Fidúcia e advoga na Decisão recorrida, daí que deva ser também revogado o segmento do d. Despacho recorrido que ordena a Insolvente a depositar, em 10 dias, o rendimento indisponível indevidamente retido (i.e., a quantia de € 2.892,35, incorrectamente apurada pelo Senhor Fiduciário).
17. Ao assim não ter decidido, o Despacho recorrido violou, desde logo e entre outros, os artigos 239.º, n.º 3, alínea b), e n.º 4, alínea c), do CIRE e os artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), 63.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente provado e procedente, com todas as legais consequências, nomeadamente revogando-se o despacho proferido na parte objeto de recurso, assim se fazendo JUSTIÇA!
Não foram juntas contra-alegações.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos e dispensados os vistos por acordo, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, a questão que importa decidir é:
1) Se no cálculo para apurar o montante indisponível e disponível da insolvente se atende aos rendimentos líquidos ou ilíquidos desta.
III – Matéria de Facto
Os factos relevantes para a decisão são os que já constam do presente relatório.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) se atende aos rendimentos líquidos ou ilíquidos da insolvente no apuramento dos montantes indisponível e disponível desta.
1 – Rendimentos líquidos ou ilíquidos no apuramento dos montantes indisponíveis e disponíveis da insolvente
Entendeu a Apelante que no apuramento do valor anual indisponível e disponível da insolvente não se deve atender aos valores brutos anualmente auferidos, visto que por sentença transitada em julgado foi determinado que a insolvente deve poder dispor do correspondente ao valor de 1,5 SMN, sendo que poder dispor só pode equivaler a ter disponível, à disposição esse valor, e o valor bruto não equivale ao valor que a insolvente pode efetivamente dispor, porquanto aos valores brutos dos seus salários são deduzidos os descontos legais, montantes estes que não são entregues à insolvente e que esta não tem, efetivamente, à sua disposição.
Referiu ainda que a adição dos valores dos reembolsos em sede de IRS ao total dos rendimentos brutos anuais auferidos pela insolvente implica uma dupla contabilização de rendimentos, uma vez que os rendimentos brutos já incluem os valores devidos para efeitos de IRS que, posteriormente, integram aqueles reembolsos.
Considerou, por fim, que, encontrando-se o apuramento do valor a entregar errado, não se verifica o incumprimento da insolvente relativamente aos deveres de cessão.
Dispõe o artigo 239.º do CIRE que:
1 - Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º.
2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada por fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
5 - A cessão prevista no n.º 2 prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor.
6 - Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão.

Apreciemos.
Efetivamente afigura-se-nos mais curial considerar que o rendimento indisponível da insolvente (e consequentemente também o rendimento disponível) se deve calcular com base no seu rendimento líquido e não no rendimento ilíquido, visto que o rendimento indisponível é exatamente aquele que se revela minimamente digno para o sustento da insolvente e do seu agregado familiar, não sendo possível considerar tal valor com base num rendimento abstrato, antes sim, num rendimento concretamente recebido. Acresce que, apesar de ter sido determinado por sentença transitada em julgado, que o rendimento indisponível da insolvente era o correspondente a 1,5 SMN, ao aplicar-se o critério de cálculo referente ao valor dos rendimentos ilíquidos auferidos, onde não constam os descontos a que esses rendimentos se encontram sujeitos, tal implicaria que o rendimento indisponível atribuído à insolvente seria sempre menor do que aquele que a sentença lhe determinou, violando-se, assim, o estatuído por tal sentença. E não se pretenda justificar o entendimento de que o cálculo do rendimento indisponível deve ter por base o rendimento ilíquido do insolvente, uma vez que o salário mínimo nacional, que serve de ponto de referência, também é aferido em termos ilíquidos[2], uma vez que o salário mínimo nacional corresponde, na fixação do rendimento indisponível do insolvente, exatamente a um ponto de referência quanto àquilo a que, em determinado momento, se considera o sustento minimamente digno para uma pessoa. Pelo contrário, no pagamento pela entidade empregadora do salário mínimo nacional ao trabalhador não se atende à composição do seu agregado familiar, nem a qualquer outra situação pessoal, porém, na fixação do rendimento indisponível do insolvente o julgador deve atender ao seu agregado familiar e a situações específicas deste. Dito de outro modo, independentemente das contingências a que, no mundo laboral, o salário mínimo nacional se encontra sujeito, o seu valor em temos objetivos é aquele que, em cada momento, a sociedade considera corresponder ao sustento minimamente digno para uma pessoa, razão pela qual deve ser a esse valor que se deve atender e que deve servir de ponto de referência na atribuição do montante indisponível do insolvente. De qualquer modo, o preenchimento daquilo que seja o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” compete sempre ao julgador, razão pela qual, caso o mesmo pretenda que o montante de aferição do rendimento indisponível tenha por base o salário mínimo nacional líquido, deverá fazê-lo constar na sentença proferida, pelo que, não o tendo feito, o valor do rendimento indisponível da insolvente corresponde a 1,5 SMN, sem que ao mesmo seja deduzida qualquer quantia.
Dir-se-á ainda que, ao determinar-se, nessa sentença, que as “quantias auferidas pelo insolvente a título de subsídios, reembolsos ou outros ganhos pecuniários deverão ser somadas aos rendimentos laborais mensais, para efeitos de contabilização do rendimento disponível”, reforça o entendimento de que é o rendimento líquido da insolvente que deve servir de cálculo ao seu rendimento indisponível.
Na realidade, se o apuramento do rendimento indisponível tiver em conta o rendimento ilíquido da insolvente, onde não se encontram deduzidos os descontos sofridos, concretamente o do IRS, o reembolso deste imposto (que se reporta a uma entrega posterior ao contribuinte de uma verba integrante do seu rendimento ilíquido, por lhe ter sido efetuado um desconto superior ao devido) já se encontra englobado nesse rendimento ilíquido, pelo que jamais poderia ser somado ao valor do mesmo, implicando tal soma, conforme a Apelante bem refere, uma duplicação de um mesmo rendimento.
Deste modo, é do cálculo dos rendimentos líquidos anuais auferidos pela insolvente que se deve apurar o montante do rendimento anual disponível desta, somando-se, necessariamente nesta situação, aos rendimentos mensais líquidos recebidos pela insolvente o reembolso anual do IRS.
No mesmo sentido, cita-se o sumário do acórdão do TRC, proferido em 04-02-2020[3]:
2. Para o cálculo do que seja o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, para efeito de o excluir dos rendimentos a ceder, haverá que ter-se em consideração o valor dos rendimentos líquidos.
3. Para tal efeito, ao rendimento bruto recebido pelo devedor/trabalhador independente haverá que deduzir não só os custos e encargos com a atividade, se os houver, mas ainda as contribuições obrigatórias, quer as fiscais quer as devidas à Segurança Social.

E ainda do corpo deste acórdão:
E, como no caso de trabalhadores por conta de outrem, os descontos legais são efetuados pela entidade patronal aquando do processamento do vencimento, o devedor não terá qualquer outra operação de cálculo a efetuar para além de ao valor liquido recebido mensalmente deduzir o montante indisponível, depositando o restante à ordem do Fiduciário.

Assim, apenas nos resta concluir que o entendimento adotado no despacho recorrido, que nem sequer o fundamenta, apesar do requerimento apresentado pela insolvente em 25-11-2021, contraria o espírito do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
Pelo exposto, o recurso será julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, devendo o fiduciário reformular os relatórios anuais por si apresentados, previstos no n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, nos termos elencados neste acórdão.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente procedente o recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, determinando-se que o fiduciário reformule os relatórios anuais por si apresentados, previstos no n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, aplicando ao cálculo do montante dos rendimentos indisponíveis e disponíveis da insolvente (…) os montantes efetivamente auferidos por esta, ou seja, os seus rendimentos líquidos anuais.
Custas a cargo da massa insolvente.
Notifique.
Évora, 12 de maio de 2022

Emília Ramos Costa (relatora)

Rui Machado e Moura

Eduarda Branquinho


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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Rui Machado e Moura; 2.ª Adjunta: Eduarda Branquinho.
[2] Apesar de não estar sujeito a descontos no IRS, sofre descontos para a Segurança Social.
[3] No âmbito do processo n.º 695/13.5TBLSA.C1, consultável em www.dgsi.pt.