RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
DOAÇÃO
Sumário

O fundamento da resolução em benefício da massa insolvente não é um vício intrínseco do acto, mas sim o facto de o mesmo ser prejudicial a essa massa. Visa-se, não reagir contra a invalidade de um acto jurídico, mas sim, através da resolução deste, recuperar um bem em benefício da massa insolvente e, por essa via, do colectivo dos credores.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 6378/20.2T8STB-E.E1


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(…) propôs, contra a massa insolvente de (…), a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, visando a impugnação da resolução, a favor da ré, da doação da contitularidade, na proporção de metade, da nua propriedade sobre duas fracções autónomas, identificadas na petição inicial, da qual foi beneficiária.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Foi proferido saneador-sentença, julgando a acção improcedente.

A autora interpôs recurso de apelação do saneador-sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

I – A autora vem junto deste tribunal requerer a procedência da sua apelação relativa à douta sentença que declarou a improcedência da acção de impugnação de resolução de doação efectuada em 08.05.2020 pela insolvente (…) a favor da autora, relativa aos imóveis já descritos no articulado 4 da presente peça processual, sendo constantes dos factos provados da douta sentença agora posta em causa.

II – A autora sustenta a sua apelação no facto de não terem sido considerados pelo juiz a quo factos relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa designadamente os factos vertidos nos articulados 39, 40 e 41 da petição inicial.

III – Com efeito, o juiz a quo dentro dos poderes que lhe cabiam podia e devia averiguar o valor dos imóveis objecto da doação colocada em crise pela AI, uma vez que a própria considerou que tal doação era nula, por se enquadrar no previsto no artigo 121.º do CIRE, e cujos requisitos estavam verificados independentemente da boa fé da autora ao adquirir o imóvel por doação.

IV – Como preliminar à decisão a proferir deveria o juiz de acordo com o artigo 6.º do CPC providenciar pelas diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção que visassem a justa composição do litígio em prazo razoável.

V – No caso retratado e atentando à natureza urgente dos autos de insolvência solicitar junto da AI relatório pericial sobre o real valor do direito objecto da escritura de doação, com a finalidade de apurar o real valor da transmissão dos imóveis, não dando como adquirido o valor que consta na respectiva escritura, uma vez que a mesma pode não corresponder aos valores de mercado.

VI – Ainda, a nulidade de acordo com o artigo 289.º, n.º 2, do CC implica a devolução do valor, mas só na medida do seu enriquecimento, que neste caso não foi objecto de apreciação pelo juiz a quo, o que provoca uma injusta composição do litígio, prejudicando a autora.

VII – A massa insolvente só deve ser ressarcida pelo prejuízo efectivamente sofrido, o que não se provou nestes autos, não ficando assim consequentemente provado o prejuízo reclamado no valor de € 29.508,50.

VIII – Mesmo improcedendo o pedido da autora que pretendia a reversão do negócio de doação em dação em cumprimento por corresponder à vontade das partes, deveria oficiosamente o juiz a quo apurar o valor dos imóveis, providenciando-se assim uma justa e boa decisão, não podendo a autora ser prejudicada por se tratar de um processo especial de insolvência, ressalvando-se que um dos bens é a casa de morada de família da autora, uma vez que a mesma é usufrutuária do imóvel, conforme consta da escritura junta aos autos.

A douta sentença deve ser revogada pela violação dos artigos 5.º, 6.º, n.º 1, 607.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2, todos do CPC, e consequentemente ser devolvida à 1ª instância para serem apreciadas as questões de facto enumeradas nos artigos 39, 40 e 41 da petição inicial a fim de apurar um valor real dos imóveis objecto da escritura de doação efectuada em 08.05.2020 no cartório notarial da Dra. (…), em Almada, fazendo-se assim a costumada justiça.

A recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1 – A sentença recorrida contém correcta apreciação da matéria de facto, e igualmente correcta e bem fundamentada aplicação do direito.

2 – A administradora de insolvência resolveu o contrato de doação celebrado por escritura pública, através de carta registada com aviso de recepção, como se lhe impõe (resolução extrajudicial), sendo essa resolução incondicional por se tratar de doação de metade indivisa da nua propriedade de dois imóveis efetuada pela insolvente a favor da sua mãe aqui apelante.

3 - Considerando-se que o negócio em questão é enquadrável na alínea b) do artigo 121.º do CIRE, presumem-se os requisitos da prejudicialidade e da má fé, o que implica a irrelevância dos factos que a apelante pretendia que fossem apreciados.

4 - Consequentemente, outra decisão não poderia ter sido tomada pelo tribunal a quo que não a improcedência da impugnação, mantendo-se, assim, a resolução operada.

5 - Com o que, julgando o recurso interposto como integralmente improcedente e confirmando a douta decisão recorrida, farão V. Exªs sã e costumada justiça.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.


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Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se, em vez de julgar a acção improcedente no despacho saneador, o tribunal a quo devia tê-la feito prosseguir, a fim de ser apurado o valor do objecto da doação feita à recorrente, por ser relevante para a decisão da causa.

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No saneador-sentença recorrido, foram julgados provados os seguintes factos:

1. (…), residente na Rua (…), n.º 3, c/v, Esq., 2900-144 Setúbal, foi declarada insolvente por sentença proferida em 04.12.2020 no processo n.º 6378/20.2T8STB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Comércio, J1 (fls. 21 a 25 do processo principal).

2. (…), nomeada administradora da insolvência no referido processo, remeteu à insolvente, que recebeu, a carta junta a fls. 70 verso a 72, cujo teor se dá por reproduzido, datada de 02.06.2021, na qual, em síntese, declarou ter tomado conhecimento da doação feita pela insolvente à sua mãe, … (aqui autora), relativamente aos seguintes direitos:

Verba 1 - Cotitularidade na proporção de 1/2 da nua propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “O”, destinada a habitação, correspondente ao 2.° andar direito, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Av. (…), n.º 7, freguesia de Setúbal (São Sebastião), concelho de Setúbal, descrita na Conservatória do Registo Predial de Setúbal com o n.º (…) da freguesia de Setúbal (São Sebastião) e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…), sobre a qual incide usufruto vitalício a pessoa com idade superior a 65 anos e inferior a 70 anos, com o valor patrimonial tributável: € 25.746,00;

Verba 2 – Cotitularidade na proporção de 1/2 da nua propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a estacionamento coberto e fechado, correspondente à garagem D, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Av. (…), n.º 7, freguesia de Setúbal (São Sebastião), concelho de Setúbal, descrita na Conservatória do Registo Predial de Setúbal com o n.º (…) da freguesia de Setúbal (São Sebastião) e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…), sobre a qual incide usufruto vitalício a pessoa com idade superior a 65 anos e inferior a 70 anos, com o valor patrimonial tributável de € 3.762,50.

3. Mais refere a administradora da insolvência que sendo a doação um acto prejudicial à massa insolvente, declara incondicionalmente resolvido o acto, nos termos do artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do CIRE.

4. A carta foi recebida pela insolvente em 06.06.2021.

5. A administradora da insolvência remeteu ainda à autora (…), que a recebeu, a carta junta a fls. 67 verso a 69, cujo teor se dá por reproduzido, datada de 02.06.2021, na qual, em síntese, declarou ter tomado conhecimento da doação feita pela insolvente à sua mãe (…), relativamente aos seguintes direitos:

Verba 1 - Cotitularidade na proporção de 1/2 da nua propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “O”, destinada a habitação, correspondente ao 2° andar direito, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Av. (…), n.º 7, freguesia de Setúbal (São Sebastião), concelho de Setúbal, descrita na Conservatória do Registo Predial de Setúbal com o n.º (…) da freguesia de Setúbal (São Sebastião) e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…), sobre a qual incide usufruto vitalício a pessoa com idade superior a 65 anos e inferior a 70 anos, com o valor patrimonial tributável: € 25.746,00;

Verba 2 – Cotitularidade na proporção de 1/2 da nua propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a estacionamento coberto e fechado, correspondente à garagem D, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Av. (…), n.º 7, freguesia de Setúbal (São Sebastião), concelho de Setúbal, descrita na Conservatória do Registo Predial de Setúbal com o n.º (…) da freguesia de Setúbal (São Sebastião) e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…), sobre a qual incide usufruto vitalício a pessoa com idade superior a 65 anos e inferior a 70 anos, com o valor patrimonial tributável de € 3.762,50.

6. Mais refere a administradora da insolvência que sendo a doação um acto prejudicial à massa insolvente, declara incondicionalmente resolvido o acto, nos termos do artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do CIRE.

7. A carta foi recebida pela autora (…) em 06.06.2021.

8. Por escritura datada de 08.05.2020, denominada de “Doação”, de onde constam a insolvente, como primeira outorgante e (…) como segunda outorgante, a insolvente declarou doar à sua mãe, os seguintes bens:

Verba 1 – A nua propriedade de metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “O”, correspondente ao segundo andar direito, destinada a habitação, com registo de aquisição a seu favor e com o valor patrimonial tributário de € 25.746,00;

Verba 2 – A nua propriedade de metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “D”, destinada a estacionamento coberto e fechado, correspondente à garagem sub-cave, destinada a parqueamento com registo de aquisição, deste direito, a seu favor, com o valor patrimonial tributário de € 3.762,50, tudo conforme documento de fls. 64 verso a 66, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

9. Tendo a autora (…) aceite tal doação.

10. A fracção autónoma designada pela letra “O”, do prédio descrito na CRP de Setúbal sob o n.º (…), encontra-se registada a favor de (…) – (certidão junta ao apenso de apreensão de bens em 05-03-2021).

11. A fracção autónoma designada pela letra “D”, do prédio descrito na CRP de Setúbal sob o n.º (…), encontra-se registada a favor de (…) – (certidão junta ao apenso de apreensão de bens em 05.03.2021).


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A recorrente afirma que o tribunal a quo não podia julgar a acção improcedente no despacho saneador porquanto o apuramento do valor do objecto da doação é indispensável para a boa decisão da causa e não foi feito. Segundo a recorrente, a acção deverá prosseguir os seus termos, com vista ao apuramento daquele valor.

A argumentação que a recorrente expende tendo em vista fundamentar tal conclusão assenta num equívoco. Segundo a recorrente, a resolução da doação nos termos do artigo 121.º do CIRE (diploma ao qual pertencem as disposições legais adiante referenciadas sem menção da sua origem) equivale a uma declaração de nulidade desse contrato nos termos do artigo 280.º do Código Civil, do que resultaria a aplicabilidade do regime estabelecido no n.º 2 do artigo 289.º do mesmo código e a necessidade de apuramento do valor do objecto da doação. Porém, não é assim.

Os n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º estabelecem, respectivamente, que podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos a esta prejudiciais que tenham sido praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência e que se consideram prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência. Portanto, o fundamento da resolução em benefício da massa insolvente não é um vício intrínseco do acto, mas sim o facto de o mesmo ser prejudicial a essa massa. Visa-se, não reagir contra a invalidade de um acto jurídico, mas sim, através da resolução deste, recuperar um bem em benefício da massa insolvente e, por essa via, do colectivo dos credores. Perante um acto que haja posto em causa, em qualquer das modalidades da ampla previsão do n.º 2 do artigo 120.º, a satisfação dos credores da insolvência, a lei atribui, ao administrador desta, o dever de operar a resolução daquele acto, fazendo o correspondente bem regressar à massa insolvente, nos termos do n.º 1 do artigo 126.º. O instituto da resolução em benefício da massa insolvente tem, assim, autonomia relativamente ao da invalidade dos actos jurídicos.

O n.º 3 do artigo 120.º estabelece a presunção inilidível de que são prejudiciais à massa insolvente os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo 121.º, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.

Nos termos do artigo 121.º, n.º 1, al. b), são resolúveis em benefício da massa insolvente, sem dependência de outros requisitos, os actos celebrados pelo devedor, a título gratuito, dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais.

No caso dos autos, (…) foi declarada insolvente por sentença proferida em 04.12.2020. Menos de sete meses antes, mais precisamente em 08.05.2020, doara à recorrente, sua mãe, a contitularidade, na proporção de metade, da nua propriedade sobre duas fracções autónomas de um mesmo edifício, sendo uma delas destinada a habitação e a outra a garagem.

O contrato de doação é definido pelo n.º 1 do artigo 940.º do Código Civil como aquele pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.

É, pois, evidente que o contrato de doação celebrado entre a insolvente e a recorrente se encontra sujeito ao regime da resolução incondicional estabelecido pelo artigo 121.º, tendo a resolução efectuada pela administradora da insolvência fundamento legal. Igualmente evidente é a irrelevância do valor efectivo dos direitos que a insolvente doou à recorrente. Seja qual for esse valor, é fora de dúvida que o contrato de doação, celebrado menos de dois anos antes do início do processo de insolvência, era resolúvel em benefício da massa, com a consequente recuperação, por esta, dos direitos através daquele transmitidos à recorrente.

Concluindo, o tribunal a quo dispunha de todos os elementos necessários à decisão da causa no momento da prolação do despacho saneador e decidiu acertadamente ao julgar a acção improcedente.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o saneador-sentença recorrido.

Custas pela recorrente.

Notifique.


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Sumário: (…)

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Évora, 12.05.2022

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

José Manuel Barata

Emília Ramos Costa