PROCESSO DE INVENTÁRIO
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
PODERES DO TRIBUNAL
Sumário

I.- O poder de julgar, a jurisdição, é uma das funções do Estado que é desempenhada pelos tribunais através da emissão de despachos e sentenças e destina-se a dirimir litígios, ou seja, a resolver relações materiais controvertidas entre os cidadãos, as empresas ou o Estado.
II.- Os despachos e as sentenças, se não forem impugnados, transitam em julgado com o que estabilizam na ordem jurídica.
III.- A decisão de ordenar a notificação do cabeça-de-casal para indicar encarregado da venda para substituir o que se encontra em funções, não sendo de mero expediente, é um despacho praticado ao abrigo do poder discricionário do tribunal e, por isso, insuscetível de recurso, sendo interlocutório e preparatório da decisão final de substituir ou não o encarregado da venda, necessitando, designadamente, do exercício do contraditório dos outros interessados para que o juiz decida o incidente e exerça a jurisdição – Artigos 152.º/4, 630.º/1 e 833.º/1, do CPC.
IV.- A decisão de não substituir o encarregado da venda porque a ela se opôs um dos dois interessados e sem que qualquer outro elemento desfavorável se encontre presente, não merece censura, devendo ser mantida.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Proc.º 156/10.4TBMRA-A.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: (…)

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No Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo de Família e Menores de Beja, no âmbito do Inventário subsequente a divórcio entre (…) e (…), no qual foi decidida a venda judicial do imóvel do ex‐casal, foi proferido o seguinte despacho quanto à substituição do encarregado da venda:

2. Atenta a posição discordante das partes quanto à substituição da EV, e não tendo sido alegados, nem resultando notoriamente que aquela não vem desempenhando as funções que lhe foram confiadas com zelo e diligência, por ora não se determina a sua substituição mantendo-se a EV em funções.
Não obstante o supra decidido, nada impede que os interessados diligenciem também, a expensas suas, na promoção da venda.
3. Atento o lapso de tempo decorrido, notifique EV para, no prazo de 10 (dez) dias, informar os autos das diligências entretanto desenvolvidas e respetivos resultados, com vista à venda solicitada.
Notifique.
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Não se conformando com o decidido, (…) recorreu da decisão, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC:
1.ª – O Douto despacho ref.ª 32206688, ao decidir manter a Encarregada de Venda (doravante EV) em funções, com fundamento “(n)a posição discordante das partes quanto à substituição da EV, e não tendo sido alegados, nem resultando notoriamente que aquela não vem desempenhando as funções que lhe foram confiadas com zelo e diligência”, violou o caso julgado formal assente na prévia decisão contida no despacho ref.ª 32074788.
2.ª – Com efeito, no despacho ref.ª 32074788 havia sido ordenada a notificação do mandatário do cabeça de casal para indicar nova encarregada de venda, na sequência de requerimento deste informando que encetou contactos com outras firmas imobiliárias no sentido de as fazer aceitar a incumbência de encarregarem‐se da venda do imóvel.
3.ª – O despacho ref.ª 32074788 não foi impugnado.
4.ª– A interessada (…) também não se opôs ao requerimento do cabeça de casal que informou que encetou contactos com outras firmas imobiliárias no sentido de as fazer aceitar a incumbência de encarregarem‐se da venda do imóvel.
5.ª – E, tão pouco a interessada (…) se opôs à sugestão de fosse designada como encarregada de venda a imobiliária (…) – (…), Mediação Imobiliária.
6.ª – Não pode, por isso, proceder o argumento colhido do despacho ref.ª 32206688 de que há posição discordante das partes quanto à substituição da EV.
7.ª ‐ Nem colhe o argumento de que não foram alegados factos, nem resultam notoriamente que a EV não vem desempenhando as funções que lhe foram confiadas com zelo e diligência.
8.ª – O Apelante alegou factos que são suficientes para fundamentar a decisão de substituição da EV, ainda que não inseridos no âmbito do cumprimento, no exercício das funções da EV, dos deveres de zelo e diligência, o que deveria ter sido decidido.
9.ª – De todo o modo, havendo – como há – uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, e foi objeto de repetida decisão, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão.
10.ª – O Douto despacho ref.ª 32206688 deve ser desconsiderado e revogado.
Por tudo o exposto, deve, a final, dar‐se provimento ao presente recurso e revogar‐se, desconsiderando‐se, o Douto despacho ref.ª 32206688,
Assim se fazendo a sempre devida, justiça.
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Foram dispensados os vistos.
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As questões que importa decidir são:
1.- Saber se transitou em julgado o despacho que ordenou a notificação do mandatário do recorrente para indicar nova encarregada da venda;
2.- Saber se deve ser designada nova encarregada da venda como sugerido pelo recorrente.
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A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório inicial e a seguinte:
1.- Sob proposta do cabeça-de-casal, ora recorrente, foi proposto que a venda do imóvel se realizasse por negociação particular, o que mereceu a concordância a outra interessada, indicando esta como valor de venda € 43.000,00.
2.- Em 25-09-2018 o tribunal deferiu a venda na modalidade proposta, tendo sido nomeada encarregada da venda a Leilões (…) – Sociedade (…) de Leilões, Lda..
3.- Em 19-12-1019 a encarregada da venda informou que havia recebido uma proposta no valor de € 16.000,00.
4.- Não tendo o valor de venda sido aceite pelos interessados, em 29-04-2020, a EV apresentou então uma proposta no valor de € 7.500,00.
5.- Esta proposta foi rejeitada pelos interessados
6.- Em 13-10-2020, a EV informou que havia recebido uma proposta no valor de € 18.000,00.
7.- Esta proposta foi rejeitada pelo cabeça de casal e aceite pela interessada (…).
8.- O tribunal ordenou o prosseguimento das diligências de venda por não haver acordo entre os interessados quanto ao valor proposto.
9.- Em 17-11-2020 a EV informou que havia recebido uma proposta no valor de € 20.000,00.
10.- Este valor foi rejeitado pelo cabeça-de-casal.
11.- Em 14-06-2021, a EV informou que não recebeu proposta superior a € 20.000,00, solicitando que os interessados ponderassem novamente este valor.
12.- O cabeça-de-casal rejeitou novamente o valor proposto e informou que iria encetar contactos para que outras imobiliárias para proceder à venda do imóvel.
13.- Com a refª 32074788 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
Notifique o I. Mandatário do cabeça-de-casal para indicar nova Encarregada da Venda.
14.- O cabeça-de-casal indicou então (…) – (…), Mediação Imobiliária para ser nomeada EV.
15.- Com a refª 32129125 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
2. Na sequência da sugestão feita pelo cabeça-de-casal quanto à substituição da EV, notifique ambos os interessados para que declarem expressamente nos autos, se pretendem a substituição da Encarregada da Venda, a razão de ser, e se estão de acordo quanto à nomeação da entidade indicada pelo cabeça-de-casal como EV, mais informe ambos os interessados de que a substituição da EV nesta fase processual implicará o pagamento dos honorários relativamente ao trabalho desenvolvido o qual será necessariamente suportado pelos os interessados.
Prazo: 10 dias.
16.- A interessada (…) pronunciou-se declarando “expressamente não pretender a substituição da encarregada da venda, não concordando naturalmente pela nomeação da entidade indicada pelo cabeça de casal como encarregada da venda.”
17.- O cabeça-de-casal também se pronunciou, pugnando pela substituição da EV, argumentando que não são devidos honorários à encarregada que estava em exercício, que a interessada (…) não se tinha oposto à substituição, pelo que a oposição da interessada à EV em concreto a nomear não releva, pedidno a nomeação da nova EV, sem que haja fixação de honorários à EV anteriormente designada.
18.- O tribunal a quo proferiu então o despacho objeto de recurso:
2. Atenta a posição discordante das partes quanto à substituição da EV, e não tendo sido alegados, nem resultando notoriamente que aquela não vem desempenhando as funções que lhe foram confiadas com zelo e diligência, por ora não se determina a sua substituição mantendo-se a EV em funções.
Não obstante o supra decidido, nada impede que os interessados diligenciem também, a expensas suas, na promoção da venda.
3. Atento o lapso de tempo decorrido, notifique EV para, no prazo de 10 (dez) dias, informar os autos das diligências entretanto desenvolvidas e respetivos resultados, com vista à venda solicitada.
Notifique.
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Conhecendo.
1.- Saber se transitou em julgado o despacho que ordenou a notificação do mandatário do recorrente para indicar nova encarregada da venda.
Argumenta o recorrente que o facto de o tribunal a quo ter ordenado a sua notificação para indicar novo encarregado da venda, a nomear em substituição da que se encontrava em funções, constitui, em si, um despacho jurisdicional que vincula o tribunal, não mais podendo ser modificada tal decisão porque transitada em julgado.
O poder de julgar, a jurisdição, e é uma das funções do Estado que é desempenhada pelos tribunais através da emissão de despachos e sentenças e destina-se a dirimir litígios, ou seja, a resolver relações materiais controvertidas entre os cidadãos, as empresas ou o Estado.
Nestes atos jurídicos, o juiz diz o direito exercitando o seu poder de julgar, como ensina Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1981, 1º Vol. página 10.
O tribunal, por sua vez, tem uma função passiva, necessita que os interessados coloquem em ação o aparelho estadual da justiça e, após a decisão, esta transita em julgado se não for impugnada, estabilizando na ordem jurídica.
No caso dos autos, estamos em presença de um inventário cuja finalidade é dividir os bens que integravam os bens comuns do casal que adquiriram na constância do matrimónio.
Estando em causa dividir o valor de um imóvel, há a necessidade de se proceder à sua venda e, após, repartir o seu valor pelos interessados no inventário.
A venda por negociação particular tem sido frustrada porque a encarregada da venda – nomeada pelo tribunal – não tem logrado obter propostas que satisfaçam os interessados, pelo que o cabeça-de-casal colocou a questão de decidir se deve ou não ser substituída.
O tribunal decidiu então dar início a esse incidente, notificando o cabeça-de-casal para indicar encarregado da venda a nomear em substituição da que se encontrava em funções.
Ora, este despacho, ao contrário do que alega o recorrente, não teve a qualidade de dizer o direito na relação litigiosa – substituir ou não a encarregada da venda pela nova EV proposta pelo cabeça-de-casal – e, por isso, não modificou a ordem jurídica, o que ocorrerá, ou não, com a decisão final e, esta sim, transitará em julgado se não for impugnada.
Esta decisão de ordenar a notificação é interlocutória e preparatória da decisão que estava em formação – substituir ou não a encarregada da venda.
Com efeito, a decisão final tinha como pressuposto a análise de todas as condicionantes que interferiam com a substituição, designadamente a concordância da outra interessada, a idoneidade e capacidade da nova EV e todas as que o decisor entendesse pertinentes à boa decisão da causa.
Depois de ponderados todos os interesses em conflito, o tribunal a quo decidiu não proceder à substituição com os seguintes fundamentos: “Atenta a posição discordante das partes quanto à substituição da EV, e não tendo sido alegados, nem resultando notoriamente que aquela não vem desempenhando as funções que lhe foram confiadas com zelo e diligência, por ora não se determina a sua substituição, mantendo-se a EV em funções.”
Como já se disse, a notificação em causa é meramente interlocutória da decisão a tomar, não tendo autonomia nem vinculando o decisor no sentido de substituir a EV como sugerido pelo recorrente, uma vez que não estavam ainda disponíveis todos os elementos necessários à decisão, designadamente o exercício do contraditório pela outra parte interessada (artigo 3.º/3, do CPC).
Logo que se encontrou na posse de todos os elementos necessários à decisão, o tribunal exerceu a iurisdictio – disse o direito – decidiu pela não substituição, fundamentando.
Ora, o despacho que ordenou a notificação foi proferido ao abrigo do poder discricionário do tribunal, artigo 152.º/4, do CPC, e, por isso, é insuscetível de recurso, artigo 630.º/1, do Código de Processo Civil.
Destes despachos se distinguem os de mero expediente (também irrecorríveis), definindo-se estes como todos os que “o juiz profere sobre a marcha ou andamento do processo, dentro dos seus termos legais ou previamente estabelecidos e que nada decidem, portanto, sobre a forma do processo ou sobre direitos e obrigações dos litigantes” – Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V, pág. 250 e Ac. TRC de 12-03-2007, Processo n.º 320/03.2TBCLB-C.C1
Na verdade, se a nomeação do encarregado da venda é um poder que está conferido ao juiz (artigo 833.º/1, do CPC), a ele também estão acometidos os poderes para iniciar o incidente de destituição e nomeação de novo encarregado da venda, se concluir, no seu prudente arbítrio, que é do interesse das partes a substituição, pelo que o método da escolha configura um poder discricionário, ou seja, a escolha da melhor solução entre as possíveis, mas trata-se sempre de um ato que o juiz pode decidir praticar ou não – neste sentido, cfr. A. dos Reis, ob. cit., pág. 253.
Tudo porque ordenar a notificação para indicar novo encarregado da venda – a decisão em crise – constitui um ato preparatório de uma decisão, esta sim, que interfere com o conflito de interesses entre as partes – a decisão de substituição.
Reafirma-se ainda que o despacho que ordenou a notificação nada decidiu em concreto, ou seja, dito de outro modo, a decisão estava em formação, fazendo a notificação parte da decisão final do incidente, pelo que só quando esta fosse proferida seria suscetível de transitar em julgado, nos termos preconizados pelo artigo 628.º do Código de Processo Civil.
O que não ocorreu porque o apelante também recorreu desta decisão final.
Por último, sempre se dirá que o processo civil não é um dominus das partes, porque se trata de direito público de que o juiz é o executante e a quem estão atribuídos poderes/deveres de direção e gestão processual, na procura da realização da justiça, colocando sempre em igualdade os interesses das partes em conflito – neste sentido, cfr. Ac. TRL de 12-12-2013, Processo n.º 42596/99.7TJLSB.C.L1-6.
Foi o que aconteceu no caso presente.
Improcedem, em consequência, as conclusões nesta parte.
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2.- Saber se deve ser designada nova encarregada da venda como sugerido pelo recorrente.
O recorrente impugna também a decisão de não substituição da encarregada da venda, porque a interessada (…) não se opôs à substituição e alegou factos que são suficientes para fundamentar a decisão de substituir a EV.
Quid iuris?
Na modalidade de venda por negociação particular, subespécie da venda extrajudicial, o encarregado da venda é equiparado ao mandatário – artigo 833.º/1, do Código de Processo Civil.
A sua atuação pautar-se-á pelas regras do contrato de mandato civil.
O contrato de mandato é aquele pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra – artigo 1157.º do Código Civil.
No caso particular da venda em processo executivo, o encarregado da venda atua mandatado pelo tribunal; o juiz do processo nomeia, mediante indicação da secretaria ou do interessado na venda e o encarregado aceita, assim se constituindo o mandato.
No caso dos autos, a relação contratual de mandato estabeleceu-se entre o tribunal e a EV que se encontra em funções.
A sua substituição cabe igualmente ao juiz porque a entidade que tem o poder de nomear tem o contrapoder de destituir.
Como estamos em presença de relações contratuais de mandato, ao contrário do que que alega o recorrente, podem ter-se constituído obrigações, designadamente de pagamento de honorários à EV, se tiver desenvolvido trabalhos e tiver suportado despesas com a venda ainda que frustrada – neste sentido, cfr. Ac. TRE de 28-03-2019, Processo n.º 525/13.8TBLLE.E1.
Foi por este motivo que a sra. Juiz do processo, ainda no decurso dos procedimentos para formar a decisão de substituir ou não a EV, ordenou a notificação dos interessados para que ponderassem o facto de a substituição da EV ter como consequência o pagamento de honorários.
Em resposta, a interessada (…) veio manifestar a sua oposição à substituição (ponto 16 da matéria de facto).
Assim sendo, ao contrário do que argumenta o recorrente, a interessada (…) declarou opor-se à substituição sugerida pelo cabeça-de-casal, sendo este, por si só, um argumento que pode impedir a substituição da EV, uma vez que nenhum outro se encontrava presente, designadamente a falta de idoneidade ou de interesse e vontade de proceder à venda, como bem o demonstram as inúmeras informações relativas a valores que a EV foi obtendo na tentativa de realizar a venda, mas que nunca foram aceites pelos interessados.
Bem andou, pois, o tribunal a quo ao ter decidido não substituir a EV.
O que equivale a dizer que o despacho que indeferiu a substituição da encarregada da venda não nos merece censura, devendo ser mantido.
Assim sendo, a apelação é improcedente.
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Sumário: (…)
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DECISÃO.
Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente – artigo 527.º do CPC.
Notifique.
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Évora, 12-05-2022
José Manuel Barata (relator)
Rui Machado e Moura
Emília Ramos Costa