CRIME DE USURPAÇÃO
ORDEM DOS ADVOGADOS
ISENÇÃO DE CUSTAS
Sumário

I - Na atribuição do benefício de isenção subjetiva de custas, a lei não se basta com a natureza pública da entidade em causa, a Ordem dos Advogados. Exige-se ainda que essa entidade atue exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto.
II - A recorrente não esteve a agir, no caso em apreço, em defesa de um qualquer direito fundamental, nem representa ‘grupos indefinidos’, nem de ‘extensão indeterminada’, nem se demonstra que defenda ‘interesses pertencentes a todos’, pelo que também se não pode afirmar que esteja a agir para defesa de interesses difusos.
III - O Decreto-Lei nº 324/2003, de 27 de de-zembro, operou profundas alterações ao regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de novembro (que aprovou o último Código das Custas Judiciais), limitando o campo de aplicação das isenções subjetivas previstas no respetivo artigo 2º, do qual deixaram de fazer parte as instituições de segurança social, bem como o próprio Estado. Tal perda de isenção era inequivocamente afirmada, na exposição de motivos desse diploma, onde se dizia: «Procede-se, igualmente, a uma profunda alteração do regime de isenção de custas, consagrando-se o princípio geral de que, salvo ponderosas exceções, todos os sujeitos processuais estão sujeitos ao pagamento de custas, independentemente da sua natureza ou qualificação jurídicas e desde que possuam capacidade económica e financeira para tal, sendo as exceções a esta regra equacionadas, sem qualquer prejuízo para os interessados, em sede de apoio judiciário. Neste particular, estende-se aos processos de natureza cível o princípio geral de sujeição do Estado e das demais entidades públicas ao pagamento de custas judiciais. (…) Tal medida reveste carácter essencial para a concretização plena do direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, garantindo uma efetiva igualdade processual entre a Administração e os cidadãos.»
IV - Com a aprovação do Regulamento das Custas Processuais, aplicável à situação ora em apreciação, foi intenção do legislador diminuir ainda mais o campo das isenções de custas subjetivas, pois, como se afirma na exposição de motivos respetiva, «procurou ainda proceder-se a uma drástica redução de isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenção.»
V - Trata-se antes de danos próprios sofridos pela demandante e cujo ressarcimento reclama. Não se pode, por isso, concluir que a recorrente tenha atuado, ao deduzir o pedido cível nos presentes autos, em defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de direitos difusos e, muito menos, que tenha agido exclusivamente em defesa de qualquer desses direitos, como exige o artº 4º nº 1 al. g) do RCP para que uma entidade pública possa beneficiar de isenção de custas.

Texto Integral

Processo nº 224/15.6JAPRT-G.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo que correm termos no Juízo Central Criminal de Vila do Conde - Juiz 9, Comarca do Porto, com o nº 224/15.6JAPRT, o Mº Público deduziu acusação contra AA imputando-lhe a prática de um crime de usurpação de funções p. e p. no artº 358º al. b) do Cód. Penal (em concurso aparente com um crime de procuradoria ilícita p. e p. no artº 7º da Lei nº 49/2004 de 24.08), um crime de falsificação de documento p. e p. no artº 255º al. a) e 256º nº 1 al. c) e dois crimes de burla qualificada p. e p. nos artºs. 217º e 218º nº 1 (um deles) e nº 2 al. a) (o outro), ambos do Cód. Penal.
Notificada da acusação, a assistente Ordem dos Advogados acompanhou a acusação pública e deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de € 15.800,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora.
Efetuado o julgamento, veio a ser proferido acórdão em 15.12.2021, que condenou a arguida pela prática de um crime de usurpação de funções p. e p. no artº 358º al. b) do Cód. Penal, na pena de um ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano. Foi ainda condenada a demandada/arguida a pagar à demandante Ordem dos Advogados a quantia de € 1.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, absolvendo-a do restante pedido. No que respeita às custas do pedido cível, foram condenados demandante e demandada na proporção do respetivo decaimento.
Na sequência da elaboração da conta, a Ordem dos Advogados requereu a sua anulação alegando que a liquidação só poderá dever-se a lapso, por se encontrar isenta do seu pagamento, requerimento esse que veio a ser indeferido por despacho proferido em 13.01.2022.
Inconformada, a Ordem dos Advogados interpôs o presente recurso, por requerimento apresentado em 27.01.2022, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
I) O Acórdão recorrido, ao condenar a Recorrente no pagamento de custas cíveis na proporção do decaimento, contrariou as anteriores decisões que reconheceram a isenção subjetiva de custas à Ordem dos Advogados, uma constante de fls. 82, apenso B, e outra proferida nos autos, em 11.07.2016, pela Meritíssima Juíz de Instrução Criminal da Comarca do Porto - Matosinhos - Inst. Central - 2ª Sec. Ins. Criminal - J2, violando o disposto no art. 620.º, nº 1 do C.P.C., por ofensa de caso julgado formal. Porquanto, tanto o despacho de fls. 82, apenso B, como a decisão proferida nos autos, em 11.07.2016, reconheceram isenção subjetiva de custas à Ordem dos Advogados, respeitavam unicamente à relação processual e transitaram em julgado, constituindo assim caso julgado formal nos autos.
II) O Acórdão recorrido ao afastar a aplicabilidade da isenção de custas violou, para além do art. 4º, n.º 1, al. g) do RCP, o disposto nos artigos 2º a 5º da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro (especialmente a al. a) do n.º 1 do art. 5º), nos artigos 1.º, n.ºs 1 e 2; 3º, alíneas a) e l); 9.º, n.ºs 1 e 3, al. b) e 54.º, n.º 1, al. u), todos do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro; bem como os arts. 1.º, 7.º e 11.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto.
III) Com efeito, a Ordem dos Advogados é uma pessoa colectiva de direito público, mais propriamente uma associação pública (cf. art. 1º EOA) – pessoa colectiva de tipo corporacional constituída para a prossecução de interesses públicos e dotada dos necessários poderes jurídico-administrativos – submetida a um regime específico de direito administrativo, e que corresponde a uma longa manus do Estado ou a uma forma de administração e prossecução de interesses públicos, que o próprio Estado lhe transferiu mediante devolução de poderes (cf. art. 267.º CRP, que também saiu violado pela presente decisão recorrida).
IV) A OA intervém exclusivamente na defesa dos interesses públicos diretamente previstos nos arts. 2º a 5º (esp. n.º 1, al. a) deste) da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, nos arts. 1.º, n.ºs 1 e 2; 3º, alíneas a) e l); 9.º, n.ºs 1 e 3, al. b); 54.º, n.º 1, al. u), todos do Estatuto da Ordem dos Advogados; e nos arts. 7.º e 11.º da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto, assim como nos, pois, é de lei (destas Leis) que:
- A primeira atribuição legal de uma associação pública profissional como a Ordem dos Advogados consiste na defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços; e
- A primeira atribuição legal da OA consiste precisamente em “Defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça”;
- A Ordem dos Advogados tem legitimidade para intentar ações de responsabilidade civil, tendo em vista o ressarcimento de danos decorrentes da lesão dos interesses públicos que lhe cumpre, nos termos do respectivo estatuto, assegurar e defender, lesão essa causada pelas práticas criminosas (ou contra-ordenacionais ou outras) de procuradoria ilícita [crime pelo qual foi proferida acusação pública, sendo que a ora Recorrente requereu a abertura da instrução tendo em vista alteração da qualificação jurídica – entendendo que foi praticado o crime de usurpação de funções, em concurso aparente com aquele outro]
V) Este tipo de intervenção da OA acautela, simultaneamente, a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (art. 3.º, al. a) EOA); a colaboração na boa administração da justiça (art. 3.º, al. a) EOA); o dever de zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado (art. 3.º, al. d) EOA), entre outros – não sendo despicienda, antes pelo contrário, a ordem legal de previsão destas atribuições.
VI) Por outro lado, a intervenção da OA acautela os interesses públicos que estiveram na génese da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, concretamente identificados no respetivo procedimento legislativo como sendo os da melhor salvaguarda dos interesses e direitos dos cidadãos; salvaguardando e garantindo maior eficácia na administração da justiça; no combate à procuradoria ilícita, atividade ilegal que tem sido objeto de denúncia por todos os operadores de justiça; visando primordialmente a proteção dos direitos dos cidadãos e dos consumidores em geral; o interesse público e a realização da justiça; efetiva tutela dos direitos dos cidadãos, assegurando os princípios fundamentais do Estado de direito democrático; a administração da justiça – em lado algum se referindo o legislador à defesa dos interesses dos associados da Ordem dos Advogados, sequer a título indireto ou reflexo.
VII) Tal intervenção da Ordem dos Advogados na defesa direta e imediata de interesses primacialmente e essencialmente de natureza pública, geral, prende-se ainda com a proteção do direito fundamental de Acesso ao Direito e à sua tutela jurisdicional efetiva, com assento constitucional no art. 20.º da CRP.
VIII) A legitimidade da Recorrente para actuação nas presentes matérias encontra-se expressamente prevista na lei (de que são exemplos o art. 5º EOA e o art. 7º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto). A Lei atribui especialmente à Ordem dos Advogados legitimidade processual na matéria de procuradoria ilícita, nomeadamente nos artigos 7º, nº 3 e 11.º, nº 2 da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto, sendo que a respetiva competência está regulada no Estatuto da ordem dos Advogados no art. 54º, nº 1, al. u), nos autos em concurso aparente com o crime de usurpação de funções, existindo uma relação de especialidade entre as normas incriminadoras. Preenchendo-se também este elemento objectivo necessário ao reconhecimento da isenção em discussão (cf. art. 4º, n.º 1, g) RCP).
IX) Nos autos, a Ordem dos Advogados atuou exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições expressas no art. 3.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015 de 9 de setembro e alterado pela Lei n.º 23/2020, de 6 de julho, e da Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro; pautou-se pela defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, mais concretamente o direito de Acesso ao Direito, previsto no art. 20º da CRP, como decorre da subsunção dos factos provados sob os nºs 21, 23, 27, 28, 30, 31, 33, 34, 25, 36, 37, 38, 39, 40, 43, 44, 45 e 46 aos conceitos de consulta jurídica e patrocínio judiciário (cf. página 74 do acórdão recorrido), expressamente previstos no art. 20º da CRP e que integram o direito fundamental de Acesso ao Direito de qualquer cidadão.
X) A Recorrente atuou exclusivamente em prol da defesado bem jurídico protegido pelo art. 358º, al. b) do C.P.: a integridade do sistema oficial instituído para o acesso e exercício da profissão de Advogado e, assim, do direito fundamental de Acesso ao Direito dos cidadãos e na defesa de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, o que se integra no art. 4º, nº 1, al. g) do Regulamento das Custas Processuais, mais concretamente em defesa dos consumidores que recorrem a serviços jurídicos e, em concreto, dos Advogados.
XI) Estão assim reunidas todas as condições objectivas e subjectivas para a aplicação da al. g) do nº 1 do art. 4.º do RCP e consequente reconhecimento de isenção de custas ao Requerente, pugnando-se pela revogação do despacho ora em crise e substituição poroutro que isente a Ordem dos Advogados – Conselho Regional do Porto, do pagamento de custas, com as legais consequências.

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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que o mesmo deve ser provido, revogando-se a condenação da demandante nas custas cíveis.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em sentido concordante com a resposta do Ministério Público na 1ª instância.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A decisão sob recurso é do seguinte teor: transcrição
«Requerimento apresentado pela Ordem dos Advogados:
Insurge-se a demandante contra a conta de custas elaborada no seguimento do acórdão que a condenou na proporção do respectivo decaimento do pedido formulado, considerando que a sua liquidação se deve a lapso por se encontrar isenta do seu pagamento, requerendo a sua anulação.
Vejamos,
Nesta matéria dispõe o art. 4º, n.º 1, al. g) do Regulamento de Custas Processuais que as entidades públicas - como é o caso da demandante – estão isentas de custas quando actuem exclusivamente no âmbito das suas atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias.
Principiemos por dizer que no acórdão condenatório, para cujos fundamentos remetemos, a atribuição de indemnização à demandante assentou genericamente no prejuízo causado com a conduta da demandada no prestígio e imagem da profissão de advogado, tendo-se assim considerado, para efeitos de estabelecimento da sua legitimidade activa, que litigou na defesa da classe profissional dos advogados.
Donde, não estar propriamente em causa actuação em prol da defesa de qualquer um dos direitos fundamentais dos cidadãos, de assento constitucional no Capítulo I da Constituição da República Portuguesa, nem tampouco em prol de interesses difusos, vg. de áreas como o do ordenamento do território, património cultural, saúde pública, ambiente, urbanismo ou defesa dos consumidores, princípios que, de resto, já haviam norteado a decisão sobre a responsabilidade pelo pagamento das custas devidas em Juízo no respectivo segmento condenatório.
Neste mesmo sentido - ainda que debatendo a questão da taxa de justiça devida pela constituição de assistente mas com cujos fundamentos de direito alinhamos -, cfr. Ac. da Relação do Porto datado de 25.11.2020 no âmbito do Proc. 139/20.6T9VNG-A.P1 relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Dr. Pedro Vaz Pato e Ac. da Relação de Guimarães datado de 28.10.2019 no âmbito do Proc. n.º 3598/18.3T9VCT.G1 relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Dr. Armando Azevedo.
Acresce inexistir norma especial no seu Estatuto ou em Legislação que, para situações como a presente, isentem a Ordem dos Advogados do pagamento de custas.
Considera-se assim que a demandante/requerente não beneficia de isenção do pagamento de custas.
Por conseguinte, indefiro o requerido e mantenho a conta de custas elaborada.
Notifique.»
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, a única questão que a recorrente submete à apreciação deste Tribunal consiste em saber se a Ordem dos Advogados beneficia da isenção de custas prevista no artº 4º nº 1 al. g) do Regulamento das Custas Processuais, relativamente ao pedido de indemnização civil que deduziu nos presentes autos e se a decisão recorrida que lhe não reconheceu esse benefício violou o caso julgado formal decorrente da decisão proferida em 11.07.2016 pela Srª. Juíza de Instrução Criminal do Porto.
A questão da isenção de custas judiciais por parte da Ordem dos Advogados não tem tido um tratamento uniforme nos tribunais, designadamente nos Tribunais da Relação.
No sentido de que a Ordem dos Advogados beneficia da isenção de custas judiciais, estando por isso dispensada do pagamento de taxa de justiça para se constituir como assistente em processos por crime de procuradoria ilícita pronunciaram-se os Acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto de 19.11.2017[2] e de 28.04.2021[3].
No sentido de que a Ordem dos Advogados não beneficia de tal isenção, devendo proceder ao pagamento da taxa de justiça para a constituição de assistente naquele tipo de processos, decidiu o Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 25.11.2020[4], bem como o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.10.2019[5].
As diferentes posições jurisprudenciais baseiam-se no teor da mesma disposição legal - a al. g) do nº 1 do artº 4º do Regulamento das Custas Processuais - dela extraindo naturalmente diferentes conclusões.
Dispõe este preceito que "estão isentos de custas as entidades públicas quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias".
Segundo o artº 1º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015 de 09.09, "1- Denomina-se Ordem dos Advogados a associação pública representativa dos profissionais que, em conformidade com os preceitos do presente Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem a advocacia. 2 - A Ordem dos Advogados é uma pessoa coletiva de direito público que, no exercício dos seus poderes públicos, desempenha as suas funções, incluindo a função regulamentar, de forma independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma na sua atividade."
Conclui-se assim que a Ordem dos Advogados constitui, sem dúvida, uma entidade pública para efeitos do disposto no artº 4º nº 1 al. g) do RCP, mais especificamente uma associação pública.
As associações públicas são “pessoas coletivas públicas, de tipo associativo, criadas para assegurar a prossecução de interesses públicos determinados, pertencentes ao Estado ou a outra pessoa coletiva pública", cfr. Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, volume I, Coimbra, 1986, pág. 370.
Contudo, na atribuição do benefício de isenção subjetiva de custas, a lei não se basta com a natureza pública da entidade em causa. Exige ainda que essa entidade atue exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto.
Como se refere no Ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 16.12.2015[6] «a propósito deste normativo e do que, no âmbito do mesmo, se deva entender por direitos fundamentais, Salvador da Costa faz uma enumeração que, não deixando de ser assumidamente exemplificativa, extrata apenas os “clássicos” direitos, liberdades e garantias, compreendidos nos artigos 24º a 47º da Constituição da República Portuguesa, não referindo (pelo menos, expressamente) os direitos e deveres económicos, sociais e culturais»[7].
Quanto à tutela de direitos difusos, voltamos a Salvador da Costa que, na obra e local referenciados em nota, explica que «são interesses difusos os que se não reportam a pessoas individualmente consideradas nem a grupos definidos, na medida em que são encabeçados por entidades representativas de interesses supra-individuais. Trata-se de interesses concernentes às pessoas, mas não individualmente determinadas, e, por isso, por elas não apropriados ou subjetivados, como é o caso dos interesses relativos à proteção da saúde, do ambiente, do património cultural e dos consumidores em geral. Ou, noutra perspetiva, em termos objetivos, são os relativos a grupos de extensão indeterminada, que se estruturam em termos de supra-individualidade, pertencentes a todos, mas onde há também o interesse de cada um (…)».
Ora, não nos parece defensável o entendimento de que a recorrente esteja a agir, no caso em apreço, em defesa de um qualquer direito fundamental, na aceção constitucional aludida. Nem tão pouco representa ‘grupos indefinidos’, nem de ‘extensão indeterminada’, nem se demonstra que defenda ‘interesses pertencentes a todos’, pelo que também se não pode afirmar que esteja a agir para defesa de interesses difusos.
Aliás, se procedermos a uma análise da evolução da evolução legislativa respeitante ao regime das custas processuais e, especificamente, a questão das isenções de custas, facilmente verificamos que o Decreto-Lei nº 324/2003, de 27 de dezembro, operou profundas alterações ao regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de novembro (que aprovou o último Código das Custas Judiciais), limitando o campo de aplicação das isenções subjetivas previstas no respetivo artigo 2º, do qual deixaram de fazer parte as instituições de segurança social, bem como o próprio Estado.
Tal perda de isenção era inequivocamente afirmada, na exposição de motivos desse diploma, onde se dizia: «Procede-se, igualmente, a uma profunda alteração do regime de isenção de custas, consagrando-se o princípio geral de que, salvo ponderosas exceções, todos os sujeitos processuais estão sujeitos ao pagamento de custas, independentemente da sua natureza ou qualificação jurídicas e desde que possuam capacidade económica e financeira para tal, sendo as exceções a esta regra equacionadas, sem qualquer prejuízo para os interessados, em sede de apoio judiciário. Neste particular, estende-se aos processos de natureza cível o princípio geral de sujeição do Estado e das demais entidades públicas ao pagamento de custas judiciais. (…) Tal medida reveste carácter essencial para a concretização plena do direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, garantindo uma efetiva igualdade processual entre a Administração e os cidadãos
Com a aprovação do Regulamento das Custas Processuais, aplicável à situação ora em apreciação, foi intenção do legislador diminuir ainda mais o campo das isenções de custas subjetivas, pois, como se afirma na exposição de motivos respetiva, «procurou ainda proceder-se a uma drástica redução de isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenção
Contrariamente ao que sustenta a recorrente, a sua intervenção nos presentes autos, e que determinou a sua condenação em custas pelo acórdão final proferido, nada tem a ver com a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a colaboração na boa administração da justiça ou o dever de zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado, atribuições que lhe são conferidas pelo respetivo Estatuto (artº 3º do EOA).
A recorrente foi condenada em custas por ter decaído parcialmente no pedido cível que deduziu contra a arguida/demandada, e em que reclamava desta o ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais que a própria demandante (Ordem dos Advogados) alegava ter sofrido com a prática do crime pela arguida. A quantia peticionada a título de indemnização não se destinava a ressarcir danos alheios (dos cidadãos cujos direitos estão especialmente previstos no citado artº 4º nº 1 al. g) do RCP), nem obviamente a recorrente destinava a estes a quantia indemnizatória que lhe viesse a ser atribuída no processo, destinando-se antes a ressarcir os danos próprios que alegou ter sofrido - danos patrimoniais decorrentes dos custos associados à tramitação de processos internos de averiguações que deram origem à formulação da queixa e que a demandante quantificou em € 800,00 e danos não patrimoniais provocados na imagem da profissão, na confundibilidade entre a prática de atos próprios de advogados e os praticados pela demandada, na denegação da função social da advocacia, na devassidão da implementada deontologia, entre outros, que quantificou em € 15.000,00.
Trata-se, como é bem de ver, de danos próprios sofridos pela demandante e cujo ressarcimento reclama. Não se pode, por isso, concluir que a recorrente tenha atuado, ao deduzir o pedido cível nos presentes autos, em defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de direitos difusos e, muito menos, que tenha agido exclusivamente em defesa de qualquer desses direitos, como exige o artº 4º nº 1 al. g) do RCP para que uma entidade pública possa beneficiar de isenção de custas.

E não se diga que a decisão recorrida violou o caso julgado formado pela decisão proferida em 11.07.2016 pela Srª. Juíza de Instrução Criminal.
Recorrendo aos ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa[8], dir-se-á que «a exceção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a exceção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica (...)».
João Castro Mendes[9] ensina que o “caso julgado formal traduz a força obrigatória dentro do processo”, contrariamente ao caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida.
No caso em apreço estaremos perante a figura do caso julgado, não material mas formal, já que está em causa uma decisão proferida no processo que, alegadamente, já tinha sido decidida com trânsito em julgado e que foi novamente objeto de apreciação pelo tribunal de julgamento.
Contudo, importa reter que o caso julgado formal, tal como o caso julgado material, visa evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão.
Como se refere no Ac. do STJ de 08.03.2001[10], «para que se verifique a situação de casos julgados contraditórios preceitua no nº 2 do artigo 675º Cód. Proc. Civil, é essencial que as duas decisões contraditórias incidam sobre o mesmo objeto, o que vale por dizer que a parte dispositiva das duas decisões há-de ter resolvido o mesmo ponto concreto, de direito ou de facto.
Ou seja, subjacente à violação do caso julgado formal está a apreciação, dentro do mesmo processo, da mesma concreta questão de direito ou de facto, decidida em sentido contrário ao da decisão anterior.
Ora, no caso em apreço, não estão reunidos tais pressupostos. Com efeito, na decisão proferida em 11.07.2016 foi reconhecida a isenção de custas da Ordem dos Advogados para intervir nos autos na qualidade processual de assistente. Na decisão recorrida não foi reconhecido à recorrente Ordem dos Advogados o mesmo benefício mas reportado ao pedido cível deduzido, isto é, não está em causa a sua qualidade de assistente, mas sim de demandante civil.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela demandante Ordem dos Advogados, confirmando consequentemente a douta decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC - artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
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Porto, 27 de abril de 2022
Eduarda Lobo
Castela Rio
Francisco Marcolino

(Elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Proferido no Proc. nº 31/17.1T9PRT-A.P1. Des. Maria Luísa Arantes e não publicado.
[3] Proferido no Proc. nº 474/19.6T9ETR-A.P1, Des. Luís Coimbra, também não publicado.
[4] Proferido no Proc. nº 139/20.6T9VNG-A.P1, Des. Pedro Pato, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Proferido no Proc. nº 3598/18.3T9VCT.G1, Des. Armando Azevedo, disponível in www.dgsi.pt
[6] Proferido no Proc. nº 1269/13.3T3AVR-A.P1, Des. Vitor Morgado, disponível in www.dgsi.pt.
[7] In Regulamento das Custas Processuais, Anotado e Comentado, Almedina, 2009, págs. 147-148.
[8] In "O objecto da sentença e o caso julgado material", BMJ nº 325, pág. 49 e segs.
[9] In “Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol. pág. 276.
[10] Proferido no Proc. nº 00A3277, disponível in www.dgsi.pt