PENA DE PRISÃO
PERDÃO
REGIME ESPECIAL
REVOGAÇÃO DE PERDÃO
REMANESCENTE DA PENA
CUMPRIMENTO DO REMANESCENTE
Sumário

I - A Lei n.º 9/2020, de 10 de abril (Lei do Perdão) só é aplicável a penas de prisão de execução efectiva, cujo objectivo principal foi fazer face à situação de emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19, como medida de excepção que é, seria injustificável que aqueles que dela beneficiaram, saindo do contexto prisional, ao incumprirem a condição resolutiva, não ficassem de novo submetidos ao regime de execução da pena que de início lhes fora imposta.
II - O regime de permanência em habitação de determinada pena de prisão, prevista e decretada ab initio, nos termos do artigo 43º, do C.Penal, constitui uma realidade diferente daquela em que, no âmbito do cumprimento de pena em reclusão, foi concedido ao condenado o perdão ao abrigo da Lei n.º 9/2020, perdão este que foi revogado.
III - Neste caso, trata-se do remanescente de uma pena de prisão efectiva, parcialmente cumprida em reclusão, e a revogação do perdão apenas foi decretada após a verificação, ope judice, de uma atuação culposa do condenado, violadora dos deveres impostos pela concessão do perdão previsto naquela Lei, qual seja a prática de novo crime durante o período de um ano após a sua entrada em vigor.
IV - Não é da competência do tribunal de execução das penas a alteração da pena imposta pelo tribunal da condenação, que era a de prisão efectiva, com execução em curso até ao momento em que foi perdoado o remanescente, nem para equacionar a sua substituição.
V - Estando a decorrer já o cumprimento da pena de prisão, a única possibilidade de ocorrer alteração no modo de execução dessa pena, deixando de ser em meio prisional e passando a ser em permanência na habitação, é nos casos previstos no acima referido artigo 118º do CEP.
VI - É também por isso que o artigo 43º do C. Penal nada tem que ver com modificação no modo de cumprimento da pena de prisão, mas sim com uma pena de substituição da prisão efectiva. Se a intenção do legislador fosse a de o regime de permanência na habitação se aplicar ao caso de cumprimento de penas de prisão remanescente inferiores a 2 anos, seguramente o teria expressamente previsto em alínea a incluir no referido nº 1 do artigo 43º do C. Penal.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo nº 537/15.7TXPRT-K.P1
Relatora: Amélia Catarino

Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No processo Supletivo de revogação de Perdão (Lei 115/2009) nº 537/15.7TXPRT-K, do Tribunal de Execução de Penas do Porto, Juízo de execução das Penas do Porto, Juiz 1, foi proferida decisão, com data de 13 de dezembro de 2021, nos termos da qual foi decidido, no âmbito do preceituado no artigo 2.º, n.º 7, da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, revogar o perdão concedido ao condenado AA, o que determina o cumprimento por este da pena de prisão de 1 ano, 2 meses e 27 dias, abrangida pelo perdão, e aplicada no processo n.º 797/14.0GAVNG.

Inconformado o arguido veio interpor recurso, pugnando pelo seu provimento, com os fundamentos que constam da motivação, e formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“A - Da Impugnação da Matéria de Facto
I. O Recorrente entende que o cumprimento da pena de 1 ano, 2 meses e 27 dias de prisão efetiva em estabelecimento prisional é demasiado penalizante, quer para a sua vida pessoal e profissional, quer para o seu agregado familiar;
II. A pena de 1 ano, 2 meses e 27 dias de prisão ser cumprida em regime de permanência na habitação por meio de vigilância eletrónica cumpre as finalidades da pena e assegura, no caso em apreço, a tutela eficaz do bem jurídico a proteger;
III. O Recorrente encontra-se social, profissional e familiarmente integrado, trabalhando para fazer face às suas necessidades financeiras, mostrando-se uma pessoa humilde que sempre trabalhou para se sustentar;
IV. O Recorrente exerce a atividade profissional de porteiro na Empresa P..., Unipessoal, Lda., com sede em ..., auferindo o vencimento mínimo nacional;
V. O Recorrente reside com a sua companheira, desempregada, que tem dois filhos menores, bem como encontra-se obrigado ao pagamento de uma pensão de alimentos a um filho menor de uma relação anterior;
VI. O Recorrente é o único elemento ativo no seu agregado familiar;
VII. A inserção do Recorrente em ambiente prisional e consequente convívio com os demais condenados, bem como o facto de o mesmo se encontrar afastado da sua família, afigura-se como prejudicial para o aqui recorrente;
VIII. A permanência do Recorrente na sua habitação e consequente manutenção do seu posto de trabalho, bem como o apoio da sua companheira e familiares, facilitará a sua reinserção social;
IX. A circunstância de o Recorrente vir agora cumprir pena de prisão efetiva em estabelecimento prisional gerará graves consequências para o seu processo de ressocialização, na medida em que o Recorrente teria que demitir-se do seu emprego e, consequentemente, deixar de auferir qualquer quantia a título salarial;
X. A privação da liberdade do Recorrente trará imediatamente prejuízos irreparáveis na sua inserção social, nomeadamente porque a sua situação laboral ainda é precária e, como é de conhecimento geral, o mercado de trabalho atravessa uma crise que não facilitará a sua rápida inserção no ativo;
XI. Afigura-se como imprescindível para o Recorrente a manutenção do seu posto de trabalho, que encontrou após muita procura e com grande dificuldade;
XII. Se se verificar o cumprimento da aludida pena de prisão efetiva - 1 ano, 2 meses e 27 dias de enclausuramento -, o Recorrente não terá acesso ao subsídio de desemprego, visto que o contrato de trabalho terminará por sua denúncia;
XIII. O Recorrente deixará o seu agregado familiar sem quaisquer condições de sustento e ficando, assim, o Recorrente sem a possibilidade de, a curto prazo, tirar a carta de condução;
XIV. O cumprimento da pena de prisão efetiva do Recorrente em estabelecimento prisional atenta contra os direitos e sentimentos de Justiça do mesmo e dos seus familiares, amigos e conhecidos, causando verdadeiro alarme social e afetando a credibilidade da Justiça;
XV. Atenta a situação pandémica vivenciada atualmente, com tendente agravação, será preferencial ao aqui Recorrente a permanência na sua habitação, proporcionando-se uma maior prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19;
XVI. Estando em causa o bem jurídico – saúde – do aqui Recorrente, e atendendo à duração da medida concreta da pena aplicada ao aqui Recorrente, não se divisa em que medida é necessário que tal cumprimento seja efetuado no estabelecimento prisional.
B - Da Impugnação da Matéria de Direito
I. O artigo 43.º, n.º 1 do Código Penal preceitua que, verificados os pressupostos formais contidos nas alíneas a) a c), o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação só não deverá acontecer se tal modo de execução se mostrar desadequado e insuficiente para satisfazer as necessidades de prevenção;
II. Dispõe o artigo 42.º do Código Penal, no que diz respeito às finalidades visadas com a execução da pena de prisão, que “a execução de pena de prisão servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”;
III. É desiderato do Direito Penal que a modalidade de execução da pena de prisão seja o menos ofensiva possível dos direitos fundamentais do agente do crime, segundo um princípio de necessidade e de proporcionalidade que tem assento, desde logo, no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa;
IV. Atendendo-se aos direitos, liberdades e garantias do Recorrente, nomeadamente o direito à liberdade, que foi consagrado no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, e cuja privação, tão excecional deve ser, está constitucionalmente prevista nos n.ºs 2 e 3 e artigo 28.º do mesmo diploma legal;
V. O Recorrente reitera que não discorda do sentido da douta decisão proferida no que concerne à revogação do perdão concedido, porém o mesmo entende que deve a restrição da liberdade limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos;
VI. O Recorrente considera não haver qualquer impedimento legal que obste a que se aplique ao remanescente da pena perdoada o regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
Nestes termos e nos mais de direito, sempre com mui douto suprimento de V. Exa., deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, substituindo-se por outra, que decida de harmonia com as antecedentes conclusões, e bem assim, ser a pena de prisão efetiva de 1 ano, 2 meses e 27 dias substituída por outra que aplique o regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, sendo assim feita uma correta aplicação da lei.”

Admitido o recurso, o Ministério Público veio responder pugnando pelo não provimento do recurso, porquanto o cumprimento do remanescente perdoado e agora revogado tem de ser cumprido, como vinha sendo cumprida, em regime de reclusão em EP.

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pugnando sufragando sem mais considerandos a posição expressa pela Senhora Procuradora da República no TEP na sua resposta ao recurso do arguido, no sentido que o mesmo não merece provimento, devendo assim manter-se a decisão recorrida.
No âmbito do artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve qualquer resposta.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. Fundamentação
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objecto:

- Determinar se o cumprimento da pena resultante da revogação do perdão concedido ao condenado pode ser cumprido em regime de permanência na habitação por meio de vigilância eletrónica, por ser demasiado penalizante, para o condenado e para a família, o seu cumprimento em estabelecimento prisional, dado que este se encontra social, família, profissional e socialmente integrado.

II.1. A decisão recorrida
Importa apreciar tais questões e decidir, devendo considerar-se como pertinentes ao seu conhecimento, os factos considerados provados na decisão recorrida, que se transcreve:
“Processo Supletivo (Lei 115/2009)
Corre o presente processo supletivo em relação ao condenado AA, identificado nos autos, instaurado para efeitos de ponderação e de decisão sobre a revogação do aplicado perdão concedido pelo artigo 2.º da Lei n.º Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, estando atribuída a este tribunal a competência para o efeito, nos termos do n.º 8 daquele artigo.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da revogação do perdão.
O condenado, tendo sido notificado na pessoa do seu mandatário/defensor para, querendo, contraditar1 a posição do Ministério Público, respondeu em sentido oposto.
Cumpre decidir.
Resulta dos autos que:
- por despacho de 14.04.2020, no âmbito do preceituado nos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, foi(ram) declarada(s) perdoada(s) ao condenado acima identificado, com efeitos imediatos, a(s) pena(s) de prisão ainda não cumprida(s) no âmbito do(s) processo(s) n.º 797/14.0GAVNG;
- este perdão foi concedido sob a condição resolutiva, prevista no n.º 7 do citado artigo 2.º, de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da lei em causa, ou seja, até 11.04.2021, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acrescerá a pena perdoada, do que o condenado foi advertido;
- por decisão transitada em julgado em 08.07.2021, proferida no processo n.º 7/21.4PTPRT, foi aplicada ao condenado a pena de 5 meses de prisão efectiva, a cumprir em regime de permanência na habitação, pela autoria, em 07.01.2021, de um crime de doloso de condução de veículo sem habilitação legal.
Apreciando.
1 Esta concedida possibilidade de audição, cumprida junto do defensor do condenado, satisfaz a exigência constitucional do princípio do contraditório (artigo 32.º da CRP), sendo certo estar em causa apenas a avaliação de pressupostos de natureza jurídico-formal, os quais, a verificarem-se, conduzem à revogação automática do perdão aplicado, não havendo lugar a uma avaliação comportamental ou das condições de vida, actuais e passadas, do condenado, tudo isto tornando irrelevante a sua audição presencial, a qual nada iria acrescentar à análise dos pressupostos de Direito aludidos, não sendo legítimo admitir que o visado pudesse, validamente, propor pessoal e verbalmente uma qualquer interpretação normativa, possibilidade que recai apenas sobre os sujeitos processuais juridicamente habilitados para o efeito.
Da factualidade exposta resulta inequivocamente que operou a condição resolutiva prevista no artigo 2.º, n.º 7, da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, condição legitimamente contida na liberdade de conformação do legislador da medida de clemência instituída e de previsão da causa da sua revogação, a qual não se mostra desproporcionada à luz dos princípios constitucionais gerais e dos fins das penas, independentemente da natureza da pena aplicada em função da prática do novo crime doloso.
Ponto é que o novo crime tenha sido cometido dentro do prazo estabelecido e tenha dimensão dolosa, como sucede no caso em presença, realidades que fundamentam a intenção preventiva (factor de dissuasão de novos crimes intencionais) e a ideia de mérito do beneficiário subjacentes ao pensamento do legislador de clemência, sendo, portanto, apenas relevantes para este efeito crimes cometidos depois de ter sido publicada e entrado em vigor a lei em causa, pelo que, nestes termos, nunca estará em causa um caso de retroactividade da lei penal2.
Pelo exposto, com os fundamentos acima expostos, no âmbito do preceituado no artigo 2.º, n.º 7, da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, revogo o perdão concedido ao condenado acima identificado, o que determina o cumprimento por este da(s) parte(s) da(s) pena(s) de prisão abrangida(s) pelo perdão, concretamente, a(s) aplicada(s) no processo(s) n.º 797/14.0GAVNG (1 ano, 2 meses e 27 dias a cumprir).
Condeno o recluso no pagamento da taxa de justiça de 2 (duas) UC.
Notifique o Ministério Público, o recluso e o seu defensor/mandatário.
Após trânsito em julgado:
- comunique ao(s) processo(s) supra mencionado(s);
- comunique à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, ao estabelecimento prisional e à equipa de reinserção social;
- remeta boletim ao registo criminal;
- abra vista.
DN.

*
2 Sobre todas estas questões, cf. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 298/2005, in Diário da República n.º 144/2005, Série II, de 28.07.2005.
Porto, d.s.”

II. Do Recurso
Conforme se extrai das motivações do recurso, a questão que se coloca consiste, em última análise, em apurar se o regime previsto no nº 1 do artigo 43º do C. Penal se aplica ao cumprimento da pena de prisão remanescente após revogação do perdão concedido pelo artigo 2.º da Lei n.º Lei n.º 9/2020, de 10 de abril.
Nas motivações de recurso o recorrente pretende que a pena de prisão abrangida pelo perdão, ora revogado, e a pena de 5 meses de prisão efetiva a cumprir em regime de permanência na habitação, em que foi condenado no âmbito, o processo n.º 7/21.4PTPRT, sejam cumpridas ambas, em regime de permanência na habitação.
Evidencia que o cumprimento da pena de 1 ano, 2 meses e 27 dias de prisão efetiva em estabelecimento prisional é demasiado penalizante, quer para a sua vida pessoal e profissional, quer para o seu agregado familiar, e que tem um perfeitamente delineado projeto de vida futuro, sólido e bem estruturado. Exerce a atividade profissional de porteiro na Empresa P..., Unipessoal, Lda., com sede em ..., auferindo o vencimento mínimo nacional, reside com a sua companheira, desempregada, que tem dois filhos menores, bem como encontra-se obrigado ao pagamento de uma pensão de alimentos a um filho menor de uma relação anterior, sendo o único elemento ativo no seu agregado familiar.
Aduz que o cumprimento de pena efectiva, em estabelecimento prisional, retardará o seu o processo de ressocialização, já iniciado e que ao ser reintroduzido em ambiente prisional para cumprimento da pena de 1 ano, 2 meses e 27 dias de prisão, irá constituir um retrocesso no seu esforço de reintegração social. Acrescenta que, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, o enclausuramento poder-se-á revelar contraproducente, atento ao facto de a situação pandémica vivenciada atualmente, com tendente agravação, será preferencial ao aqui Recorrente a permanência na sua habitação, proporcionando-se uma maior prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
Pugna pela procedência do recurso revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que aplique ao remanescente da pena o regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios eletrónicos.
Importa desde já referir que os invocados efeitos da pandemia causada pelo Covid 19, foram valorados pelo legislador com a concessão de perdão de penas. Isto mesmo resulta do artigo 2º, nº1, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril segundo o qual “São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos”. Beneficio esse que foi concedido ao arguido tendo-lhe sido perdoada a pena de prisão não cumprida no âmbito do processo 797/14.0GAVNG, pena essa de prisão efectiva de 5 Anos e 8 Meses de prisão, cujo termo ocorreria a 22/06/2020. Se não aproveitou tal beneficio, só de si se pode queixar.
Recordamos que a Lei do Perdão só é aplicável a penas de prisão de execução efectiva, cujo objectivo principal foi fazer face à situação de emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19, e que ainda persiste, através da retirada do contexto prisional de reclusos que reunissem determinadas condições. Como medida de excepção que é, seria de injustificável que aqueles que dela beneficiaram, saindo do contexto prisional, ao incumprirem a condição resolutiva, não ficassem de novo submetidos ao regime de execução da pena que de início lhes fora imposta.
Carece de razão o recorrente quando pretende o cumprimento do remanescente da pena em regime de permanência em habitação, ou seja, da mesma forma que a pena aplicada pelo crime mais recente, no âmbito do processo n.º 7/21.4PTPRT, porquanto no caso, a lei não prevê o cumprimento do remanescente da 1ª pena, aplicada no âmbito do processo nº 797/14.0GAVNG, (pena essa de prisão efectiva de 5 Anos e 8 meses de prisão) em regime de permanência em habitação. Na verdade, tratava-se de pena superior a 2 anos, à qual nunca poderia ser aplicado o regime do artigo 43º, do CP.
Acresce que à data da prática dos factos (07.01.2021) que determinaram a sua condenação no âmbito do processo n.º 7/21.4PTPRT, o já teria (não fora o perdão), terminado o cumprimento da pena aplicada no processo nº 797/14.0GAVNG, mas não se mostrava decorrido o prazo de um ano referente à condição resolutiva, prevista no n.º 7 do artigo 2.º, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, ou seja, de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da lei em causa, ou seja, até 11.04.2021, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acrescerá a pena perdoada, facto do qual o condenado foi advertido. Apesar disso, praticou crime doloso em 07.01.2021, pelo qual foi condenado, por decisão transitada em julgado a 08.07.2021, ciente das obrigações inerentes à condenação anterior e da concessão do perdão, sob condição resolutiva, e das consequências da revogação do perdão e do remanescente da pena que ainda tinha para cumprir.
Cabe aqui referir que o regime de permanência em habitação de determinada pena de prisão, prevista e decretada ab initio, nos termos do artigo 43º, do C.Penal, constitui uma realidade diferente daquela em que, no âmbito do cumprimento de pena em reclusão, foi concedido ao condenado o perdão ao abrigo da Lei n.º 9/2020, perdão este que foi revogado. Neste caso, trata-se do remanescente de uma pena de prisão efectiva, parcialmente cumprida em reclusão, e a revogação do perdão apenas foi decretada após a verificação, ope judice, de uma atuação culposa do condenado, violadora dos deveres impostos pela concessão do perdão previsto naquela Lei, qual seja a prática de novo crime durante o período de um ano após a sua entrada em vigor.
A aplicação do regime de cumprimento de pena previsto no artigo 43º, do Cód. Penal, só tem aplicação e só se destina, como do seu próprio texto resulta, ao momento da condenação, e quando a pena de prisão aplicada na sentença for inferior a 2 anos, conforme aliás resulta do texto dos acórdãos citados pelo recorrente para sustentar a sua posição, e que não têm aplicação ao caso em apreço.
Conforme refere Paulo Albuquerque, Comentário ao Código Penal, em anotação ao artigo 44º do Cód. Penal, na redacção anterior à Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, “O regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão (ver expressamente neste sentido a exposição de motivos da proposta de lei nº 98/ X, que esteve na base da Lei nº 59/2002). Não se trata, pois, de um mero regime de cumprimento da pena de prisão, que possa ser aplicado em momento posterior ao da condenação”.
No mesmo sentido vai o acórdão do TRL de 02.07.2019, em que é relator António Latas, onde se sustenta que o regime de permanência em habitação “continua a configurar-se como pena de substituição detentiva ou em sentido impróprio, na medida em que, supondo a prévia determinação concreta da pena de prisão e sendo decidida na sentença condenatória, tal como as penas de substituição em sentido próprio, não substitui a pena de prisão por outra pena, antes substitui a forma paradigmática de execução da pena de prisão (em estabelecimento prisional) pelo seu cumprimento em meio não prisional, nutrindo-se, assim, na expressão de F. Dias, que passamos a parafrasear (ob. cit. p. 336), do mesmo húmus histórico e político-criminal das restantes penas de substituição: o da luta contra as penas (curtas) de prisão, pois é claro e indiscutível que os inconvenientes político-criminais graves que a estas penas se apontam – e que podem resumir-se no que se chama o efeito criminógeno da prisão - valem para a pena de prisão intramuros, mas já não para a prisão cumprida em regime de permanência na habitação.”
Ora, não é da competência do tribunal de execução das penas a alteração da pena imposta pelo tribunal da condenação, que era a de prisão efectiva, com execução em curso até ao momento em que foi perdoado o remanescente, nem para equacionar a sua substituição. Apenas lhe compete decidir a modificação da execução da pena de prisão da execução da pena de prisão de reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada, verificadas que estejam as condições previstas no artigo 118º, e 120º, do CEP, situação em que o TEP poderia alterar a execução da pena para a modalidade de regime de permanência na habitação, o que não é manifestamente o caso dos autos.
Concluindo, estando a decorrer já o cumprimento da pena de prisão, a única possibilidade de ocorrer alteração no modo de execução dessa pena, deixando de ser em meio prisional e passando a ser em permanência na habitação, é nos casos previstos no acima referido artigo 118º do CEP. É também por isso que o artigo 43º do C. Penal nada tem que ver com modificação no modo de cumprimento da pena de prisão, mas sim com uma pena de substituição da prisão efectiva.
Por conseguinte, só no caso de o condenado ter sido objecto de uma condenação em pena de prisão efectiva em medida não superior a dois anos é que se pode determinar logo na decisão condenatória que a mesma poderá ser executada no regime de permanência na habitação.
Se a intenção do legislador fosse a de que o regime de permanência na habitação se aplicasse ao caso de cumprimento de penas de prisão remanescente inferiores a 2 anos, seguramente o teria expressamente previsto em alínea a incluir no referido nº 1 do artigo 43º do C. Penal.
Face ao exposto, e concluindo, tendo o arguido sido condenado em pena de prisão efectiva de 5 anos e 8 meses de prisão, não tem aplicação o disposto no artigo 43º, nº 1, al. a), do Cód. Penal, independentemente de, à data do seu requerimento para aplicação do regime de permanência na habitação, lhe faltar cumprir um período de prisão inferior a dois anos, correspondente ao remanescente da pena que lhe havia sido perdoada, e que não pode ser substituído por qualquer uma das penas de substituição legalmente previstas.
Entendemos, por isso, que o juízo efetuado pelo Tribunal a quo no sentido de o remanescente desta pena de prisão ter de ser cumprida intramuros é válido e irrepreensível.
As consequências da verificação da condição resolutiva do perdão concedido pela Lei nº 9/2020, de 10.04, previstas no seu artigo 2º, nº 7, não oferecem qualquer dúvida, a pena aplicada à infracção superveniente acresce à pena perdoada, sendo ambas autónomas entre si, pois que se assim não fosse, a formulação legal especificaria outras consequências jurídicas.
Destarte, o recurso não merece provimento.
O cumprimento do remanescente da pena de prisão perdoada e agora revogado, tem de ser cumprido, como vinha sendo cumprido, em regime de reclusão em estabelecimento prisional e terá ainda de cumprir a pena de prisão, esta em regime de permanência na habitação e que motivou a revogação do perdão.

III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª secção criminal, em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo arguido/recorrente, cuja taxa se fixa em 3 UC´S

Porto, 04 de maio de 2022
Amélia Catarino
Maria Joana Grácio
Francisco Marcolino

(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94º, n.º 2, do CPP)