SUB-ROGAÇÃO
SEGURADORA
BANCO
Sumário

I– As seguradoras não podem recusar o pagamento do capital segurado com base em indícios não comprovados de declarações inexactas, sob pena de incorrerem em incumprimento do contrato e de poderem dar causa a danos não patrimoniais que terão de indemnizar (como no caso foi decidido).

II– Se um dos mutuários, depois da morte do outro (sinistro), continuar a pagar ao banco as prestações de amortização (incluindo juros, imposto de selo e outras despesas) do empréstimo garantido com o seguro, vai-se sub-rogando no direito do banco sobre a seguradora ao pagamento do capital segurado, pelo que pode pedir a condenação da seguradora a restituir-lhe os valores pagos ao banco.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo  identificados:



A 04/10/2019, A, por si e como legal representante do seu filho menor, intentou contra Seguradora, SA, a presente acção declarativa com processo comum, pedindo que o tribunal condene a ré:
- a liquidar directamente à CGD o valor em dívida actual relativamente ao contrato de mútuo identificado;
- a liquidar aos autores a diferença que resultar do valor do capital seguro na apólice referida e do valor em dívida no contrato de mútuo;
- a restituir aos autores os valores por estes liquidados, a título de amortização, juros, imposto de selo, e demais despesas, no âmbito do contrato de mútuo identificado, desde 22/05/2017 até à data em que a ré liquide os valores em dívida no referido contrato de mútuo;
- a restituir aos autores os prémios de seguro entretanto liquidados por estes desde 22/05/2017 e até à data em que liquide os valores em dívida no referido contrato de mútuo;
- a liquidar aos autores juros de mora à taxa legal, contados desde 22/05/2017;
- no pagamento aos autores de 10.000€ por danos não patrimoniais.

Invocam para tanto, em termos sintéticos, que: a autora e o seu marido adquiriram um imóvel, tendo celebrado um empréstimo bancário junto da CGD, onde se obrigaram também a subscrever um seguro de vida a fim de garantir o pagamento do capital em dívida em caso de morte ou invalidez permanente; assim, em caso de morte, o beneficiário é a CGD sendo o capital seguro, em dívida à data, cerca de 55.238,50€; o marido faleceu em 22/05/2017 e os autores são os seus únicos e universais herdeiros; o marido faleceu em consequência de lesões traumáticas crânio encefálicas e torácicas sofridas num acidente de trabalho; a autora participou o óbito à ré; nem na altura da subscrição, nem posteriormente, a ré explicou ou forneceu à autora ou ao marido as condições gerais, particulares ou especiais dos contratos de seguro, nem tão pouco forneceu o texto escrito das mesmas; não foi a autora nem o marido que preencheram a proposta de seguro nem o questionário anexo; até à data, a ré não explica à autora as razões da não assunção das responsabilidades emergentes do contrato; o marido era o único sustento da família, estando a autora desempregada e o filho com 12 anos anda na escola; os autores sofrem bastantes angústias e sofrimento, aguardando durante mais de dois anos por uma resposta da ré que lhe pode aliviar e muito os encargos familiares, resposta que nunca aconteceu.

A ré, citada, apresentou contestação, aceitando a subscrição do contrato de seguro e, excepcionando, que: os autores não têm legitimidade para intentar a presente acção, porquanto deveria ser o banco a reclamar da ré o capital em dívida; apesar de a autora ter disponibilizado alguma documentação a respeito do acidente de trabalho que veio a causar o falecimento do marido, nunca disponibilizou à ré a cópia integral da ficha clínica do médico de família e as cópias integrais das fichas clínicas dos médicos assistentes que tenham acompanhado o falecido em data anterior à celebração d contrato, ficando assim a ré impossibilitada de tomar uma decisão definitiva sobre o enquadramento do óbito na cobertura do contrato de seguro; perante a proposta de seguro apresentada e atento o questionário respondido pela pessoa segura, a ré concluiu pela aceitação do seguro sem qualquer agravamento e da pouco documentação clínica que teve acesso, o falecido apresentava, em data anterior à celebração do contrato de seguro, excesso de peso, indícios de patologia reumática, glicémia aumentada e ainda a ingestão de dois a três litros de cerveja por dia, tendo este omitido conscientemente da ré informações relevantes para a apreciação do risco. Ainda impugnou a restante matéria de facto alegada pelos autores, dizendo que: foram entregues as condições contratuais gerais, particulares e especiais, bem como as mesmas foram explicadas; a proposta de seguro e o questionário de saúde foram parcialmente preenchidos pelo mediador, mas na presença das pessoas seguras e com base nas informações que por estas foram fornecidas; conclui que deverão ser as excepções (dilatória e peremptória) julgadas procedentes e a ré ser absolvida parcialmente da instância / absolvida dos pedidos e a acção ser julgada totalmente improcedente, absolvendo-se a ré dos pedidos.

Em articulado de resposta, vieram os autores requerer a intervenção principal provocada da CGD e responder às excepções, dizendo que: foi a ré que recebeu a ficha clínica do centro de saúde e não deu conhecimento aos autores; é óbvia a falta de causalidade entre o sinistro / acidente de trabalho que vitimou a pessoa segura e as alegadas omissões ou inexactidões; na sequência de despacho, os autores apresentaram articulado de resposta às excepções invocadas pela ré, impugnando extensivamente a matéria alegada.
No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa, sem necessidade de chamar ao processo a CGD.
(neste relatório utilizou-se, quase na íntegra, o relatório da sentença recorrida)

Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença condenando a ré em:
1.–Em cumprimento do contrato de seguro, na liquidação perante a CGD de todas as quantias devidas com o empréstimo para aquisição de habitação desde o dia 18/01/2018, bem como no pagamento aos autores do remanescente do capital seguro, após liquidação da hipoteca e até ao limite de 55.238,50€, acrescido de juros moratórios, à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento.
2.–Na restituição dos valores das prestações de amortização do capital mutuado (incluindo juros, imposto de selo e demais despesas) e os prémios de seguro pagos pela autora desde 18/01/2018, acrescidos de juros moratórios à taxa legal de 4% até integral pagamento.
3.–No pagamento aos autores de 4000€ como indemnização do dano não patrimonial, absolvendo-se do demais peticionado.

A ré recorre desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1 e 2.–Atento o facto 23, resulta que após a participação do óbito, a ré teve acesso a elementos que indiciavam fidedignamente a existência de patologias relevantes e não declaradas aquando da celebração do contrato de seguro dos autos, que poderiam levar à anulação do mesmo por declarações inexactas, nos termos do preceituado no artigo 25 do RJCS.
3.–O que significa que a opção na altura adoptada pela ré de não liquidar o capital seguro estava fundamentada e era legítima, sem prejuízo de ulterior análise mais detalhada, caso se lograsse obter mais documentação clínica de suporte, o que não foi possível.
4 a 6.–Ou seja, este comportamento da ré não pode consubstanciar um comportamento ilícito e culposo, de modo a considerar-se que existiu incumprimento contratual com obrigação de indemnizar os autores por danos morais, ao contrário do que veio a ser considerado na sentença recorrida em violação do disposto nos artigos 496 e 798 do CC, que, por isso, deve ser revogada nessa parte.
7–Por outro lado, a ré não pode ser condenada a restituir os valores das prestações de amortização do capital mutuado (incluindo juros, imposto de selo e demais despesas), uma vez que não recebeu tais montantes, tendo apenas recebido os prémios de seguro, estes sim, susceptíveis de devolução.
8–Considerar de outro modo seria permitir que a instituição bancária mutuante recebesse duas vezes pelo mesmo crédito, uma por via do pagamento do capital em dívida à data do óbito e outra a título de prestações que, entretanto, têm vindo a ser liquidadas pela autora.
9–Numa clara situação de enriquecimento sem causa, em violação de quanto preceitua o disposto no artigo 473 e ss., neste sentido, vide, designadamente o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/02/2017.
10-11–Em respeito pelo preceituado nos artigos 405 e 406 do CC e atendendo ao que consta dos pontos 1.1. e 1.2. da cobertura principal “morte” constante das condições especiais do contrato de seguro celebrado, a condenação da ré tem de limitar-se, pois, ao pagamento à CGD do capital em dívida à data do óbito da pessoa segura e liquidação aos autores do remanescente do capital seguro, acrescida da obrigação de devolução dos prémios de seguro liquidados desde aquela data e juros de mora, cabendo depois à instituição bancária mutuante a devolução das quantias liquidadas pela autora desde a data do óbito da pessoa segura.

Os autores contra-alegaram, aceitando a posição da ré de que ela devia pagar o capital em dívida à data do óbito e com juros desde essa data, mas não as restantes pretensões da ré, e recorreram subordinadamente, para que a indemnização por danos não patrimoniais fosse aumentada para 10.000€, fazendo referência a inúmeros factos que não estão provados, mas sem impugnar a decisão da matéria de facto, pelo que não se transcrevem as respectivas conclusões.
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Questões que importa decidir: se a ré não devia ter sido condenada a pagar uma indemnização por danos não patrimoniais; se esta deve ser aumentada; se a data a que deve ser reportado o pagamento do capital e devolução de prémios deve ser antecipada para a data do sinistro e se a ré não devia ter sido condenada a restituir aos autores os valores das prestações de amortização do capital mutuado (incluindo juros, imposto de selo e demais despesas).
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Foram dados como provados os seguintes factos provados que importam para a decisão daquelas questões:
1)–Por escritura notarial de compra e venda de mútuo com hipoteca celebrado em 27/07/2000, a autora e o seu marido adquiriram uma fracção autónoma […]
2)–Para a compra da referida fracção, a autora e o marido celebraram um empréstimo bancário junto da CGD, onde se obrigaram também a subscrever um seguro de vida a fim de garantir o pagamento do capital em dívida em caso de morte ou invalidez permanente.
3)–O referido contrato de seguro exigido no âmbito do contrato de empréstimo bancário foi celebrado inicialmente com uma seguradora, tendo sido transferido para a ré em 16/04/2015.
4)–Entre a autora como tomadora e a ré foi celebrado um contrato de seguro vida, denominado Vida crédito habitação (2 cabeças), com duração de 30 anos, titulado pela apólice n.º 0, com início de vigência em 25/05/2015.
5)–Nos termos desse contrato foram indicadas como pessoas seguras a tomadora e o marido, sendo beneficiária irrevogável a CGD até ao valor máximo de 55.238,50€ e os herdeiros legais, em caso de morte, quanto ao remanescente.
6)–O contrato de seguro teve por base uma proposta com um questionário de saúde.
7)–A proposta de seguro contém, antes das assinaturas, o seguinte:

“DECLARAÇÕES E AUTORIZAÇÕES DO TOMADOR E DA(S) PESSOA(S) SEGURA(S):
Declaro que tomei conhecimento que estou obrigado a responder com exactidão e veracidade a todas as questões colocadas nesta proposta e a declarar todas as circunstâncias ou factos que conheça e que sejam significativos para a avaliação do risco proposto, mesmo que não tenham sido solicitados expressamente no questionário, devendo-o fazer no campo assinalado para o efeito ou em declaração anexa à proposta.
Declaro ter sido esclarecido que em caso de incumprimento doloso do dever de declarar o risco com exactidão e veracidade, o contrato de seguro é anulável pelo segurador mediante o envio de uma declaração no prazo de três meses a contar do conhecimento do incumprimento, ficando o segurador desobrigado de cobrir sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento em causa ou no decurso do referido prazo e mantendo o direito a fazer seu o prémio recebido, até ao termo do prazo de três meses ou até ao termo do contrato se o tomador ou o segurado tiverem agido com o propósito de obter uma vantagem.
Fui ainda esclarecido que em caso de incumprimento negligente do dever de declaração de risco, o Segurador pode, no prazo de três meses a contar do conhecimento: propor uma alteração ao contrato, que cessará os seus efeitos se o tomador nada disse ou rejeitar a proposta de alteração ou fazer cessar o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebraria o contrato para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente, havendo lugar a devolução do prémio pelo tempo contratual não decorrido. Ocorrendo um sinistro antes da cessação ou da alteração do contrato influenciado pelo facto omitido ou inexacto, o segurador só cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido ou não cobre o sinistro, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecimento do facto omitido ou declarado inexactamente, ficando apenas vinculado à devolução do prémio.
O tomador de seguro e a(s) pessoa(s) segura(s) declaram que as respostas contidas nestes questionários são verdadeiras, exactas e completas, que não foi ocultada qualquer informação que possa influir sobre a decisão que a companhia venha a tomar sobre o seguro proposto e autorizam-na a proceder à recolha de dados pessoais complementares, desobrigando ao segredo profissional, junto dos médicos, hospitais, clínicas, estabelecimentos de cura, organismos públicos, empresas especializadas e outras entidades, a darem informações ao médico consultor da Seguradora, SA, sobre a situação profissional e o estado de saúde da pessoa segura”.
8)–E termina com a assinatura das pessoas a segurar.
9)–Do referido questionário de saúde constam várias perguntas, às quais é necessário responder “sim” ou “não”, constando a resposta “não”, com excepção da pergunta respeitante ao médico de família e da pergunta respeitante à prática de actividade física, que o marido respondeu “Jogar à bola (filho)”.
10)–Foram indicados por ambas as pessoas seguras os elementos respeitantes ao peso, altura, pressão arterial e consumo de cerveja.
11)–À pergunta sobre se se sente doente ou prevê alguma situação da sua saúde que necessite de tratamento médico, internamento ou intervenção cirúrgica, o marido respondeu “não”.
12)–À pergunta sobre quantidade diária de cervejas consumidas, altura, peso e pressão arterial, o marido respondeu, respectivamente, 4, 1,75 m., 95 kg e max. 13 / min. 6.
13)–À pergunta sobre se toma medicamentos, o marido respondeu “não”.
14)–No campo do questionário em que é pedido para dar detalhes das respostas “sim”, especificando o tipo, a época, a duração, o tratamento, o resultado e eventuais recaídas, o marido nada respondeu.
15)–Perante a proposta de seguro apresentada e atento o questionário respondido pela pessoa segura, a ré concluiu pela aceitação do seguro sem necessidade de solicitação médica.
16)–Este contrato foi celebrado através de um mediador da ré.
17)–A cláusula 3 das condições especiais do contrato de seguro celebrado tem a seguinte redacção:
3.1–São considerados imprescindíveis à análise e pagamento da importância segura, os seguintes documentos:
i.-Certidão de nascimento ou bilhete de identidade da pessoa segura;
ii.-Documento comprovativo da identidade e da identificação fiscal dos beneficiários;
iii.-Certificado de óbito da pessoa segura;
iv.-Certidão do assento de óbito da pessoa segura;
v.-Relatório médico no qual se especifique a causa, antecedentes e circunstâncias em que a morte ocorreu;
vi.-Certidão de habilitação de herdeiros ou certidão do processo de inventário, se a este houver lugar e desde que determinante para a regularização do benefício.
3.2.–Sem prejuízo do disposto no número anterior, a companhia reserva-se o direito de solicitar outros documentos que, relacionados com o acontecimento susceptível de provocar o funcionamento das garantias contratuais, concorram para o seu completo esclarecimento.”
18)–Após a morte do marido, a autora participou o óbito à ré, tendo a mesma por carta de 09/06/2017 requerido o envio de variada documentação.
19)–A autora remeteu, em 11/12/2017, à ré a participação do acidente elaborada pela PSP, o relatório da autópsia e o certificado de óbito.
20)–A autora não disponibilizou à ré cópia integral da ficha clínica do médico de família e as cópias integrais das fichas clínicas dos médicos assistentes que tenham acompanhado o falecido em data anterior à celebração do contrato.
21)–As quais lhe foram solicitadas após a participação do óbito da pessoa segura.
22)–Já no início de 2019, a ré recebeu a documentação directamente da instituição de saúde.
23)–Da documentação clínica a que a ré teve acesso, resulta que o marido apresentava, em data anterior à celebração do contrato de seguro, excesso de peso, queixas osteoarticulares e ainda ingestão de dois a três litros de cerveja por dia.
24)–Não obstante o envio de toda a documentação já enviada, a ré em Fevereiro de 2019 vem ainda requerer o envio de mais documentação clínica do Instituto Português de Reumatologia.
25)–A autora tentou a obtenção de tal documentação sem sucesso, pelo que através de comunicação de 25/03/2019 foi interpelada a ré com vista a uma decisão final do sinistro.
26)–A autora contraiu matrimónio com H no dia 01/09/2002, ambos tiveram um filho, o autor, nascido em 30/04/2007.
27)–Os autores são os únicos e universais herdeiros do falecido.
28)–No dia 22/05/2017, pelas 10h15, o marido encontrava-se a efectuar obras de remodelação no interior de uma loja […].
29)–Na ocasião descrita em 28 a escada interior de acesso entre o piso térreo e o primeiro andar cedeu, caiu e atingiu o marido na cabeça.
30)–Em virtude da referida pancada, o marido sofreu lesões traumáticas crânio-encefálicas e torácicas que foram causa directa e necessária da sua morte imediata.
31)–O referido acidente foi considerado como acidente de trabalho, tendo corrido processo judicial no Tribunal da Comarca Lisboa Oeste, Juízo de Trabalho de Sintra.
32)–O corpo do marido foi submetido a autópsia, tendo-se confirmado que foram as lesões traumáticas crânio-encefálicas e torácicas sofridas no acidente de trabalho que causaram a sua morte.
33)–Os exames complementares de química e toxicologia forenses realizados no sangue revelaram-se negativos para todas as substâncias pesquisadas.
34)–A autora e o marido sempre liquidaram quer os prémios de seguro à ré como as prestações do mútuo em causa.
35)–O marido era o único sustento da família através da actividade de serralharia e construção civil.
36)–A autora estava desempregada e o filho anda na escola.
37)–A autora tem vindo a suportar prestações do empréstimo ao Banco com o apoio de familiares.
38)–Toda a incerteza e o arrastar no tempo, leva a um agravar do sofrimento provocado na autora e [n]o seu filho.
39)–Nos termos da cláusula 4.ª, ponto 4.2 das condições gerais do contrato de seguro: “As declarações inexactas ou incompletas que alterem a apreciação do risco, tornam o contrato nulo, sem que o tomador tenha direito a qualquer restituição de prémios, sem prejuízo do disposto no artigo 429 do Código Comercial”.
40)–A proposta de seguro e o questionário de saúde foram parcialmente preenchidos pelo mediador, mas na presença das pessoas seguras e com base nas informações fornecidas pelas pessoas seguras.
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A fundamentação da sentença, na parte que agora importa, foi, na parte que importa, a seguinte:
Para obstar ao cumprimento do contrato de seguro, a Ré seguradora invoca duas excepções: excepção de não cumprimento, por a Autora continuar sem instruir o processo com a documentação solicitada e excepção de anulabilidade do contrato de seguro, por estar perante uma situação de falsas declarações dolosas.

Cumpre apreciar.
1–Excepção de não cumprimento:
Invoca a seguradora que a autora nunca disponibilizou à ré a cópia integral da ficha clínica do médico de família e as cópias integrais das fichas clínicas dos médicos assistentes que tenham acompanhado o falecido em data anterior à celebração do contrato.
Ora, resulta dos autos que a autora entregou a participação do acidente elaborada pela PSP, o relatório da autópsia e o certificado de óbito (facto provado em 19).
A autora não disponibilizou à ré cópia integral da ficha clínica do médico de família e as cópias integrais das fichas clínicas dos médicos assistentes que tenham acompanhado o falecido em data anterior à celebração do contrato e as mesmas foram solicitadas pela ré (factos provados em 20 e 21). No entanto, conforme a cláusula 3 das condições especiais, esses elementos não são imprescindíveis, enquadrando assim esses documentos naqueles que a companhia de seguros tem o direito de solicitar (facto provado em 17).
No início de 2019, a seguradora recebeu a documentação directamente da instituição de saúde (facto provado em 22), ou seja, em data anterior à propositura da presente acção. Para além disso, não resulta provado que o falecido fosse, antes da celebração do contrato de seguro ou mesmo depois, acompanhado no Instituto Português de Reumatologia, não podendo onerar a autora a juntar documentação que se desconhece se é existente.
Deste modo, não pode ser julgada a excepção de não cumprimento procedente, porquanto a autora providenciou pela documentação que é considerada imprescindível, tendo a seguradora obtido a documentação directamente da instituição de saúde e desconhecendo-se se existe outra documentação não pode a autora ser onerada com essa junção.
2–Anulabilidade do contrato de seguro:
A seguradora invoca a excepção peremptória de anulabilidade do contrato, alegando que foram prestadas falsas declarações ao preencher o questionário que versava sobre o estado de saúde e antecedentes clínicos do marido.
Essa excepção é abrigada no disposto no artigo 429 do Código Comercial, norma revogada pelo artigo 6 do DL 72/2008, que entrou em vigor em 01/01/2009, sendo este diploma aplicável ao caso concreto (porquanto o contrato de seguro foi celebrado em 2015 e apesar de nas Condições Gerais se fazer apenas referência ao artigo 429 do Código Comercial).
A resolução dessa questão, que consubstancia uma excepção peremptória ao direito dos autores, passava assim por apurar se foram ou não produzidas declarações falsas conhecidas dos segurados sobre o seu estado de saúde e, em caso afirmativo, se isso teria objectivamente influído na análise do risco, fixação das condições contratuais e/ou se eram até idóneas a que a seguradora recusasse a adesão.

Parece oportuno transpor para o caso o expendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 10/2001, de 21/11: “sendo fundamental, no contrato de seguro, a confiança nas declarações emitidas pelos contraentes, para prevenir as eventuais tentativas de fraude, a lei sanciona com a invalidade os contratos em que tenha havido declarações inexactas, incompletas ou prestadas com reticências, com omissões por parte do tomador do seguro e que influam sobre a existência ou condições do contrato, sendo inócua a intenção do segurado. A avaliação do que sejam declarações inexactas, ou omissões relevantes, determinantes do regime de invalidade do negócio terá de ser feita caso a caso”.

Ou seja, tal como foi entendimento do ac. do STJ de 23/02/2012 (disponível em www.dgsi.pt), que secundou outros arestos do mesmo Tribunal, a verificação da anulabilidade pressupõe não apenas a prova das declarações omissas e/ou reticentes, mas também a sua relevância na outorga do contrato (as omissões susceptíveis de influir na outorga do contrato não se reconduzem necessariamente à existência de patologias graves), e o ónus de prova desse nexo de causalidade impende sobre quem pretende beneficiar da anulabilidade, que não dispensará naturalmente a análise e confronto das declarações inexactas e das questões colocadas no questionário apresentado pela seguradora ao aderente, e o recurso às regras da experiência.
Ora, não se provou que o marido tenha efectivamente prestado informações falsas. Mesmo que assim não se entendesse, a circunstância do teor das respostas ao questionário não ser conforme à realidade não significa que isso decorra da violação de qualquer dever por parte do marido, dada a natureza demasiado genérica das questões.
Assim, o marido não omitiu o seu peso no questionário, nem o seu consumo de cerveja (facto provado em 12), o que não impediu a ré seguradora de contratar nos termos em que o fez.
Quanto à patologia reumática e à glicémia aumentada, não resulta que tenha sido tais patologias diagnosticadas, porquanto apenas resulta a prova de queixas osteoarticulares (sem diagnóstico).
Mesmo que assim não se entendesse, não resulta provado que o marido soubesse da essencialidade e da importância de que deveria informar que mais de um ano antes da subscrição da proposta de seguro tinha tido queixas osteoarticulares e o resultado de uma análise de glicemia elevada.
Assim sendo, o quadro factual essencial alegado pela seguradora na sua contestação, como facto impeditivo da pretensão deduzida - referente ao real estado de saúde e às circunstâncias médicas e clínicas do segurado marido em sede de doenças existentes na data do contrato – não resultou provado, pelo que não tendo a seguradora logrado demonstrar o conjunto de factos e circunstâncias que, nos precisos termos alegados na sua contestação, justificariam a recusa na celebração do contrato de seguro, não pode ter-se por verificado o efeito impeditivo à validade do negócio, improcedendo a excepção invocada.
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Dito isto e face à validade do contrato de seguro, importa verificar quais as responsabilidades assumidas pela seguradora e que tem de honrar.
O primeiro ponto a salientar é que o contrato de seguro está associado a um mútuo celebrado entre a autora e o falecido, de um lado, e, do outro, a CGD, pelo qual a seguradora garante o pagamento do capital em dívida em caso de morte ou invalidez total e permanente dos mutuários/segurados.
A autora comunicou o falecimento do marido e, por consequência, a seguradora estava obrigada a pagar à CGD a quantia correspondente ao saldo devedor do empréstimo que esta concedeu à autora e marido.
Porque a seguradora não cumpriu essa sua obrigação, a autora mutuária continuou a proceder ao pagamento os valores das prestações de amortização do capital mutuado e os prémios de seguro, pelo que tem direito à restituição desses valores (no ac. do TRL de 24/05/2018 [844/16.1T8MTA.L1-2] considerou-se que, não tendo a seguradora pago ao banco, como estava obrigada, o valor do capital mutuado, ainda, em dívida, acabando o segurado por efectuar o pagamento para não correr o risco de ver resolvido o contrato de mutuo, este sub-rogou-se no direito do banco à realização da prestação nos termos a que a seguradora estava obrigada (artigo 592/1 do CC), podendo ser ela agora a exigi-lo da seguradora (artigo 593/1 do CC).
Resta referir que, nos termos dos artigos 102 e 104 do RJCS, a seguradora tinha que efectuar o pagamento no prazo de 30 dias após a “confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”, ou seja, a contar de 19/12/2017. Por isso, está em mora desde 18/01/2018.

B–Para além do cumprimento do contrato, pretendem os autores serem ressarcidos pelos danos provocados pela mora da ré no cumprimento do contrato, no valor de 10.000€.
Tendo-se concluído pela validade e vigência do contrato de seguro, ambas as partes estão vinculadas ao cumprimento das obrigações dele emergentes, sob pena de cometerem ilícito contratual.
A segurada autora continuou a cumprir a sua obrigação, pois paga as prestações mensais de amortização do empréstimo e o prémio do seguro.
Mas a ré não que ao recusar o pagamento ao beneficiário do seguro do capital do mútuo em dívida, incorreu em incumprimento.
O incumprimento contratual gera a obrigação de indemnizar os danos causados à parte adimplente e a questão que aqui se coloca consiste em saber se essa obrigação abarca os danos não patrimoniais ou danos morais.
Não é consensual a ideia de que o inadimplemento contratual pode gerar danos não patrimoniais e que estes sejam ressarcíveis.
Desde logo, pelas dúvidas e reservas que suscitou a admissão da existência de danos morais, dada a aparente contradição entre a natureza não patrimonial desses danos e a essência necessariamente patrimonial da obrigação de indemnizar.
Depois, porque do incumprimento contratual não poderiam resultar danos morais, que pressupõem uma ofensa anormal à personalidade.
Segundo Antunes Varela (Das obrigações em geral, vol. II, página 102), admitir a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade contratual seria introduzir “um factor de séria perturbação da certeza e segurança do comércio jurídico.
No entanto, actualmente, é pacífico que a indemnização por danos não patrimoniais não tem uma função ressarcitiva (própria da indemnização por danos patrimoniais). A sua função é, essencialmente, compensatória, ou seja, a finalidade primordial da reparação dos danos não patrimoniais é a de proporcionar ao lesado uma compensação ou benefício de ordem material que lhe permita obter um conforto que, de certo modo, atenue o mal sofrido (compensatio doloris).
Por isso, é hoje, claramente, prevalecente o entendimento de que, também a responsabilidade contratual pode dar lugar a indemnização por danos não patrimoniais.
Provou-se que, com o seu comportamento (de declinar qualquer responsabilidade decorrente do contrato de seguro que impôs à autora e filho), a seguradora causou à autora e ao seu filho um agravar do sofrimento.
Em face dos dados disponíveis, a autora tem honrado as suas obrigações, com o apoio de familiares, pagando a prestação de amortização do empréstimo e o prémio do seguro.
Em contraponto, a seguradora não cumpre as suas obrigações, o que causa natural sofrimento à autora, certamente por recear não ter capacidade para continuar a amortizar um empréstimo que já devia estar integralmente liquidado e vir a perder a sua casa de habitação.
É, sem dúvida, um dano com gravidade suficiente para merecer a tutela do direito e justificar uma indemnização.
Na determinação do quantum indemnizatório do dano não patrimonial, a lei aponta como directriz uma valoração casuística orientada por critérios de equidade (artigo 494 do Código Civil).
Mas a afirmação de que o montante da indemnização do dano não patrimonial é fixado equitativamente (artigo 496/4, 1.ª parte, do CC) não quer dizer livre arbítrio, inexistência de critérios a que o juiz, nessa tarefa delicada, deva atender.
É quase um lugar-comum dizer que na fixação da indemnização por danos não patrimoniais o tribunal deve respeitar as “regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida” e, por outro, os padrões usados – em casos similares – pelos tribunais superiores.
É o dano e a sua gravidade, revelada na amplitude e intensidade do sofrimento suportado pela vítima o parâmetro fundamental a considerar, pois é precisamente esse sofrimento que se pretende compensar através da indemnização.
É a ponderação dessas regras, sem olvidar a censura de que é merecedora a conduta da seguradora, que nos leva a considerar adequados os 4.000€ como indemnização do dano não patrimonial sofrido pela autora e seu filho.
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Da indemnização por danos não patrimoniais
A seguradora entende que não deve ser condenada a pagar uma indemnização por danos não patrimoniais, porque não actuou nem ilícita nem culposamente ao optar por não liquidar o capital seguro com base nos factos constantes do ponto 23 que considera indícios da existência de patologias relevantes e não declaradas aquando da celebração do contrato, sem prejuízo de ulterior análise mais detalhada, caso se lograsse obter mais documentação clínica de suporte, o que não foi possível.

Ora, a seguradora devia ter actuado exactamente ao contrário: devia ter feito as diligências que entendia necessárias e depois disso, face àquilo que considerava apenas indícios da actuação culposa do segurado na celebração do contrato (declarações inexactas), devia ter pago o capital seguro, por não ter conseguido prova dessa actuação, já que não havia dúvidas quando à ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e ocorrências (artigos 102 e 104 do RJCS), tal como dito, aqui por outras palavras para evitar repetições, pela sentença recorrida.

Nenhuma seguradora pode recusar o pagamento do capital segurado com base em indícios não comprovados de declarações inexactas do segurado. E não são declarações inexactas, nem sequer indícios delas, a falta de declaração: (i) de um estado físico (excesso de peso) que aliás era visível e decorria de elementos declarados (95kg para 1,75m), (ii) de simples queixas osteoarticulares e (iii) do exacto hábito de consumo de cerveja nos termos apurados mais tarde (que não se prova que fosse o mesmo à data da resposta ao questionário) e (iv) do resultado de uma análise de glicemia elevada (que a fundamentação de direito da sentença teve o cuidado de referir, embora não conste dos factos provados).

A opção de que fala a seguradora, por uma solução errada, não é causa de exclusão da responsabilidade da mesma pelo incumprimento do contrato, é antes a forma assumida pelo incumprimento do contrato, incumprimento que, para além de presumivelmente culposo (art. 799/1 do CC), é de facto culposo, por resultar de uma escolha consciente da seguradora pelo comportamento ilícito.

Veja-se, como exemplo, o caso paralelo de a seguradora não reconhecer logo a sua responsabilidade de fornecer um veículo em substituição do veículo sinistrado (art. 42/5 do DL 291/2007, de 21/08) a propósito do qual Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. I, Coimbra Editora, 2008, págs. 568/569, nota 1639, com referência ao art. 20-J do DL 522/85, de 31/12, lembra: “O que resulta das regras gerais sobre a indemnização é, porém, que o lesado tem direito à reconstituição natural logo após a privação do uso do veículo, não devendo entender-se que, quando a seguradora não reconheça logo a sua responsabilidade, mas esta venha posteriormente a apurar-se, fique prejudicado também o direito à compensação dos custos do aluguer de uma viatura pelo próprio lesado. Tal aluguer pelo lesado, em lugar do recurso a outros meios de transporte, não configura, só por si, um agravamento dos danos que conduza à exclusão da indemnização nos termos gerais do art. 570/1, ficando, aliás, a dever-se ao não reconhecimento imediato pela seguradora de uma responsabilidade que depois se veio a apurar.” (já citado no ac. do TRP de 21/01/2016, proc. 1618/14.0TBVFR.P1, relatado pelo relator do actual acórdão).
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Do montante da indemnização
A autora teve que propor esta acção para conseguir que a seguradora fosse condenada a cumprir aquilo a que se tinha obrigado. O sinistro ocorreu em Maio de 2017. Não receberá a indemnização antes de meados de 2022. Ou seja, vão decorrer 5 anos até que, finalmente, a autora receba da ré o que lhe é devido.
Trata-se do pagamento do capital necessário à amortização final do empréstimo contraído pela compra da casa onde os autores vivem. A autora não tinha condições para pagar a amortização mensal desse empréstimo (O marido era o único sustento da família através da sua actividade e a autora estava desempregada e o filho andava na escola - factos 35 e 36), pelo que tem vindo a suportar as prestações do empréstimo com o apoio de familiares.
É facilmente imaginável a extrema ansiedade da autora (com todos os necessários reflexos negativos que tal tem em vários níveis, de doença física e mental), durante 5 anos, perante a hipótese de a seguradora nunca pagar o valor necessário à amortização e, por isso, perante a hipótese de a autora perder a casa onde vive com o seu filho menor, por não ter possibilidade de a pagar.
Que tais danos devem ser indemnizados já o demonstrou a sentença recorrida e a seguradora, para além do argumento invocado acima, não invocou outro.
Quanto ao montante da indemnização há que ter em conta (i) os factos provados e não outros que os autores entendem que estão provados mas que não constam daqueles, que (ii) se trata de dois autores e que (iii) o período de sofrimento é de 5 anos, naturalmente superior na mãe, embora com inevitáveis reflexos no filho que, com 10 anos no início de tudo isto e agora já com 15 anos, não pode ter deixado de se aperceber da situação. Tendo em conta os montantes atribuídos no caso do TRL citado pela sentença recorrida (a outro propósito mas que também trata desta questão) e noutros similares deste mesmo colectivo (de 04/11/2021, proc. 839/20.0T8AGH.L1, de 11/03/2021, proc. 223/19.9T8VFC.L1), entende-se que, no caso, se justificam os 4000€ atribuídos pela sentença recorrida e não os 10.000€ pretendidos pelos autores, com base em muitos outros factos que não constam dos provados.
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Se a seguradora não deve restituir aos autores os pagamentos feitos pela autora ao banco
A seguradora reconhece que tinha que fazer o pagamento do capital seguro (parte para a CGD e parte para os herdeiros) na data do sinistro ou reportado à data do sinistro - nos termos dos pontos 1.1. e 1.2. da cobertura principal “morte” constante das condições especiais do contrato de seguro celebrado, “a companhia obriga-se a pagar o capital seguro, após o falecimento da pessoa segura”).
Mas a seguradora não cumpriu nem assumiu essa obrigação e por isso o contrato de mútuo não se extinguiu e a autora teve de ir fazendo o pagamento das amortizações do capital para não correr o risco de ficar sem a casa (quer por o contrato ser resolvido pela CGD por falta de cumprimento, quer por esta exigir o cumprimento antecipado na íntegra e a autora não ter condições para o pagar).
Ora, se, no final, apurados os factos, se pode dizer que a CGD não podia ter exigido da autora o pagamento das prestações de amortização por se ter verificado o sinistro, a verdade é que até lá, não se demonstra que a CGD soubesse sequer do sinistro ou que, sabendo dele, soubesse também que a seguradora não tinha razão para negar o pagamento do capital; pelo que não há nenhuma razão para censurar a CGD por ter aceitado o pagamento das prestações pela autora.
Pelo que o pagamento que a autora foi fazendo é apenas imputável ao comportamento da seguradora, que não cumpriu a obrigação do pagamento do capital à CGD, fazendo com que a autora continuasse a pagar as prestações de amortização e os respectivos juros remuneratórios (correspectivos da falta de disponibilidade, pela CGD, do dinheiro emprestado pelo período de tempo inerente) e imposto de selo.
Esse pagamento de prestações que afinal não deviam ter sido pagas, pois que esse crédito da CGD, com a verificação do sinistro, se tinha transformando num crédito de pagamento do capital contra a seguradora, torna-se então no pagamento parcial/mensal do capital pela autora em substituição da seguradora, perfeitamente justificado pelo interesse da autora em acautelar a perda da casa, pelo que se verifica a sub-rogação parcial da autora no crédito da CGD perante a seguradora (artigos 592/1 e 593/1 do CC).
Tendo a autora direito a esse crédito, por sub-rogação, não o está a pedir a título de enriquecimento sem causa.
A seguradora invoca um ac. do TRG de 16/02/2017, proc. 396/14.7T8PRT.G1, que diz, em síntese, que o contrato de mútuo se extingue, que o banco não tem direito a pedir as prestações de amortização, nem os respectivos juros remuneratórios e que, por isso, o banco está obrigado a restituir aos autores as prestações que estes fizeram e os juros remuneratórios que estes pagaram. Este acórdão está colocado perante uma relação entre o banco e o mutuário e está a reconhecer que o mutuário nada tinha que pagar. Está pois a dizer que o mutuário tem o direito à restituição dos valores pagos ao banco, salvaguardando assim a posição do mutuário. O acórdão não foi colocado perante a hipótese de ter que decidir a relação entre o segurado e a seguradora, ou seja, perante uma situação idêntica à dos autos, pelo que não decidiu que o segurado não tem direito a obter da seguradora o pagamento do que fez ao banco, nem trata da situação de sub-rogação, não negando que ela se possa verificar.
Perante uma situação similar à do acórdão do TRG, o STJ no acórdão de 09/03/2021, proc. 1197/16.3T8BRG.G1.S1, também salvaguarda o direito do mutuário perante o banco, mas reconhece que “não está em causa a extinção do mútuo como consequência da verificação do sinistro: o mútuo não se extingue, apenas passa a ser cumprido pela seguradora”, tal como reconhece que “com a verificação da eventualidade contratualmente prevista surge na esfera jurídica do banco/tomador um direito de crédito sobre o capital seguro que este, na qualidade de beneficiário, pode exercer perante a seguradora” (as passagens entre aspas constam dos pontos 5 e 9 da parte final do acórdão).
Sendo isto assim, esta posição, na versão do ac. do STJ, não põe em causa a construção feita acima (que segue a posição do ac. do TRL de 24/05/2018, proc. 844/16.1T8MTA.L1-2, seguido pela sentença recorrida, que foi relatado pelo relator do acórdão actual, posição aqui já com adaptações para ter em conta a construção daquele acórdão do STJ), da sub-rogação do segurado no direito de crédito do banco sobre a seguradora, assim se salvaguardando também a posição do segurado, na relação deste com a seguradora.
Note-se, por outro lado, que o direito dos segurados pedirem da seguradora a restituição das prestações que efectuaram ao banco é reconhecida comumente neste tipo de acções (assim, apenas por exemplo, e numa pesquisa aleatória, vejam-se os acórdãos do TRL de 21/10/2021, proc. 20595/15.3T8SNT.L1-6, e do STJ de 01/10/2019, proc. 3550/09.0TBVLG.P1.S1).
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O enriquecimento sem causa:
A seguradora também põe a questão noutros termos; diz que, devendo ela pagar ao banco o valor integral do capital em dívida à data do óbito, não lhe incumbe restituir aquilo que não recebeu, ou seja, as prestações liquidadas pela autora ao banco desde a ocorrência do sinistro; essa restituição incumbiria ao banco, sob pena de, o banco, receber suas vezes pelo mesmo contrato de mútuo, numa situação que se enquadra evidentemente no instituto do enriquecimento sem causa, previsto no artigo 473º e ss. Dito de outro modo, como o banco esteve a receber dos autores, se agora a seguradora pagar ao banco o capital em dívida em 22/05/2017, o banco vai receber duas vezes, pelo que teria que ser o banco a restituir aos autores o que eles pagaram e que assim ficaria em duplicação.

Quanto a isto diga-se:
Primeiro, a autora não está a exigir a restituição do enriquecimento à seguradora, mas sim a exercer o direito de crédito da CGD contra a seguradora, em que se sub-rogou nos termos descritos acima.
Segundo, o enriquecimento sem causa do banco não se verifica em consequência necessária da sentença recorrida: a seguradora pode facilmente evitá-lo: ao ir cumprir a condenação de que foi alvo perante o banco, ela poderá invocar a compensação com a obrigação do banco lhe pagar aquilo que recebeu da autora a título de amortizações de capital, só pagando a diferença. E então, perante o banco, terá oportunidade de discutir se o banco não tem direito aos juros remuneratórios que recebeu da autora e se, por isso, não lhos terá de restituir (apesar de a seguradora os ter pago à autora).
Terceiro, a seguradora não põe em causa a condenação em pagar ao banco, tanto que até sugere que a data a que o pagamento é reportado seja antecipada (de 18/01/2018 para 22/05/2017), o que não quer é restituir à autora o que esta pagou ao banco. Ora, já se viu, este direito da autora não pode ser recusado. Ou seja, a seguradora não recorre da condenação no pagamento que, se for feito sem invocar a compensação, pode dar origem ao enriquecimento sem causa, e por isso não poderia ser dele absolvida. O que não quer é restituir à autora o que esta pagou ao banco, mas, nesta parte, já se viu, a condenação sempre se teria de manter.
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Esclareça-se que:
Falou-se sempre na autora e não nos autores, porque foi a autora que pagou as amortizações com juros depois do sinistro. Mas não se pode mexer na condenação, que corresponde ao pedido, de restituição desses montantes aos autores. Pode parecer que, assim, o autor filho é beneficiado à custa da autora mãe, mas o tribunal estava obrigado a respeitar, como respeitou, o princípio do pedido (art. 609/1 do CPC).

A seguradora queria que a data constante da condenação dos pontos 1 e 2 fossem antecipadas para 22/05/2017, alteração com que os autores concordaram. Mas a alteração pretendida pela seguradora tinha a contrapartida da eliminação da primeira parte do ponto 2 da condenação. Não lhe sendo concedida a contrapartida, não pode ser alterada a primeira parte da condenação, pois que daria origem a que a seguradora ficasse em pior situação, com este acórdão, do que estava com a condenação da sentença recorrida apesar de só ela ter recorrido, o que iria contrariar a proibição do reformatio in peius (art. 635/5 do CPC). Como dizem Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 3.º 3.ª edição, 2022, pág. 70: “A decisão do tribunal de recurso não pode, pois, ser mais desfavorável ao recorrente que a decisão recorrida.” De qualquer modo, estando as partes de acordo, sempre poderão, no momento do cumprimento da obrigação, fazerem as correcções devidas.
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Pelo exposto, julga-se:
O recurso da ré improcedente, com custas do mesmo, na vertente de custas de parte, pela ré (é ela que o perde).
Sem custas quanto ao recurso dos autores porque são estes que o perdem mas beneficiam de dispensa do pagamento de custas.



Lisboa, 28/04/2022



Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas