AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
USUCAPIÃO
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

I – Visando o peticionado na ação e na reconvenção o reconhecimento/declaração de ter cada uma das partes adquirido por usucapião uma metade concreta, especificada, de um prédio rústico, sem incerteza quanto a tal aquisição ou litígio a respeito – antes resultando total sintonia de posições –, no objetivo comum de alcançar um documento (sentença) que permita registar a aquisição do direito de propriedade invocado no processo, tem de concluir-se pela inexistência de interesse em agir de autores e reconvintes, com a decorrente absolvição da instância, e não pela incompetência material do tribunal.
II – Com efeito, trata-se de pedido caraterístico das ações de simples apreciação positiva, que não prescindem de uma situação de incerteza objetiva quanto à existência do direito, a qual não se verifica no caso.
III – As partes podiam socorrer-se do processo de justificação previsto nos arts. 117.º-B a 117.º-O do Código de Registo Predial para obtenção de documento que servisse de base ao registo da aquisição do direito, pelo que tinham ao seu alcance um meio extrajudicial para obtenção do pretendido na ação, a qual se queda desnecessária.

Texto Integral


Processo n.º 82/21.1T8ALD.C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

     AA, residente na ...-... – ..., propôs a presente acção declarativa com processo comum contra BB e CC, residentes na Rua ... em ... – ..., pedindo:
a) Se reconhecesse que ela, autora, era dona e legitima possuidora do prédio identificado nos artigos 1.º e 4.º da petição;
b) Se reconhecesse que tal aquisição tinha como título a usucapião, pois era ela quem nos últimos mais de 25 anos o tinha possuído e feito o seu aproveitamento;
c) Se declarasse a nulidade quer da descrição quer da inscrição predial e matricial relativa ao prédio inscrito na matriz sob o artigo ...53.º e na Conservatória do Registo Predial sob o número ...19, com fundamento na sua inexactidão quanto ao objecto e sujeitos e consequentemente ser ordenado o seu cancelamento.

Para o efeito alegou em síntese:
· Que, primeiro, por partilha verbal, no ano de 1995, por óbito da sua mãe, formalizada após o óbito do pai dela, autora e da ré, que também usava AA e marido DD partilha formalizada por escritura pública foi-lhe adjudicada metade indivisa de um prédio rústico inscrito em seu nome, na proporção de 1/2 na matriz predial rústica da união de freguesias ... e ..., sob o art.º ...53, omisso em seu nome na C.R.P ... mas aí inscrito sob o nº- Doc.s 1 e 2 que se juntam e dão por integralmente reproduzidos;
· Que logo no ano de 1995, depois do óbito da mãe dela, autora, foi celebrado acordo de partilha entre todos os filhos e a autora e a ré sua irmã que adquiriram o prédio em causa em compropriedade na proporção de metade, procederam à partilha e delimitação física das respectivas metades, que passou a ter no que diz respeito à metade da autora a configuração constante do levantamento topográfico junto sob os documentos números 4 e 5;
· Que desde 1995 possui a referida metade, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que tal metade lhe pertence, pelo que adquiriu tal metade por usucapião;
· Que a descrição matricial do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...53... e a descrição registal e a sua inscrição enfermam de omissões ou inexactidões de que resulta a incerteza acerca dos sujeitos ou do objecto da relação jurídica a que o facto registado se refere.

Citados, os réus contestaram e deduziram reconvenção.

Em matéria de contestação aceitaram como exactos os factos articulados sob os artigos 1º a 11º da Petição Inicial.

Em reconvenção pediram:
a) Se reconhecesse que eram donos e legítimos possuidores do prédio identificado nos artigos 2.º e 6.º da contestação;
b) Se reconhecesse que tal aquisição tinha como título a usucapião, pois eram eles quem nos últimos mais de 25 anos o tinham possuído e feito o seu aproveitamento, dos seus frutos;
c) Se declarasse a nulidade quer da descrição quer da inscrição predial e matricial relativa ao prédio inscrito na matriz sob o artigo ...53.º e na Conservatória do Registo Predial sob o número ...19, com fundamento na sua inexactidão quanto ao objecto e sujeitos e consequentemente ser ordenado o seu cancelamento.

Para o efeito invocaram, em síntese, a divisão material do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...53.º, nos termos que já haviam sido alegados pela autora, alegaram que a metade de tal prédio que lhe foi destinada tinha a configuração, área e limites constante do levantamento topográfico que juntaram como documento n.ºs 4 e que, desde então, tinham possuído tal metade à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e de forma respeitada por todos, de forma ininterrupta, na convicção de não lesarem direitos de ninguém e na convicção de que actuavam sobre coisa própria, pelo que a adquiriram por usucapião.

Findos os articulados, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo ordenou a notificação das partes para se pronunciarem sobre a eventual verificação das excepções dilatórias de incompetência material e falta de interesse em agir, que podiam levar à absolvição da instância dos réus e da instância reconvencional da autora.

As partes pronunciaram-se no sentido de que não se verificavam as excepções dilatórias indicadas pelo Meritíssimo juiz a quo.

De seguida o tribunal a quo proferiu as seguintes decisões:
1. Admitiu a reconvenção;
2. Julgou o tribunal materialmente incompetente para conhecer da acção e da reconvenção e, em consequência, absolveu os réus da instância e a autora/reconvinda da instância reconvencional.

A autora e os réus não se conformaram com a decisão que julgou o tribunal materialmente incompetente e interpuseram cada um deles recurso de apelação.

Os réus – que interpuseram em primeiro lugar o recurso – pediram se revogasse e se substituísse a decisão por acórdão que declarasse a competência do tribunal a quo em razão da matéria para apreciar os pedidos dos recorrentes.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. De acordo com a douta sentença recorrida determinou-se a incompetência absoluta do Tribunal, com todos os efeitos legais advenientes, na medida em que seria competente para a decisão a conservatória do registo predial
2. Para tal entendeu o douto tribunal a quo, sumariamente, que não existia qualquer litígio entre as partes e que aquilo que os recorrentes pretendiam com a reconvenção era obter a justificação que lhes permita a inscrição no registo do direito de propriedade sobre a alegada parcela de terreno autonomizada a seu favor.
3. Não obstante, discordam de tal desiderato os aqui recorrentes, uma vez que foi peticionado o reconhecimento do direito de propriedade sobre a referida parcela de terreno e, como causa de pedir, foi invocada a identificação dos prédios, os factos que consubstanciam a posse que vem sido exercida desde 1995.
4. As normas referentes ao processo de justificação notarial, constantes dos artigos 116º e segs do Cód. Reg. Predial, regulam um processo jurídico simplificado para estabelecimento de trato sucessivo no registo predial, que visa suprir a falta de documento que comprove o direito real sobre o imóvel (Ac. STJ de 18/06/2019 in www.dgsi.pt), sendo certo que tal processo de justificação implica a concordância de todos os interessados, sob pena da contraposição de interesses vir a ser remetida para os meios judiciais (cfr. Art. 117º-H nº 2 do Cód. Reg. Predial).
5. Assim para decretar a competência da Conservatória do Registo Predial para o caso dos autos, e em consequência a incompetência material do tribunal a quo, teria de ter se verificado a concordância das partes par o processo de justificação notarial.
6. Ora nada resulta neste sentido nos autos (peças processuais) sendo certo que a falta de contestação a reconvenção em nada releva neste sentido.
7. O tribunal a quo com os elementos existentes no processo não poderia ter concluído pela incompetência material do tribunal e competência da conservatória do registo predial.
8. A competência em razão da matéria deve ser aferida pelo pedido formulado na petição inicial/reconvenção em articulação com a causa de pedir, e não pela posterior postura das partes, seja ela activa ou passiva, cabe então uma acção comum.
9. Caso o Tribunal a quo verificasse uma insuficiência nos articulados, deve convidar as partes a suprir o referido vício mediante o aperfeiçoamento da exposição ou concretização da matéria de facto já alegada. O que o Tribunal a quo não fez, mas no entanto, julgou- se incompetente em razão da matéria sem sequer ter aferido se havia ou não concordância das partes para a justificação notarial, condição essencial para remeter para a Conservatória do Registo Predial.
10. Pelo que o tribunal a quo não poderia afirmar como afirmou a falta de interesse em agir e a incompetência material deste tribunal, uma vez que nem sequer tinha elementos suficientes para tirar essa conclusão, faltando lhe a verificação do pressuposto da “concordância dos interessados” para tal instituto.
11. Sendo certo, que em virtude do direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo direito corresponder a acção adequada a fazê- lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, segue-se que a competência material do tribunal para o reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância de os recorrentes terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no título VI do código do Registo Predial ( artigos 116º e segs), para efeitos de registo (Ac Relação de Coimbra de 7/9/2010 in www.dgsi.pt).
12. Por isso é da competência material dos tribunais, e não da Conservatória do Registo Predial, uma acção em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinado imóvel, adquirido por usucapião (Ac Relação de Coimbra de 7/9/2010 in www.dgsi,pt).
13. Assim, atenta a factualidade alegada na reconvenção será competente para o julgamento da presente causa o tribunal a quo e não a conservatória do Registo Predial.
14. A decisão que julga competente para o julgamento da presente causa a Conservatória do Registo predial, resulta, não só atentos os factos ora em causa, uma violação do disposto no artigo 202º da CRP, por ingerência indevida na função jurisdicional atribuída aos tribunais, como também uma incorrecta interpretação do disposto nos artigos 96, 97º nº 1, 99º nº 1, 576 nº 2 e 577, al. a) e ainda 590º nº 2 al. b), todos de CPC.

A autora pediu se revogasse a sentença e se ordenasse o prosseguimento dos autos.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Numa acção em que um prédio “mãe” se encontra descrito e inscrito em nome dos actuais titulares ou exista título suficiente para tal, tendo o mesmo sido fisicamente dividido e possuído pelo tempo e condições necessárias para usucapir, ou seja adquirir originariamente direito diferente sobre objecto diferente e não estando tal direito levado a registo, tendo em conta a presunção legal derivada do Art.º 7º, existirá sempre interesse em agir por parte de qualquer dos usucapientes, para fazer valer este novo direito contra o anterior, pois existe litígio ou conflito de direitos, que acarretam conflitos de dominialidade e consequente interesse em demandar, não se verificando pois tal excepção e portanto obstáculo ao conhecimento do mérito da acção. Aliás o simples reconhecimento de que existe um conflito que afinal deve ser resolvido por outra instância não jurisdicional, revela a existência de um conflito e como tal um direito à acção, já que a lei não determina competência exclusiva do Conservador em tal matéria, mas sim alternativa e nenhuma lei conhecida retirou tal matéria da alçada dos tribunais judiciais;
2. Existindo esse conflito fica desde logo afastada, legalmente, a possibilidade de recurso ao mecanismo da justificação notarial de competência das Conservatórias/Notário que pressupõe sempre essa mesma ausência de conflito e portanto, uma mera “formalidade” de legalização registal, o que não é claramente o caso nos Autos;
3. Até porque o Conservador não terá nem tem competência para apreciar a questão da nulidade actual e anterior anulabilidade em causa por o prédio ter área inferior á unidade de cultura, que somente pode ser derrogada pela aquisição originária e que, por isso terá de ser judicialmente declarada (cfr. Portaria 19/2019 de 15-01 e Artºs 1376º e ss do C. Civil);
4. Acresce que o Conservador também não pode suprir a impossibilidade de inscrição matricial dos “novos prédios” com eliminação do anterior, prévia a qualquer eventual justificação notarial, o que inviabiliza e impossibilita a referida justificação notarial, impossibilidade que somente por ser suprida por decisão judicial, cfr. Artº 117.º-A, nº 1 do C. R. Pred;
5. Tanto mais, que a competência para apreciar a matéria da aquisição originária por usucapião, não foi atribuída em exclusividade às Conservatórias, nem retirada da competência dos Tribunais Judiciais, não sendo pois uma competência exclusiva mas sim alternativa e neste caso do tribunal “ a quo” nos termos das disposições conjugadas dos Artº 64º e 70º do C.P.C conjugado com o disposto na Lei n.º 62/2013, de 26/08 e no Decreto Lei n.º 49/2014, de 27 de Março e até do decorrente do disposto nos Artºs 117º H e I do Cód. Reg. Predial;
6. Para além de que, o recurso ao mecanismo da justificação notarial limita-se ao seu efeito “registal” sendo lícito à A. pretender um efeito, mais amplo, com mais força e até executivo ou seja uma decisão judicial, não podendo nem devendo tal direito ser coarctado, sob pena de ilegalidade e até inconstitucionalidade nos termos conjugados dos Artºs 7º nº 1, 40º nº1 da Lei nº 62/2013 de 26/08 (LOSJ), nº 2º do C.P.C e 20º nº 1, 202º nº 1 e 2, 205º nº 2 e 211º nº 1 da CRP);
7. Assim, que o Tribunal “a quo” ao decidir pela falta de interesse em agir e incompetência, violou as supracitadas normas legais, constituindo decisão nula, por ilegal.

Não houve resposta aos recursos.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

Saber se o tribunal a quo incorreu em erro ao julgar-se materialmente incompetente para conhecer da acção e da reconvenção e ao absolver as partes da instância.


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Factos relevantes para a decisão:

Visto que está em questão uma decisão sobre a competência material do tribunal e que constitui entendimento uniforme de que a competência material afere-se em função do pedido e da causa de pedir, os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos pedidos deduzidos na acção e pelos factos que constituem a causa de pedir. 


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Passemos à resolução da questão suscitadas pelos recursos.

O tribunal a quo declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da acção e da reconvenção com base, em síntese, na seguinte fundamentação:
· O que justificava a propositura da acção (e a dedução de reconvenção) não era a incerteza do direito que fora invocado ou a existência de um conflito sobre o mesmo, mas apenas a necessidade de a autora e os réus obterem um título com vista ao registo do direito de propriedade sobre determinadas partes de um prédio;
· Que a presente demanda se cingia à pretensão meramente registal da autora e dos réus, sendo da competência exclusiva do Conservador do Registo do Predial em sede de processo de justificação previsto no indicado art.º 116.º do Código do Registo Predial.

A autora e os réus contestam a decisão mediante a alegação de uma pluralidade de argumentos tendentes a demonstrar que não era legalmente admissível o recurso ao processo de justificação de direitos previsto no Código de Registo Predial.

É de manter a decisão que absolveu os réus da instância e a autora da instância reconvencional. Porém, a razão da absolvição da instância não é a incompetência do tribunal em razão da matéria; a razão é a falta de interesse em agir da autora e dos réus.

Vejamos. Examinadas a petição e a contestação/reconvenção é de reconhecer razão à decisão recorrida quando afirmou que o que justificava o pedido da autora e o dos réus no sentido de lhes ser reconhecido que adquiriram por usucapião uma metade concreta, especificada, do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...53.º, não era nenhuma incerteza quanto a tal aquisição nem um conflito entre eles a propósito dela. Na verdade, nem a autora nem os réus fazem a mais leve menção nos seus articulados a qualquer conflito entre eles sobre a questão da aquisição do direito de propriedade por usucapião ou a uma situação de incerteza objectiva que justifique a propositura da acção e a dedução da reconvenção, visando o reconhecimento da aquisição do direito. Os sinais dados pelos articulados são de convergência total entre as partes. A atestar o que se acaba de afirmar está, em primeiro lugar, o facto de os demandados terem declarado expressamente que aceitavam o que a autora alegara na petição inicial e facto de esta última não ter respondido ao pedido reconvencional. Em segundo lugar, está o facto de serem idênticos os pedidos deduzidos na acção e na reconvenção sob as alíneas c).

Também é de reconhecer razão à decisão recorrida quando vê na propositura da acção e na dedução da reconvenção um meio de as partes alcançarem um documento – sentença – que lhes permita registar a aquisição do direito de propriedade invocado no processo.

E também é de reconhecer razão à decisão quando afirma que resulta do artigo 116.º do Código do Registo Predial que o reconhecimento de direitos para efeitos de registo predial é feito, em regra, mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto nos artigos 117.º-B a 117.º-O do mesmo diploma.

Sucede que as circunstâncias destacadas pela decisão sob recurso - não haver conflito entre as partes quanto ao reconhecimento do direito de propriedade sobre as parcelas de terreno em causa nos autos; pretenderem elas usar a sentença para registarem a aquisição do direito de propriedade sobre tais parcelas de terreno; a justificação de direitos para efeitos de registo predial ser feita, em regra mediante procedimentos extrajudiciais - não faziam com que o tribunal a quo fosse incompetente em razão da matéria para o conhecimento das pretensões deduzidas na acção e na reconvenção.

Do ponto de vista da competência, a questão que se coloca é a de saber se os tribunais judiciais – categoria em que se insere o tribunal onde foi proposta a acção (juízo de competência genérica ... do tribunal judicial da comarca ...) - têm competência para apreciar os pedidos formulados.

E a resposta a esta questão é afirmativa. Na verdade, resulta do n.º 1 do artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa, do n.º 1 do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e do artigo 64.º do CPC que os tribunais judiciais são competentes para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional e não há lei que atribua a outra ordem jurisdicional a preparação e o julgamento da presente acção.

Esta conclusão não é contrariada pela circunstância de a autora e os réus terem deduzido pedidos que podiam ser formulados no processo de justificação previsto no artigo 116.º do Código do Registo Predial. Na verdade, o que é da competência exclusiva do Conservador é o mencionado processo de justificação e não a acção declarativa comum que foi submetida à apreciação do tribunal a quo.

Acresce, contra a decisão recorrida que os argumentos em que ela assenta para declarar a incompetência do tribunal a quo respeitam ao pedido de reconhecimento da aquisição do direito de propriedade por usucapião, mas a acção e a reconvenção albergam no seu seio um outro pedido, concretamente o de declaração de nulidade dos seguintes actos: descrição matricial do prédio sob o artigo ...53.º; descrição desse mesmo prédio na Conservatória do Registo Predial sob o número ...19; e inscrição da aquisição em vigor. E em relação a este pedido, especialmente o de declaração de nulidade de actos do registo predial, a competência dos tribunais judiciais é inequívoca, como resulta do n.º 1 do artigo 17.º do Código de Registo Predial ao dispor que “a nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial transitada em julgado”.

O tribunal a quo é, assim, competente em razão matéria para o conhecimento de pedidos como os que foram deduzidos na acção e na reconvenção. É competente, mas a sua intervenção não se justifica, por falta de interesse em agir das partes, e isto quer se considere o efeito imediato que as partes querem alcançar com a acção [reconhecimento da aquisição do direito de propriedade], quer se atenda ao efeito indirecto por ela visado [obtenção de um documento para efeitos de registo].

Antes de expormos as razões deste nosso entendimento, importa dizer o seguinte sobre o interesse em agir. Em primeiro lugar, o interesse em agir consiste, para usarmos as palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, “… na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção” Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, página 170. Em segundo lugar, apesar de a lei não se referir expressamente a ele como pressuposto da acção, é assim que ele sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência, pelo que, quando ele falha, está-se perante uma excepção dilatória inominada, cuja consequência é o não conhecimento do mérito da causa e a absolvição da instância (alínea e) do n.º 1 do artigo 278.º e n.º 2 do artigo 576.º, ambos do CPC). Citam-se em abono deste entendimento e a título de exemplo, além dos autores acima citados, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, páginas 656 e 657, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, página 339. Na jurisprudência citam-se, a título de exemplo, o acórdão do STJ proferido em 6-10-2016, no processo n.º 1946/09.&TJLSB.L1, S1., o acórdão do STJ proferido em 9-05-2018, no processo n.º 673/13.4TTLSB.L1.S1., o acórdão do STJ proferido em 19-12-2018, no processo n.º 742/6.9T8PFR.P1.S1, o acórdão do STJ proferido em 8-04-2021, no processo n.º 219/19.0YHLSB.L1.S1., e o acórdão do STJ proferido em 8-03-2022, no processo n.º 115/2.9YHLSB.L1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.

Aferindo o interesse processual, em função do efeito directo e imediato que as partes querem obter com a acção, cumpre dizer o seguinte.

Com a acção as partes pretendem, em primeira linha, obter a declaração de que adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno. Trata-se de um pedido próprio, característico das acções de simples apreciação positiva (alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do CPC).

A situação que torna necessário o recurso a esta espécie de acções, é a incerteza objectiva quanto à existência do direito. Deste modo, a autora e os réus tinham necessidade de recorrer ao tribunal para verem satisfeita a sua pretensão se alegassem factos de onde resultasse uma situação de incerteza e conflito quanto à aquisição do direito, condição que não se verifica. Com efeito, como foi devidamente salientado na decisão sob recurso, as partes dão como assente a aquisição do direito e não há sinal do mais leve conflito entre elas a propósito de tal aquisição. Logo, não há nenhum conflito entre as partes, nem nenhuma situação de incerteza objectiva quanto à aquisição do direito que justifique o recurso à presente acção.

Vendo o interesse processual, em função do efeito indirecto pretendido pelas partes [obtenção de um documento (sentença) para servir de base ao registo de aquisição do direito de propriedade], a conclusão é a mesma, mas agora por outra razão.

Como foi devidamente explicitado na decisão sob recurso, as partes podiam socorrer-se do processo de justificação previsto nos artigos 117.º-B a 117.º-O do Código de Registo Predial para obtenção de documento que servisse de base ao registo da aquisição do direito. Tinham, pois, ao seu alcance um meio extrajudicial para obterem o que querem com a presente acção. A acção é, pois, desnecessária. Ora, socorrendo-nos das palavras de Miguel Teixeira de Sousa, “o interesse processual serve precisamente para evitar acções inúteis (ou não necessárias), como sucede sempre que o efeito que se pretende obter através da acção instaurada possa ser obtido, de forma mais célere e económica, através de um meio extrajudicial” [https://blogippc.blogspot.com/search?q=Interesse+em+agir].

Em suma, nem a autora nem o réu tem necessidade de recorrer aos meios judiciais para alcançarem os fins visados com a presente acção. Em consequência, é de manter a absolvição dos réus da instância e a absolvição da autora da instância reconvencional, embora com fundamento na falta de interesse em agir das partes. A favor desta solução citam-se, a título de exemplo, as seguintes decisões judiciais que, em situações semelhantes à dos autos, afirmaram a falta de interesse processual das partes: acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 27-05-2010, no processo n.º 2003/08.8TBBNV, o acórdão do mesmo tribunal proferido em 19-01-2017, no processo n.º 3583/16.0T8SNT, e o acórdão desta Relação (Coimbra), proferido em 19-10-2020 no processo n.º 245/20.7T8CTB.C1.  

Observe-se que esta solução não é posta em causa pelo facto de a acção e a reconvenção compreenderem ainda um pedido de declaração de nulidade (nulidade de inscrição matricial e nulidade de registo) e de, em relação a ele, não poder afirmar-se que as partes não têm interesse em agir. E não é posta em causa porque o pedido de declaração de nulidade está numa relação de dependência dos pedidos anteriores, pelo que o não conhecimento destes prejudica necessariamente a apreciação daquele.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, embora por razões diferentes das da decisão recorrida, mantém-se a decisão de absolver a autora e os réus da instância.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, condena-se os mesmos nas custas do recurso.

 Coimbra, 26 de Abril de 2022