CASAMENTO
DIVÓRCIO
RUPTURA DO CASAMENTO
Sumário

I - A reforma civilística de 2008, acentuou, decisivamente, o contrato de casamento como   um campo de auto-realização  e bem estar dos cônjuges, máxime na sua  dimensão afetiva e emocional, em detrimento, ou com menorização, da  sua consideração e defesa enquanto  célula estruturante  da organização social.
II - Tal traduziu-se na desconsideração da culpa como pressuposto da sua dissolução e,  até certo ponto e dentro de certos limites, num alívio na  exigência quanto à apreciação da gravidade dos pressupostos legais que podem acarretar tal dissolução.
III - Provado, nuclearmente, que os cônjuges, já com mais de 80 e 90 anos, deixaram de coabitar, com troca de fechaduras e recusa de entrega de chaves, durante quase um ano e até à morte do primeiro, não mais cooperaram ou se assistiram, antes passando a viver, ao menos a autora, com os filhos de cada um deles, e sem que a autora manifestasse qualquer vontade de reconciliação, tem de concluir-se ter sobrevindo rutura definitiva do casamento,  para o efeito da al. d) do artº 1781º.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA propôs contra BB a presente ação com processo especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge.

Pediu:

Seja decretado o divórcio entre a autora e o réu e declarado dissolvido o seu casamento.

Alegou:

Que os cônjuges se encontram separados desde 21 Julho de 2019, altura em que a autora pretendeu regressar a casa depois de um internamento iniciado a 28.06.2019, tendo sido impedida pelo réu de entrar em casa por ter trocado as fechaduras.

E  sendo que, desde então, nunca mais viveu em comunhão de leito, teto e mesa com o réu, não existindo qualquer convívio, entreajuda ou partilha entre ambos.

Em virtude da ocorrência do óbito da autora e do réu, foram habilitados a suceder-lhes na demanda, como sucessora da falecida autora, a sua filha CC, e como sucessores do falecido réu, os seus filhos DD, EE e FF.

Não foi apresentada contestação.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«…julgo totalmente procedente por provada a presente acção e, em consequência, decreto o divórcio entre a autora e o réu, com a consequente dissolução do casamento celebrado entre ambos no dia 2.12.1973 (assento de casamento nº 2600 do ano de 2014 da Conservatória do Registo Civil ...).».

3.

Inconformados recorreram os réus habilitados.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Com o devido respeito pela douta Sentença da 1ª instância aqui em crise, que é muito, mas, o certo é que, entende o ora Recorrente, que o Meritíssimo Juiz a quo não enuncia quais os concertos meios de prova em que se suportou para a sua formação, nem efectuou a análise crítica dos mesmos;

2. A fundamentação utilizada na decisão sobre a matéria de facto ora recorrida que, por isso, não constitui um exemplo feliz de fundamentação motivadora do julgado;

3. A sentença recorrida não faz indicação acerca do concreto teor dos depoimentos que erigiu como relevantes, quem disse o quê, de modo a escrutinar a razão de ciência de cada testemunha, ou seja, as circunstâncias em que lhes adveio o conhecimento directo dos factos que manifestaram na sua inquirição, nem quais os factos conheceram, em que momento conheceram esses factos, o que determinou esse conhecimento e, assim expostos e detalhados, aferir da força probatória dos depoimentos e da pertinência dos factos revelados para a decisão da causa;

4. A sentença recorrida limitou-se a fundamentar o julgamento da matéria de facto com base em afirmações genéricas e conclusivas, que não substanciou com pormenor e referência aos depoimentos prestados em sede de julgamento;

5. A apontada falta de fundamentação da sentença recorrida, a manter-se, compromete em absoluto o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contende com o acesso à Justiça e à tutela efectiva, consagrada como direito fundamental no artigo 20º da Constituição da República;

6. Pelo que deverá o Venerando Tribunal Conimbricense concluir pela omissão de fundamentação da decisão de facto e falta de exame crítico dos meios de prova e decidir pela anulação da sentença a quo por violação do artigo 615º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil. Quanto ao segmento decisório do douto despacho recorrido que tem por objecto a impugnação da matéria de facto:

7. O presente recurso de apelação tem por objecto, por um lado, a reapreciação de alguns aspectos da matéria de facto, considerada provada e não provada pelo Tribunal a quo, e por outro, a reformulação e reapreciação do direito aplicável;

8. Com o mais elevado respeito, o Recorrente não se pode conformar com a decisão proferida pelo Tribunal, porquanto aquele interpretou de forma manifestamente incorrecta e incoerente a prova produzida nos autos;

9. Na modesta opinião da ora Recorrente, foi incorrectamente julgado o ponto 9) da matéria de facto dada como provada, o que expressamente se impugna pelo presente recurso, pois está em desconformidade com a prova testemunhal produzida em julgamento e aquela que consta dos demais elementos dos autos;

10. No que concerne ao Ponto 9 da matéria de facto dada como provada resulta dos elementos de prova constantes dos autos (mormente, do teor dos depoimentos prestados pelos sucessores habilitados CC e EE), o Tribunal não poderia ter dado como provado que, nas circunstâncias de modo e lugar supra enunciados, não foi facultada qualquer chave à Autora tout court;

11. Assim, e em face dos identificados meios probatórios, a decisão que recaiu sobre o referido ponto 9 dos Factos Provados que ora se impugna, ser alterada e, em consequência, substituída por outra de onde passe a constar o seguinte: “9) No dia 21.07.2019, a autora pretendeu entrar na casa de morada da família e não conseguiu aceder ao interior da mesma, por terem sido trocadas as fechaduras, não se encontrando ninguém no interior da casa”;

12. Existe ainda, no entender do Apelante, uma deficiência por omissão na matéria de facto apurada que a douta decisão posta em crise nem sequer elencou;

13. A douta decisão recorrida omite factos necessários relevantes para a correcta decisão da causa e justa composição do litígio – factos que resultam da prova produzida nos autos e que o Tribunal ignorou;

14. O Tribunal a quo omitiu da factualidade dada como provada o motivo real que levou o Réu a mudar as fechaduras da casa de morada de família, falamos da sua suspeita quanto ao facto de a sua filha CC se ter apropriado de dinheiro depositado numa conta bancária de que era titular, bem como de vários objectos seus que se encontravam no interior da casa de morada de família;

15. Essa omissão fáctica resulta evidenciada, desde logo, do teor dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento pelos sucessores habilitados DD, FF, EE e pela própria CC;

16. Considerando o supra exposto, deverá ser proferida a alteração da decisão da matéria de facto, nos precisos termos da presente alegação e aditado o seguinte facto que se nos afigura importante para a boa decisão da causa: 15) O Autor apresentou uma queixa-crime contra a sua filha CC em virtude de alegados furtos de bens do interior da casa de morada de família, bem como de quantias em dinheiro;

17. Ainda quanto à prova gravada, da análise ponderada dos depoimentos prestados pelas três sucessoras habilitadas (DD, FF e CC) o Tribunal Recorrido omitiu factualidade relevante para a decisão da causa, em particular, a motivação do Autor relativamente à mudança das fechaduras da casa de morada de família que o Tribunal a quo qualificou como sendo um caso de “esbulho violento”;

18. A decisão em crise deveria conter o circunstancialismo fáctico relativo à motivação do ora Apelante para a mudança das fechaduras da casa de morada de família em consequência da suspeita dos alegados furtos de objectos do interior da mesma de quantias em dinheiro que teriam sido cometidos pela sua filha CC, e não propriamente por motivo de qualquer desentendimento, desavença ou discórdia com a Autora;

19. Como é bom de ver, esta factualidade assume especial relevância, sobretudo, para a resposta negativa ao tema da prova que foi enunciado pelo Tribunal Recorrido quanto à questão de saber se devido a desentendimentos do casal, desde 21.07.2019 a autora esteve impedida pelo réu de aceder à casa de morada da família;

20. Esta ampliação da matéria de facto será decisiva, desde logo, para a revogação da da sentença por erro de julgamento quanto à verificação da situação de ruptura definitiva da vida comum do casal;

21. Deverá ser proferida a alteração da decisão da matéria de facto, nos precisos termos da presente alegação e aditado o seguinte facto que se nos afigura importante para a boa decisão da causa: 16) Com a troca de fechaduras mencionada em 8) o Autor pretendeu apenas impedir a entrada da sua filha CC na casa de morada de família em virtude dos alegados furtos por si cometidos;

22. A par disso, existe material probatório bastante nos autos recorridos que permite a ampliação da matéria de facto relativamente ao desconhecimento pelo Réu do paradeiro da sua mulher (Autora);

23. Esta matéria factual é susceptível de determinar decisão diversa da recorrida, desde logo, no que toca ao contexto em que Apelante e Apelada deixaram de coabitar e conviver entre si e, consequentemente para prova da inexistência de uma situação de ruptura da vida em comum entre ambos;

24. Considerando o supra exposto, deverá ser proferida a alteração da decisão da matéria de facto, nos precisos termos da presente alegação e aditada o seguinte facto que se nos afigura importante para a boa decisão da causa: “17) Desde o referido de 10) a 13), o Autor tentou apurar o paradeiro da sua Mulher;”;

25. Outro ponto da matéria de facto que o Tribunal Recorrido omitiu na decisão em crise e que assume especial relevância para a boa decisão da causa, contende com o facto de, a partir de 15 de Janeiro de 2020, o ora Apelante ter sido institucionalizado no Lar da Santa Casa da Misericórdia da ..., em razão da sua dependência, por necessitar do auxílio de terceiros para as suas actividades quotidianas, como se alcança do teor dos depoimentos prestados pelas sucessoras habilitadas DD e FF;

26. Considerando o supra exposto, deverá ser proferida a alteração da decisão da matéria de facto, nos precisos termos da presente alegação e aditada o seguinte facto que se nos afigura importante para a boa decisão da causa: “18) A partir de 15 de Janeiro de 2020, o ora Apelante ter sido institucionalizado no Lar da Santa Casa da Misericórdia da ..., em razão da sua dependência carecendo do auxílio de terceiros.”

27. O Tribunal da Primeira Instância omitiu na factualidade dada como provada a circunstância de o Apelante ter padecido de várias incapacidades físicas e mentais, na fase final da sua vida;

28. Deverá o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra ordenar alteração da decisão da matéria de facto, nos precisos termos da presente alegação e aditado o seguinte facto que se nos afigura importante para a boa decisão da causa: “19) O Réu padeceu de várias incapacidades físicas e mentais, na fase final da sua vida.”;

29. O Tribunal a quo omitiu da sentença posta em crise factualidade atinente à condição de saúde da Autora (ora Apelada) o que reveste especial importância para a boa decisão da causa, em particular, no tocante à decisão da verificação de eventual situação de ruptura da vida em comum do falecido casal;

30. Deverá o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, conjugando o depoimento prestado pela sucessora habilitada CC, bem como da declaração confessória inserta no teor do requerimento datado de 24.09.2020, apresentado pela pena da sua Ilustre Mandatária da Habilitada CC – aliás, munida de procuração de 20.05.2020 com poderes especiais para confessar (junta com o Requerimento datado de 15/06/2020 sob a Ref.ª CITIUS n.º 4158489), ordenar alteração da decisão da matéria de facto, nos precisos termos da presente alegação e aditado o seguinte facto que se nos afigura importante para a boa decisão da causa: “20) Desde Novembro de 2019, a Autora padeceu de vários problemas de saúde que, nos últimos meses de vida que a incapacitavam de andar, falar, dependendo assim de terceiros para se alimentar, vestir, cuidar da sua higiene pessoal, ou seja, para todos os actos quotidianos era auxiliada por terceiros.”

31. No entender do Apelante existe outro ponto da decisão fáctica que o Tribunal a quo omitiu e que influi de forma decisiva na decisão da causa, em especial, na demonstração da não verificação de factos que sirvam de fundamento para o decretamento do divórcio;

32. O Tribunal Recorrido omitiu a decisão de facto que, em 19 de Julho de 2020 a Apelada outorgou uma escritura de testamento legando a favor do Réu, em substituição da sua legítima;

33. Esta factualidade assume especial relevância para a boa decisão da causa, desde logo, para a inevitável conclusão mesmo após os acontecimentos ocorridos em Julho de 2019 e que, no entender do Tribunal a quo são demonstrativos da existência de uma situação de ruptura conjugal, a Apelada acabou por efectuar uma estipulação a favor do seu Marido, por testamento;

34. A valoração da escritura do testamento junta a fls. dos autos recorridos para a decisão de facto permitiria Tribunal a quo extrair a significação que do mesmo se pode retirar, facilmente, concluindo que a mesma se traduz numa efectiva liberalidade em contexto marital, incompatível e por tal excludente de uma situação de ruptura conjugal;

35. É facto notório o “legado em substituição da legítima” se assume como uma prática comumente aceite no seio das famílias portuguesas que visa, normalmente, proteger o cônjuge sobrevivo de uma partilha;

36. Do próprio teor literal do referido testamento resulta evidente que a Apelada quis assegurar, na prática, a perpetuação até à morte do ora Apelante (seu Marido) dos benefícios e vantagens do instituto do usufruto sobre a totalidade dos bens da herança, quais sejam, derivados do gozo próprio e exclusivo, dos seus frutos civis e rendimentos;

37. Considerando o supra exposto, deverá ser proferida a alteração da decisão da matéria de facto, nos precisos termos da presente alegação e aditado o seguinte facto que se afigura essencial à boa decisão da causa: “20) No dia 19 de Julho de 2019, a Autora outorgou escritura de testamento por meio da qual legou ao Autor, em substituição da sua legítima, o usufruto sobre os bens da herança.”

38. Em face à matéria de facto dada por provada e atenta aquela que deve ser considerada provada no provimento deste recurso, na sua vertente que tem por objecto a impugnação da matéria de facto, torna-se patente que o Tribunal a quo errou, in casu, ao decretar o divórcio ao abrigo da alínea d) do artigo 1781.º do Código Civil;

39. A falta de coabitação e de assistência mútua entre Autora e Réu não ficou a dever-se a qualquer situação de ruptura definitiva da vida conjugal;

40. O Tribunal a quo errou ao desatender por completo que Autora e Réu apresentavam, à data dos factos sub judice, uma idade avançada (83 anos e 90 anos, respectivamente); que o ora Apelante foi institucionalizado no Lar da Santa Casa da Misericórdia da ..., em razão da sua dependência por carecer do auxílio de terceiros e que, na fase final da sua vida, padecia de várias incapacidades físicas e mentais; e que a Autora, na fase final da sua vida, padeceu de vários problemas de saúde que, nos últimos meses de vida que a incapacitavam de andar, falar, dependendo assim de terceiros para se alimentar, vestir, cuidar da sua higiene pessoal, ou seja, para todos os actos quotidianos era auxiliada por terceiros;

41. Ora, em face do quadro fáctico acima descrito, impõe-se uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo que tenha em linha de consideração que Recorrente e Recorrida viveram os últimos meses das suas vidas numa situação de total dependência e auxílio de terceiros, em virtude do agravamento do seu estado de saúde, o que impossibilitou a coabitação, a assistência mútua e assunção conjunta de responsabilidades inerentes à vida familiar;

42. O comportamento do Apelante não se ficou a dever a qualquer conduta da Autora ou desavença ou desentendimento entre ambos, mas sim em virtude da conduta da filha de ambos, CC expressa no alegado cometimento de furtos de bens do interior da casa de morada de família, bem como de quantias em dinheiro,

43. O Tribunal a quo errou ao ignorar o principal motivo que levou o Recorrente a trocar de fechaduras da sua casa de morada de família, ou seja, o de impedir a entrada da sua filha CC na casa de morada de família em virtude dos alegados furtos por si cometidos;

44. A Primeira Instância errou in totum ao configurar o supra citado comportamento do Recorrente como uma situação de esbulho violento;

45. resulta suficientemente demonstrado que a Autora não foi impedida de aceder ao interior da casa de morada de família, tão-pouco o Réu carecia do consentimento da Autora para a mudança de fechaduras;

46. Ao agir do modo supra descrito o Autor pretendeu evitar a continuidade da conduta delituosa da sua filha CC, nomeadamente o furto de bens que se encontravam no seu interior e, por maioria de razão, a defesa do seu património, sua propriedade;

47. O Tribunal Recorrido errou, assim, ao ter concluído que se tenha tornado impossível a continuação da posse da casa de morada de família pela Apelada, desde logo, porque resulta provado dos autos recorridos que a mesma se ausentou para parte incerta, nunca mais tendo regressado e sem que o Autor tivesse conhecimento do seu paradeiro, não obstante resultar da matéria fáctica, sobre a qual se impõe a impugnação e ampliação por via do presente recurso, que o mesmo encetou várias tentativas para saber do paradeiro da sua Mulher;

48. A decisão em crise deverá ser revogada pelo Tribunal ad quem por inexistência de qualquer situação de esbulho violento, porque o Réu não praticou qualquer acto impeditivo da posse da Autora sobre a casa de morada de família; porque não existiu qualquer acto de violência, por parte do Recorrente e porque o mesmo se limitou a defender o seu direitos de compropriedade e composse, por meio da acção directa, sobre a casa de morada de família e respectivo recheio, em face dos alegados furtos cometidos pela filha CC que também coabitava a mesma casa de morada de família;

49. Ora, em face do quadro fáctico acima descrito, impõe-se uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo que tenha em linha de consideração que Recorrente e Recorrido viveram os últimos meses das suas vidas numa situação de total dependência e auxílio de terceiros, em virtude do agravamento do seu estado de saúde, o que impossibilitou a coabitação, a assistência mútua e assunção conjunta de responsabilidades inerentes à vida familiar, como é habitual em qualquer casal dotado de autonomia pessoal;

50. O comportamento do Apelante não foi motivado por qualquer conduta da Autora, nem desavença ou desentendimento entre ambos, mas sim em virtude da conduta da filha de ambos, CC expressa no cometimento de alegados furtos de quantias em dinheiro e de bens do interior da casa de morada de família;

51. O Tribunal da Primeira Instância andou mal ao considerar que o Apelante esbulhou de modo violento a Apelada;

52. Ao decidir com base no fundamento supra descrito o Tribunal Recorrido olvidou por completo que, no caso em apreço, o Recorrente agiu com cobertura legal do instituto da acção directa previsto no artigo 366º do Código Civil, com o propósito de proteger o património pertencente a ambos em face da conduta espoliadora da filha de ambos;

53. Como resulta da valoração dos depoimentos prestados pelos sucessores habilitados nos termos da impugnação e ampliação da matéria de facto do presente recurso, o ora Recorrente procedeu à mudança das chaves e fechaduras da casa de morada de família a fim de prevenir novos furtos por parte da filha CC, e fê-lo imediatamente após ter descoberto a existência de tais furtos, ou seja, logo que lhe foi possível;

54. E uma vez que a filha já dispunha anteriormente de uma cópia das mesmas, o ora Recorrente foi confrontado com uma verdadeira impossibilidade de recurso em tempo útil aos meios coercivos normais e, por isso, decidiu fazer uso da força própria por meio da substituição das fechaduras, com o fito de impedir, desta feita, a continuidade delapidadora da sua própria filha,

55. In casu, não subsistem dúvidas quanto à urgência e necessidade premente na mudança das fechaduras e, por essa via, condicionar o acesso ao seu interior da casa de morada de família apenas em relação à filha CC e não propriamente à Apelada; e, como tal, incompatível com o tempo do recurso ao tribunal e de utilização dos meios coercivos normais para fazer valer o seu direito de propriedade comum;

56. A interpretação que o Tribunal a quo faz quanto ao citado fundamento para a dissolução do matrimónio sub judice viola o disposto nos artigos previsto nos artigos 336º, 1261º, n.º 2, 1279º, 1672º, 1673º, 1674º, 1675º, 1676º, 1781º, alínea d) todos do Código Civil, razão pela qual deverá a sentença em crise ser revogada;

57. Nulidade que se invoca como fundamento do recurso, ao abrigo do preceituado no artigo 615.º n.º 1 alínea c) do Código Proc. Civil.

58. Por conseguinte, deverá o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra julgar o presente recurso procedente e, em consequência, anular a decisão em crise, absolvendo-se o Apelante do decretamento de divórcio pedido pela Recorrida!

Contra alegou a autora/habilitada, pugnando pela manutenção da decisão, com os seguintes argumentos finais:

1. O Divórcio sem Consentimento do outro cônjuge foi decretado pelo Douto Tribunal de 1ª instância nos termos do artigo 1781º al. d) do CC.

2. Sendo claro que o divórcio é conjuntamente com a morte, uma das causas de dissolução e extinção do casamento válido.

3. A rutura traduz-se na inexistência de uma plena comunhão de vida entre os cônjuges, isto é quando a cumplicidade entre os cônjuges baixa ao grau zero de satisfação para um deles, e em que a lei não pode sobrepor-se ou substituir-se à vontade do cônjuge que pretende a dissolução do seu casamento, vide artigo 1577º do CC – cfr. Fidélia Proença de Carvalho, O conceito da culpa no divórcio – Crime e Castigo, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, FDUC, I, 2004, pág.601 e nota 26).

4. O douto Tribunal entendeu é bem que existia rutura definitiva do casamento entre Autora e Réu.

5. Resultou de forma clara que o preceito da al d) do artigo 1781º do Código Civil se encontra preenchida, não sendo necessário o período de um ano exigido nas alíneas anteriores do mesmo artigo, mas apenas que sejam graves, reiterados e demonstrativos de que, objetiva e definitivamente, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges.

6. Ora, analisando toda a prova produzida concluímos que o Réu trocou as fechaduras da casa morada de família à revelia da Autora.

7. Ficou claro que não foi entregue nenhuma chave da nova fechadura à mesma, mesmo quando esta a solicitou em 25 de julho de 2019 ao Réu.

8. Sendo claro que a autora desde o dia do seu internamento em 28 de junho de 2019 nunca mais voltou a coabitar com o Réu na casa morada de família até ao dia da sua morte em 22.02.2020.

9. Após o dia 25 de julho deixou de haver comunhão de vida entre ambos, deixaram de comunicar, passaram a ter vidas independentes como se não existisse casamento.

10. Autora e Réu após esse dia (25.07.2019) não mantiveram mais qualquer contacto um com o outro, nem manifestaram vontade de restabelecer, estamos assim perante uma rutura definitiva do casamento.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª – Nulidade da decisão sobre a matéria de facto por infundamentada.

2ª - Alteração da decisão  sobre a matéria de facto.

3ª -  Improcedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

Estatui o artº 607º nº4 do CPC: «na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais  fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.»

Este segmento normativo é a decorrência lógica do disposto nos artºs 208º nº 1 da Constituição e 154º nº 1 do CPC que impõem  o dever  de as decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre qualquer dúvida suscitada no processo serem sempre fundamentadas.

A motivação tem uma dupla finalidade: por um lado convencer os interessados do bom fundamento e da correção  da decisão, o que implica a sua legitimação; por outro lado permitir ao tribunal superior, em caso de recurso, a possibilidade da sua sindicância.

Nesta conformidade a motivação da decisão sobre a matéria de facto não pode reconduzir-se a uma mera indicação genérica dos meios de prova que conduziram ao resultado enunciado.

O que poderia descambar num mero juízo arbitrário ou de convicção e, como tal, insindicável, sobre a realidade, ou não, de um facto.

Antes devendo ser especificados os concretos meios de prova, submetê-los a uma análise crítica e explicitado o processo lógico-dedutivo que levou à convicção expressa na resposta, o como e o porquê dessa convicção cfr. J. Pereira Batista, Reforma do Processo Civil, 1997, p.90 e segs e Abílio Neto, in Breves Notas ao CPC, 2005, p.189.

Assim: «…o que deve e pode exigir-se do julgador é a explicação das razões que objectivamente o determinaram a ter ou não por averiguado determinado facto. Quando o juiz decide que certo facto está provado é porque foi levado a esta conclusão por um raciocínio lógico, que tem de ter, na sua base, elementos probatórios produzidos. O que se determina nesta disposição é que o juiz revele essa motivação, de modo a esclarecer o processo racional que o levou à convicção expressa na resposta…» -  Rodrigues Bastos, Notas ao CPC. vol. III, ed. de 2001, em anotação ao artigo 653º.

Ou seja: «o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão…» - M. Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, págs. 348.

Certo é que   não é exigível ao julgador que descreva, de modo minucioso, o processo de raciocínio ou o iter lógico-racional que incidiu sobre a apreciação da prova submetida ao seu escrutínio.

Mas impõe-se-lhe que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e decidir como decidiu – cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 28.03.2000, CJ 2º, 22 e Acs. do STJ de 06.12.2004, dgsi.pt, ps. 04B3896, de 02.10.2008, p. 07B1829 e de 14.01.2009, p.08S934.

Decorrentemente, pode considerar-se que se cumpriu a exigência do segmento normativo do nº4 do artº 607º do CPC quando o juiz procedeu a uma explicitação dos diversos meios de prova que serviram para formar a  sua convicção, bem como da sua valoração, o que passa pela menção da sua relevância e da razão da credibilidade que lhe  mereceram.

Devendo entender-se que estão satisfeitas as exigências legais de fundamentação quando, vg, é indicada a razão de ciência das testemunhas, são referidos os motivos por que mereceram a credibilidade do Tribunal, e é feita a articulação dos depoimentos prestados com os outros meios de prova– cfr. Ac. do STJ de 25.03.2004  cit.  e Ac. do STJ de. 20.05.2010, p. 5322/05.1TVLSB.L1.S1 in dgsi.pt.

Ademais, importa considerar que não é de boa técnica nem satisfaz a exigência legal, uma motivação em bloco, reportada a todos os factos objeto da prova e dados como provados ou não provados, mediante mera indicação das provas relevantes para a formação da convicção do juiz.

Na verdade, ainda que o preceito em análise não o exija, é intuitivo que a fundamentação das respostas aos factos deve ser indicada separadamente em relação a cada um deles.

Ou, ao menos, reportada a um conjunto de factos que se encontrem ligados entre si e tenham sido objeto, no seu núcleo essencial, dos mesmos meios de prova. - cfr. Ac. do STJ de 25.03.2004, dgsi.pt, p.02B4702 e Ac. da RC de 7.11.2012, p. 781/09.6TBMGR.C1.

Pois que apenas assim se cumpre a possibilidade de se sindicar o cumprimento, ou não, das finalidades supra mencionadas.

5.1.2.

In casu.

A Sra. Juíza fundamentou a prova e não prova dos factos nos seguintes termos:

«Fundou-se a convicção do tribunal no conjunto da prova produzida em audiência e, nomeadamente, nos documentos juntos aos autos, nas declarações prestadas por todos os sucessores habilitados que narraram a sua versão dos factos na audiência de julgamento..

Assim, foram considerados quanto aos factos relativos ao casamento e óbito das partes, filiação dos sucessores habilitados, os documentos juntos aos autos.

No que se refere aos factos relativos à separação do casal, os mesmos foram objecto das declarações prestadas pelos filhos de ambas as partes, das quais emerge, no essencial, a factualidade supra elencada, que ressalta das declarações prestadas por todos, analisadas no seu conjunto, embora sejam patentes as divergências actualmente existentes entre todos, mormente relacionadas com questões patrimoniais e com os cuidados prestados em vida às partes por cada um deles.

Ora, analisadas todas as declarações prestadas pelos sucessores habilitados no seu conjunto, delas se retira a cronologia dos factos acima considerada provada, bem como a recusa da autora em permanecer em casa com o réu, sem a filha CC, desde a data mencionada nos factos provados, não tendo assim consentido nas condições impostas pelo réu para que a autora pudesse permanecer na casa onde, antes do internamento, residia com o réu e a filha CC.

Há que convir que esta argumentação alicerçante da convicção peca claramente por defeito e não é um modelo a seguir, pois que não cumpre com a abrangência  e acuidade exigíveis, os requisitos supra aludidos.

Não obstante, entendemos que não é caso de nulidade por falta de fundamentação.

Na verdade, a julgadora aduziu e identificou os meios probatórios que valorou, máxime nos factos essenciais decidendos, quais sejam: o impedimento de acesso da autora, por banda do réu,  ex vi da mudança de fechadura, à  casa de morada de família, e a saída daquela desta morada, sem intenção de regressar.

Este núcleo factual fulcral apresenta-se com alguma simplicidade e singeleza, pelo que a bondade, ou, não, da sua prova ou não prova, pode ser sindicada perante a prova produzida e invocada na sentença, mesmo com a generalidade e abstração vertida na fundamentação

E tanto assim é que o réu contra a matéria de facto provada e não provada se insurge, invocando os concretos elementos probatórios que em seu entendimento, fundamentam, versus o decidido pela juíza a quo, a sua pretensão de alteração do acervo factual a considerar na análise e subsunção jurídicas.

Ademais, a irresignação do réu contra os factos provados abarca apenas um singelo aspeto do ponto 9:  não  ter  o réu  facultado qualquer chave à autora.

E sendo certo que a restante factualidade que o réu pretende ver aditada se reporta a factos instrumentais, aliás nem sequer alegados pelo recorrente, porque não produziu contestação; pelo que relativamente a estes, porque não considerados pela julgadora, se intui que ela os não considerou, ou porque entendeu que não tinham relevância para a decisão, ou porque  considerou que sobre eles não foi produzida prova, pelo que será  apenas perante a invocada pelo réu que deve concluir-se se eles devem, ou não, ser dados como apurados.

Assim sendo, e não se perdendo de vista outrossim uma perspetiva prática e utilitarista  com fitos de celeridade e economia de meios-  e sendo certo que se apresenta acentuadamente plausível que a julgadora, mesmo  com o plasmar de  uma maior, e desejável, dilucidação/escalpelização/concretização do acervo probatório produzido, manteria os factos dados como provados e não provados-, aceita-se como suficiente, com alguma condescendência, a fundamentação aduzida, assim se arredando a invocada nulidade.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.2.2.

Por outro lado, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

 A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve o recorrente efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando -  objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;

5.2.3.

O caso vertente.

5.2.3.1.

Pretendem os habilitados na parte passiva, desde logo, que no âmbito do ponto 9 dos factos dados como provados não se dê como provado o segmento em que se plasma que «não foi facultada qualquer chave à Autora».

Tem este ponto o seguinte teor:

9) No dia 21.07.2019, a autora pretendeu entrar na casa de morada da família e não conseguiu aceder ao interior da mesma, por terem sido trocadas as fechaduras e não lhe ter sido facultada qualquer chave, não se encontrando ninguém no interior da casa.

Invoca para tanto os depoimentos dos Habilitados CC e   EE, nos trechos que especifica.

Vejamos.

Dos depoimentos dos aludidos declarantes não se retira no sentido pretendido pelos recorrentes, ou seja, que eles contrariam ou, sequer, infirmam, a convicção da julgadora neste particular conspeto factual.

Desde logo não se compreende a asserção do EE de que a AA  não tinha a chave da casa de morada de família.

Então se a casa era de morada de família, e, assim, nela a fenecida residia, não era suposto, por normal e lógico, que tivesse a chave? Obviamente que sim.

Assim, tal afirmação deve ter-se por reportada à atualidade, ou seja, a  partir do dia em que o falecido mudou a fechadura.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, o facto de nunca ter tido a chave não invalidava que tal facto justificasse que continuasse a não tê-la após a mudança da fechadura.

Se antes a não tinha, porventura alguém a teria para com ela aceder à casa.

Pelo que depois da mudança da fechadura a chave ter-lhe-ia de ser facultada, ou a esse «alguém», para que tal acesso fosse possível.

Ora se a falecida tentou entrar em casa no dia 19 e não conseguiu, como disse a CC.

 Se reiterou tal tentativa em 21, e ela mais uma vez saiu frustrada, como se provou neste ponto.

 E, ademais, se, mais uma vez, nela tentou entrar no dia 25, aqui inclusive, acompanhada pela autoridade policial, e, mais uma vez, não conseguiu.

 E sendo que, neste dia, o então réu «transmitiu à autora e à filha que não facultaria qualquer chave à autora»  como se provou nos pontos 10 e 11, e que  os recorrentes aceitam, porque não impugnam, como é que eles têm a ousadia de querer que não se prove que ele não entregou a chave à autora?

A sensatez, a razoabilidade, as regras da lógica e da experiencia comum e a honestidade intelectual não podem ser palavras vãs, máxime, em processos judiciais, antes devendo ser cumpridas ou, ao menos, nortear a atuação processual.

Assim, e versus o defendido pelos insurgentes, a prova da, factual e objetiva, não entrega das chaves, «tout court», está provada.

A razão de tal não entrega é que poderia ser discutível.

Mas não é esta que o recorrente impugna – nem podia, pois que ela não está expressa neste ponto 9 -  mas apenas a singela e material não entrega; mas esta não entrega, como se viu, está mais que provada.

5.2.3.2.

Pretendem ainda os recorrentes a prova, ao abrigo do artº 5º nº2 do CPC, de factos, referidos nas conclusões, tidos por instrumentais ou complementares.

Dilucidemos.

Os factos instrumentais (ou probatórios) são os factos que permitem, através de uma presunção legal ou natural, inferir um outro facto, nomeadamente um facto essencial.

Na verdade:

«Os factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção.

  …têm apenas a função possível de factos-base de presunção, e, como tais, dada a sua função instrumental e auxiliar da prova, estão subtraídos ao princípio dispositivo». -  Ac. do STJ de  23.09.2003, p. 03B1987 in dgsi.pt.

   Ora no caso vertente o réu não contestou.

  Logo, os factos  que ele alega serem instrumentais ou complementares, não  podem assim ser considerados relativamente a factos essenciais por ele alegados.

Por conseguinte, tais factos não podem agora ser considerados, pois que inexistem factos essenciais alegados pelo réu a que  tais factos instrumentais  ou complementares se possam reportar para o efeito de os  provar.

Mesmo que se considere que tal instrumentalidade ou  complementaridade se possa reportar aos factos essenciais alegados pela autora tal desconsideração outrossim se impõe.

Primus, porque, ao abrigo dos princípios da autorresponsabilidade e cooperação, e uma vez que, inclusive, e como se disse, o réu nem sequer contestou, impunha-se-lhe que, na audiência de julgamento, manifestasse a vontade de se aproveitar da prova de tais factos instrumentais e que os mesmos fossem considerados provados, para, assim, infirmar o sentido dos alegados e possivelmente provados pela autora.

Ao assim não proceder e apenas agora estar a invocar este direito, os recorrentes estão, na prática, a colocar ao tribunal ad quem uma questão nova, não decidida pelo tribunal a quo, o que, como é consabido, queda proibido, pois que  a essência do múnus deste tribunal de recurso é de mera reponderação do decidido pela 1ª instância.

Secundus porque a proficuidade do deferimento desta pretensão prender-se-ia, ou essencialmente prender-se-ia, com a não prova, em função deles, de certos factos dados como provados pelo tribunal recorrido.

E o certo é que os recorrentes não colocam a questão nesta vertente, pois que, no atinente aos factos provados, apenas se insurgiram contra a prova do aludido conspeto do ponto 9.

Tertius porque:

«Em sede de recurso da matéria de facto só de aditam aos factos provados os factos instrumentais ou complementares que sejam indispensáveis à decisão – al. c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil.» -  Ac. RC de 04.2021, p. Nº 873/16.5T8CTB-B.C1 in dgsi.pt.

Ora este requisito não está presente no caso sub judice.

Na verdade, mesmo que se provassem os factos ora pretendidos provar, a interpretação que foi operada pela 1ª instância dos factos provados não era, necessariamente, prejudicada, antes continuando a ser possível e defensável.

Finalmente, «the last but not the least», passe  o anglicismo, mesmo que assim não fosse ou não se entenda, tais factos não poderiam ser dados como provados.

Efetivamente, os recorrentes invocam para a sua prova apenas e somente os depoimentos dos habilitados, ou seja, essencialmente, os seus próprios depoimentos.

Ora, ainda que este entendimento não constitua um labéu acerca da idoneidade e fidedignidade dos recorrentes, o certo é que, com  o desfecho da presente ação, eles podem perder ou ganhar, quer material, quer ético-moralmente.

Logo, as suas declarações tem de ser analisadas  e valoradas cum granno sallis, ie., cautelosa e comedidamente, e apenas podendo relevar decisivamente se fossem corroboradas por outros meios de prova e/ou fossem alcandoradas em razão de ciência inequívoca e insofismável.

Ora nenhum destes requisitos se encontra presente, pelo que tais factos, não podem, sob pena de insanável dúvida, e, assim, intolerável ultrapassar da margem de álea em direito probatório concedida, ser dados como provados.

   Exceto no atinente ao testamento feito pela autora, designadamente em benefício do réu.

Porém, tal facto revela-se inócuo, ou, pelo menos, não essencial para a decisão da causa.

 Pois que não é pelo facto de a autora ter, em19.07.2019, deixado ao réu então marido, em legado, o usufruto dos bens da herança, que pode concluir-se que a separação não foi definitiva e não rompeu de um modo inexorável a vida em comum do casal.

Aliás tal definitividade foi dada como provada no ponto 12, e a não reconciliação por banda da autora foi apurada no ponto 13.

E os recorrentes não se insurgiram contra tal prova, pelo que tais factos, independentemente do mais provado, estão definitivamente assentes e não podem ser contrariados pelo simples teor do testamento.

Aliás numa interpretação possível, e que temos até por mais plausível, o testamento volta-se contra os recorrentes.

Na verdade, se  apesar do mesmo, a autora pretendeu entrar em casa,  logo no próprio dia da sua outorga e nos dias seguintes, e não conseguiu, porque o réu se recusou a dar-lhe a chave da casa, é natural e humano que ela tivesse ficado ainda mais magoada, face à ingratidão do marido, e, assim cimentado a sua vontade de não restabelecer a vida em comum.

5.2.4.

Por conseguinte, e no indeferimento desta pretensão, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

1) Autora e réu celebraram entre si casamento católico sob o regime imperativo da separação de bens no dia 2.12.1973 – doc. de fls. 6.

2) Desse casamento nasceu em .../.../1977 CC – doc. de fls. 88.

3) Do seu anterior casamento com GG, o réu também é pai de DD, EE, FF, nascidos, respectivamente, em .../.../1954, .../.../1959, .../.../1966 -doc. de fls. 85 a 87.

4) A autora faleceu no dia 22.02.2020 com a idade de 83 anos – fls. 48.

5) O réu faleceu no dia 18.05.2020 com a idade de 90 anos – fls. 72.

6) No dia 28.06.2019, a autora foi internada de urgência no Centro Hospitalar ... - ..., ali tendo ficado internada até 21.07.2019, com diagnóstico de mieloma múltiplo.

7) Até ao internamento da autora, autora e réu residiam na mesma casa com a filha CC.

8) No dia 09.07.2019, o réu expulsou a filha CC de casa, tendo esta ido viver para outra casa.

9) No dia 21.07.2019, a autora pretendeu entrar na casa de morada da família e não conseguiu aceder ao interior da mesma, por terem sido trocadas as fechaduras e não lhe ter sido facultada qualquer chave, não se encontrando ninguém no interior da casa.

10) No dia 25.07.2019, a autora e a filha, na presença das forças policiais, pretenderam aceder novamente ao interior da casa de morada da família, mantendo-se a situação de troca de fechaduras anteriormente verificada.

11) Na data referida em 10), o réu transmitiu à autora e à filha que não facultaria qualquer chave à autora, mas que permitia a entrada da autora na casa desde que o fizesse desacompanhada da filha.

12) Perante o referido em 11), a autora não pretendeu aceder ao interior da casa sem a filha, pelo que abandonou o local com esta última, deixando definitivamente a casa de morada de família.

13) Desde o referido em 10), 11) e 12) até ao respectivo óbito, a autora passou a residir em habitação diversa da do réu, sem qualquer expectativa de reconciliação por banda da autora.

14) Desde o referido de 10) a 13), autora e réu não partilham cama, casa, mesa e não mantêm entre si qualquer convivência ou contactos, partilha de meios e de recursos ou entreajuda.

5.3.

Terceira questão.

A Srª Juíza decidiu nos seguintes, essenciais e sinóticos, termos:

Dispõe o artigo 1781º, do CC, na redacção dada pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, que “são fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:

a)A separação de facto por um ano consecutivo,

b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum,

c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior amum ano,

d) quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.

…de entre os três conceitos-modelo distintos sobre a natureza jurídica do divórcio («divórcio-sanção», «divórcio remédio» e «divórcio como simples constatação de ruptura do casamento»), o legislador nacional optou claramente em 2008 pelo modelo do «divórcio como simples constatação de ruptura do casamento», fruto da evolução dos tempos, das mentalidades e das actuais concepções sociais da família e do casamento.

Para além da revogação do artº1787º do CC, deixando de, no divórcio, se apurar e procurar determinar o “cônjuge culpado”, consagrou-se de uma forma peremptória o divórcio com fundamento, tão-somente, em causas objectivas “independentemente da culpa dos cônjuges”, mas que o legislador considera que dão causa à ruptura definitiva do casamento (vide artº1781º, al.d), do CC).

… o fundamento da ruptura traduz-se na inexistência de uma plena comunhão de vida entre os cônjuges, a que alude o artigo 1577º, do CC, isto é, quando a «affectio conjugalis» e a cumplicidade entre os cônjuges baixou ao grau zero de satisfação para um deles, e em que a lei não pode sobrepor-se ou substituir-se à vontade do cônjuge que pretende a dissolução do seu casamento…

Com o afastamento do fundamento da culpa (pressuposto sempre de difícil avaliação), visou-se evitar, na maior medida possível, a transformação do processo de divórcio num litígio persistente, destrutivo e emocionalmente doloroso para os cônjuges.

No caso dos autos, verifica-se existir uma separação de facto que perdurou desde 21.07.2019 a 22.02.2020, o que conduz à inaplicabilidade da al. a) do art. 1781º do CC, sendo certo que se entende que é atendível na decisão o prazo de separação de facto que se completou na pendência da lide, face ao princípio da actualidade da decisão constante do artigo 611º do CPC…

Na verdade, a separação de facto entre as partes não teve a duração de um ano.

Nos termos do artigo 1782º do CC, que estatui em concreto sobre a separação de facto, “entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer”.

Não se encontra preenchida, no caso em apreço, a previsão da alínea a), atento o tempo de separação do casal, por ser inferior a um ano. Cumpre assim verificar se a ruptura da vida de casal por esse período de tempo demonstra, independentemente da culpa dos cônjuges, a ruptura definitiva do casamento (al. d).

Ora, o preenchimento do conceito indeterminado de “ruptura definitiva do casamento” implica que não se esteja perante factos banais e esporádicos, mas é suficiente que se esteja perante factos que demonstrem o comprometimento consolidado da vida em comum, permitindo a lei que o próprio causador desse ruptura possa pedir com base nesses factos o divórcio.

Não existe obstáculo legal que impeça que uma situação de separação de facto por período não apurado possa ser valorada para se aferir se existe ou não uma ruptura do casamento.

O que releva é que os factos provados sejam graves e reiterados e demonstrativos que, objectivamente e com carácter definitivo, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges.

Quando essa separação tem a duração de um ano consecutivo, o legislador presume juris et de iure que a ruptura definitiva do casamento se consumou, não sendo necessário provar outros factos.

Contudo, da não prova do decurso desse prazo não se pode tirar a ilação oposta, ou seja, que não há ruptura definitiva da vida conjugal.

Da factualidade apurada resulta que, para além do não cumprimento do dever de coabitação em todas as suas vertentes durante uns meses, em que os cônjuges deixaram de assumir em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram, tendo deixado de cumprir o dever de cooperação a partir daquele momento, ocorreram factos gravosos demonstrativos da ruptura da vida em comum.

Na verdade, tendo a autora, de avançada idade, ficado internada numa situação clínica grave, deparou-se à saída do hospital com as portas de casa trancadas sem que lhe tivesse sido facultada qualquer chave e, passados uns dias, foi-lhe condicionada a entrada em casa, de forma a nela apenas poder aceder desacompanhada da filha, o que aquela não aceitou.

Ora, esse comportamento do réu, ao mudar fechaduras à revelia da autora e ao condicionar a entrada da mesma na casa da forma descrita, passível de configurar esbulho violento, atentou de forma inadmissível contra o direito da autora de aceder livremente à casa de morada de família e de nela permanecer e conviver com a filha do casal.

Ao condicionar daquela forma a entrada da autora na casa de morada da família, o réu retirou à autora a possibilidade de conviver diariamente com a filha, que residia com o casal até ter sido expulsa, na casa de morada de família.

Ao não aceitar tais condições, a autora optou por não residir mais com o réu, passando desde então a fazer vida autónoma um do outro, sem qualquer convívio, sendo que, em virtude de tais factos, deixou de existir qualquer intimidade, planeamento conjunto da vida conjugal e partilha entre o casal.

Está desta forma demonstrada a insubsistência ou inconsistência de qualquer relacionamento como casal entre autora e réu, sendo para além disso indiscutível que, pelo menos por banda da autora, está demonstrada uma vontade irreversível de pôr termo ao casamento.

É, pois, de concluir que a comunhão de vida entre A e R está posta em crise de forma definitiva, com quebra dos laços afectivos e, por conseguinte, estamos perante uma situação de ruptura definitiva do casamento e não perante um pedido de divórcio por vontade caprichosa e discricionário da A.

Por isso, tem-se como demonstrado o fundamento de divórcio do artigo 1781º, al d), do CC.»

 Este discurso apresenta-se, em tese, curial e, perante os contornos fáctico circunstanciais apurados, adequado; pelo que urge corroborá-lo e chancelá-lo.

Em seu abono, e, quiçá  ad abundantiam, dir-se-á ainda o seguinte.

Estamos no domínio do chamado divórcio  constatação de rutura cuja ênfase e relevância foram, sensível e impressivamente, realçados pela Lei 61/2008 de 31.10.

Na verdade, por confronto com a anterior redação do art. 1779º, sob o título de «violação culposa dos deveres conjugais», este art. 1781º intitula-se simplesmente «rutura do casamento».

 Ou seja, a única diferença sensível reporta-se à supressão do requisito da culpa no decretamento da dissolução do vínculo matrimonial.

Pretendeu-se com esta cláusula, nas palavras da Exposição de Motivos que acompanhou o Projeto de Lei nº 509/X apresentado à Assembleia da República, e do qual veio a resultar a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro (Altera o regime jurídico do divórcio), disponível em www.parlamento.pt, dar cabal expressão ao «sistema do “divórcio ruptura”», que «pretende reconhecer os casos em que os vínculos matrimoniais se perderam independentemente da causa desse fracasso, não [havendo] razão para não admitir a relevância de outros indicadores fidedignos da falência do casamento», para além dos que exemplificativamente constam do artigo 1781º: separação de facto, alteração das faculdades mentais e ausência de um dos cônjuges. «Por isso, acrescent[ou]-se uma cláusula geral que atribui relevo a outros factos que mostram claramente a ruptura manifesta do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo. O exemplo típico é a violência doméstica – que pode demonstrar imediatamente a inexistência da comunhão de vida própria de um casamento».

Encontra-se aqui o critério escolhido pelo legislador para determinar se determinados factos podem fundamentar a procedência do pedido de divórcio apresentado por um dos cônjuges contra o outro: hão-de revelar uma inexistência da comunhão de vida própria de um casamento, e de forma definitiva.

Sendo que para tal constatação/conclusão reconhece-se: «alguma flexibilidade na actividade decisória do tribunal, na avaliação da relevância dos factos provados.» - Rita Xavier, Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidade Parentais, Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, Coimbra, 2009, pág. 25.

Ora, do ponto de vista da lei, essa comunhão de vida encontra-se fundamentalmente traduzida na lista dos efeitos do casamento quanto às pessoas e bens dos cônjuges, máxime na enunciação que o artigo 1672º do Código Civil faz dos respetivos deveres: dever de respeito, de fidelidade, de coabitação, e de cooperação.

A demonstração da rutura definitiva – presumida nos casos das alíneas a), b) e c) ao fim de um ano – implicará, naturalmente, a prova da quebra grave desses deveres, e da convicção da irreversibilidade do rompimento da comunhão própria da vida conjugal.

Sendo de ter presente que:

«A cláusula geral e objectiva da ruptura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, previsto na al. d) do art. 1781.º do CC – não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência.

 A demonstração da ruptura definitiva – presumida no caso das alíneas a), b) e c) do art. 1781.º do CC ao fim de um ano – implicará a prova da quebra grave dos deveres enunciados no art. 1672.º do CC e da convicção de irreversibilidade do rompimento da comunhão própria da vida conjugal.» - Ac. do STJ de  03.10.2013, p. 2610/10.9TMPRT.P1.S1, in dgsi.pt.

Entende-se que para aferir dessa  gravidade e irreversibilidade devem ter-se em conta predominantemente as circunstâncias concretas dos cônjuges como sejam os seus  valores e bens morais, segundo as regras da experiência e considerando os padrões da sociedade em que nos encontramos inseridos.

Sendo que para tal aferição não deve  perspetivar-se tanto a substância do ato, mas antes ou primacialmente o efeito ou resultado duradouro que ele produziu no relacionamento dos cônjuges, não sendo de prever a reconciliação dos mesmos cônjuges depois disso.

 E sem naturalmente descurar as exigências decorrentes, por exemplo, da dignidade humana e da igualdade entre ambos os cônjuges dentro do casamento, bem como a atual essência  e finalidade deste contrato.

Efetivamente, esta opção legislativa pretendeu dar acolhimento e consagração legal aos movimentos e conceções ético-sociais relativas ao casamento que evoluíram e singraram no passado século, especialmente no seu último quartel.

Tais conceções sobrelevaram, na abordagem das relações familiares, máxime, no atinente ao contrato de casamento, a dimensão afetiva, emocional e subjetiva, sublimando, nas relações conjugais, os afetos e o bem estar dos cônjuges enquanto indivíduos.

Destarte, e considerando, primacialmente, os elementos histórico e teleológico da hermenêutica jurídica, é hodiernamente tido como assente que, para o legislador produtor do atual acervo legal pertinente, o casamento é apenas, ou essencialmente, uma forma de auto-realização  dos indivíduos e só tem sentido se e enquanto cumprir essa função.

Tudo em detrimento ou com menorização, até certo ponto, do casamento enquanto instituição jurídico-social no âmago e âmbito da qual os cônjuges assumem deveres recíprocos com vista a um projeto de vida em comum, e sedimentando a relação de sorte a que ela constitua a célula estruturante do tecido social e comunitário.

A consequência mais relevante desta nova conceção legal é, como já referido, a irrelevância da culpa relativamente aos factos que podem consubstanciar as previsões legais para o decretamento do divórcio, ou seja, basta a  ocorrência objetiva de tais factos, com a dimensão e magnitude tida por bastante, para que o divórcio seja decretado.

Ainda que, de jure constituendo, esta opção não deixe de ser suscetível de crítica,  porque algo alheada da realidade ético-cultural da nossa sociedade e assente num pressuposto – igualdade plena de géneros – que, na realidade e pelo menos em vários  campos, aspetos e/ou estratos socio- culturais,  ainda se não verifica, certo é que ao juiz cumpre apenas aplicar a lei vigente atenta a melhor postura hermenêutica da mesma.

Mas, convenhamos, não de um modo  estritamente formal e subserviente.

Tudo visto e ponderado pensamos dever ser esta a mais pertinente e adequada abordagem jurisdicional a cada caso concreto: o julgador deve ter em consideração a ratio e teleologia legal no atinente ao instituto do casamento e aos fundamentos para a sua dissolução; mas deve ser-lhe ser sempre conferida uma margem interpretativa em função da qual ele possa concluir se se encontram, ou não, presentes factos com força e dignidade bastantes para implicar a extinção do vínculo contratual.

O caso vertente.

Ele não se assume como o mais paradigmático no sentido de demonstrar uma inequívoca e extrema rutura conjugal.

Mas  os seus contornos fáctico-circunstanciais – pontos 7 a 14 - vislumbram-se ainda com dignidade e força bastantes para firmar a convicção/conclusão sobre a inadmissibilidade de sujeitar os cônjuges à manutenção de um contrato de  casamento.

Na verdade, e perante eles constata-se, de um modo direto, impressivo e continuado, a postergação por banda dos cônjuges dos seus deveres de coabitação, o que se verificou durante uma relevante período de tempo de longos meses, e que, ademais, ocorreu até à sua morte.

De igual sorte, e posto, quiçá, de um modo ao mais indireto, dimana a postergação dos seus deveres de cooperação e assistência, o que, outrossim , perdurou até ao seu decesso.

Acresce que, sagazmente interpretados alguns factos apurados – pontos 13 e 14-  tem de concluir-se que inexistia por banda da então autora o propósito de estabelecer a vida em comum.

Tudo visto e ponderado conclui-se que os cônjuges tomaram o partido e a busca de  assistência  em cada um dos filhos, com desvinculação  vivencial relativamente ao outro, o que, dado inclusive a sua avançada idade, tornaram por definitivo.

 Destarte, para eles, máxime a autora, o casamento já não era fonte estabilidade, de harmonia, convivência, colaboração e paz de espírito; mas, ao invés, génese de arrelias, constrangimentos, discussões, etc, em suma: fonte permanente inquinadora da qualidade de vida dos cônjuges.

Assim sendo, o contrato de casamento, quer na vertente de satisfação dos interesses e direitos individuais dos cônjuges outorgantes, quer enquanto célula e instituição social que se pretende útil e profícua para a comunidade, já não se mostra(va) relevante e produtor dos efeitos pretendidos.

Pelo que a solução mais adequada será declarar a sua extinção.

Improcede o recurso.

(…)

            7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelos recorrentes.

Coimbra, 2022.04.26.