ADVOGADO
Sumário

I- A quebra de sigilo profissional dos advogados impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se salvaguarda do sigilo profissional deve ceder ou não perante outros interesses, designadamente o da colaboração com a realização da justiça penal.
II- A resolução do conflito de valores passa pela avaliação da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados por aqueles deveres, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
III- Existindo a possibilidade de obtenção de outros meios de prova para a demonstração dos ilícitos, não se mostra indispensável a quebra de sigilo profissional do advogado.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto.

1.- No PCC n.º .../00.9TDPRT da ...ª Vara Criminal do Circulo do Porto e no decurso da audiência de julgamento em que é arguida B..........., foi suscitada a inquirição como testemunha da Lic. C........., ilustre advogada, entendendo que a mesma se escusou a depor sobre matéria sujeita ao correspondente sigilo profissional, tendo-se aí proferido, após deliberação do Tribunal Colectivo, o despacho do seguinte teor:
“Uma vez que a predisposição da testemunha C........ de prestar depoimento está sempre condicionada pelo teor da decisão do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, entendemos que tal situação configura a existência de escusa por parte da mesma a depor sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional nos termos do art. 135.º n.º 1 do C. P. Penal.
Face ao exposto, por se entender que os argumentos expedidos na promoção que antecede são suficientemente validos para o efeito, defere-se a promoção que antecede, ao abrigo do disposto no art. 135.º, n.º 2 e 3, do C. P. Penal, sendo certo que o pressuposto vertido no n.º 5 da mesma norma legal já se encontra preenchido com a junção do documento ora apresentado pela testemunha em causa”.
2.- Tal despacho surgiu após um requerimento formulado pelo Ministério Público em 1.ª instância, no qual se disse o seguinte:
“Compulsados os autos designadamente folhas 182 e seguintes (cópia do inquérito que pendeu na Ordem dos Advogados, em que era visada a aqui assistente D..........), constata-se que no despacho final, proferido nesse inquérito e que determinou o seu arquivamento é feita referência ao depoimento prestado pela ora aqui testemunha. Nesse mesmo processo, esse depoimento terá sido um dos fundamentos para o seu arquivamento. Na verdade, e concordando com o aí decidido, os esclarecimentos da testemunha em causa foram essenciais para o desfecho do processo. A nosso ver, porque a matéria a apelar é essencialmente a mesma, também os esclarecimentos serão essenciais para os presentes autos. Assim entendemos, que se deverá lançar mão do disposto no art. 135.º n.º 3 do C. P. Penal, e solicitar ao Tribunal da Relação do Porto, o levantamento do sigilo profissional invocado”.
3.- Dada a palavra ao mandatário do assistente, o mesmo disse que: “subscreve inteiramente o antecedente requerimento do distinto Magistrado do Ministério Público, permitindo-se acrescentar que no caso em apreço e atento o que já consta dos autos (fls. 182 e sgts.) está também em causa a defesa da dignidade da própria testemunha como advogada, a avaliar pelo que consta da fundamentação do despacho de arquivamento, ou seja, está em causa a mesma poder reiterar, esclarecer e confirmar aquilo que foi considerado pelo Sr. Relator no processo interno da Ordem dos Advogados no aludido despacho de arquivamento”.
4.- O Digno Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de que deve ser negado este pedido de escusa, porquanto o mesmo foi negado pelo Presidente do Conselho Distrital de Coimbra, não tendo dessa decisão sido interposto recurso, pelo que não pode este Tribunal da Relação saltar tamanho degrau, para além de que o depoimento a prestar sempre seria contra a cliente daquela causídica.
5.- Colheram-se os vistos, não existindo quaisquer questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito.

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II.- FUNDAMENTAÇÃO.
1.- CIRCUNSTÂNCIAS A CONSIDERAR
1.º) A arguida B........... foi acusada a fls. 309/311 pela prática, no decurso de Março e Maio de 2001, de um crime de falsificação de documento do art. 256.º, n.º 1, al. a) e b), de um crime de denúncia caluniosa do art. 365.º do art. 365.º, n.º 1, em concurso ideal com o crime de difamação dos art. 180.º, n.º 1, 183.º, n.º 1, al. b), 184.º e 132.º, n.º 2, al. j), sendo todas as disposições do Código Penal.
2.º) A visada com tais crimes não foi arrolada como testemunha.
3.º) Os factos respeitantes à conduta desta arguida ocorreram no decurso do processo executivo n.º 1345798, da 1.ª secção, em que a Dr.ª C......., era a advogada da arguida B......... .
4.º) O Conselho Distrital de Coimbra da O.A. emitiu parecer a fls. 138/140, em que foi indeferida a referida pretensão daquela em depor, em virtude desse seu depoimento ser contra os seus ex-clientes.
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2.- DO DIREITO.
As pessoas sujeitas a segredo profissional, podem pedir escusa de depor sobre factos abrangidos por aquele segredo, mas havendo dúvidas sobre a legitimidade dessa escusa, pode-se suscitar a sua apreciação de acordo com o disposto no art. 135.º do C. P. Penal.
Assim e havendo dúvidas sobre a validade dessa escusa a respectiva autoridade judiciária procede a averiguações e caso se conclua por essa ilegitimidade, então a mesma é apreciada nos termos do n.º 3 daquele preceito, segundo o qual “O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento”.
Em qualquer dos casos contemplados nos n.º 2 e 3, e de acordo com o seu n.º 5, “… a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável”.
Ora e de acordo com o Estatuto da Ordem dos Advogados, seja através do art. 81.º, aprovado pelo Dec-Lei nº 84/84, de 16 de Março, seja mediante o estatuído pelo art. 87.º aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro, os advogados estão obrigados a guardar segredo profissional.
Esta vinculação abrange todos os factos conhecidos pelo Advogado no exercício da sua profissão, e por causa desse exercício, dando-se, assim, particular ênfase à relação de confiança, quer com o cliente, quer com os demais colegas do foro ou ainda com a parte contrária – aqui em certas circunstâncias –, que deve gerar o exercício da advocacia.
A desvinculação desta obrigação tem apenas lugar, de acordo com o n.º 4 do citado art. 87.º, quando tal revelação seja “absolutamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes”, mas sempre apenas “mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário (...)” – a redacção do anterior art. 81, n.º 4 era similar.
Diga-se desde já que o referenciado parecer do Conselho Distrital de Coimbra da O.A., constante a fls. 138/140, mediante o qual foi indeferida a cessação do dever de sigilo profissional da senhora advogada aqui em causa, não vincula este Tribunal.
E isto porque como decorre do disposto no art. 202.º, n.º 1 da C. Rep. “Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”, acrescentando-se no seu n.º 2 que “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”.
Assim, qualquer lei ou interpretação que conduzisse a que os tribunais ficassem vinculados a um parecer deontológico de uma Ordem profissional, qualquer que ela fosse, relativamente à vinculação ou desvinculação do segredo profissional de um dos seus membros, padeceria do vício de inconstitucionalidade substancial.
Por isso, não temos quaisquer dúvidas em assentar que o parecer emitido por uma Ordem profissional sobre cessação ou não do sigilo profissional relativamente a um dos seus membros, apenas vincula estes nas relações internas desses organismo, não tendo eficácia erga omnes, quando essa mesma questão é igualmente suscitada no decurso de um processo em tribunal – neste sentido o Ac. do STJ de 2005/Abr./21 (Processo n.º 05P1300).[Relatado pelo Cons. Pereira Madeira e divulgado em www.dgsi.pt., que versou sobre a quebra do sigilo profissional de um solicitador, aquando da audiência de julgamento, quando o mesmo já tinha prestado testemunho no decurso do inquérito, dizendo respeito a vários crimes de peculato.]
Convém, porém, não esquecer que é cominado como crime de violação de segredo, da previsão do art. 195.º. do Código Penal “Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte”.
Existem, no entanto, causas de exclusão de ilicitude, as quais estão genericamente contempladas no art. 31.º n.º 1 do Código Penal, precisando-se, no seu n.º 2, as seguintes situações: a) “Em legítima defesa”; b) “No exercício de um direito”; c) “No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade”; d) “Com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado”.
Por outro lado e segundo o art. 36.º, n.º 1 do Código Penal “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar”.
No caso de exercício da advocacia, teremos ainda que ponderar aquelas específicas injunções de sigilo profissional do estatuto da respectiva Ordem, assim como o estabelecido na Lei n.º 11/2004, de 27/Mar., relativo ao regime de prevenção e repressão do branqueamento de vantagens de proveniência ilícita, que surgiu na sequência da Directiva n.º 2001/97/Código da Estrada, do Parlamento Europeu e do Conselho de 4/Dez.
De acordo com este último regime, designadamente com o seu art. 29.º, os advogados têm o particular dever de exigir a identificação dos seus clientes nas operações indicadas no art. 20.º al. f) e em que intervenham ou assistam, por conta de um cliente ou noutras circunstâncias, estando o dever de comunicação dessas situações contemplado no art. 30.º, n.º 2 a 5, surgindo aqui um desvio à regra geral do seu n.º 1.
Assim e na conjugação destes normativos teremos forçosamente de concluir que a quebra do sigilo profissional impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do sigilo profissional deve ou não ceder perante outros interesses, designadamente o da colaboração com a realização da justiça penal.
Tal ponderação deve partir do circunstancialismo em causa, designadamente dos factos concretos cuja revelação se pretende, de modo a garantir que, no quadro de uma crise de valores conflituantes, prevaleçam aqueles a que Constituição e a Lei reconheçam prioridade.
Para o efeito e como se aludiu no citado Ac. do STJ de 2005/Abr./21, a resolução de tal conflito passa “pela avaliação da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados por aqueles deveres, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o n.º 2 do art. 18.º, da Constituição, e tendo em consideração do caso concreto”.
No caso temos o interesse constitucional da administração da justiça, mais concretamente a penal, que assume sempre uma relevância de última ratio.
A par desta, temos a consagração constitucional de acesso ao direito, decorrente do art. 20.º, da C. Rep., que implica, entre outras coisas, o correspondente patrocínio judiciário, com a particular relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, a defesa de dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes.
Também diremos que a plenitude de um Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2.º da C. Rep., não só exige um poder judicial independente, como tem subjacente o exercício de uma advocacia livre e responsável, sendo ambas a cara e a coroa da mesma moeda, que é o exercício dos direitos de cidadania.
Por isso, a revelação do conhecimento dos factos obtidos no decurso do exercício da advocacia e só no âmbito destas funções, está especialmente protegida pelo dever de sigilo, pelo que a desvinculação a este, mormente com o sucedido com o respectivo cliente, tem uma natureza excepcionalíssima.
Por isso no Ac. desta Relação de 2004/Nov./03 [Relatora a Des. Onélia Madaleno] [CJ V/207] decidiu-se que “Mostrando-se imprescindível para o apuramento da verdade o depoimento da pessoa que foi advogada do arguido, por não se vislumbrar diligência que possa substituí-lo, justifica-se a quebra do segredo profissional, a fim de que essa advogada possa depor sobre factos de que teve conhecimento em tal qualidade.”
Nesta conformidade, poderemos ponderar as seguintes circunstâncias:
a) os crimes aqui consistem nos de falsificação de documentos, de denúncia caluniosa, crime de difamação, atrás enunciados, cujos bens jurídicos protegidos são de interesse público directo, os dois primeiros, e privado, estando este no entanto em concurso ideal com o segundo;
b) existe a possibilidade de outros meios de prova para a demonstração de tais ilícitos, designadamente através do depoimento da própria D........., que estranhamente não surge testemunha e que o tribunal, sempre poderá determinar, ao abrigo do art. 340.º do C.P.P., continuando a persistir a quebra do sigilo profissional desta, mas aqui com outro tipo de ponderação;
c) por isso, não se mostra indispensável o depoimento da testemunha Lic. C.........;
d) a quebra do sigilo profissional de um advogado, para autorizar o seu depoimento contra o seu cliente, revela sempre natureza muito excepcional.
Por tudo isto e ponderando os valores em causa (ad hoc balancing), afigura-se-nos que a balança pende mais para a não concessão de autorização para a quebra do respectivo sigilo profissional da referida Senhora Advogada, sem prejuízo da arguida autorizar esse testemunho.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, julga-se legítima a escusa da Lic. C......., enquanto advogada que foi da mencionada arguida, em prestar depoimento sobre o que lhe veio ao seu conhecimento na sequência desse relacionamento profissional e sem prejuízo desta autorizar tal testemunho.

Sem tributação.

Notifique e devolva.

Porto, 23 de Novembro de 2005.
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira
Manuel Joaquim Braz