INQUÉRITO JUDICIAL A SOCIEDADE
VIOLAÇÃO DO DIREITO À INFORMAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Sumário

I – A ação especial de inquérito judicial a uma sociedade, nos termos dos arts. 1048.º e segs. do CPCiv., justifica-se quando é invocada a violação do direito do sócio à informação (arts. 216.º e 292.º do CSCom.).
II – Se, em vez disso, é invocada a falta de apresentação ou aprovação de contas, então será de lançar mão do disposto no art. 67.º do CSCom., que regula as situações de apresentação de contas, por parte do órgão de gestão (n.º 1) e a falta de aprovação de contas (n.ºs 4 e 5).
III – Tendo a autora intentado a ação aludida em I, sem alegar que lhe haja sido negada qualquer informação solicitada, antes invocando que o gerente causou danos à sociedade por via de gestão ruinosa – o que nada contende com a falta ou insuficiência de informação solicitada –, tem aquela ação de improceder.

Texto Integral

            Processo n.º 899/20.4T8GRD.C1 – Apelação

            Comarca da Guarda, Guarda, Juízo Local Cível

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA, com residência na Rua ..., ..., ... ...;

Veio intentar a presente Acção Especial de Inquérito Judicial à Sociedade contra:

BB, M... Lda., pessoa colectiva nº ..., com sede na Rua ..., ..., ... ..., ... e;

CC, com residência na Avenida ..., ..., ... ..., ...;

Nos termos do qual peticiona que seja ordenado a realização de Inquérito Judicial à sociedade primeira ré, nos termos dos arts. 1048.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), designadamente a investigação à contabilidade da primeira ré por perito a nomear com o propósito de permitir a identificação dos actos lesivos praticados pela empresa, bem como a quantificação dos eventuais prejuízos causados.

Alega, para tal, que é sócia da sociedade requerida, a qual tem vindo a ser gerida, de facto, em exclusivo pelo, também, sócio e requerido CC, a quem imputa uma “gerência ruinosa e lesiva dos interesses da sociedade”, designadamente, imputa-lhe a prática do seguinte:

- não presta contas da sociedade desde 2014, até à actualidade, o que motivou que em AG ocorrida em 14/9/2019, a requerente e mais duas sócias, comunicaram aos demais sócios que não poderiam nem iriam pronunciar-se no âmbito do objecto da mesa, enquanto não fossem prestadas contas, para o que interpelaram o requerido para que o fizesse.

Não obstante, tal acta não foi redigida, nem foram prestadas as contas.

Tem sido este a gerir os destinos da sociedade, a seu bel-prazer e em prejuízo da sociedade, bastando a sua assinatura para a obrigar;

- deliberou, em Março de 2020, a suspensão da actividade da empresa, para efeitos de IVA;

- decidiu, em Abril de 2020, proceder ao despedimento dos três trabalhadores da empresa;

- em Maio de 2020, decidiu alienar vário património da sociedade, num total de 49.420,00 €;

- emitiu um confissão de dívida e dação em cumprimento a favor de outra empresa, em Junho de 2020, relativamente a bens cujo valor ascende a 28.056,00 € e deliberou voltar a suspender a actividade da sociedade, para efeitos de IVA, tudo com vista a extraviar/ocultar/dissipar bens da sociedade;

- em resultado de inspecção tributária levada a cabo pela Direcção de Finanças ..., verificou-se que por parte da sociedade, houve uma omissão de facturação, de 210.090,60 € e consequente correcção no valor do IVA a pagar no valor de 48.320,84 €, sendo que aquele valor não entrou nos cofres da sociedade, devendo disso, o requerido prestar contas;

- entre 2017 e final de 2018, o requerido, fez “desaparecer” cerca de 130 mil euros de inventário e facturação a clientes apenas 80.648,13 €;

- “falsificou” as IES de 2017 e 2018, constando que existiu “deliberação de aprovação de contas” por unanimidade, em assembleia geral para tal convocada, o que não ocorreu e;

- contraiu, em nome da sociedade, em 18 de Abril de 2018, um empréstimo junto do Banco B..., no valor de 25 mil euros, quando em 31 de Dezembro de 2017, inexistiam quaisquer responsabilidades junto do Banco de Portugal.

Visando a “demonstração/descoberta destas irregularidades/ilegalidades cometidas pelo ora requerido e de outras que eventual e seguramente, venham a surgir do decorrer do inquérito judicial que ora se requer” – cf. artigo 45.º da p.i..

 

A primeira ré deduziu contestação, alegando ter sido constituída em 2005, nunca tendo a requerente participado na sua gerência ou mostrado interesse na condução dos negócios da mesma, não sendo hábito, por acordo de todos os sócios, realizar AG.s, designadamente para aprovação de contas.

Mais refere que o inquérito judicial serve para dar conhecimento ao sócio de informação pedida ao abrigo do disposto no artigo 288.º do CSC, que lhe tenha sido recusada, ou prestada de forma falsa, incompleta ou não elucidativa e não para sindicar os actos da gerência, como o faz a requerente.

Impugna a factualidade alegada pela requerente, justificando as opções que tomou o gerente de facto da sociedade.

Conclui, afirmando que a falta de prestação de contas não constitui fundamento para a realização do inquérito judicial mas sim o previsto no artigo 67.º do CSC, para além de que a requerente não invoca qualquer recusa de prestação de informação ou violação do direito à informação, mas apenas pretende “discutir a tomada de opções do gerente”, o que não integra os pressupostos para a realização do inquérito judicial previsto no artigo 1048.º do CPC, o que, tudo, acarreta a improcedência do pedido.

Cf. despacho proferido em 9/10/20, o M.mo Juiz a quo, determinou o seguinte:

“Antes de mais, convida-se a autora a esclarecer se em algum momento lhe foi recusada a prestação de informação por parte de um (ou de ambos) os réus, devendo, em caso afirmativo, concretizar as circunstâncias de tempo, lugar e modo em que essa recusa ocorreu.

Poderá ainda a autora, querendo, em observância do princípio do contraditório, dizer o que tiver por conveniente quanto à matéria de excepção alegada na contestação, em especial no que se prende com o invocado recurso indevido ao processo especial de inquérito judicial de sociedade – art. 3.º, n.º 3, 6.º, n.º 1, e 547.º, todos do CPC”.

 

Na sequência do que a autora veio reiterar quanto “à recusa de prestação de informação”, o que já havia alegado nos artigos 3.º a 7.º, da p.i; ou seja, não pronúncia na AG de 14/9/19, por falta de prestação de contas e o requerido ter praticado os demais actos descritos na p.i. e relativamente “ao recurso indevido ao inquérito judicial previsto nos artigos 1048.º e seg.s do CPC” que se deve ao facto de o requerido ser o único gerente da sociedade e não prestar contas desde 2014 e ter sonegado/dissipado o património da sociedade, como descrito na p.i., resultando do artigo 67.º do CSC, que se não forem prestadas as contas no prazo previsto, pode qualquer sócio requerer ao tribunal que se proceda a inquérito, do que, tudo, no seu entender, justifica e legitima a realização do pretendido inquérito judicial.

Designado dia para inquirição de testemunhas, procedeu-se à realização da diligência, com observância do formalismo legal, tendo-se procedido à respectiva gravação, após o que que foi proferida a sentença de fl.s 72 a 79, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se julgou a presente acção improcedente por não provada e, consequentemente, não se determinou a realização do peticionado inquérito, ficando as custas a cargo da autora.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a autora AA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 157), rematando as respectivas motivações, com o que apelida de “conclusões”, ao longo de 48 páginas, ao arrepio do comando ínsito no artigo 639.º, n.º 1 “de forma sintética”, pelo que não se procede à sua transcrição, sem embargo de, em sede própria, se conhecer das questões nelas arguidas.

Não foram apresentadas contra-alegações.

A título de “questão prévia”, cumpre averiguar da utilidade do recurso, no que respeita à impugnação da matéria de facto.

Entendemos não ser de proceder à pretendida reapreciação da matéria de facto, nos moldes em que a peticiona a recorrente, por a mesma se revelar de absoluta inutilidade para o julgamento da acção em apreço.

Efectivamente, como melhor resulta do teor de fl.s 118 a 124 das alegações de recurso, toda a matéria de facto que a autora pretende ver alterada contende com a descrição dos factos/actos praticados pelo gerente da sociedade, os quais, no seu entender, causaram danos à sociedade; se passe a considerar como provada a matéria dada como não provada; se adite matéria de facto não tida em consideração e que, igualmente, relata a actividade comercial do gerente; que o item 23.º passe a ter-se como não provado; que se considere como não provada a dívida a que se referem os itens 13.º e 14.º e se eliminem os itens 21.º e 27.º dos factos provados.

A única referência à impugnação da matéria de facto que não tem que ver com a condução dos negócios da sociedade, por parte do gerente, é a que consta da alínea A) dos factos não provados, que se refere à alegada interpelação do gerente, por parte da requerente e outras sócias, para que aquele prestasse contas, relativamente aos anos de 2014 e até à data da propositura da acção.

Ora, como adiante se referirá, os fundamentos para a procedência do pedido de realização do inquérito judicial a que se referem os artigos 1048.º e seg.s do CPC, apenas contendem com a violação do direito do sócio à informação que solicitar sobre a vida societária, que lhe for negada ou deficientemente prestada e não com a prática de actos, por parte da gerência da sociedade, que o requerente repute de danosos ou prejudiciais para a vida da sociedade.

Tal desiderato terá de ser alcançado por outros meios, designadamente a nulidade de deliberações sociais ou a paralisação dos efeitos dos negócios levados a cabo pelos gerentes e/ou a destituição destes.

Os factos vertidos nos itens em referência nada têm que ver com a solicitação de informações, mas apenas e tão só com a prática comercial da gerência da sociedade requerida.

Por outro lado, a falta de prestação de contas não dá origem ao inquérito judicial previsto nos artigos 1048 e seg.s do CPC, mas sim do previsto no artigo 67.º do CSC, com outros tramites e finalidades. Pelo que é irrelevante, para a decisão a proferir, a matéria descrita na alínea A) dos factos não provados.

Consequentemente, rejeita-se o recurso na vertente da reapreciação da matéria de facto dada como provada e não provada na decisão recorrida (de resto, refira-se, já a produção de prova em 1.ª instância, não devia ter tido lugar, dada a irrelevância da matéria alegada, como se referiu no despacho de 9/10/20, de que não se retiraram todas as ilações), mantendo-se inalterada a matéria de facto considerada como assente e não provada na decisão proferida em 1.ª instância.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se se encontram preenchidos os requisitos previstos no artigo 216.º, n.º 1, do CSC, para que se proceda ao requerido inquérito judicial à 1.ª ré.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1) A autora é sócia da sociedade primeira ré na qual detém actualmente: uma quota no valor nominal de €16.800,00; uma quota em comum e sem determinação de parte ou direito no valor de €40.800,00; uma outra quota, de igual modo em comum e sem determinação de parte ou direito, no valor de €98.400,00;---

2) A segunda ré é actualmente constituída pelos seguintes sócios:---

a. CC (aqui segundo réu), casado, titular do NIF ..., residente na Av. ..., ... ...;

b. CC, casada, titular do NIF ..., residente na Rua ..., ... ...;

c. DD, casada, titular do NIF ..., residente na Rua ..., ... ...;

d. EE, casada, titular do NIF ..., residente na Rua ... ...;

e. FF, casada, titular do NIF ..., residente na Estrada Nacional ..., ... ...;

f. AA (aqui autora), casada, titular do NIF ..., residente na Rua ..., ..., ... ...;

3) No dia 14 de Setembro de 2019 teve lugar uma Assembleia Geral da sociedade ré;---

4) A acta da Assembleia referida em 3) não foi redigida;---

5) Pelo menos desde o ano de 2014, mais concretamente desde o falecimento do primitivo sócio gerente BB, que o segundo réu se encontra a administrar e a gerir a sociedade ré, exercendo a função de único gerente de facto;---

6) Basta a assinatura de um dos gerentes nomeados para obrigar a sociedade;---

7) A sociedade ré encontra-se sem prestar contas, desde, pelo menos, o ano de 2014;---

8) Por email de 10 de Abril de 2020, o gabinete de contabilidade da empresa, contratado pelo Requerido CC, informa de que “a mesma viu a sua actividade SUSPENSA, para efeitos de IVA, desde 31-3-2020, por decisão da respectiva gerência”;---

9) Por email também de 10 de Abril de 2020, o supra referido gabinete de contabilidade comunica que “pede-nos a respectiva Gerência vos informemos que a 31-3-2020 ocorreu o despedimento por extinção dos 3 postos de trabalho, conforme documentos que anexamos”;---

10) Por email de 26 de Maio de 2020, o mesmo gabinete de contabilidade transmite o seguinte: “informamos ter tido a prudência de passar os activos fixos tangíveis para a Herança, a 31-03-2020, ANTES de suspendermos a actividade da Sociedade Comercial. Para o efeito, emitimos a factura cuja cópia se anexa”;---

11) O segundo réu ordenou a emissão da factura ...5 datada de 31 de Março de 2020;---

12) Por email de 10 de Junho de 2020, o gabinete de contabilidade transmite que “informamos ter procedido à emissão das facturas que a seguir anexamos, nomeadamente: factura da Herança para a Sociedade Comercial, transferido os activos que depois foram entregues ao fornecedor a quem a Sociedade Comercial devia dinheiro; a factura da Sociedade Comercial para esse fornecedor, no seguimento do Acordo de Dação em Cumprimento que foi assinado, e cuja cópia anexo. Terminamos, informando que voltámos a SUSPENDER a actividade da Sociedade Comercial, para efeitos de IVA, junto da AT, com efeitos desde 9-6-2020”;---

13) O segundo réu, em representação da primeira ré, sendo esta na qualidade de segunda outorgante, outorgou um documento denominado “contrato de dação em cumprimento”, o qual se enconta junto a fls. 27 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido:---

14) Ao abrigo do contrato supra referido, a segunda ré declarou-se devedora perante a primeira outorgante da quantia de €30.241,62 em virtude do fornecimento de materiais de construção, tendo declarado ainda ceder àquela os seguintes bens para satisfação parcial do crédito:---

a. Compressor com martelo, vibrador e respectivas mangueiras, no valor de 1.845,00€ (IVA incluído);

b. Carrinha ... de matrícula RL-..-.., no valor de 1.845,00€ (IVA incluído);

c. Compactador de terras da marca ..., no valor de 350,00€ (IVA incluído);

d. Serra eléctrica com bancada, no valor de 246,00 € (IVA incluído);

e. Retroescavadora da marca ..., no valor de 9.000,00 € (IVA incluído);

f. Mini-Escavadora da marca ..., no valor de 7.000,00€ (IVA incluído);

g. Carrinha da marca ... com a matrícula ..-..-OH, no valor de 6.000,00€ (IVA incluído);

h. Betoneira de 180l da marca ..., no valor de 150,00 € (IVA incluído);

i. Betoneira de 200l sem marca, no valor de 200,00 € (IVA incluído);

j. Martelo demolidor eléctrico da marca ..., no valor de 300,00 € (IVA incluído);

k. Cortador de azulejos ..., no valor de 100,00 € (IVA incluído);

l. Cortador de azulejos de 1,40m da marca ..., no valor de 600,00 € (IVA incluído);

m. Máquina de corte de azulejos a água, no valor de 300,00 € (IVA incluído);

n. Rebarbadora da marca ..., no valor de 120,00 € (IVA incluído);

15) No âmbito do procedimento inspectivo pela Divisão de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças da ... credenciado pelas ordens de serviço externas nº ..., ... e ..., foram detectadas determinadas ilegalidades relativamente ao período de “facturação 2016 12T”, designadamente uma “omissão de facturação de 210.090,60 €”, e a consequente correcção em sede de “IVA a pagar no valor de 48.320,84€, tudo conforme relatório junto aos autos a fls. 30-34, o qual aqui se dá por inteiramente reproduzido;---

16) De acordo com o relatório referido em 15), o segundo réu “procedeu à regularização voluntária das faltas cometidas tendo, para tal, substituído a declaração periódica de IVA, referente ao período 2016 12T”;---

17) Da IES apresentada a 10 de Julho de 2018 relativa ao exercício de 2017 consta a informação de que as contas foram aprovadas a 23 de Março de 2018 por unanimidade com “deliberação de aprovação de contas” devidamente titulada nos termos previstos no Código das Sociedades Comerciais “em assembleia geral regularmente convocada”;---

18) Da IES apresentada a 12 de Julho de 2019 relativa ao exercício de 2018 consta a informação de que as contas foram aprovadas a 31 de Março de 2019 por unanimidade com “deliberação de aprovação de contas” devidamente titulada nos termos previstos no Código das Sociedades Comerciais “em assembleia geral regularmente convocada”;---

19) O segundo réu contraiu, em nome da sociedade, um empréstimo em nome da sociedade junto do Banco B..., no valor de 25.000,00 € aos 18 de Abril de 2018;---

20) A Sociedade aqui Ré, foi constituída em 7 de outubro de 2005, por vontade do Sr. BB e esposa, GG, pais da Autora e dos demais sócios da sociedade;---

21) Desde a criação da sociedade e até ao seu óbito, o Sr. BB era quem dominava, integralmente, os desígnios da sociedade, sendo ele o único gerente de facto;---

22) O Sr. BB assumiu a sociedade e tais funções, de sócio maioritário e gerente, até data não concretamente apurada, passando o segundo réu a assumir a gerência, pelo menos, desde o ano de 2013, e foi apenas este quem trabalhou e prosseguiu junto com o seu pai o objeto social da empresa;---

23) A sociedade foi constituída em 2005, tendo sido adquirido o competente livro de atas nessa data, sendo que, até ao dia de hoje, foram elaboradas três actas;---

24) A indicação de “assembleia geral regularmente convocada” e “deliberação de aprovação de contas”, indicadas nas respetivas IES dos exercícios respetivos uma mera indicação de “visto/caixa de verificação” em campo informático obrigatório para poder submeter a documentação legalmente exigida;---

25) A prestação de contas dos múltiplos exercícios económicos desde a sua fundação foi sempre submetida dessa forma, fosse pelo atual Contabilista Certificado, fosse pelo anterior Contabilista Certificado;---

26) Nunca houve sequer uma acta com um ponto na ordem de trabalhos referente à aprovação de contas, por tal hábito de realização de Assembleias Gerais anuais de Sócios nunca haver sido constituído desde a data da fundação da Empresa;---

27) O montante não facturado e que resultou no pagamento de cerca de €48.000 em sede de IVA não se reporta somente ao exercício de 2016, estando antes ligada a obras em curso ligadas ao sector da construção civil, em que muitos pagamentos são efetuados em dinheiro, à margem da contabilidade;---

II. Factos não provados

A. Que na Assembleia Geral referida em 3) a autora e mais duas outras sócias comunicaram à Assembleia e aos demais sócios que não poderiam e não iriam pronunciar-se no âmbito de qualquer apreciação e decisão sobre a liquidação e dissolução da sociedade sem que o sócio gerente CC prestasse contas relativamente aos anos de 2014 até à actualidade, tendo o mesmo sido interpelado para tal prestação de contas;---

B. Que o segundo réu tivesse alienado os seguintes bens e pelos supostos seguintes valores, num total de €49.420,00;---

o Prumos metálicos no valor de 100,00 €;

o Mini Carregadora no valor de 2.500,00 €;

o Rectro Escavadora no valor de 10.000,00 €;

o Caldeira no valor de 100,00 €;

o Escavadora no valor de 3.000,00 €;

o Betoneira no valor de 500,00 €;

o Betoneira eléctrica no valor de 150,00 €;

o Cilindro no valor de 600,00 €;

o Vibromax no valor de 700,00 €;

o Martelos demolidores no valor de 200,00 €;

o Martelos de furar no valor de 150,00 €;

o Compressor no valor de 120,00 €;

o Demolidores no valor de 120,00 €;

o Máquina de lavar pedras no valor de 200,00 €;

o Viatura, de marca ..., modelo ..., matrícula RL-..-.. no valor de 6.500,00€;

o Viatura, de marca ..., de matrícula ..-..-OH no valor de €5.000,00;

o Secretária e cadeiras no valor de 50,00 €;

o Computador no valor de 50,00 €;

o Fotocopiadora no valor de 50,00 €;

o Rebarbadora no valor de 30,00 €;

o Motoniveladora no valor de 3.600,00 €;

o Cilindro no valor de 600,00 €;

o Pá Carregadora no valor de 600,00 €;

o Grua no valor de 1.500,00 €;

o Viatura, marca ..., modelo ... P....4, de matrícula ED-..-.. no valor de €10.000,00;

o Viatura, marca ..., modelo ... (124), de matrícula ..-..-AU no valor de €3.000,00;

C. Que por via do contrato de dação em cumprimento, o segundo réu tenha actuado com a intenção de proceder ao extravio e/ou ocultação e/o dissipação de bens;---

D. Que o segundo réu soubesse que a sua qualidade de gerente não lhe permia transmitir o direito de propriedade do objectos e equipamentos acima aludidos, ou quaisquer outros pertencentes à sociedade, ou de arrogar-se de legitimidade para confessar (alegadas) dívidas da sociedade, sem autorização da sociedade;---

E. Que o segundo réu oculte ou sonegue rendimentos à sociedade ré;---

Se se encontram preenchidos os requisitos previstos no artigo 216.º, n.º 1 do CSC, para que se proceda ao requerido inquérito judicial à 1.ª ré.

A autora fundamenta a sua pretensão de realização de inquérito judicial á 1.ª ré no facto de o gerente, não obstante lho ter solicitado, não apresentar contas desde 2014 e imputando-lhe a prática dos factos acima descritos, que qualifica de gestão ruinosa e danosa dos interesses da sociedade, visando com a propositura da presente acção, descobrir as “irregularidades/ilegalidades cometidas pelo requerido e de outras que eventual e seguramente , venham a surgir do decorrer do inquérito”, como conclui no artigo 45.º da p.i..

Improcedeu tal pedido porque se considerou que a autora não logrou demonstrar que, em algum momento lhe tenha sido omitido, injustificadamente, algum esclarecimento ou informação, sobre qualquer concreto assunto da vida social, que houvesse solicitado e porque, relativamente à falta de prestação de contas “não se fez prova sólida, cabal e suficiente que o segundo réu tenha sido alguma vez interpelado a prestar contas da sociedade, e muito menos que tenha existido da parte deste último uma efectiva recusa na prestação de informação pedida”.

Desde já se diga, que é de manter tal decisão, embora com outra fundamentação, no que se refere à questão da falta de prestação de contas.

Nos termos do disposto no artigo 214.º, n.º 1, do CSC, todo o sócio tem direito a que lhe seja prestada informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade e bem assim a que lhe seja facultada na sede social a consulta da respectiva escrituração, livros e documentos.

Como refere Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, 1989, a pág. 293 “A informação (…) que é fornecida pelo gerente ao sócio, deve ser verdadeira, completa e elucidativa. Com estes adjectivos pretende-se que o gerente forneça ao sócio o real conhecimento de um facto da vida social”, concretizando que o sócio não obtém a informação pedida se a resposta obtida não for verdadeira, completa e elucidativa; não será completa se não forem revelados factos conexos que poderiam alterar o sentido da resposta ou de forma a que dificulte o seu entendimento (autor e ob. cit., pág.s 293 e 294).

Resultando tal direito do facto de o sócio ser “um prestador de capital” e como tal tem direito a ser inteirado do modo como a sua entrada está a ser gerida e dos respectivos resultados – cf. autor e ob. cit., a pág. 282.

Por outro lado, como refere HH, in CSC Em Comentário, Vol. 3.º, 2.ª Edição, Almedina, 2016, a pág. 321, a recusa de informação pode ser entendida em sentido amplo, no caso de fornecimento de informação falsa, incompleta, ambígua, prolixa ou não elucidativa e o poder de consultar ou inspeccionar documentação ou em sentido estrito, caso em que é negado ao sócio o direito de obter informação sobre um facto específico da vida social, da gestão da sociedade.

Como refere Margarida Costa Andrade, CSC, Em Comentário, Vol. 1.º, 2.ª Edição, Almedina, 2017, a pág. 377, o direito do sócio à informação, previsto no artigo 21.º, n.º 1, al. c), do CSC, constitui um direito social autónomo, permitindo ao sócio formular questões acerca da vida da sociedade e obter desta resposta verdadeira, completa e elucidativa, que constitui o direito à informação stricto sensu, abrangendo, ainda, o direito de consulta, que permite o direito de consulta, examinando os livros de escrituração e outros documentos da empresa e o direito de inspecção, que faculta ao sócio vistoriar os bens da sociedade.

João Labareda in Direito À Informação, Problemas do Direito das Sociedades, IDET, Almedina, 2003, a pág.s 124/5, refere que o CSC contém um conjunto de preceitos, que impõem à sociedade e aos seus órgãos, múltiplas obrigações de revelar aos sócios as circunstâncias da vida societária e de lhes facultar documentos, nuns casos sem que seja preciso que o sócio tome a iniciativa para tal; outros que atribuem ao sócio o direito a ser informado e outras “normas que, expressa e directamente, conferem ao sócio a faculdade de, tomando a iniciativa, solicitarem à sociedade através dos respectivos órgãos, os esclarecimentos que entendam oportunos sobre a vida ou os negócios sociais, bem como a consulta de documentos ou a inspecção de bens”.

Acrescentando, a pág. 126 que existe um “grupo de normas que, essencialmente, se destinam a dotar o sócio de instrumentos de reacção à violação, por acção ou omissão, do direito à informação”, em que se inclui, em primeira linha, o recurso ao inquérito judicial, bem como a obtenção da informação pretendida por apelo a outras instâncias societárias; paralisando ou impedindo a produção dos efeitos a que se destinavam certos actos societários ou mediante a “realização coactiva do direito postergado, nomeadamente através do recurso a inquérito judicial” – cf. pág. 141, do Estudo e obra ora citados.

Também, Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 6.ª Edição, Almedina, 2016, a pág.s 374/5 e 382, refere que o direito do sócio à informação abrange tanto o direito a consultar os elementos da sociedade, incluindo a inspecção dos bens sociais e obtenção de informações por escrito e o direito do sócio a obter as informações inerentes e necessárias para uma adequada e esclarecida formação das deliberações sociais. E em caso de violação do direito à informação, de forma injustificada e indevidamente satisfeita pela sociedade, pode o sócio reagir contra tal situação, lançando mão do inquérito judicial, que “existe para garantir a efetivação do direito à informação”, como acrescenta a pág. 392.

Inquérito judicial, este, que pode ter dois fundamentos:

- o previsto no artigo 67.º, do CSC, que regula as situações de apresentação de contas, por parte do órgão de gestão (n.º 1) e a falta de aprovação de contas (n.os 4 e 5) e;

- a falta ou cumprimento defeituoso do direito do sócio à informação (artigos 216.º e 292.º do CSC).

Consequentemente, consoante o fundamento invocado para a realização de inquérito judicial à sociedade, assim será de lançar mão do disposto no artigo 67.º do CSC (no caso de se invocar a falta de apresentação ou aprovação de contas) ou o processo previsto nos artigos 1048.º e seg.s do CPC (se for invocada a violação do direito à informação, quer em sentido estrito quer no caso de cumprimento defeituoso de tal direito).

Como referem Ana Maria Rodrigues/Rui Pereira Rodrigues in CSC Em Comentário, Vol. 1.º, 2.ª Edição, Almedina, 2017, a pág.s 855/6:

“…desde que entrou em vigor o CSC, é este inquérito, conforme previsto e regulado no art. 67.º, o meio processual adequado para exigir judicialmente a prestação de contas, e não mais a prestação de contas dos arts. 1014-º s. do CPC.

Sendo o motivo de recurso aos tribunais a referida falta de apresentação de contas, segue-se a tramitação prevista no art. 67-º, que difere ainda da que o CPC reserva para o inquérito judicial à sociedade previsto nos arts. 1479-ºs. do CPC – e onde se ressalva, precisamente, o disposto no art. 67-º (v. n.º 3 do citado art. 1479-º)”.

O mesmo refere Remédio Marques, ob. cit, Vol V, 2.ª Edição, Almedina, 2018, a pág.s 263/4, segundo o qual, “…à falta de apresentação do relatório de gestão e de prestação de contas não pode reagir-se por meio de inquérito judicial previsto no artigo 1048-º e s. do CPC, mas antes por via do inquérito previsto no artigo 67-º do CSC, cuja tramitação prevalece, neste particular, sobre a do CPC, pois é um processo especialíssimo.

Não se esqueça que o inquérito às contas, aqui previsto não equivale ao inquérito judicial previsto no art. em comentário. (292.º do CSC)

(…)

O processo previsto no n.º 3 do art-º 1048-º CPC utiliza-se quando o inquérito judicial tenha por fundamento a omissão da pontual apresentação, ou seja a omissão da apresentação nos dois meses seguintes ao termo do prazo fixado no artigo 65-º, n.º 5, CSC, do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de prestação de contas. Já o processo previsto no n.º 1 do artigo 1048-º do mesmo Código utiliza-se noutros casos em que a lei, como por exemplo sucede nos artigos 31-º, n.º 3, e 216-º do CSC, faculta ao interessado inquérito judicial à sociedade”.

Ali referindo e na mesma obra, Vol. 3.º, 2.ª Edição, Almedina, 2016, pág.s 327/8 que “Atenta a legalidade das formas processuais, há, nestes casos, erro na forma de processo, já que o trâmite respeitante a esta específica pretensão é o previsto no art. 67-º do CSC, e não o estatuído no art. 1048-º e s. do CPC”.

No caso em apreço, já se mostra ultrapassada a fase do indeferimento liminar ou de correcção dos articulados, pelo que não se curará da conformidade do requerimento inicial com o disposto no artigo 1048.º, n.º 1, do CPC, de acordo com o qual, se exige ao requerente que alegue os fundamentos do pedido de inquérito e a indicação dos pontos de facto que interessa averiguar.

Como acima referido, o que urgia averiguar no caso em apreço era se à autora foi negado o direito à informação ou cumprimento defeituoso de tal direito, no seguimento de ter solicitado informações relevantes ao sócio gerente da sociedade, que lhas negou ou prestou de forma deficiente ou falsa, para além da questão da falta de prestação de contas desde 2014.

O problema é que, como referido na decisão recorrida, a autora não alegou, em concreto, ter solicitado quaisquer informações ao gerente da sociedade, apenas se limitando a criticar o giro e as opções comerciais tomadas pelo gerente e, consequentemente, não conseguiu provar os fundamentos de facto em que baseia a sua pretensão, não demonstrou os factos concretos em que justifica o pedido de realização do inquérito judicial á sociedade ré.

Mais uma vez seguindo J. P. Remédio Marques, ob cit., Vol. 3.º, pág. 326, tais factos são de considerar como constitutivos do direito a que se arroga a autora, ora recorrente e, como tal, na ausência da sua demonstração, tem a decisão de lhe ser desfavorável, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Como ali se diz, ao requerente do inquérito cabe provar a sua qualidade de sócio, a recusa da informação pedida à gerência ou a prestação de informação falsa, incompleta, prolixa ou ambígua ou, em geral, não elucidativa.

Acrescentando que “… o inquérito judicial não pode ser imotivado, nem, tão pouco, pode ser baseado em meras suspeitas de irregularidades na administração dos bens sociais. Deverá, isso sim, fundar-se em factos concretos cuja prova cabe a quem pede o inquérito, os quais deverão revelar a falsidade da informação solicitada ou a sua insuficiência”.

Reitera-se que, in casu, a autora limitou-se a alegar que o gerente da sociedade levou a cabo uma série de actos/factos, que são do seu conhecimento (tanto que os descreve na petição inicial), e que na sua perspectiva, são lesivos dos interesses da vida societária ou que o mesmo não tinha competência para os concretizar.

Isto é, não alegou que lhe tenha sido negada qualquer informação que solicitou, mas sim que o gerente, com a sua actuação, causou danos à sociedade, porque dela fez uma gestão ruinosa, o que nada contende com a falta ou insuficiência de informação solicitada, daí, a inexorável improcedência do pedido que formulou.

Como acima referido, no inquérito judicial previsto nos artigos 1048.º e seg.s do CPC, apenas está em causa a recusa de informação; prestação de informação presumivelmente falsa ou prestação de informação deficiente ou ambígua.

Nada disto a autora alegou, como flui do acima exposto, tendo de improceder a sua pretensão.

E a esta conclusão não obsta o facto de não serem prestadas contas desde 2014.

Como acima se referiu, a falta de prestação de contas dá origem ao inquérito previsto no artigo 67.º do CSC ou ao procedimento previsto no artigo 1057.º do CPC e não ao previsto no artigo 1048.º e seg.s do CPC, de que a autora lançou mão, pelo que tal fundamento não legitima, no âmbito dos presentes autos, o recurso ao inquérito judicial requerido, reiterando-se, que, nesta fase, já não pode aproveitar-se como válido, para os fins pretendidos, o requerimento inicial, dada a existência de erro na forma de processo, como acima já explicitado.

Efectivamente, como acima já aflorado, no caso de o pedido da realização de inquérito judicial ser a falta de prestação de contas, cf. artigo 67.º, n.os 1 e 2, do CSC, o pedido a formular é o de apresentação da contas em falta ou, não sendo as mesmas apresentadas, o de nomeação de um gerente ou administrador para as elaborar e submetê-las à apreciação do órgão competente.

Mas, este não é o fim tido em vista pela requerente. Analisado o pedido formulado e inerente fundamentação, a mesma não pretende a prestação de contas pelo réu ou por um gerente nomeado pelo tribunal. O que a mesma pretende é, isso sim, a realização de um inquérito a fim de se apurarem as irregularidades que aponta e em que se inclui a falta de prestação de contas.

Ora, como acima já referido, o inquérito judicial a que se refere o artigo 1048.º do CPC, não tem como fundamento a suspeita de graves irregularidades praticadas pelos administradores no exercício das respectivas funções. Tal fundamento esteve previsto na vigência da Lei n.º 49381, de 15 de Novembro de 1969 (cf. seu artigo 29.º), mas deixou de estar previsto no ora referido artigo 1048.º, que só se baseia na violação do direito à informação, o que, reitera-se, in casu, não se verifica.

Por último, uma nota relativamente ao que a autora refere na sua conclusão 118.ª (possibilidade de o Juiz a quo ter solicitado o aperfeiçoamento da p.i..

Como consta do relatório que antecede e dos autos, o M.mo Juiz convidou a autora a fazê-lo (despacho de 9/10/20). Só que a autora se limitou a reproduzir o que já alegara na p.i..

Pelo que, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 26 de Abril de 2020.