INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
SENTENÇA DE GRADUAÇÃO
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

Deve determinar-se a extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, do apenso de reclamação de créditos em insolvência, se os autos principais tiverem sido encerrados por insuficiência de bens, nos termos dos arts. 232.º, n.º 1, e 233.º, n.º 2, al. b), do CIRE, obstando, de acordo com a regra deste último preceito, a que seja proferida sentença de verificação e graduação de créditos.

Texto Integral


Processo n.º 1072/21.0T8ACB-B.C1 – Apelação

            Comarca de Leiria, Alcobaça, Juízo de Comércio

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Nos autos de insolvência, em que foi declarada a insolvência de “Pastelaria A..., Unipessoal, L.da”, já identificada nos autos, fixou-se, na respectiva sentença em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos.

Na sequência do que se processou o presente apenso de reclamação, verificação e graduação de créditos e findo tal prazo o Sr. A.I. juntou aos autos a lista de credores reconhecidos, em que se inclui o credor AA, sendo-lhe reconhecido um crédito, com a natureza de privilegiado, no montante global de 13.838,80 € (cf. fl.s 5).

A lista de credores apresentada não foi impugnada.

Conforme decisão proferida nos autos principais, o processo foi encerrado por insuficiência de bens que integrassem a massa insolvente, nos termos do artigo 232.º, n.º 1, do CIRE.

Como decorre do Apenso “C”, foi aberto o incidente de qualificação da insolvência, no âmbito do qual o A.I. requer que a insolvência seja classificada como culposa, devendo ser afectada por tal qualificação, a gerente BB.

Ainda não foi proferida decisão de qualificação da insolvência.

Após a junção da lista de créditos reconhecidos, no presente Apenso, foram os autos conclusos ao M.mo Juiz, o qual, cf. decisão de fl.s 7 e 8 (aqui recorrida), procedeu ao saneamento tabelar dos autos e determinou a extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 233.º, n.º 2, al. b), do CIRE, nos seguintes termos:

Nos termos do disposto no art.130.º nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) «Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo Administrador da Insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que consta dessa lista.»

Neste caso, todavia, considerando que nos encontramos perante a insolvência de uma pessoa coletiva, por um lado, e que o processo principal se mostra encerrado, por outro, inexiste no nosso modesto entender e por ora qualquer efeito útil na prolação da presente sentença de graduação de créditos, atentas aquelas que são as consequências legais de um encerramento do processo principal nos termos previstos no art.233.º do CIRE.

*

III.

Nesta decorrência, determino a extinção do presente apenso de graduação de créditos por impossibilidade superveniente da lide, nos termos previstos na al. b) do n.º 2 do art. 233.º do CIRE.

Valor tributário: o do processo principal.

Sem custas (art. 303.º do CIRE).”.

Inconformado com a mesma, dela interpôs recurso, o credor, AA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos do Apenso e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 25), apresentando as seguintes conclusões:

1.º O processo de insolvência foi declarado encerrado nos termos do disposto nos artigos 230º nº 1, al d) e 232º, nº 2, CIRE em 20/01/2022.

2.º A sentença do Tribunal a quo de que se recorre, determinou não proferir decisão de verificação e graduação de créditos por entender que “inexiste (...) qualquer efeito útil na prolação da presente sentença de graduação de créditos”.

3.º Resulta dos factos carreados aos autos principais na sua petição inicial e na respectiva Reclamação de Créditos, o Recorrente detém sobre a Insolvente, créditos, de natureza laboral, decorrentes de contrato de trabalho que manteve com aquela entidade empregadora entre Novembro de 2017 e Março de 2021, no valor global de 13 839,80€ que, reclamados, tempestivamente, não foram impugnados e foram reconhecidos pelo senhor Administrador de Insolvência, conforme Lista de Credores Reconhecidos apresentada nos termos do artigo 129º, CIRE que deu origem ao presente apenso.

4.º Sobre tais créditos do Recorrente, impende um prazo prescricional de 1 ano, contado do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho (CT, Artº 337º, nº 1).

5.º Corre termos pelo apenso C, Incidente de Qualificação da Insolvência (CIRE) na qual é pedido pelo senhor Administrador de Insolvência, que a mesma seja “Qualificada como Culposa, devendo ser afectada por tal qualificação a gerente BB”, sendo que existe séria probabilidade, atentos os elementos carreados aos autos, desta, assim, o vir a ser qualificada.

6.º Entre as consequências da qualificação da Insolvência como culposa, figura a condenação elencada no artigo 189º, nº 2, al. e) do CIRE, ou seja, a condenação da gerente BB a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património.

7.º Ora, tem a jurisprudência maioritariamente entendido que «a sentença proferida no âmbito de um incidente de qualificação de Insolvência que condena os afectados pela qualificação da insolvência como culposa (...) só constitui título executivo para o efeito de exigir a indemnização correspondente ao valor de determinados créditos quando conjugada ou complementada por outro título que ateste a existência e o valor desses créditos.» (Cfr., entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2020, cit.)

8.º «Não existindo esses títulos – em virtude de o processo ter sido encerrado por força do disposto no artigo 39º do CIRE sem que houvesse lugar a reclamações e verificações de créditos – aquela sentença só constituiria título executivo se for conjugada ou complementada por qualquer outro título que ateste a existência e valor do crédito que se pretende exigir na execução.» (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2020, cit.)

9.º Raciocínio que se estenderá, por maioria de razão, ao encerramento determinado nos termos dos artigos 230º nº 1, al d) e 232º, nº 2, CIRE, como é o caso dos autos.

10.º «Para esse efeito, não vale a sentença de declaração de insolvência ainda que nesta tenham sido julgados provados em função dos quais seria possível concluir pela existência do(s) crédito(s) que se pretende(m) exigir, uma vez que a decisão aí proferida – que se limitou a declarar a insolvência – não reconheceu esse(s) crédito(s) e o caso julgado que com ela se formou não inclui os factos que ali se julgaram provados para o efeito de deles se extraírem outras consequências (designadamente o reconhecimento dos créditos) além das contidas na decisão aí proferida e que se limitou à declaração da insolvência.» (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2020, cit.)

11.º Ora, o aqui Recorrente não obteve sentença condenatória da Insolvente que reconhecesse a existência e o valor dos seus créditos, no processo declarativo que instaurou, tempestivamente, e que correu termos pelo Juízo de Trabalho ..., Proc. 843/21...., por esta ter sido julgada extinta em virtude da declaração de insolvência da Insolvente (AUJ 1/2014);

12.º Por força da sentença ora proferida nestes autos, da qual se recorre, não obstante ter sido o Requerente da Insolvência, não terá – se esta assim se mantiver –, decisão que reconheça a existência e o valor dos seus créditos, os quais, reitera-se, foram reclamados

tempestivamente, não foram objecto de impugnação e resultaram reconhecidos pelo senhor Administrador de Insolvência;

13.º Face à não prolação de sentença nestes autos de Reclamação de Créditos – por se entender que “inexiste (...) qualquer efeito útil” nessa prolação, como foi decidido pelo Tribunal a quo – vê o Recorrente coarctado e, quiçá, mesmo impedido o seu direito de, no caso de ser proferida sentença que qualifique a Insolvência como culposa, exigir os seus créditos à gerente BB, por manifesta ausência de título executivo que ateste a existência e o valor dos seus créditos sobre a Insolvente.

14.º Do exposto, resulta que seria tamanho esforço – processual e financeiro – a seu ver, inexigível e contrário ao espírito do sistema jurídico no seu todo, que, chegado aqui, tivesse o Recorrente que – se esta ainda se mostrasse tempestiva – lançar mão de mais uma acção judicial contra a Insolvente que lhe viesse a reconhecer os seus créditos ou que, perante a inviabilidade dessa acção por decurso do prazo de prescrição, não pudesse exigir os seus direitos a quem fosse abrangido pela condenação decorrente do artigo 189º, nº2, al e) do CIRE, por não dispor de título executivo bastante que os reconhecesse, nem lhe ser possível obtê-lo.

15.º Razão pela qual se pugna, que a prolação de sentença de verificação e graduação de créditos, terá, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo e, no caso dos autos, manifesta utilidade: a de garantir a existência de um título executivo ao aqui Recorrente (e os demais credores), para que este, munido da sentença que venha a qualificar a Insolvência como culposa, possa exigir da pessoa afectada por tal qualificação, os seus direitos de crédito. (CIRE, 189º, nº 2, al. c) )

16.º A decisão recorrida, encerra, assim e salvo melhor opinião, um erro de julgamento quanto a utilidade da sua prolação, o qual se impõe, por imperativo de justiça, revogar, determinando-se, em consequência que seja proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com as legais consequências.

17.º Por força de tal erro, a sentença proferida deixou de pronunciar-se acerca de questões que devia apreciar, à luz do quadro legal efectivamente aplicável, em clara violação do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615.° do CPC, sendo por conseguinte e, em consequência, nula, o que se invoca.

18.º Mostram-se violados, entre outros, os artigos 608º, nº 2 do NCPC e 130º nº 3 CIRE.

TERMOS EM QUE deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, ser considerada útil a prolação de sentença de verificação e graduação de créditos determinando-se que o Tribunal de 1ª Instância a profira ou, em alternativa e consequentemente, seja a mesma proferida por esse Tribunal da Relação, com as legais consequências, assim se fazendo JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.

O M.mo Juiz, cf. despacho de fl.s 24, pronunciou-se no sentido de a decisão recorrida não padecer da invocada nulidade, com o fundamento em que na mesma se explicitam os motivos pelos quais, não se proferiu a sentença de verificação e graduação de créditos.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada são, as seguintes as questões a decidir:

A. Se a decisão recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC e;

B. Se não se deve determinar a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, do presente apenso de reclamação de créditos, com o fundamento em os autos principais terem sido encerrados por insuficiência de bens, nos termos do artigo 232.º, n.º 1, do CIRE, mas; ao invés, deve ser proferida a sentença de verificação e graduação de créditos, nos termos do disposto no artigo 130.º, n.º 3, do CIRE, sob pena de o recorrente não dispor de título executivo contra a gerente da insolvente, no caso de a insolvência vir a ser qualificada como culposa.

Os factos a considerar para a decisão, sãos os que constam do relatório que antecede.

A. Se a decisão recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

Defende o recorrente que assim é porque não se proferiu sentença de verificação e graduação de créditos, o que, no seu entender, deveria ter acontecido.

O artigo 615, n.º 1, al. d), sanciona com nulidade a sentença, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

A nulidade em causa, radica na omissão de pronúncia (não aprecia questões de que devia conhecer – 1.ª parte) ou no seu inverso, isto é, do conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, por não terem sido postas em causa (2.ª parte).

Como decorre da análise da decisão recorrida, nesta justifica-se o motivo pelo qual não se proferiu sentença de verificação e graduação de créditos.

Isto é, não se verifica uma omissão de pronúncia.

O que se passa é que o M.mo Juiz a quo entendeu, pelas razões expostas, não ser de proferir tal decisão, mas sim a de extinção da instância por impossibilidade superveniente, nos termos do artigo 233.º do CIRE, o que não configura a invocada nulidade.

Na decisão recorrida não se omitiu a questão da verificação e graduação de créditos. Apenas se entendeu que dessa questão não era de conhecer. O que contende com o mérito da decisão e não configura a existência de tal nulidade.

Consequentemente, não padece a decisão recorrida da apontada nulidade.

Pelo que, nesta parte, o presente recurso tem de improceder.

B. Se não se deve determinar a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, do presente apenso de reclamação de créditos, com o fundamento em os autos principais terem sido encerrados por insuficiência de bens, nos termos do artigo 232.º, n.º 1, do CIRE, mas; ao invés, deve ser proferida a sentença de verificação e graduação de créditos, nos termos do disposto no artigo 130.º, n.º 3, do CIRE, sob pena de o recorrente não dispor de título executivo contra a gerente da insolvente, no caso de a insolvência vir a ser qualificada como culposa.

No que a esta questão concerne, alega o recorrente que deve prosseguir o incidente de verificação e graduação de créditos e ser proferida a respectiva sentença, em conformidade com o disposto no artigo 130.º, n.º 3, do CIRE, sob pena de poder ficar privado de vir a ser ressarcido pelo seu crédito, na hipótese de a gerente da insolvente vir a ser afectada pela qualificação da insolvência, porque se tem entendido que a sentença de qualificação da insolvência, desacompanhada de decisão que fixe o valor dos créditos, não constitui título executivo.

Convém, desde já, salientar que a decisão recorrida não se debruça sobre a existência ou inexistência de título executivo, em tais casos, apenas se limitando a determinar a extinção do apenso de reclamação de créditos, nos termos do artigo 233.º, n.º 2, al. b), do CIRE.

É, pois, esta a única questão sobre que o presente recurso se pode pronunciar, sob pena de se entrar em matéria nova, não apreciada na decisão recorrida, o que a nossa lei processual civil não permite.

Não se nega que a questão da existência/inexistência de título executivo, num momento posterior, poderá vir a colocar-se, mas trata-se de decorrência posterior e indirecta da questão que nos é colocada, na eventualidade de se defender que a sentença de qualificação, por si só, não configura título executivo.

Na verdade, essa é uma questão que não tem vindo a ser decidida de forma unânime pelos Tribunais da Relação (como se pode ver nos Acórdãos desta Relação de 17 de Novembro de 2020, Processo n.º 3657/16.7T8VIS.1.C1 – embora, no caso aqui tratado, não chegou a ser apresentada a lista de créditos reconhecidos – e de 27 de Abril de 2017, Processo n.º 1288/15.8T8CBR.1.C1; da Relação do Porto, de 27 de Janeiro de 2020, Processo n.º 60/14.8TYVNG.1.P1 e de 6 de Setembro de 2021, Processo n.º 265/18.1T8AMT-B.P1 e da Relação de Évora, de 30 de Junho de 2021, Processo n.º 644/17.1T8STR-B.E1, todos disponíveis no respectivo sítio do itij).

Mas, reitera-se, esta é uma questão que só se colocará, eventualmente, numa fase posterior e a eventual falta de título executivo não pode obstar a que, nesta fase, se isso for o legalmente determinado, se decrete a extinção da instância no incidente de reclamação de créditos. São questões diferentes e a apreciar em diferentes momentos (em todos os Acórdãos acima referidos trata-se de decisões proferidas em execução ou embargos deduzidos em execução e não no âmbito do incidente de reclamação de créditos).

Pelo que, tal questão, salvo o devido respeito, não pode obstar a que no âmbito do apenso de reclamação de créditos se tenha de determinar a extinção de tal incidente, em conformidade com o disposto no artigo 233.º, n.º 2, al. b), do CIRE.

Efectivamente, nos termos do disposto no artigo 233.º, n.º 2, al. b), do CIRE, o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final, determina a extinção da instância dos processos de verificação de créditos, excepto se já tiver sido proferida a sentença de verificação de créditos prevista no artigo 140.º, ou se o encerramento decorrer da aprovação do plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença.

Ora, in casu ainda não foi proferida a sentença de verificação de créditos, pelo que não se verifica nenhuma das excepções ali previstas à regra geral, de acordo com a qual, o encerramento do processo de insolvência determina a extinção da instância dos processos de verificação de créditos.

É uma opção legislativa, tanto mais que, por contraposição ao disposto no artigo 232.º, n.º 5, do CIRE, relativamente ao incidente de qualificação da insolvência, segundo o qual o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa, estando aberto, mas não findo, o incidente de qualificação, se determina que o incidente de qualificação prossegue os seus termos como incidente limitado.

O legislador, no caso da reclamação e verificação de créditos, poderia ter optado por idêntica solução, mas não o fez, determinando, ao invés, que, neste caso, se determina a extinção da instância.

Pelo que, é de manter a decisão recorrida e, consequentemente, também, quanto a esta questão, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas, a cargo do apelante.

Coimbra, 26 de Abril de 2022.