ACIDENTE DE VIAÇÃO
PAGAMENTO DE INDEMNIZAÇÕES
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Sumário

O Fundo de Garantia Automóvel garante a satisfação da indemnização nos casos em que, sendo conhecido o responsável, é desconhecida a matrícula do veículo por ele conduzido.  

Texto Integral

Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


RELATÓRIO


 AA instaurou acção declarativa de condenação contra  

BB e Fundo de Garantia Automóvel, peticionando a sua condenação solidária a pagar-lhe a quantia total de € 26.731,27, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos respetivos juros de mora, a contar desde a sua citação até integral pagamento.

Para fundamentar o seu pedido alega ter sido embatido por veículo conduzido pelo primeiro R., cuja matrícula se desconhece, bem como se beneficia de seguro de responsabilidade civil, sofrendo diversas lesões corporais, que motivaram o seu internamento hospitalar, submissão a intervenções cirúrgicas e reabilitação, tendo ficado com sequelas permanentes.


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Contestou o 2º Réu, alegando ter procedido à regularização do sinistro com base na figura do fundado conflito com a seguradora Fidelidade, companhia identificada como sendo a seguradora do veículo indicado na participação de acidente elaborada pela GNR, tendo efectuado diversos pagamentos ao A., a título de ressarcimento de danos, bem como a entidades terceiras, como o Hospital ....

Mais alega que o acidente em causa se integra no âmbito dos acidentes de trabalho, pelo que o ressarcimento dos danos patrimoniais sofridos pelo A. competiria à seguradora de acidentes de trabalho.

Conclui pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.


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Foi proferido despacho saneador, identificando-se o objeto do litígio, enunciando-se os temas da prova, e admitindo-se a prova apresentada pelas partes, após o que teve lugar a audiência final, sendo proferida sentença na qual se julgou:

a acção parcialmente procedente, já que:

a) Condeno os Réus BB e Fundo de Garantia Automóvel a pagarem ao A., solidariamente, as seguintes quantias:

1º - a título de danos patrimoniais o montante que o A. porventura deixou de auferir, a título de bolsa pela frequência da acção ou curso de formação apontado em 25 da factualidade, no pressuposto que o A. apenas a auferiria até ao mês de Outubro de 2017, cuja liquidação relego para decisão ulterior, com o limite de 1.206,67 euros;

2º - a título de danos não patrimoniais, o montante, actualizado, de 25.000 euros, acrescido de juros moratórios contados da data da prolação da presente sentença, à taxa de 4% ao ano, até efectivo e integral pagamento.

b) Absolvo os Réus do demais peticionado.


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Não conformado com esta decisão, impetrou o Fudo de Garantia Automóvel recurso da mesma relativamente à matéria de direito, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

Conclusões:


1º. O Apelante não se conforma com a decisão do Tribunal a quo, que, não tendo sido apurada matrícula do alegado veículo causador do sinistro, mas sendo conhecido o responsável civil pelo mesmo, condena o Fundo de Garantia Automóvel ao pagamento dos valores peticionados pelo A., sinistrado, nos presentes autos.

2º. Assim como, na parte em que fixou as quantias a liquidar ao lesado a título de indemnização, pelos danos alegadamente sofridos, por serem manifestamente exagerados e desajustados atendendo ao caso concreto.

3º. Sempre se dirá que o Tribunal a quo não fez uma correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.

4º. Sempre se dirá que, deveria ter sido feita prova quanto aos temas supra referenciados, para que o Tribunal a quo pudesse vir a julgar a presente ação parcialmente procedente, condenando o FGA.

5º. O Recorrente FGA garante a reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, conforme dispõe o artigo 47º nº 1 do DL nº 291/2007 de 21/08.

6º. E nos presentes autos é conhecido o alegado responsável pelo sinistro.

7º. Do rol de matéria dada como provada, foi identificado o 1º Réu como sendo o causador do acidente, mas não resultou provada a matrícula do veículo por si conduzido.

8º. Desta forma, salvo o devido respeito, nunca poderia o Tribunal a quo vir a julgar procedente ou parcialmente procedente, como foi o caso, a presente ação.

9º. Na medida em que, o caso dos autos não se subsume nas situações previstas no nº 1 do artigo 47º do DL nº 291/2007 de 21/08, pois estamos perante um caso em que o alegado responsável pelo acidente é conhecido, mas desconhecida a matrícula do veículo em questão.

10º. Mais se dirá que, de acordo com o previsto no artigo 341º do CC “As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.”

11º. E ainda que, de acordo com o disposto no artigo 342º nº 1 “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.”

12º. No presente processo judicial, não foi feita prova da matrícula do veículo alegadamente responsável pela ocorrência do sinistro.

13º. Da participação de acidente ficou a constar que o 1º Réu conduzia o veículo de matrícula ..-..-SZ, contudo, surgiu a dúvida sobre qual é que seria efetivamente o veículo conduzido pelo 1º Réu e, nesse caso, o Tribunal a quo não deveria ter condenado o Recorrente FGA, com fundamento na aplicação do supra referido artigo 47 do DL nº 291/2007 de 21/08.

14º. Pelas razões supra expostas quanto à errada interpretação do referido preceito legal, mas ainda por violação do disposto quanto à regras do ónus da prova e ainda por violação do disposto no artigo 414º do CPC.

15º. No presente caso deveria ter resultado numa absolvição dos Réus, uma vez que, surgiu a dúvida quanto à matrícula do alegado veículo lesante e por aplicação do disposto no referido artigo 414º do CPC, o Tribunal a quo deveria ter decidido contra a parte a quem o facto aproveita, portanto, contra o aqui Recorrido.

16º. O Tribunal a quo desrespeitou os limites do princípio da livre apreciação da prova estatuídos, designadamente, no artigo 607º, nº 5 do CPC.

17º. O Juiz apreciou a prova de forma errada, ultrapassando os limites à sua livre apreciação, ao concluir pela condenação do Réu FGA, sendo o alegado responsável conhecido e não tendo sido feita prova da matrícula do veículo lesante, prova essa que cabia ao Autor, aqui Recorrido!


18º. E, havendo dúvida quanto à matrícula do veículo lesante, deveria o Tribunal a quo absolver o aqui Recorrente, por aplicação do artigo 414º do CPC.

19º. Decidiu o Tribunal de 1ª Instância fixar a quantia de € 25.000,00 para indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pelo lesado, mas salvo o devido respeito, que é muito e merecido, o Recorrente FGA não perfilha do mesmo entendimento, pois é inevitável comparação com a jurisprudência recente, mostra-se decisiva para aferir da correção da verba fixada ao Autor, aqui recorrido, pelo Tribunal de 1ª Instância.

20º. Vejamos, então, a seguinte jurisprudência sobre a compensação pelo dano não patrimonial:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo nº 342/17.6T8CBR.C1, de 22 de janeiro de 2019: “4. A determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial deve orientar-se por uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade;
5. A indemnização destinada a ressarcir os danos não patrimoniais sofridos por um qualquer lesado não deve revestir carácter miserabilista, nem esquecer o aumento regular dos seguros obrigatórios estradais, e dos respectivos prémios, justificantes do aumento das indemnizações, nem cair em excessos;
6. No que respeita ao dano moral, provando-se que a A. ficou curada em cerca de 400 dias, sendo de 35 dias o período de défice funcional temporário total, que a mesma sofreu um quantum doloris médio de grau 4/7 e dano estético de grau médio-baixo de 2/7, além do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável de 7 pontos, bem como repercussão permanente nas actividades de lazer de grau médio de 4/7, ponderando tais elementos, o disposto nos arts. 496º, nº 4, 1ª parte, e 494º do CC, sem esquecer o disposto no art. 8º, nº 3, do CC (que aponta para o julgador levar em conta o paralelismo de casos análogos, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito), considera-se justo e équo a indemnização no valor de 20.000 €.”


21º. Mais se refere o caso plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo nº 1760/16.2T8VCT.G1, de 30-05-2019, que refere que “não podemos deixar de ponderar como graves os padecimentos do Autor decorrentes do acidente em causa, sobretudo tendo em consideração que a cura das lesões demandou um longo período de tempo (205 dias no total), com imobilização do membro superior esquerdo durante um período de seis semanas e a inerente alteração da sua vida pessoal, familiar e profissional, sendo o período de repercussão temporária na atividade profissional total de 150 dias, que o quantum doloris se situou acima da média (4 numa escala de 0 a 7), que as dores e as dificuldades acrescidas na realização das tarefas quotidianas (traduzidas no défice funcional de 4 pontos) o acompanharão ao longo de toda a sua vida, bem como, que o Autor ficou a padecer de um dano estético permanente fixável no grau 2, é de considerar que a mitigação dos mesmos se satisfaz adequadamente com a quantia de 15.000 €.”

22º. O FGA entende que tal posição não é juridicamente justa, equilibrada e, com o devido respeito e toda a consideração não espelha de forma correta a factualidade dada como provada.

23º. O Recorrente é do entendimento que os factos dados como provados não conduzem à fixação de uma indemnização de valor tão elevado.

24º. Assim como, não resultou da prova produzida em audiência, a convicção para a fixação da indemnização do Recorrido, a título de danos não patrimoniais, na quantia de € 25.000,00.

25º. As testemunhas que prestaram depoimento sobre o estado do Autor, nomeadamente, quanto aos danos morais do mesmo, designadamente, a testemunha CC, mãe do A., mencionaram o estado psicológico do mesmo, mencionando que este foi para o psiquiatra, que anda nervoso e ansioso.

26º. Contudo, do relatório médico, resultou provado que o Recorrido apenas passou a necessitar de acompanhamento médico, devido á ansiedade e irritabilidade, em 2020, ou seja, sendo a data de consolidação das lesões decorrentes do acidente em questão 24/08/2017, não se considerou, e bem, existir nexo de causalidade entre as mesmas e o acidente.

27º. Sempre se dirá que na hora de quantificar os danos e atribuir os montantes indemnizatórios, a sentença de primeira instância aplicou critérios e quantias demasiado elevados, exagerados, desproporcionais e severos, que não correspondem, em modesta opinião, aos factos dados como provados, nem a critérios equitativos, reais e objetivos.

28º. O Recorrente FGA não pode conformar-se com a referida decisão, por consubstanciar valores manifestamente elevados, desproporcionais e desajustados aos danos dados como provados, como se verá.

29º. Assim, ponderando as variáveis mais influentes, como natureza e gravidade da ofensa sofrida, o grau de incapacidade de 4 pontos, as dores e o período de recuperação, conclui-se que os montantes adequados ao caso concreto, para compensação pelos danos morais, se situam nos € 10 000,00, valor consideravelmente inferior ao que foi arbitrado.


30º. Ao julgar de modo diferente daquele que é defendido nestas alegações de recurso, fez o Tribunal recorrido uma menos correta interpretação dos factos e aplicação do direito ao caso concreto, com violação das disposições legais dos artigos 341º, 342º e 496º do Código Civil, 414º e 607 nº 5 do Código de Processo Civil e do artigo 47º nº 1 do Dl nº 291/2007 de 21/08.

Atento tudo quanto exposto, requer-se a V. Exia. que se dignem jugar totalmente procedente o recurso apresentado pelo Apelante, só assim se fazendo a mais sã e elementar JUSTIÇA


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Não foram interpostas contra-alegações.

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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:

a) se, sendo desconhecido o veículo interveniente na colisão e conhecido o condutor, pode ser responsabilizado o Fundo de Garantia Automóvel, ao abrigo do disposto no artº 47 do D.L. 291/2007;
b) se o valor fixado para a indemnização de danos não patrimoniais sofridos pelo A. é excessivo;


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:
“1 – No dia 25.8.16, pelas 07.51 horas, o A. conduzia, pela estrada nacional nº ..., no sentido da auto-estrada ... para a vila de ..., o ciclomotor de matrícula ..-DP-...

2 – Seguia aquele ciclomotor a 30 Kms/hora, e a cerca de 50 cms da linha guia do limite da faixa de rodagem, atento o sentido que levava.

3 – Nas circunstâncias de tempo referidas em 1, na localidade de ..., freguesia ..., do concelho ..., o Réu BB (1º Réu) conduzia, através de um caminho que liga a dita EN ... (ao Km 4,086) à sua casa de habitação sita na denominada Quinta..., um veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, de matrícula não apurada.

4 – Circulava o 1º Réu no sentido da sua casa para a EN ..., fazendo-o em marcha-atrás.

5 – Na sequência de tal manobra de marcha-atrás o 1º Réu invadiu, em cerca de 50 cms, com o veículo que conduzia, a EN ... no momento em que o A. chegava ao ponto em que o caminho mencionado em 3 entroncava com a estrada nacional.

6 – Em consequência da invasão referida em 5 a traseira do veículo conduzido pelo 1º Réu foi embater no lado direito do ciclomotor onde seguia o A.

7 – Por força de tal colisão o A. foi projectado para o eixo da faixa de rodagem e caiu na via.

8 – Ao circular com o veículo que conduzia em marcha-atrás, o 1º Réu não observou que pela EN ... circulada o A. no dito ciclomotor.

9 – Na sequência da colisão e queda acima mencionadas, o A. sofreu lesões, para cujo tratamento foi transportado para o Hospital ... (Hospital ...), na cidade ....

10 – Designadamente sofreu as seguintes lesões:

a) fractura exposta do 5º dedo da mão direita;

b) ferida contusa do bordo externo do terço médio do antebraço direito;

c) ferida inciso-contusa da face anterior do terço médio do antebraço esquerdo;

d) ferida contusa, em forma de cruz, na face anterior do terço médio do braço esquerdo; e

e) fractura da bacia com luxação da sacro-ilíaca direita.

11 – Para tratamento de tais lesões esteve internado, no serviço de ortopedia do Hospital ..., no período compreendido entre 25.8.16 e 15.9.16.

12 – A 25.8.16, e por causa das referidas lesões, foi submetido a uma primeira intervenção cirúrgica (osteotaxia da bacia com colocação de fixador externo, e osteossíntese da fractura articular do 5º dedo da mão direita com parafuso cirúrgico).

13 – A 2.9.16 foi submetido a uma segunda intervenção cirúrgica, para extracção do fixador externo da bacia, e osteossíntese da mesma com placa púbica e parafusos cirúrgicos da sacro-ilíaca direita, e ainda osteossíntese da fractura base do 5º dedo da mão direita.

14 – Após alta hospitalar o A. realizou 60 sessões de fisioterapia no período compreendido entre 26.9.16 e 28.12.16.

15 – A 3.11.16 e a 4.11.16 deslocou-se ao Hospital ..., onde foi visto no âmbito de consultas de ortopedia e de medicina física e de reabilitação, respectivamente.

16 – A 23.2.17 deslocou-se novamente ao Hospital ... onde foi visto em consulta de ortopedia.

17 – Pelo menos no período que intercedeu as cirurgias mencionadas em 12 e 13 o A. esteve impedido de se locomover, de tratar pessoalmente da sua higiene e de efectuar livremente as suas necessidades fisiológicas.

18 – Após a alta hospitalar o A., durante um período de tempo não apurado, apenas se locomovia em cadeira de rodas e, após tal período, locomovia-se com o apoio/apoiado em canadianas.

19 – A partir de dado momento passou a locomover-se sem o auxílio de canadianas, mas caminhava com alguma claudicação da marcha, o que ocorreu durante um período de tempo não apurado.

20 – As lesões acima descritas tiveram a sua consolidação, do ponto de vista médico-legal, a 24.8.17.

21 – No período de 22 dias em que este internado o A. esteve totalmente incapacitado para o exercício de actividades profissionais ou para a sua actividade quotidiana.

22 – A partir de 16.9.16, e até 28.2.17, continuou incapacitado de exercitar a actividade que desenvolvia na empresa A..., sita na zona industrial de ..., do concelho ....

23 – Por causa das lesões sofridas, e dos tratamentos a que teve de se submeter, o A. sofreu dores qualificáveis no grau 5 adentro de uma escala de sete graus de gravidade crescente.

24 – Consolidadas as lesões acima referidas, o A. apresenta as seguintes sequelas:

a) cicatriz no dorso da mão direita, sobre a região do 5º metacarpiano e 1ª falange do 5º dedo;

b) cicatriz da ferida mencionada em 10-b) com 9 cms;

c) cicatriz da ferida mencionada em 10-c) com 8 cms de comprimento;

d) cicatriz da ferida mencionada em 10-d) com 6x5 cms em cada ramo; e

e) cicatriz de origem cirúrgica desde a crista ilíaca até à região inguinal, com 18 cms de comprimento.

f) dores relacionadas com o afastamento de ossos na sequência da fractura sacro-ilíaca.

25 – À data de 25.8.16 o A. frequentava um curso ou acção de formação, assegurado pela B..., e que era exercitado na sociedade A..., L.da.

26 – Em função da frequência de tal acção/curso o A. beneficiava de uma bolsa mensal de 200 euros, paga pela dita B..., acrescida do valor diário de 4,27 euros a título de subsídio de refeição.

27 – O curso mencionado em 25 foi objecto de acordo escrito entre o A. e a B..., encontra-se datado de 1.4.16, e consta da sua cláusula 2ª que se previa o seu termo para Outubro de 2017.

28 – Aquando do acidente o A. deslocava-se para as instalações da sociedade mencionada em 25, para exercício de funções no âmbito da acção de formação também ali mencionada.

29 – Durante os períodos referidos em 21 e 22 o A. não beneficiou de qualquer dos montantes apontados supra em 26.

30 – Em consequência do acidente o ciclomotor conduzido pelo A. sofreu danos ao nível dos elementos retratados no documento de fl. 223 (factura nº ...53, de 30.12.17), bem como ficou danificado o capacete que aquele usava.

31 – O custo de reparação dos danos no ciclomotor e de aquisição de um capacete ascende ao valor de 524,60 euros, IVA incluído.

32 – Em função do acidente e das lesões sobrevindas o A. chegou a recear pela sua própria vida.

33 – Durante o período de recuperação e reabilitação, o A. experimentou sentimentos de angústia relacionados com o receio de como iria ficar no futuro no que tange à sua incolumidade/integridade física.

34 – Por força das sequelas apontadas em 24 o A. sente-se triste e desgostoso.


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Factos não provados:

a) Que todas as situações descritas em 17 se tenham prolongado até ao termo do internamento hospitalar.

b) que a claudicação mencionada no ponto 19 se devesse a dores que o A. sentisse aquando da locomoção.

c) que somente a partir de Fevereiro de 2017 o A. passasse a locomover-se normalmente.

d) que como sequela das lesões o A. padeça de anquilose da articulação metacárpica-falângica do 5º dedo, com comprometimento da flexão.

e) que como sequela sinta dificuldades nas manobras de agachamento do corpo, em particular quando retoma a posição vertical.

f) que aquando da realização das manobras apontadas em e) o A. sofra dores.

g) que as sequelas apontadas em 24 impeçam o A. de exercer uma profissão adequada às suas habilitações literárias.

h) que o A. tenha, como habilitações literárias, o 4º ano de escolaridade.

i) que a existência das sequelas apontadas em 24 traga o A. revoltado e angustiado


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Funda a recorrente, nas suas conclusões, a sua discordância relativamente à decisão objecto de recurso, essencialmente nos seguintes argumentos:

-o artº 47 do D.L. 291/2007 não permite a responsabilização do FGA quando o condutor seja conhecido, mas não tenha sido apurada a matrícula do veículo;

-a fixação do valor indemnizatório é excessiva face aos danos de natureza não patrimonial sofridos.

Decidindo

c) se pode ser responsabilizado o Fundo de Garantia Automóvel, ao abrigo do disposto no artº 47 do D.L. 291/2007, nos casos em que se desconhece qual o veículo interveniente na colisão e é conhecido o condutor;

A questão ora colocada convoca uma análise da natureza e objecto do seguro de responsabilidade civil automóvel e dos requisitos de intervenção do Fundo de Garantia Automóvel cuja intervenção como se sabe, ocorre quando não exista ou não seja possível accionar o seguro de responsabilidade civil decorrente da circulação de veículos automóveis.

A questão encontra expressão legislativa no D.L. nº 291/2007 que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio (5ª Directiva sobre o seguro automóvel) e que, à semelhança do que já ocorria no âmbito do D.L. 522/85, estipula a obrigatoriedade de seguro que cubra os riscos decorrentes da circulação de veículos automóveis, assegurando como decorre expressamente do preâmbulo deste diploma um elevado e completo “sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação”, baseado em dois pilares essenciais: o pilar-seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e o pilar-FGA.

Nestes termos, decorre do disposto no artº 4 do referido diploma legal a obrigação para todas as pessoas que possam ser civilmente responsáveis pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, para que esses veículos possam circular, de contratação de um seguro que cubra os riscos de circulação de um determinado veículo, identificado na respectiva apólice.

Assim, a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel para pagamento de indemnizações aos lesados, apenas se verificará quando o responsável civil seja desconhecido, esteja isento da obrigação de segurar em razão do veículo ou quando o responsável civil, sendo conhecido, tenha incumprido a sua obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel.

Nestes casos, conforme decorre do disposto no artº 49 do supra citado Diploma:

1 - O Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos do n.º 1 do artigo anterior, e até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por:

a) Danos corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da empresa de seguros;

b) Danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz;

c) Danos materiais, quando, sendo o responsável desconhecido, deva o Fundo satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, ou tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente, não beneficiando de seguro válido e eficaz, e a autoridade policial haja efectuado o respectivo auto de notícia, confirmando a presença do veículo no local do acidente.

Assim sendo, a regra geral é a de que o FGA responde apenas no caso de o responsável civil ser desconhecido ou de, sendo conhecido, não existir seguro válido que cubra os riscos de circulação. O que não quer dizer, no entanto que, sendo conhecido o condutor interveniente no acidente e desconhecido o veículo, esteja excluída a intervenção do FGA.

Conforme se refere certeiramente em Ac. do STJ de 18/12/2012[1], nos casos em que o responsável civil seja conhecido, mas desconhecido o veículo com que circulava no momento do embate, porque este abandonou o local do acidente e, sendo localizado, não foi possível identificar o veículo que naquela ocasião conduzia, este preceito “não pode ser interpretado de forma exclusivamente literal, sem preocupação da sua integração sistemática, sob pena de ficar inutilizado o alcance da norma, o que seria absurdo.”

Com efeito, o objecto deste seguro, impõe que se considere uma interpretação que integre neste “desconhecimento” do responsável civil, o desconhecimento sobre o veículo interveniente no acidente, pois que é precisamente este desconhecimento que impede o accionamento do respectivo seguro, ou a constatação da violação do dever de contratar o seguro automóvel obrigatório para todos os veículos matriculados e em circulação.

 Nem a interpretação aqui defendida pelo FGA, estaria conforme quer ao disposto no artº 49 do D.L. 291/2007 quer aos normativos contantes da Directiva que visou transpor. A 5º Directiva automóvel, parcialmente transposta para a ordem interna por este Decreto-Lei, exige, no seu capítulo 4º, o estabelecimento na ordem comunitária, de um sistema que assegure a indemnização por danos causados por um veículo não identificado ou por um veículo relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro automóvel.  Obrigação imposta aos Estados-Membros que se não alterou com a Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009, conforme resulta do seu artigo 3º, razão pela qual o Estado Português não considerou necessária a sua transposição.

Existindo, na ordem interna, a obrigação de seguro obrigatório em relação a veículos concretamente identificados e apenas após a matrícula destes veículos, o que importa apurar não é tanto a identidade da pessoa proprietária ou condutora do veículo, mas antes a concreta identificação do veículo, pois que só com esta identificação (matrícula) se saberá se existe seguro que cubra os danos decorrentes de acidente de viação causado por este veículo, ou não.

Nesta medida, decorre do considerando 14 da 5ª Directiva de Seguro Automóvel a obrigação para cada Estado-Membro de “prever a existência de um organismo que garanta que a vítima não ficará sem indemnização, no caso do veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado. É importante prever que a vítima de um sinistro ocorrido naquelas circunstâncias se possa dirigir directa e prioritariamente a esse organismo.”, uma vez que, conforme se refere no considerando 18, “no caso de um acidente causado por um veículo não segurado, o organismo que indemniza as vítimas de acidentes por veículos não seguros ou não identificados está melhor colocado do que a vítima para intentar uma acção contra a parte responsável.”

Visa-se assim assegurar uma completa protecção do lesado, por forma, a que sendo vítima de acidente envolvendo um veículo não objecto de seguro, ou um veículo desconhecido, possa sempre ser indemnizado por meio expedito e sem estar dependente das possibilidades económicas do lesante, se conhecido.

Por assim ser, mesmo em caso de litígio envolvendo a seguradora de responsabilidade civil e o organismo instituído, no caso o FGA, “sobre a questão de saber qual deles deve indemnizar a vítima de um acidente, os Estados-Membros deverão, para evitar atrasos no pagamento da indemnização à vítima, providenciar para que seja designada a parte a quem, numa primeira fase, incumbe a obrigação de indemnizar a vítima, enquanto se aguarda a resolução do litígio.”

A figura do fundado conflito, aqui invocado pelo FGA, integra-se neste sistema de protecção do lesado, conforme decorre do disposto no artº 50 do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto.

Sendo certo que é ao lesado de acordo com o normativo constante do artº 483 do C.C. que incumbe alegar e demonstrar os factos integrantes do ilícito praticado, incluindo a identificação do veículo e do seu condutor e/ou proprietário (artº 342 nº1 do C.C.), esta obrigação não pode ser objecto de interpretação restritiva, no sentido de que quando o lesado não consiga identificar o veículo interveniente no acidente, porque o condutor fugiu daquele local, apesar de posteriormente identificado, ou por qualquer outra razão, se ter de considerar excluída a obrigação de indemnização do FGA, em caso de danos corporais. Se, na generalidade dos casos, as duas situações coincidem, sendo desconhecido o responsável civil e o veículo, volvendo ao Acórdão citado, embora a propósito do disposto no D.L. 522/85, de 31 de Dezembro, mas que se mantém actual, como poderá o lesado provar que “se trata de um veículo sujeito a seguro obrigatório e que se encontra matriculado em Portugal ou em países terceiros em relação à CEE, que não tenham gabinete nacional de seguro ou cujo gabinete não aderiu à Convenção Complementar?

É, óbvio, que, não estando o veículo identificado, tal prova é, simplesmente impossível, pelo que, numa interpretação literal do preceito, o lesado, nessas circunstâncias, nunca beneficiaria da cobertura que, todavia, o n.º 2 do Art.º 22º lhe atribui, o que redundaria num absurdo, tendo em conta a razão de ser do preceito, além de ser contraditório com o disposto no art.º 29º n.º 8, que, sem qualquer restrição, confere ao lesado o direito de demandar directamente o F.G.A., quando o responsável for desconhecido.”

A interpretação defendida pelo FGA, deixaria o lesado sem a protecção que a Directiva lhe quis conceder e constitui uma interpretação desconforme ao Direito da União, tal como tem sido afirmado pela jurisprudência do TJUE.

Conforme referido no Acórdão proferido pelo TJUE (grande secção) de 7 de agosto de 2018, no processo C-122/2007 ( ECLI:EU:C:2018:631), a propósito da 3ª Directiva Automóvel, 90/232/CEE, mas face a normativo semelhante, “há que recordar que, segundo jurisprudência constante, quando os órgãos jurisdicionais nacionais são chamados a pronunciar‑se num litígio entre particulares, no âmbito do qual se afigura que a legislação nacional em causa é contrária ao direito da União, cabe a estes órgãos jurisdicionais assegurar a proteção jurídica que para as pessoas decorre das disposições do direito da União e garantir a plena eficácia destas (considerando 37, citando jurisprudência recorrente firmada nos Acórdãos de 5 de outubro de 2004, P... e o., C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.° 111; de 19 de janeiro de 2010, ..., C‑555/07, EU:C:2010:21, n.° 45; e de 19 de abril de 2016, DI, C‑441/14, EU:C:2016:278, n.° 29).

Recorde-se que, por via do disposto nos artºs 2, 4 nº3, 5 nº1 do TUE, nos domínios atribuídos pelo artº 19 nº3 do TUE, os Tribunais nacionais são chamados a defender e aplicar o direito comunitário, afirmando-se e actuando nesse campo como “órgãos jurisdicionais comuns de aplicação do direito da União[2], função na qual foram investidos por jurisprudência do próprio Tribunal de Justiça e, após o Tratado de Lisboa, por disposição expressa no TUE.

Assim, decorre dos Tratados institutivos da União Europeia que aos Estados-membros cumpre estabelecer “as vias de recurso necessárias para assegurar a tutela jurisdicional efectiva nos domínios abrangidos pelo direito da União” (artº 19 nº1 §2 do TUE).

Conforme o TJCE veio defender no caso Union de Pequeños Agricultores vs. Conselho[3], a Comunidade Europeia assumiu-se desde o seu início como “uma comunidade de direito em que as suas instituições estão sujeitas à fiscalização da conformidade dos seus actos com o Tratado e com os princípios gerais do direito.”

Nessa medida, nos domínios atribuídos pelos Tratados como integrando o Direito da União, tal como estipulado pelos artsº 3, nº6 e 5 nº1 do TUE, os Estados-Membros comprometem-se a assegurar a aplicação do Direito da União (cfr. artº 4 nº3 e 19 nº1 §2 do TUE), desaplicando inclusivamente normas nacionais que lhe sejam contrárias.

No que se reporta ao conteúdo das Directivas, normas de direito comunitário derivado que, enquanto tal, exigem a sua transposição para a ordem jurídica interna, conforme decorre do disposto no artº 288 §3 do TFUE, os Estados-Membros estão vinculados ao resultado que com ela se visa alcançar, devendo para o efeito proceder
à sua integração no direito interno.

Ora, como referido no considerando 38 do Acórdão do TJUE C-122/2007, o “Tribunal de Justiça já declarou repetidamente que a obrigação, decorrente de uma diretiva, de os Estados‑Membros alcançarem o resultado nela previsto assim como o dever de tomarem todas as medidas gerais ou especiais adequadas para assegurar o cumprimento dessa obrigação se impõem a todas as autoridades dos Estados‑Membros, incluindo, no âmbito das suas competências, às autoridades judiciais” (considerando 38, citando os Acórdãos de 10 de abril de 1984, von Colson e Kamann, 14/83, EU:C:1984:153, n.° 26; de 19 de janeiro de 2010, Kücükdeveci, C‑555/07, EU:C:2010:21, n.° 47; e de 19 de abril de 2016, DI, C‑441/14, EU:C:2016:278, n.° 30).

  A uniformidade na interpretação e aplicação do Direito euro-comunitário é garantida pela autoridade da jurisprudência do TJUE, obrigatória e definitiva, não apenas no âmbito do contencioso comunitário, mas também no âmbito das questões prejudiciais (artº 177 do TCE e 267 do TUE), quer para o tribunal que colocou a questão, quer para todos os tribunais nacionais dos Estados-membros, em relação a questões materialmente idênticas, produzindo assim um “efeito de precedente atípico”[4].

Assim sendo, “ao aplicarem o direito nacional, os órgãos jurisdicionais nacionais chamados a interpretá‑lo são obrigados a tomar em consideração o conjunto das regras desse direito e a aplicar os métodos de interpretação reconhecidos por este, de modo a interpretá‑lo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da diretiva em causa, para alcançar o resultado por ela prosseguido e dar, assim, cumprimento ao artigo 288.°, terceiro parágrafo, TFUE” (considerando 39 do supra citado acórdão)

No entanto, este dever de aplicação do direito da União, mesmo em detrimento do direito nacional e de interpretação conforme, conhece limites.[5] Uma Directiva ao contrário de um Regulamento comunitário, não cria obrigações para os particulares e portanto não pode ser invocada contra eles, se não transposta ou se indevidamente transposta,[6] uma vez que “alargar a invocabilidade de uma disposição de uma diretiva não transposta, ou incorretamente transposta, ao domínio das relações entre particulares equivaleria a reconhecer à União Europeia o poder de criar, com efeito imediato, deveres na esfera jurídica dos particulares, quando esta só tem essa competência nas áreas em que lhe é atribuído o poder de adotar regulamentos (considerando 42 do Ac. TJUE C- 122/2007).

Nessa medida, desde que o litígio em causa envolva particulares, a Directiva não pode ser invocada para afastar a regulamentação de um Estado‑Membro contrária a esta directiva, só sendo o órgão jurisdicional nacional “obrigado a afastar a disposição nacional contrária a uma diretiva quando esta é invocada contra um Estado‑Membro, órgãos da sua Administração, incluindo entidades descentralizadas, ou organismos e entidades que estejam sujeitos à autoridade ou ao controlo do Estado ou às quais um Estado‑Membro tenha confiado o cumprimento de uma missão de interesse público e que, para esse efeito, disponham de poderes exorbitantes face aos que resultam das normas aplicáveis nas relações entre particulares” (considerando 45 do supra citado acórdão, citando ainda os Acórdãos de 24 de janeiro de 2012, Dominguez, C‑282/10, EU:C:2012:33, n.os 40 e 41; de 25 de junho de 2015, Indėlių ir investicijų draudimas e Nemaniūnas, C‑671/13, EU:C:2015:418, n.os 59 e 60;)

  Quer isto dizer que as disposições desta Directiva se contrárias ao direito interno não poderiam ser invocadas num litígio entre particulares, mas já o poderiam ser perante o FGA, que constitui um fundo público autónomo, gerido pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, destinado a satisfazer indemnizações devidas em consequência de acidente de viação, sabido que estes fundos foram implementados pelos Estados aderentes precisamente para satisfazer as exigências comunitárias de protecção dos lesados, quando não seja possível accionar o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Com efeito, conforme defendido pelo TJUE, no Acórdão de 10 de Outubro de 2010, processo C-413/2015 (EU:C:2017:745) “ A importância atribuída pelo legislador da União à proteção das vítimas levou‑o a completar este dispositivo, ao obrigar os Estados‑Membros, em conformidade com o artigo 1.°, n.° 4, da Segunda Diretiva, a instituírem um organismo com a missão de indemnizar, pelo menos dentro dos limites previstos pelo direito da União, os danos materiais ou corporais causados por um veículo não identificado ou relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro referida no artigo 1.º, n.º 1, desta diretiva, o qual remete para o artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva” (considerando 37).

Esta missão de indemnização atribuída por um Estado-membro, incluído no objectivo geral de protecção das vítimas de acidente de viação, deve ser vista como uma missão de interesse público, imposta aos Estados, sendo certo que de acordo com a jurisprudência seguida pelo TJUE, quando os danos sejam causados por veículo em relação ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro obrigatório, “a intervenção do referido organismo se destina a colmatar uma falha do Estado‑Membro respeitante à sua obrigação de assegurar que a responsabilidade civil relativa à circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.”[7]

Assim, caso não estivesse incluída na previsão do artº 47 do D.L. 291/2007, o desconhecimento do concreto veículo causador do acidente, impor-se-ia a aplicação dos preceitos da referida Directiva.

Não é, no entanto, o caso, pois que nem sequer se pode considerar existir uma verdadeira desconformidade entre a Directiva em causa e a norma interna.

Para que o Fundo seja chamado a satisfazer a indemnização ao lesado por acidente de viação quando em causa danos corporais, basta a alegação (e prova) de desconhecimento pelo lesado da pessoa do responsável civil ou do veículo causador do acidente, por não estar assegurada a protecção devida ao lesado pelo seguro de responsabilidade civil obrigatório.

Com efeito, a regra é de que quando não responde o seguro, terá de responder o organismo criado pelos Estados-Membros para assegurar a satisfação da indemnização, que na ordem jurídica portuguesa é o Fundo de Garantia Automóvel.

Concluindo e parafraseando o citado acórdão do STJ “não pode exigir-se ao lesado que prove os pressupostos genéricos previstos no n.º 1 do preceito, por se tratar de uma impossibilidade lógica, bastando, por isso, que sejam desconhecidos o responsável e o veículo, para garantir a cobertura do F.G.A., verificados, naturalmente, os pressupostos gerais de responsabilidade civil, com base na culpa ou no risco.”

Improcede assim este fundamento de recurso, concluindo-se que o Fundo de Garantia Automóvel responde pela indemnização devida ao lesado, nos termos previstos no artº 49 do D.L. 291/2007, quando o veículo causador do acidente seja desconhecido.



c) Se existe excesso na fixação dos danos não patrimoniais.

O recorrente alega ainda que “ponderando as variáveis mais influentes, como natureza e gravidade da ofensa sofrida, o grau de incapacidade de 4 pontos, as dores e o período de recuperação, conclui-se que os montantes adequados ao caso concreto, para compensação pelos danos morais, se situam nos € 10 000,00, valor consideravelmente inferior ao que foi arbitrado.”

Em primeiro lugar apesar de o recorrente nas suas conclusões 24 a 26 , se referir ao facto de não ter resultado “da prova produzida em audiência, a convicção para a fixação da indemnização do Recorrido, a título de danos não patrimoniais, na quantia de € 25.000,00.” e que do teor do relatório médico, apenas “resultou provado que o Recorrido apenas passou a necessitar de acompanhamento médico, devido á ansiedade e irritabilidade, em 2020, ou seja, sendo a data de consolidação das lesões decorrentes do acidente em questão 24/08/2017, não se considerou, e bem, existir nexo de causalidade entre as mesmas e o acidente.”, não veio impugnar a matéria de facto adquirida pelo Tribunal recorrido, com cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640 do C.P.C., pelo que, neste conspecto, não sendo caso de intervenção oficiosa deste tribunal nos termos previstos no artº 662 nº1 do C.P.C., esta se mantém nos termos fixados pela primeira instância.

Assim sendo, é de acordo com esta matéria de facto que o tribunal ad quem se pronunciará sobre a indemnização devida ao lesado a título de danos não patrimoniais.

A este respeito, a decisão recorrida considerou que tendo em conta os danos sofridos pelo A., as dores, o longo período de internamento e as intervenções cirúrgicas, “corporizam afectações negativas na saúde, no bem-estar, na liberdade, na integridade física, isto é, num conjunto de valores ou bens estranhos à esfera patrimonial do lesado. E que por isso, pela sua ‘extensão’ ou dimensão e relevo, são manifestamente merecedores da tutela do direito e, como tal, a justificar ou fundamentar um determinado quantum compensatório.

 Quanto à fixação do quantum indemnizatório, considerou critérios como a situação económica do agente causador dos danos e do lesado, embora com pouco relevância, uma vez que “nada se apurou – ou alegou – quanto à situação do 1º Réu, e aquela do A. apresenta-se vaga ou genérica, posto que apenas se apurou que num determinado período, coincidente com o sinistro dos autos, aquele não exercia uma actividade profissional remunerada, antes beneficiava de uma bolsa de valor pouco menos que diminuto, nada mais se tendo alegado e apurado quanto a outros rendimentos e ou património.” e outros com maior relevo, como o grau de culpabilidade de agente que considerou elevado face à dinâmica do acidente.

Por outro lado, considerou igualmente como factor o “comportamento omissivo do 1º Réu, o qual, enquanto condutor do veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, causador do sinistro, não se dignou, ou não terá dignado, identificar a matrícula do mesmo (supondo que o veículo estaria matriculado) e, desse modo, aquilatar da existência de um contrato de seguro ou, diversamente, verificar, sem margem para especulações, quanto à inexistência ou não benefício de seguro. Não deixa esta circunstância de sopesar, conjuntamente com as demais, na formulação de um juízo ou de uma quantificação de acordo com critérios de equidade, como assumido pelo legislador.

Por último atendeu ainda à jurisprudência fixada pelos tribunais superiores, “dando-se aqui nota de um aresto do STJ que julgou uma situação com alguma similitude, seja na tipologia dos danos, seja na gravidade dos mesmos, o qual fixou o valor de 20.000 euros a título de danos não patrimoniais (Ac. de 20.11.19, processo 107/17.5T8MMV.C1.S1, in www.dgsi.pt). De todo o modo a situação ali retratada afigura-se menos grave ou severa que a presente (dano estético de grau 2, quantum doloris de grau 4, défice funcional permanente de 2 pontos [sendo de 4 pontos a desvalorização no caso presente atribuída no âmbito da perícia de avaliação do dano], e meio ano de doença até à consolidação).”

Ora, é sabido que o mesmo facto ilícito pode provocar danos patrimoniais e não patrimoniais, distinguíveis consoante sejam ou não susceptíveis de avaliação pecuniária. Os primeiros, porque incidentes sobre interesses de natureza material ou económica, reflectem-se no património do lesado, ao contrário dos últimos, que se reportam a valores de ordem espiritual, ideal ou moral, e que apenas “podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização[8]

Por outro lado, nos termos do disposto no artº 562 do C.C., quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, devendo essa indemnização ser fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não for possível (artº 566 do C.C.), o que é o caso em apreço.

Assim, a atribuição de uma indemnização pressupõe a demonstração da verificação de danos na esfera jurídica do autor, bem como da existência de um nexo de causalidade que os ligue ao acidente, como decorre do disposto nos arts. 562º e 563º do Cód. Civil.

De acordo com o primeiro dos artigos mencionados, que consagrou a chamada teoria da diferença, o princípio geral é o de que a indemnização deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso, ou seja, a medida da indemnização corresponde à medida do dano sofrido.

De acordo com o disposto no art. 564º do Cód. Civil, o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão e, na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.

Por outro lado, tanto são computáveis os danos susceptíveis de expressão pecuniária - danos patrimoniais, como aqueles que, não o sendo, por traduzirem a violação de bens jurídicos eminentemente pessoais (como a vida, a integridade física, a liberdade, a honra) mereçam, pela sua gravidade, a tutela do Direito - os danos pessoais, que englobam os danos corporais, e os danos não patrimoniais que mereçam a tutela do direito.

Não se encontrando na lei positiva parâmetros objectivos para a quantificação destes danos morais, o legislador remeteu para os tribunais essa tarefa, com recurso às regras da equidade (cfr. o nº 3 do cit. art. 496º do C.C.).

A este propósito e, tendo em atenção serem aplicáveis critérios de equidade, como previsto no art. 496.º n.º 3, primeira parte, do Código Civil, vejamos os padrões indemnizatórios seguidos recentemente pelo Supremo Tribunal de Justiça[9], uma vez que a uniformização de jurisprudência neste campo, tende a evitar alguma aleatoriedade e injustiça relativa, na atribuição destas indemnizações:

· Acórdão de 07.07.2009, no Proc. 1145/05.6TAMAI.C1: adulto com 36 anos, amputação do membro inferior esquerdo, várias intervenções e tratamentos médicos, repercussões estéticas, claudicação por inadaptação à prótese, e quantum doloris de grau 6 – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 75.000,00;

· Acórdão de 04.06.2015, no Proc. 1166/10.7TBVCD.P1.S1: jovem de 17 anos, vários tratamentos médicos, intervenções e internamentos, alta mais de 4 anos depois do acidente, repercussões estéticas, quantum doloris de grau 6, e grave culpa da condutora do veículo causador do acidente – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 40.000,00;

· Acórdão de 21.01.2016, no Proc. 1021/11.3TBABT.E1.S1: jovem de 27 anos, múltiplos traumatismos, sequelas psicológicas, quantum doloris de grau 5, dano estético de 2 pontos; incapacidade parcial de 16 pontos, repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 2, claudicação na marcha e rigidez da anca direita – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 50.000,00;

· Acórdão de 26.01.2016, no Proc. 2185/04.8TBOER.L1.S1: jovem de 20 anos, desportista, que ficou com várias cicatrizes em zonas visíveis e padeceu de acentuado grau de sofrimento (quantum doloris de grau 5) e relevante dano estético – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 45.000,00;

· Acórdão de 28.01.2016, no Proc. 7793/09.8T2SNT.L1.S1: quantum doloris de grau 5, sujeição a quatro operações, internamento por longos períodos, mais duas operações a que ainda teria de se sujeitar, vários tratamentos de reabilitação, dano estético de grau 4 – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 40.000,00;

· Acórdão de 17.03.2016, no Proc. 338/09.1TTVRL.P3.G1.S1: sinistrada com 36 anos de idade, deformação grave do pé direito, com amputação dos cinco dedos e do ante-pé, dificuldade na deslocação e uso de prótese para toda a vida, cicatrizes em 18% da superfície corporal e graves alterações psicológicas – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 50.000,00; e,

· Acórdão de 07.04.2016, no Proc. 237/13.2TCGMR.G1.S1: jovem de 22 anos de idade, défice funcional permanente de 8%, quantum doloris de grau 4, sequelas compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicando esforços suplementares, dano estético de grau 3, repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 1 e diversas sequelas psicológicas – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 50.000,00.

· Ac. STJ 19 de setembro de 2019, proc. 2706/17.6T8BRG.G1.S1 - 7.ª Secção
IV - Resultando dos factos provados que: (i) o recorrente foi sujeito a exames médicos e vários ciclos de fisioterapia, bem como uma intervenção cirúrgica; (…) (iii) sofreu dores quantificáveis em 5 numa escala de 7 pontos; (iv) sofreu um dano estético quantificado em 3 numa escala de 7 pontos; (v) a repercussão das sequelas sofridas nas atividades desportivas e de lazer é quantificada em 3 numa escala de 7 pontos; (vi) o recorrente sofreu um rebate em termos psicológicos, em virtude das lesões e sequelas permanentes, designadamente por não poder voltar a exercer a sua profissão habitual e/ou outra no âmbito da sua formação profissional; revela-se ajustado o montante de € 50.000,00.

· Ac. de 16/12/20, proc. nº 6295/15.8T8SNT.L1.S1, indivíduo de 43 anos, 3 cirurgias, imobilização de três meses, quantum doloris de grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente, dores durante o período de doença e incómodos em deslocações a consultas e tratamentos de reabilitação com dano estético de grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente, indemnização fixada em € 25.000,00.

· Ac. de 19/10/21, proc. nº 2601/19.4T8BRG.G1.S1 indivíduo de 44 anos de idade, pessoa saudável, que por força do acidente esteve dois anos de baixa médica dos quais 22 dias em internamento hospitalar contínuo, sofreu dores quantificáveis no grau 5, que ao nível do pé/tornozelo direito se manterão para o resto da vida , um dano estético quantificado no grau 3, e ficou com um défice funcional permanente de 15 pontos não mais deixando de claudicar, indemnização de €45.000,00.

·  Ac. de 04/11/21, proc. 590/13.8TVLSB.L1.S1, indivíduo de 37 anos, quantum doloris de grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente, incapacidade permanente de 20,86, dores e tratamentos pelo período de dois anos, sem possibilidade de cura, indemnização de € 40.000,00.

Sumariada em termos gerais e sem qualquer pretensão de exaustão, a orientação jurisprudencial seguida a este respeito, verifica-se que para casos semelhantes ao ora tratado, a jurisprudência mais recente do STJ, fixou estes danos entre os 40.000,00 a 45.000,00.

O A. em consequência deste acidente sofreu múltiplas fracturas, com necessidade de duas intervenções cirúrgicas, com quantum doloris de grau 5, esteve totalmente incapacitado para actividades da vida corrente pelo período de 22 dias e, após alta hospitalar e durante período de tempo não apurado, ficou limitado na sua locomoção primeiro a cadeira de rodas e após, ao uso de canadianas.

Manteve claudicação de marcha, consolidando-se as lesões cerca de um ano depois. Consolidadas as lesões acima referidas, o A. apresenta as seguintes sequelas:

a) cicatriz no dorso da mão direita, sobre a região do 5º metacarpiano e 1ª falange do 5º dedo;

b) cicatriz no bordo externo do terço médio do antebraço direito com 9 cms;

c) cicatriz na face anterior do terço médio do antebraço esquerdo com 8 cms de comprimento;

d) cicatriz na face anterior do terço médio do braço esquerdo com 6x5 cms em cada ramo; e

e) cicatriz de origem cirúrgica desde a crista ilíaca até à região inguinal, com 18 cms de comprimento.

f) dores relacionadas com o afastamento de ossos na sequência da fractura sacro-ilíaca.

Estas cicatrizes determinaram um dano estético permanente para o A. fixável no grau 4. Em função do acidente e das lesões sobrevindas o A. chegou a recear pela sua própria vida e, durante o período de recuperação e reabilitação, o A. experimentou sentimentos de angústia relacionados com o receio de como iria ficar no futuro no que tange à sua incolumidade/integridade física e por força destas sequelas o A. sente-se triste e desgostoso.

Trata-se de homem que à data do acidente teria 41 anos conforme resulta do relatório pericial, que vê a sua qualidade de vida comprometida pelas lesões sofridas e a sua estética posta em causa pelas numerosas cicatrizes extensas decorrentes deste acidente.

Nega-se, assim, provimento ao recurso interposto pelo FGA.


*


DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo FGA, mantendo a decisão recorrida.
*
 
As custas da acção fixam-se pelo apelante (artº 527 nº1 do C.P.C.).


Coimbra 26/04/22



[1] Proferido no Proc. nº 1053/06.3TBVVD-A.G1.S1, de que foi relator Moreira Alves, disponível para consulta in www.dgsi.pt., a propósito do artº 21 do D.L. 522/85 de 31 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo D.L. 122-A/86, de 30 de Maio, mantendo-se válidas as conclusões constantes deste acórdão perante io normativo do D.L. 291/2007.
[2] PROENÇA, Carlos Garranho, Tutela Jurisdicional Efectiva no Direito da União Europeia, Dimensões Teoréticas e Práticas, Petrony, 2017, pág. 20.
[3] Acórdão do TJUE de 25 de Julho de 2002, proc. C-50/00 P.
[4] PROENÇA, Carlos Garranho, ob.cit., pág. 325.
[5] Conforme Jurisprudência firmada nos Acórdãos de 24 de janeiro de 2012, Dominguez, C‑282/10, EU:C:2012:33, n.° 23, e de 10 de outubro de 2013, Spedition Welter, C‑306/12, EU:C:2013:650, n.° 28.
[6] Conforme jurisprudência firmada nos Acórdãos de 26 de fevereiro de 1986, Marshall, 152/84, EU:C:1986:84, n.° 48; de 14 de julho de 1994, Faccini Dori, C‑91/92, EU:C:1994:292, n.° 20; e de 5 de outubro de 2004, Pfeiffer e o., C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.° 108.

[7]  Acórdão do TJUE de 11 de Julho de 2013, proferido no processo C‑409/11, EU:C:2013:512, n.° 31)

[8] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª Edição, Vol. I, pág. 56.

[9] Todos os arestos citados estão publicados em www.dgsi.pt.