SERVIDÃO PREDIAL CONSTITUÍDA POR USUCAPIÃO
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE AO PRÉDIO DOMINANTE
Sumário

A servidão constituída por usucapião só se mostra desnecessária ao prédio dominante quando deixou de ter qualquer utilidade para ele. A circunstância de a servidão não ser absolutamente necessária ou indispensável ao prédio dominante não equivale à sua desnecessidade.

Texto Integral


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

O...Lda, AA e mulher, BB, instauraram ação contra R..., Lda., CC e mulher, DD, alegando, em síntese, o benefício de uma servidão constituída por usucapião.

Os réus CC e DD apresentaram contestação, impugnando, em síntese, a existência da serventia descrita pelos autores.

Realizado o julgamento, foi proferida a seguinte sentença:

Condenar os réus R..., Lda., CC e DD a reconhecer que sobre o prédio urbano de sua propriedade (prédio urbano, composto de ... para a actividade industrial de cave para arrumos, rés do chão para escritórios e oficina e logradouro, sito na Rua ..., C..., ..., ..., descrito na ... CRP ... sob o número ...56/..., inscrito na respectiva matriz sob artigo ...45), está constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé, de carros e tratores agrícolas que o onera (com início a partir do caminho asfaltado proveniente da Rua ..., desenvolvendo-se no sentido norte-sul em linha reta, até atingir o logradouro do prédio dos 2.ºs Réus, aí curvando à direita, em serventia de terra batida, com cerca de três metros de largura, até atingir os ditos prédios), em benefício dos prédios dos autores O…, Lda, AA e BB (prédio urbano destinado a …, sito na Rua ..., C..., ..., ..., descrito na ... CRP ... sob o n.º ...49/..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...68; prédio rústico composto por terra com vinha, oliveiras e pinhal, sito em ..., C..., ..., ..., descrito na ... CRP ... sob o n.º ...39/..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...55; e prédio rústico composto por terra de cultura, mato e pinhal, sito em ..., C..., ..., ..., descrito na ... CRP ... sob o n.º ...40/..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...56).

Condenar os réus a desimpedir a passagem referida em I, retirando dela os objetos que a obstruam, de modo a deixá-la livre e desocupada, permitindo assim o livre acesso dos autores e pessoas ao serviço destes aos prédios indicados em I.

Condenar os réus a abster-se de praticar quaisquer actos que possam dificultar ou impedir, por qualquer modo, o exercício da servidão pelos autores e de estes por aí transitarem.


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Inconformados, os Réus CC e BB recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

a) A decisão proferida pelo Tribunal a quo é ilegal e injusta, na medida em que incorre em erro de julgamento da matéria de facto, face à prova produzida, bem como, faz uma incorreta interpretação e aplicação do direito.

A) Da impugnação da decisão de facto, com reapreciação da prova gravada

b) Desde logo, veja-se o depoimento da testemunha EE (vd. passagens do CD Ref. 20211007140629_3916394_2870955, sessão de 03/12/2020, com início às 14h20m43s e termo às 14h48m44s, das 24m39s a 24m54s), a quem os 2º Autores compraram os prédios rústicos que identifica como sendo pinhal, que explicando de forma clara que os prédios possuem serventia em baixo (a sul).

c) Veja-se ainda o depoimento da testemunha FF (vd.

Passagens do CD Ref. 20211007140629_3916394_2870955, sessão de 03/12/2020, com início às 14h49m31s e termo às 15h30m38s, das 06m52s a 07m00s, 30m16s a 31m38s e das 33m00s a 33m52s), antigo funcionário da 1ªAutora que afirmou que o prédio urbano tinha acesso interno à cave, através de uma rampa que foi destruída pelos Autores.

d) Veja-se ainda o depoimento da testemunha GG (vd. Passagens do CD Ref. 20211007140629_3916394_2870955, sessão de 03/12/2020, com início às 15h33m26s e termo às 15h54m08s, das 1... s a 20m30s), antigo funcionário da 1ªAutora que afirmou que tinha acesso de um prédio rústico para o outro, ou seja do artigo 4.855 para o 4.856 e vice versa.

e) O depoimento prestado pela testemunha HH, valorado pelo Tribunal a quo, confirmou o depoimento da testemunha GG, afirmando que apesar da existência do desnível no terreno é possível ter acesso aos prédios rústicos com o artigo matricial ...55 e ...56 através do prédio rústico com o artigo matricial ...54 (prédio onde se encontram as oliveiras) também da propriedade dos 2ºs Autores.

f) Foi ainda requerido pelos ora Recorrentes na sua contestação a junção aos presentes autos por parte da Câmara Municipal ... do projeto de licenciamento do ... construído no prédio urbano da propriedade da 1ª Autora e descrito o artigo 3º da p.i.

g) A fim de se apurar da legalidade da construção do portão, cujo acesso pretendem os Autores com os presentes autos. Tendo a Câmara Municipal ... junto aos presentes autos todo o processo de licenciamento em 03.02.2021. Do referido processo de licenciamento não consta a existência de qualquer portão na cave do prédio urbano.

h) Sendo o acesso à cave efetuado por uma rampa existente no interior do prédio,

conforme referiu também a testemunha FF.

i) O prédio urbano em causa está situado nos C..., ..., cuja entidade

administrativa competente para toda e qualquer legalização de infraestruturas é a Câmara Municipal ....

j) Ora, se a Câmara Municipal ... juntou aos presentes autos todo o processo de licenciamento, conforme doutamente ordenado pelo Tribunal a quo, e esse licenciamento não contempla a existência de um portão na cave do prédio do lado sul do mesmo, outra conclusão não poderá ser senão que o referido portão foi contruído sem o devido licenciamento.

k) Do conjunto de toda a supracitada prova testemunhal e documental, conclui-se

que os Autores têm acesso aos seus prédios rústicos (4.855 e 4856) através do lado norte do prédio rústico ...54 também da sua propriedade. Não se encontrando os mesmos “encravados”. Cujo acesso a este último é feita através de serventia já constituída.

l) Mais se diz que do conjunto de toda a supracitada prova testemunhal e documental se concluiu que o acesso à cave através do portão é um acesso ilegal, que carece de licenciamento e que o referido prédio tinha acesso interno à cave, acesso este que o proprietário destruiu propositadamente.

m) Termos em que, o Tribunal recorrido incorreu em manifesto erro de julgamento, o que se invoca.

n) Ora, nos termos do art. 662º, nº1, do CPC, a Relação deve modificar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

o) Assim, na medida em que se verificam as condições previstas naquela disposição legal, deve este Venerando Tribunal modificar a decisão da 1ª instância sobre os pontos 11, 12, 15, 17 e 22 dos factos provados, no sentido de se dar como não provado que: 11. O acesso à Cave do referido Barracão, tanto a pé como de carro, é efetuado única

e exclusivamente pela parte traseira do dito edifício, ou seja, pela parte sul do mesmo. 12. Tal acesso à Cave tem início na Rua ..., desenvolvendo-se no sentido norte-sul por caminho asfaltado até atingir o logradouro do prédio dos 2.ºs Réus, aí curvando à direita em caminho de terra batida, com a largura de cerca de 3 metros, até atingir o prédio.

15. O único acesso, a norte, aos prédios rústicos dos 2.ºs Autores (artigos 4.855 e 4.856), tanto a pé, como de carro ou trator agrícola é efetuado a partir do caminho asfaltado que tem início na Rua ..., desenvolvendo-se no sentido norte-sul em linha reta, até atingir o logradouro do prédio dos 2.ºs Réus, aí curvando à direita, em serventia de terra batida, com a largura aproximada de 3 metros, até atingir os ditos prédios. 17. O declive acentuado dos terrenos, a sua morfologia e a densa vegetação existente leva a que o único acesso seja o descrito supra no ponto 15. 22. Para além do caminho descrito não existe outro acesso aos prédios dos Autores.

p) Igualmente, deve este Venerando Tribunal modificar a decisão da 1ª instância nas alíneas f), i) e j) dos factos não provados, no sentido de se dar como provado que: f. que essa passagem também não constitui o único acesso aos prédios localizados a poente do prédio dos réus que podem ser livremente acedidos, como sempre foram, pela serventia/caminho público localizada na sua extrema sul. i. que os Autores podem aceder aos seus restantes prédios através do seu outro prédio. j. que o acesso à cave através do portão localizado na sua parte traseira, a sul, do prédio dos autores foi construído sem licenciamento da Câmara Municipal ....

q) O Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento ao não incluir nos

factos provados, o seguinte facto: “O prédio urbano (matriz 1.168) teve acesso interno entre cave e rés do chão que foi destruído pelos Autores.”

r) A apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento conduz a que este facto seja dado como provado.

s) Desde logo, veja-se o depoimento da testemunha FF (CD Ref. 20211007140629_3916394_2870955, sessão de 03/12/2020, com início às 14h49m31s e termo às 15h30m38s), antigo funcionário da 1ªAutora que afirmou que o prédio urbano tinha cesso interno à cave, através de uma rampa que foi destruída pelos Autores.

t) Deve assim ser aditado o ponto 30 aos factos provados com a seguinte redação:

“O prédio urbano (matriz 1.168) teve acesso interno entre cave e rés do chão que foi destruído pelos Autores.”

u) Consequentemente, deve a sentença ora recorrida ser revogada, por erro de julgamento da matéria de facto, sendo substituída por acórdão que julgue a ação procedente, por provada.

C) Da impugnação da decisão de Direito

v) O Tribunal a quo incorreu, igualmente, em manifesto erro na interpretação e aplicação do direito aos factos.

w) Entendeu o Tribunal a quo que os prédios rústicos dos Autores se encontram em situação de encrave relativo uma vez que “é mais difícil ir à volta pelo caminho público a sul”.

x) Ora, o conceito jurídico de necessidade da servidão de passagem, seja ela voluntária, legal ou constituída por usucapião, não se trata de um capricho.

y) Se os prédios em causa têm acesso a uma servidão já existente não se poderá entender que há necessidade de uma outra servidão com base no caminho mais fácil.

z) Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, quando determinou que a servidão era necessária por se tratar de um caminho mais fácil e nada mais é do que um verdadeira capricho e não uma necessidade efetiva.

aa) Não nos podemos esquecer que a constituição de uma servidão de passagem onera um prédio, diminuindo drasticamente seu valor de mercado e em muitos casos inibe o proprietário de dar o uso pretendido ao seu prédio. Como é o caso dos presentes autos, em que o prédio onerado serve de estacionamento à oficina da 1ª Ré.

bb) A servidão de passagem é uma figura que deixa o proprietário numa posição de grande desvantagem.

cc) Pelo que o nosso ordenamento jurídico não poderá permitir que tal ocorra de forma leviana com justificação que a servidão é mais “útil” por se tratar do caminho mais

perto.

dd) Mais afirma o Tribunal a quo que relativamente ao prédio urbano da 1ª Autora,

“não existe qualquer comunicação interior entre a cave e o rés-do-chão do prédio urbano dos autores (vd. as fotos n.º 10, 11 e 12 do auto de inspeção ao local) que pudesse aventar a possibilidade de o acesso pela servidão ser supérfluo ou desnecessário.”

ee) Efetivamente, atualmente não existe qualquer comunicação interior entre a cave e o rés do chão do prédio urbano. No entanto, tal situação deve-se única e exclusivamente ao comportamento dos Autores. Existia sim um acesso interior entre a cave e o rés do chão do prédio urbano da Autora, estando inclusivamente esse acesso devidamente licenciado, contudo os Autores destruíram propositalmente esse acesso.

ff) Fizeram-no sem qualquer tipo de licenciamento e à revelia das entidades administrativas competentes.

gg) Ora, com a sentença proferida o Tribunal a quo protege uma conduta ilegal e totalmente irresponsável dos Autores que prolongou no tempo.

hh) Estamos a permitir que o Autor elimine o acesso interior que possuía à cave, que abra ilegalmente um portão, sem qualquer licenciamento para um pinhal e em consequência disso ainda se onere, ad eternum, um prédio de um terceiro de boa-fé.

ii) Não há uma verdadeira necessidade de existência de uma servidão de passagem à cave do prédio urbano da Autora, na verdade o que há necessidade é a Autora alterar o prédio de forma que o mesmo esteja de acordo com os licenciamentos.

jj) Face ao exposto, deveria o Tribunal a quo ter julgado a ação improcedente, por

não provada.

kk) Ao condenar os Réu nos pedidos, o Tribunal recorrido fez uma incorreta interpretação e aplicação do direito aos factos provados, violando o disposto no art. 1569º do CC.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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As questões a decidir são as seguintes:

A reapreciação da matéria de facto impugnada.

As consequências da reapreciação referida.

A desnecessidade da servidão.


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A reapreciação da matéria de facto impugnada.

Os Recorrentes questionam os factos assentes em 11, 12, 15, 16, 17 e 22, os não provados em f), i) e j) e pedem o aditamento de um facto (acesso interior no prédio urbano dos Autores destruído).

Os Recorrentes invocam os testemunhos de EE, FF, GG e HH; invocam ainda o processo de licenciamento da obra dos Autores.

A prova disponível, a reconsiderar, está sujeita à livre apreciação do julgador.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados.

Lembremos, porém, que a aplicação do regime processual em sede de modificação da decisão da matéria de facto conta necessariamente com a circunstância de que existem fatores ligados aos depoimentos que, sendo passíveis de influir na formação da convicção, não passam nem para a gravação nem para a respectiva transcrição. É a imediação da prova que permite detetar diferenças entre os depoimentos, tornando possível perceber a sua maior ou menor credibilidade.

Reapreciadas a prova documental e a pessoal concretizadas, a nossa convicção manifesta-se no mesmo sentido do decidido, não encontrando razões para alterar a decisão sobre a matéria de facto, julgando assim improcedente a impugnação feita pelos Recorrentes.

Vejamos:

O portão na cave do prédio urbano dos Autores existe.

No processo de licenciamento respetivo parece que não consta a existência do portão na cave.

Não há menção alguma de que a Câmara se tenha pronunciado sobre o portão.

Da leitura de tal processo não resulta qualquer facto expressão inequívoca de ilegalidade.

O portão poderá ter sido feito para beneficiar do caminho apurado pelo Julgador, o que, só por si, poderá constituir um comportamento legítimo.

Por seu lado, apesar da impugnação em análise, os Recorrentes desconsideram totalmente a prova decorrente da inspeção judicial ao local, amplamente utilizada na motivação do julgador.

Relativamente à prova testemunhal:

EE, quem vendeu “o pinhal” aos Autores, “há 20 anos”, esclareceu que “sempre passou” pelo caminho de terra batida (uma “serventia”) para aceder ao terreno para o amanhar e “nunca ninguém disse nada”, “nunca ninguém o estorvou”, explicando que o acesso ao terreno (hoje pertença dos autores) não se pode fazer por outro sítio (“não tem por onde”) a não ser pelo acesso que o Julgador documentou com as fotos n.º 3, 4 e 5.

FF designou a cave do urbano dos Autores como “um arrumo”, “um depósito”, à qual se acede “na parte de trás”, por “uma serventia” de pé e de carro, que é “um caminho com dezenas de anos”, não havendo outra via que permita o acesso a essa cave; nos prédios rústicos dos Autores diz existir uma ribanceira.

GG disse que os Autores têm uma cave “na parte de trás” do edifício, para “armazenar …”, explicando o percurso que se faz para aceder a essa cave, através de um caminho “em terra batida” que é “o único” que existe para lá chegar, acrescentando que o conhece bem e que “por dentro” (no prédio urbano) não existe qualquer ligação, passagem ou acesso interior à “parte de cima”, apenas uma “grade de claridade”; mais explicou que se deslocou à cave inúmeras vezes e “nunca pediu autorização a ninguém para passar lá”.

HH explica as caraterísticas “da serventia que vai para o pinhal que (o Autor) comprou” e que a oficina “pega com essa serventia da parte de trás”, tratando-se de uma “serventia rente ao muro, vira à direita e anda uns 40 ou 50 metros em terra batida até chegar ao pinhal” do Autor, vendo-se bem por “ter lá os rodados”; refere que “não há outro sítio” para poder ir à cave (onde “guardam pneus” e “sem comunicação interior”) e foi por aí que sempre passou “há mais de 20 anos”, e “nunca pediu a ninguém” e “ninguém nunca o estorvou” a passar por ali, tratando-se de uma serventia de “cerca de 70 metros” de comprimento, com a largura de um “carro ou camião”; esclareceu que o pinhal pega com um caminho mas existe um desnível de cerca de 1,5 metros.

Neste contexto probatório, confrontado depois com a inspeção judicial ao local, não criticada pelos Recorrentes, não vemos como alicerçar uma convicção no sentido do defendido pelos Recorrentes. Pelo contrário, a convicção que se forma é idêntica à manifestada pelo Julgador em 1ª instância.

Porventura repetindo algum argumento:

É certo que os Autores fizeram obras no seu prédio urbano, mas nada nos garante que elas são ilegais, até porque não há pronúncia da Câmara sobre isso.

Essas obras terão separado o R/C da cave, com acessos diferenciados.

A obra da cave terá sido feita de modo a beneficiar do acesso que se vinha fazendo “por trás”, o que pode ser legítimo.

Não há prova (pelo menos não lemos assim os testemunhos invocados) de uma destruição propositada de um acesso interior do prédio, que fosse suficiente e adequado aos interesses dos Autores, faltando ainda prova de que essa destruição fosse feita para dar a aparência de que o acesso à cave só se faz “por trás”. Ora, objetivamente, o que não é infirmado por outra prova, no prédio urbano dos Autores não existe acesso interior entre o R/C e a cave.

Nos prédios rústicos dos Autores, o Julgador percecionou um desnível e caraterísticas que tornam o acesso entre si “naturalmente impossibilitante”.

            Pelo exposto, admitindo apenas que, em tempos, existiu uma ligação interior, entre o R/C e a cave, no prédio urbano dos Autores, decide-se, quanto ao mais, julgar a impugnação da matéria de facto improcedente, mantendo a fixada pelo Tribunal de 1ª instância, com o referido esclarecimento.


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Os factos provados são os seguintes:

1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas, que tem por objecto a reparação automóvel, estação de serviço, pronto socorro e comércio de veículos automóveis.

2. Os Autores são os únicos sócios da sociedade Autora e o Autor marido é o seu único gerente.

3. A Autora é dona e legítima possuidora de um prédio urbano composto de ... destinado a oficina de …, sito na Rua ..., C..., freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo predial ... sob o número ...49/..., com inscrição de aquisição a seu favor, registada pela apresentação n.º ...7, de 07.12.1994, inscrito na matriz urbana da respectiva freguesia sob o artigo ...68.

4. É neste prédio, adquirido por compra pela 1.ª Autora no ano de 1994, que a mesma aí exerce a sua actividade comercial e industrial há mais de 20 anos.

5. Os 2.ºs Autores são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico composto de terra com vinha, oliveiras, árvores de fruto, mato e pinhal, sito em ..., C..., freguesia ... concelho ..., a confrontar do norte com II, sul com Serventia, nascente com ..., poente com os 2.ºs Autores, descrito na ... Conservatória do Registo predial ... sob o n.º ...32/..., com inscrição de aquisição a seu favor através da Ap. n.º …72 de 20.05.2016 e inscrito na matriz rústica da respectiva freguesia sob o art. ...54.

6. ... com este prédio rústico (art. …54), a poente, e com o prédio urbano da 1.ª Autora, a sul, os 2.ºs Autores são também donos e legítimos possuidores dos prédios rústicos seguintes:

6.1. Terra com vinha, oliveiras e pinhal, sito em ..., C..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com II, sul com JJ, nascente com KK, poente com LL, descrito na ... Conservatória do Registo predial ... sob o n.º ...39/..., inscrito a seu favor através da apresentação n.º ...8 de 14.04.2000, inscrito na matriz rústica da respectiva freguesia sob o artigo ...55.

6.2. Terra de cultura, mato e pinhal, sito em ..., C..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com II, sul com JJ, nascente com EE, poente com JJ, descrito na ... Conservatória do Registo predial ... sob o n.º ...40/..., inscrito a seu favor através da apresentação n.º ...8 de 14.04.2000, inscrito na matriz rústica da respectiva freguesia sob o artigo ...56.

7. Ambos os prédios rústicos são atravessados por serventia.

8. Os 2.ºs Réus são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano, composto de ... para a actividade industrial de cave para arrumos, rés do chão para escritórios e oficina e logradouro, sito na Rua ..., C..., freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo predial ... sob o número ...56/..., inscrito a seu favor através da apresentação n.º ...16 e n.º ...54, de 24.07.2014, inscrito na matriz urbana da respectiva freguesia sob artigo ...45.

9. A Ré sociedade tem por objecto a reparação de máquinas e tratores industriais e tem a sua sede e exerce a sua actividade comercial e industrial no prédio urbano identificado no ponto anterior.

10. O acesso ao ... da Autora sociedade é efetuado pelo seu lado norte, ou seja, pela Rua ..., com a qual confina.

11. O acesso à Cave do referido ..., tanto a pé como de carro, é efetuado única e exclusivamente pela parte traseira do dito edifício, ou seja, pela parte sul do mesmo.

12. Tal acesso à Cave tem início na Rua ..., desenvolvendo-se no sentido norte-sul por caminho asfaltado até atingir o logradouro do prédio dos 2.ºs Réus, aí curvando à direita em caminho de terra batida, com a largura de cerca de 3 metros, até atingir o prédio.

13. Os prédios rústicos dos 2.ºs Autores são contíguos entre si e são confinantes do seu lado norte, com o prédio urbano da Autora sociedade, situando-se todos os prédios rústicos nas traseiras do referido prédio urbano.

14. O acesso ao prédio rústico dos 2.ºs Autores (art. rústico ...54) faz-se por um caminho situado a sul do referido terreno.

15. O único acesso, a norte, aos prédios rústicos dos 2.ºs Autores (artigos …55 e …56), tanto a pé, como de carro ou trator agrícola é efetuado a partir do caminho asfaltado que tem início na Rua ..., desenvolvendo-se no sentido norte-sul em linha reta, até atingir o logradouro do prédio dos 2.ºs Réus, aí curvando à direita, em serventia de terra batida, com a largura aproximada de 3 metros, até atingir os ditos prédios.

16. Junto a estes dois prédios rústicos existe uma serventia, a sul, mas entre eles e a dita serventia existe um desnível composto por uma barreira em terra com cerca de um metro e meio a dois metros de altura, que impossibilita o acesso pela mesma.

17. O declive acentuado dos terrenos, a sua morfologia e a densa vegetação existente levam a que o único acesso seja o descrito supra no ponto 15.

18. Há mais de 20, 30 e mais anos que o acesso a pé e de carro, tanto a estes prédios rústicos dos 2.ºs Autores, como à Cave do prédio urbano da Autora sociedade, se faz pelo caminho indicado supra nos pontos 12 e 15.

19. Os Autores e seus antepossuidores procedem e sempre procederam do modo descrito no acesso aos seus prédios, de forma contínua, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, de forma pacífica, ao longo do tempo e à vista de toda a gente, convencidos de estarem a exercer um direito próprio e de não prejudicarem ninguém.

20. Os Réus colocaram no logradouro do seu prédio e no leito da serventia de terra batida, um veículo pesado a impedir a passagem e o acesso, tanto aos prédios rústicos dos 2.ºs Autores, como à Cave do prédio urbano da Autora sociedade.

21. Os Réus voltaram a colocar um outro veículo a impedir o acesso de carro e o acesso a pé aos prédios dos Autores.

22. Para além do caminho descrito não existe outro acesso aos prédios dos Autores.

23. A Autora sociedade tem guardado e armazenado na Cave do seu prédio várias máquinas, produtos, ferramentas e equipamentos destinados à sua indústria e comércio que utiliza no exercício da sua actividade comercial e industrial.

24. A colocação dos veículos no referido caminho impede o acesso da Autora à cave do seu prédio.

25. Parte dos prédios rústicos dos 2.ºs Autores são compostos de pinhal e mato, situando-se junto a aglomerado urbano, a casas de habitação, edifícios para indústria e comércio e postos de combustível.

26. Existe uma serventia/caminho público que continua o caminho asfaltado que tem início da Rua ..., desenvolvendo-se no sentido norte-sul, e seguindo a direito, passa entre o prédio urbano dos Réus e os prédios rústicos que se localizam a poente deste, até atingir a extrema a sul dos prédios rústicos, quando vira no sentido nascente-poente e os atravessa pela sua confrontação a sul.

27. A qual tem uma largura com cerca de 3 metros e permite o acesso a pé ou por carro àqueles prédios, a sul.

28. Sendo utilizada pelos proprietários dos referidos prédios rústicos e pelos proprietários dos prédios que se localizam a sul daqueles, há mais de 30 anos.

29. O rés-do-chão do prédio urbano dos autores confina com a via pública.


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Consequências da reapreciação da matéria de facto.

Sem prejuízo da questão da desnecessidade da servidão (infra resolvida), em primeira linha, os Recorrentes faziam depender da alteração da matéria de facto a revogação da sentença recorrida.

A matéria de facto não foi alterada.

O facto aditado (em tempos, existiu uma ligação interior, entre o R/C e a cave, no prédio urbano dos Autores) não tem densidade e relevância suficientes para dar uma qualificação diversa aos factos apurados.

A obra detetada no prédio urbano dos Autores poderá/terá sido feita de modo a beneficiar do acesso que se vinha fazendo “por trás”, o que pode ser legítimo. Não há factos que permitam dizer, com segurança, o contrário.

Ora, apurou-se que o acesso à cave do prédio urbano dos autores, tanto a pé como de carro, é efetuado única e exclusivamente pela parte traseira do dito edifício, ou seja, pela parte sul do mesmo, sendo que esse acesso tem início na Rua ..., desenvolvendo-se no sentido norte-sul, por caminho asfaltado, até atingir o logradouro do prédio dos 2.ºs Réus, aí curvando à direita em caminho de terra batida, com a largura de cerca de 3 metros, até atingir o prédio, o mesmo acontecendo quanto ao acesso, a norte, aos prédios rústicos dos 2.ºs Autores (artigos …55 e …56), sendo certo que entre tais prédios e a serventia a sul existe um desnível composto por uma barreira em terra com cerca de um metro e meio a dois metros de altura, que impossibilita o acesso pela mesma.

Mais se apurou que há mais de 20, 30 e mais anos que o acesso a pé e de carro, tanto a estes prédios rústicos dos 2.ºs Autores, como à cave do prédio urbano da autora sociedade, se faz pelo dito caminho e que os autores, e antepossuidores, sempre acederam aos seus prédios pelo dito caminho, de forma contínua, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, de forma pacífica, ao longo do tempo e à vista de toda a gente, convencidos de estarem a exercer um direito próprio e de não prejudicarem ninguém.

Assim, a conclusão do Tribunal recorrido, de que se mostra verificada a constituição de uma servidão de passagem por usucapião, a favor dos Autores e que onera o prédio dos segundos Réus, não merece censura.


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A desnecessidade da servidão (art. 1569º, nº2, do Código Civil).

Com o argumento de que o Tribunal recorrido concluiu por um encrave relativo dos prédios dos Autores (uma vez que “é mais difícil ir à volta pelo caminho público a sul”), os Recorrentes defendem aquela desnecessidade.

O Tribunal recorrido entendeu que tal circunstância não afasta a necessidade do prédio dos autores no uso da aludida servidão.

Comecemos por dizer que a servidão é um direito real que permite aumentar as utilidades que um direito real de gozo sobre um imóvel proporciona, mediante a correlativa restrição de um outro direito real de gozo sobre outro prédio pertencente a dono diferente.

O nº2 do art. 1569 do Código Civil permite que as servidões constituídas por usucapião possam ser judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.

Conforme a jurisprudência que temos por correta (acórdão do S.T.J., de 16-03-2011, no proc.263/99, em www.dgsi.pt), a desnecessidade de uma servidão de passagem tem de ser aferida em função do prédio dominante; a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante; só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante; fazer equivaler a desnecessidade à indispensabilidade não é consistente com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais; incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova da desnecessidade.

Como também já foi sublinhado noutro acórdão (do STJ, de 16-01-2014, no proc. nº 695/09, no sítio digital referido) “uma interpretação mais restritiva do requisito, fazendo-o equivaler a indispensabilidade, não se harmoniza com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais (no sentido de poderem ser impostas coactivamente”; “pensando na servidão de passagem, por ser a que está em causa, pode constituir-se por usucapião uma servidão em situações que não preenchem os requisitos para a imposição de um direito legal de passagem. Dito por outra forma: a circunstância de não ser indispensável a servidão de passagem (por não ocorrer o encrave, absoluto ou relativo, exigido pelo artigo 1550º do Código Civil) não obsta à constituição do direito correspondente por usucapião. Seria contraditório que fosse permitido ao titular do prédio serviente provocar a extinção da servidão que onera o seu prédio, invocando uma desnecessidade que não impediu a respectiva constituição.”

Ora, face à factualidade apurada, os prédios dominantes precisam da servidão, por não terem outro acesso aos seus prédios que lhes proporcione acessibilidade e comodidade iguais ou idênticas às que são proporcionadas pela servidão ajuizada, quer em termos de distância percorrida, quer em termos de facilidade na acessibilidade.

            Concluindo, a servidão apurada continua útil e necessária para os Autores.


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Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.

Coimbra, 2022-04-26


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Moreira do Carmo)