SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
SUSPENSÃO DOS EMBARGOS
CAUSA PREJUDICIAL
COMPENSAÇÃO
Sumário

I – A execução não pode ser suspensa com fundamento na pendência de causa prejudicial; com tal fundamento apenas pode ser suspensa a oposição à execução por embargos.
II – A compensação de créditos pode ser invocada na oposição à execução até ao limite do crédito exequendo, sem que seja necessário, para tanto, que o contracrédito invocado esteja judicialmente reconhecido; basta que estejam reunidos os requisitos materiais da compensação previstos no artigo 847.º do Código Civil

Texto Integral


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

“A executada/embargante deduz o presente incidente de embargos de executado

mediante oposição à execução invocando um crédito que tem sobre o exequente/embargado que pretende compensar com o crédito exequendo.

O exequente/embargado invoca na contestação a existência de uma causa prejudicial, concretamente a pendência da reclamação de créditos deduzida pela executada no âmbito do processo n.º 1322/21.2T8CBR, a correr termos no Juízo de Família e Menores de Coimbra - Juiz 3.

Notificada para se pronunciar sobre a questão prejudicial, a executada/embargante requer a suspensão do incidente até à decisão que vier a ser proferida no âmbito daquele processo.

Preceitua o artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.

Já o n.º 2 do citado preceito legal dispõe que “não obstante a dependência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens”.

Uma causa é prejudicial relativamente a outra quando “a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à

existência da segunda”.

Nesta medida, “sempre que numa acção se ataca um acto ou facto jurídico que é

pressuposto necessário de outra acção, aquela é prejudicial em relação a esta” (cfr. Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, Volume 3º, Coimbra Editora, 1946, pág. 206).

Apesar do artigo 272.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Civil, se inserir na parte geral do Código de Processo Civil, não distinguindo entre acções declarativas e acções executivas, não tem aplicação neste último tipo de acções.

Na vigência do Código de Processo Civil de 1939 e a propósito do artigo 284.º deste código (cujo teor corresponde ao actual artigo 279.º) o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Assento de 04.05.1960 (cfr. B.M.J. n.º 97, pág.163) dirimiu a divergência sobre a aplicação da norma ao processo executivo nos seguintes termos “A execução propriamente dita não pode ser suspensa pelo primeiro fundamento pelo primeiro fundamento do art.284 do Código de Processo Civil.”

Ora, a doutrina do sobredito Assento (agora com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência - artigo 17.º n.º 2 do Decreto-lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro), mantém-se em vigor, dado não ter caducado pelo simples facto de ter sido revogada a legislação vigente quando foi proferido na medida em que a norma anterior foi substituída por outra cujo texto é idêntico, mantendo-se, assim, válido o sentido fixado no acórdão (cfr. Vaz Serra, R.L.J. ano 96, pág. 366).

Por sua vez, o entendimento da jurisprudência e da doutrina tem sido unânime no sentido de que não é passível suspender uma execução com fundamento em causa prejudicial uma vez que, como bem refere Alberto dos Reis (cfr. “Comentário, Volume 3.º, pág. 274) “o fim deste processo não é decidir uma causa, mas dar satisfação efetiva a um direito já declarado por sentença ou constante de título com força executiva”, pelo que não se “verifica assim o requisito de estar a decisão da causa dependente do julgamento de outra já proposta” (assim, também, Rodrigues de Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, Volume II, pág. 45, Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2.ª Edição, pág. 281/282, Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1.º, Coimbra Editora, pág. 503, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, datados de 04.06.1980, B.M.J. n.º 298, pág.232, de 14.01.1993, C.J. ano I, tomo I, pág.59, de 18.06.1996, C.J. ano IV, tomo II, pág.149, de 14.10.2004, no processo n.º 04B2771, e de 16.04.2009, no processo n.º 9B0674, disponíveis em www.dgsi.pt).

De facto, atendendo que a suspensão pressupõe que a decisão da causa dependa do julgamento de outra já proposta, parece clara a sua inaplicabilidade ao processo de execução, em que não há que proferir decisão sobre o fundo da causa, visto o direito que se pretende efetivar já estar declarado.

E, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 31.05.2007, no processo n.º 07B864 (in www.dgsi.pt) “a execução apenas admite uma espécie de prejudicialidade interna ou no âmbito da própria acção executiva, através do instituto da oposição e da possibilidade desta poder dar origem a suspensão da própria execução”, até porque “se assim não fosse, o regime do artº 818º CPC deixaria de ter aplicação” (no mesmo sentido, o acórdão do mesmo Tribunal, datado de 27.01.2010, no processo n.º 594/09.5YFLSB).

Conclui-se, assim, que não é possível suspender a execução com fundamento em

causa prejudicial, por ser inaplicável a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil ao processo de execução.

No entanto, mostra-se possível suspender a execução nos termos do artigo 733.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, caso se verifiquem os respectivos pressupostos.

Situação diversa é a suspensão do presente incidente por verificação de causa prejudicial.

A lei processual cível não exclui a suspensão do incidente de oposição à execução mediante embargos de executado, nomeadamente quando poderá ocorrer contradição de julgados nos casos em que está pendente uma acção cuja causa de pedir constitui o fundamento da oposição à execução que é precisamente o que sucede no caso vertente, na medida em que o acerto do crédito a compensar foi impugnado no âmbito do processo de inventário.

Como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 10.05.2018 no

processo n.º 20814/11.5YYLSB-A.L1-2 (disponível em www.dgsi.pt):

“II. A excepção da compensação na oposição à execução não tem de dizer respeito a contracrédito reconhecido judicialmente, nem este tem de constar de documento ou ser não controvertido ou aceite pelo exequente.

III. O contracrédito compensável pode derivar de responsabilidade civil, contratual ou não.

IV. Não há litispendência entre uma acção declarativa em que se discuta o contracrédito e a excepção da compensação com esse contracrédito deduzida na oposição à execução. Pode é haver prejudicialidade a recomendar a suspensão da oposição, principalmente quando o exequente é um insolvente.”.

Ora, considerando que o objecto do presente incidente coincide com a causa de pedir inerente à relação de bens e correspondente reclamação a correr termos no processo n.º 1322/21.2T8CBR do Juízo de Família e Menores de Coimbra, Juiz 3, por se entender que a decisão a proferir naquele processo poderá repercutir-se no presente incidente e com vista a evitar casos julgados contraditórios, entende-se que ocorre causa prejudicial e motivo justificado para suspender o presente incidente até à prolação da sentença naquele processo.

De facto, caso o crédito relacionado pela executada/embargante no processo de

inventário seja reconhecido, tal terá necessárias repercussões neste incidente para efeitos de compensação de créditos, precisamente o fundamento da oposição à execução.

Também se considera existir fundamento relevante para suspender a execução nos termos do artigo 733.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil na medida em que o crédito exequendo poderá ser compensado com o crédito reclamado no âmbito do processo de inventário, sendo que nenhum prejuízo existe para a execução na medida em que já foi penhorado 1/2 do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...28 da União das Freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...24, com valor patrimonial de €66.320,10. Face ao exposto, decide-se:

a) suspender a execução nos termos do artigo 733.º, n.º 1, alínea c), do Código de

Processo Civil.

b) suspender o presente incidente de embargos de executado até ao trânsito em

julgado da sentença a proferir no incidente de reclamação à relação de bens do processo

de inventário que corre termos sob o processo n.º 1322/21.2T8CBR do Juízo de Família e

Menores de Coimbra, Juiz 3.” (Fim da citação.)


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Inconformado, o Exequente recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1.º - Nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 853.º do Código de Processo Civil, o Embargado que não se conforme com a decisão de suspensão da execução e do incidente de oposição à execução, pode dele recorrer, o que se faz nesta sede.

2.º - No âmbito do processo executivo é inaplicável a suspensão do processo por causa prejudicial, nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil, o que parece estar em causa no presente incidente de oposição à execução

mediante embargos de executado.

3.º - Se estiver a ser discutido numa acção declarativa pendente, o crédito invocado

nesse procedimento deve ser tido como incerto e hipotético e não permite ainda executar qualquer operação de compensação, por não existirem ainda condições para autorizar a execução do património do devedor, o que torna esse crédito como hipotético e não passível de ser exigível e liquido, como fundamento da execução.

4.º - A suspensão da instância não é aplicável à acção executiva, já que nesta não há que proferir decisão sobre o fundo da causa, na medida em que o direito que se pretende

efetivar já está declarado, não ocorrendo, por conseguinte, o requisito de estar a decisão da causa dependente do julgamento de outra já proposta.

5.º - O contracrédito e sua compensação como fundamento de oposição à execução mediante embargos de executado exige que o mesmo já seja exigível judicialmente, não podendo, porém, o reconhecimento judicial ser obtido em oposição à execução.

6.º - A execução é um processo como um todo e os fundamentos da execução e da sua suspensão funcionam de forma ampla no seu âmbito, não sendo possível haver interpretações contrárias à Lei, nem incidentes que permitam atingir objetivos que não seja legalmente consignados para a mesma.

7.º - O Tribunal está, na sua análise jurídica, limitado pelo pedido efetuado pelo Executado nos embargos apresentados, pelo que, no incidente dos presentes autos, a suspensão é legalmente inadmissível.

8.º - Assim não se vislumbra nenhum motivo legal para se suspender a execução e o incidente de oposição à execução mediante embargos, pelo que a decisão tomada pelo

Tribunal a quo deve ser revogada, seguindo-se os termos da execução de sentença para cobrança célere e integral do crédito exequendo.

9.º - Suspender a execução nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 733.º do Código de Processo Civil, não encontra fundamento na oposição à execução mediante embargos apresentada pela Executada, não se colocando em causa nem a exigibilidade nem a liquidação da obrigação exequenda, não tendo sido prestada caução, sendo, assim, legalmente inadmissível.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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As questões a decidir são as seguintes:

A suspensão da instância relativa aos embargos;

A suspensão da instância executiva.


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            Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas.

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A suspensão da instância relativa aos embargos tem como pressupostos a existência da causa prejudicial (que todos admitem) e a possibilidade de invocar a compensação inerente àquela causa (que o Recorrente afasta, em síntese porque o crédito é litigioso e não está reconhecido).

No âmbito do art.729, h), do Código de Processo Civil (CPC), o que está em causa, a jurisprudência mostra-se dividida.

Entendemos que a solução interpretativa daquele, que se mostra mais ajustada, é a que está expressa no acórdão da Relação do Porto, de 18.1.2021 (proc.324/14, em www.dgsi.pt), apoiada pelo Prof. Teixeira de Sousa (Blog do IPPC, entrada de 22.3.2016).

Em síntese, são invocáveis os seguintes argumentos:

“Não pode deixar de causar alguma estranheza a exigência de que o contracrédito conste de um título executivo, atendendo a que a finalidade da invocação do contracrédito é a oposição à execução, e não a execução do contracrédito.”

O argumento (evitar que seja retardado o pagamento do crédito exequendo) “é apelativo, mas há que referir que, seguindo essa mesma orientação, então todas as causas de extinção do crédito exequendo deveriam constar não só de documento (para satisfazer a -- aliás, muito discutível -- exigência do art. 729.º, al. g), CPC), mas, além disso, de documento com valor de título executivo.”

“A exigência de que o contracrédito conste de um título executivo não é harmónica no contexto do art 729.º, dado que exige para uma das formas de extinção da obrigação um requisito que não é exigido para nenhuma outra forma de extinção do crédito exequendo.”

“A imposição de um ónus de alegação do contracrédito (mesmo não superveniente) nesse processo” (declarativo) “é contrariada por três razões retiradas do direito positivo:

“Em primeiro lugar, nada no disposto no art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC (quanto à invocação da compensação por via de reconvenção) permite concluir que existe qualquer ónus de alegação desse contracrédito na acção pendente, sob pena de preclusão da alegação do contracrédito numa acção posterior; recorde-se que a regra é a de que a dedução de um pedido reconvencional é sempre uma faculdade do réu, nunca um ónus desta parte; aliás, compreende-se perfeitamente a inexistência desse ónus, dado que em parte alguma do sistema jurídico se encontra a regra de que o devedor tem de invocar o contracrédito contra um crédito específico do seu credor…;

“Em segundo lugar, resulta da comparação entre as al. g) e h) no art. 729.º CPC que, enquanto o facto extintivo ou modificativo que pode ser invocado com base na al. g), tem de ser posterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância, esta exigência não é feita quanto à invocação do contracrédito; a proximidade da regulação dos regimes joga certamente no sentido de que a exigência que é feita na al. g) não pode ser estendida para a al. h); em reforço desta conclusão pode ainda argumentar-se com o disposto no art. 860.º, n.º 3, CPC; a oposição à execução com fundamento em benfeitorias não é admissível se estas já pudessem ter sido invocadas num anterior processo declarativo; pode assim afirmar-se que a lei define claramente os casos em que considera verificar-se a preclusão da alegação de um fundamento de oposição à execução, pelo que há que concluir que o regime legal aponta indiscutivelmente para que o contracrédito que pode ser invocado nos termos da al. h) não tem de ser posterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância: a lei não o diz e o elemento sistemático da interpretação não só não corrobora essa exigência, como a contradiz;

“Finalmente, o disposto no art. 732.º, n,º 5, CPC permite concluir que, se o executado não alegar o contracrédito através dos embargos de executado, nunca mais o pode alegar para provocar a extinção do crédito exequendo (ou uma outra parcela do mesmo crédito que seja alegada numa execução posterior); portanto, onde realmente o direito positivo consagra um ónus de invocar o contracrédito é na acção executiva (para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, cf. o paper divulgado em Paper (172)).

Em conclusão, o contracrédito reclamado (também) na causa que foi tida por prejudicial pode aqui ser considerado para efeitos da compensação pedida; sendo aquela uma causa prejudicial, como ninguém discute, e estando nós no incidente declarativo, é possível suspender esta instância.

O mesmo não acontece na instância executiva.

Como o assinala Rui Pinto (Manual da Execução, 2013, CE, página 1009), invocando o Assento do STJ de 24.5.1960, reafirmado em 31.5.2007 (no processo 07B864), “o juiz não pode ordenar a suspensão da execução com fundamento na existência de uma causa prejudicial, nos termos da primeira parte do nº 1 do art.279º, hoje art.272º, nº 1, do novo CPC.”

            “Efetivamente, a execução não visa a declaração de um direito, antes assenta numa presunção titulada da existência deste. Por isso, a sua eficácia não está, como numa causa declarativa, dependente do julgamento de outra já proposta.” (…)

            “Mais: a não ser assim, iria obter-se um efeito de suspensão da execução por fundamento de mérito fora dos casos admitidos em sede de oposição à execução.”

            Porém, admitindo esta solução, a decisão recorrida acaba por suspender a execução nos termos do art.733, 1, c) do CPC.

            Esta parte da decisão enferma de excesso de pronúncia e de erro.

Primeiro, a Executada não pediu a suspensão da execução, apenas pediu a suspensão dos embargos.

Segundo, a Executada, na sua oposição, não impugnou a exigibilidade ou a liquidação da prestação em execução. Pelo contrário, a parte admite o crédito exequendo, titulado em sentença. Aquela impugnação é um requisito cumulativo da norma utilizada.

Em conclusão, a execução não pode ser suspensa pela causa pendente no inventário, nem pelo referido art.733, 1, c), do CPC.

Apesar da não suspensão da execução, a posição da Embargante está salvaguardada pela norma que impõe que o Exequente não seja pago, na pendência dos embargos, sem prestar caução (art.733, nº 4, do CPC).


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Decisão.

Julga-se o recurso parcialmente procedente e, confirmando-se a decisão recorrida relativa à suspensão da instância declarativa, revoga-se a decisão recorrida relativa à suspensão da execução.

            Custas pelo Recorrente, por não existir vencido e por ter sido ele quem tirou proveito do impulso processual.

Coimbra, 2022-04-26


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Moreira do Carmo)