INEPTIDÃO E APERFEIÇOAMENTO DO REQUERIMENTO EXECUTIVO
LIQUIDAÇÃO DA QUANTIA EXEQUENDA
MEIOS DE DEFESA DO TERCEIRO EXECUTADO (NÃO DEVEDOR)
Sumário

I - Dando-se à execução duas escrituras de contratos de mútuo, onde se concretizam as quantias mutuadas e as taxas de juro aplicáveis, mas também se prevêem uma sucessão de prestações mensais a vencer a partir determinada data, compreendendo capital e juros, das quais reconhecidamente algumas foram pagas, a quantia exequenda não é líquida em face dos títulos, devendo ser liquidada pelo exequente por via de cálculo aritmético.
II - Nesse caso, tem o exequente que especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir por um pedido líquido. Não lhe basta apontar um valor sem permitir aferir em que termos é que este se pode considerar sustentado pelos títulos dados à execução.
III - Caso o não faça, deve o juiz convidá-lo a superar a deficiência verificada, demonstrando os termos do cálculo da quantia exequenda, em função dos valores mutuados, das prestações satisfeitas e dos juros aplicados. Só no caso de incumprimento dessa imposição ocorrerá o indeferimento do requerimento executivo.
IV – O executado titular de um bem hipotecado à satisfação de uma dívida alheia pode arguir, na execução, todos os meios de defesa de que poderia lançar mão o devedor, com exclusão das excepções que são recusadas ao fiador.

Texto Integral

PROC. Nº 773/21.7T8LOU-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Execução de Lousada - Juiz 2

REL. N.º 660
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Andrade Miranda

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO

Nos autos de embargos de executado que correm por apenso à execução que P..., S.A., move contra AA, veio esta recorrer da decisão liminar de indeferimento dos próprios embargos, justificada pela sua manifesta improcedência.
Tal decisão traduz-se no seguinte:
“A co-executada AA, solteira, maior, estudante e filha dos co-executados, veio deduzir embargos de executada alegando a Nulidade da cessão de créditos, a Falta de PERSI (procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento).
Desconhece os contratos de financiamento celebrados pelos seus pais.
Não celebrou qualquer contrato com a Embargada nem com qualquer instituição financeira sua antecessora. Desconhece se os mesmos os incumpriram, nem tem obrigação de saber, pelo que considera impugnada tudo quanto sobre essa matéria se alega no requerimento executivo. Mais invoca que o req. executivo é inepto.
Vejamos liminarmente.
Nos termos do artº 54 nº 2 Código Processo Civil a acção executiva pode ser intentada contra o terceiro adquirente.
A ora embargante intervém como co-executada e na medida do artº 54 nº 2 Código Processo Civil.
Como resulta dos autos de execução a dívida accionada era e é garantida por hipoteca registada.
A ora embargante adquiriu o referido imóvel por doação dos seus pais.
No caso dos autos a pretensão do exequente, quanto à executada embargante, é a prevista nos termos do artº 54 nº 2 Código Processo Civil, ou seja, pretende executar dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro que deve seguir directamente contra este ab initio, e pretendendo fazer valer a garantia pode desde logo demandar também o devedor (o que fez, pois, demandou também os mutuários).
Ou seja, é este caso um desvio à regra geral da determinação da legitimidade, configurando um caso de litisconsórcio voluntário, pois pode demandar ab initio só o terceiro ou o terceiro e o devedor.
No caso em apreço, o terceiro, aqui embargante intervirá na qualidade de executado, embora limitada a sua responsabilidade ao bem sobre o qual incide a garantia, sendo este um caso de litisconsórcio voluntário.
No caso em apreço a aqui embargante não é interveniente nos contratos de mútuo que constituem título executivo bastante.
A terceira adquirente não pode invocar excepções de defesa que apenas os contraentes intervenientes no contrato podem invocar face à inexistência de relação contratual com a exequente.
No mais quanto ao desconhecimento do incumprimento do contrato de mútuo é inoponível ao exequente como fundamento de inexequibilidade e quando à ineptidão improcede liminarmente a excepção pois foi suficientemente invocada a causa de pedir para o pedido exequendo.
Destarte, os presentes embargos terão que necessariamente naufragar por serem manifestamente improcedentes.”
É desta decisão que vem interposto recurso, pela embargante, que o termina formulando as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso, interposto da douta sentença – despacho liminar- que indeferiu liminarmente os embargos apresentados por serem manifestamente improcedentes, com a referência nº 86537856.
2. Decisão com a qual não concordamos por entendermos que o tribunal a quo incorreu na violação do disposto nos artigos 698º, 637º e 642º, todos do Código Civil, 615º nº 1 b), 724º nº 1 e) e 186º nº 1 a), todos do Código de Processo Civil.
3. No referido despacho o Exmo. Senhor Juiz do tribunal a quo, determinou que o requerimento executivo não é inepto mas limita-se a dizer que no mesmo "foi suficientemente invocada a causa de pedir e o pedido exequendo", sem indicar um único facto que permita colmatar as vicissitudes apontadas nem tão pouco indica qualquer dispositivo legal que suporte da decisão proferida, nem sequer aponta qualquer argumento para justificar o sentido da mesma, tornando assim a sentença nula também nesta parte dispositiva, por violação do estabelecido no art. 615.º nº 1 al. b) do CPC.
4. Os vícios apontados ao requerimento executivo fazem com que seja absolutamente impossível sindicar o valor peticionado, por omitir uma série de factos, datas e valores que estariam na origem do valor peticionado, sendo como tal violado o disposto no art. 724.º nº 1 al. e) e 186.º nº 1 al. a) do CPC.
5. Urge assim admitir a oposição e notificar a exequente/embargada para exercer querendo o direito ao contraditório relativamente à ineptidão invocada.
Sem prescindir,
6. A sentença recorrida ao invocar a ilegitimidade da embargante para suscitar certas questões por serem atinentes a contrato a que é alheia, além de nula por falta de fundamentação, viola de forma directa o disposto nos artigos 698.º, 637º e 642º, todos do Código Civil.
7. Errou também o tribunal a quo ao considerar que a impugnação apresentada pela executada não tinha efeitos sobre a exequibilidade do título.
8. Na verdade, não podia a executada deixar de impugnar matéria sobre a qual não tinha tido qualquer intervenção, que desconhecia por completo, que não eram factos pessoais ou de que devesse ter conhecimento, em obediência ao disposto no artigo 574º do CPC.
9. Concluímos, pois, que deverá ser revogada a decisão de indeferimento liminar da oposição mediante embargos de executada, e substituída por outra que a receba e notifique a recorrida/embargada para querendo a contestar.
10. Pelo que, por erro de interpretação e aplicação, violou a decisão recorrida os preceitos legais supracitados e demais disposições legais citadas no presente recurso.”
Notificada a exequente, para os termos dos embargos e do recurso, juntou contestação, mas não ofereceu resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC, é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, as questões a decidir referem-se:
- À nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação quanto ao indeferimento da excepção de ineptidão do requerimento executivo;
- À ineptidão do requerimento executivo, por não permitir sindicar o valor peticionado, por omitir uma série de factos, datas e valores que estariam na origem desse valor, o que justificaria a notificação da exequente para contraditar tal excepção;
- À ilegitimidade da embargante para arguir questões atinentes ao contrato de onde procede a execução, declarada judicialmente e também sem fundamentação.
- À eficácia da impugnação, por desconhecimento, do título executivo, para afectação da sua exequibilidade.
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A apelante começa por arguir a nulidade da decisão, por falta de fundamentação, quanto a duas questões que suscitara nos embargos: a ineptidão do requerimento executivo e a ilegitimidade da embargante para arguir questões atinentes ao contrato de onde procede a execução.
É certo que a embargante arguiu a ineptidão do requerimento executivo: referiu que, “… pela descrição dos factos do requerimento executivo, não consegue saber, nem conseguirá o Tribunal, como foi realizada a liquidação”, nem “... quais os montantes que não foram pagos.” Para além disso, também alegou desconhecer quaisquer contratos de financiamento feitos pelos seus pais, bem como que os mesmos tenham entrado em incumprimento.
Em relação a tais questões, o tribunal rejeitou a ineptidão invocada, afirmando que a causa de pedir apresentada é suficiente para a sustentação do pedido exequendo; mais caracterizou a natureza da legitimidade da embargante para figurar como executada na execução em causa, proveniente da aquisição, por doação, de um prédio hipotecado para garantia do crédito exequendo, afirmando que, por isso, a mesma não pode invocar excepções de defesa que apenas os contraentes intervenientes no contrato podem invocar, ou seja, em razão do seu alheamento em relação aos contratos de onde emerge o crédito exequendo.
Deverá identificar-se aqui alguma falta de fundamentação da decisão? A resposta é obviamente negativa. Na decisão em crise, é apresentada uma justificação para cada uma das soluções decretadas: a suficiência da causa de pedir, quanto à primeira questão; e o contexto da legitimidade processual da embargante, enquanto factor de limitação dos fundamentos de defesa susceptíveis de uso, quanto à segunda questão.
Nestas circunstâncias, poderá discutir-se a suficiência ou a qualidade da fundamentação adoptada para motivar cada uma das soluções decretadas, mas não afirmar a inexistência da fundamentação. O tribunal recorrido expressou as razões da sua decisão: a suficiente explanação da causa de pedir, no requerimento executivo, e a causa da limitação que impediria a embargante de suscitar qualquer questão apta a atingir a eficácia do negócio de onde procede o título dado à execução, designadamente o alheamento da embargante em relação a esse mesmo negócio.
Ora, como é recorrente jurisprudência, só uma falta absoluta de fundamentação e não apenas a sua insuficiência ou desadequação podem qualificar-se como fundamento da nulidade da decisão prevista na al. b) do nº 1 do art. 615º do C.P.C. No caso, como vimos, foram justificadas as soluções dadas a cada uma das questões. Em consequência, cumpre rejeitar a arguição de que a decisão recorrida padeça da apontada nulidade.
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Questão diferente é a que corresponde à discussão sobre a adequação de cada uma dessas soluções, que de seguida passaremos a tratar.
Importa, assim, sindicar a decisão sobre a excepção de ineptidão do requerimento executivo.
A este propósito, invoca a apelante que a exequente está obrigada a alegar os factos que: constituem a causa de pedir; permitam concluir pela exigibilidade da obrigação; e permitam perceber a liquidação da obrigação; mas que a exequente não alegou os factos atinentes ao incumprimento, nem à liquidação, nem à exigibilidade.
Antes de analisar a valia dos seus argumentos, cumpre deixar expresso que a excepção constituída pela ineptidão do requerimento inicial não só é passível de ser suscitada por qualquer dos executados, nos termos do art. 731º do CPC, como é passível de conhecimento oficioso.
De resto, o tribunal a quo não deixou de apreciar essa questão, tendo concluído pela regularidade da instância, no tocante à aptidão do requerimento executivo.
Sobre esta questão, dispõe o art. 724º do CPC, que impõe que o exequente, no requerimento executivo, exponha os factos que fundamentam o seu pedido, quando não constem do título executivo [al. e)].
Mas, ainda antes desta norma, dispõe o nº 1 do art. 716º do CPC que “Sempre que for ilíquida a quantia em dívida, o exequente deve especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir o requerimento executivo com um pedido líquido.”
Para apreciar do cumprimento, pela exequente, deste requisito, é útil ter presentes alguns elementos.
Assim:
Na execução em causa, a exequente apresentou à execução duas escrituras públicas:
1 - Na primeira, de 11 de Julho de 2008, o banco antecessor da exequente declarou conceder aos ora executados BB e esposa CC um empréstimo no montante de 87.343,26€ para liquidação de responsabilidades assumidas perante o Banco ..., com o prédio urbano destinado a habitação “abaixo” hipotecado. Os mutuários declararam aceitar o empréstimo e confessaram-se solidariamente devedores “de todas as quantias que do banco receberam e venham a receber a título deste empréstimo e até ao montante do mesmo (…) assim com o também se confessam devedores das quantias que lhe sejam debitadas por conta desta operação, de acordo com o presente contrato.”
1.1. – No documento complementar a esta escritura, conta que o empréstimo foi utilizado de uma só vez, naquela data, e o seu montante creditado na conta dos mutuários. Mais consta que o mesmo foi feito pelo prazo de 480 meses, devendo ser pago em 480 prestações mensais e sucessivas de capital e juros, com início um mês após a data da escritura, compreendendo uma taxa de juros de 7,5739%. Constam várias previsões para o caso de incumprimento das obrigações assumidas pelos mutuários “tanto de natureza pecuniária como de outra espécie”, tanto as desse contrato como as de outro com este credor, nos termos da respectiva cláusula 16ª, incluindo “o imediato e automático vencimento de toda a dívida e, em consequência, a exigibilidade de tudo quanto constituir o crédito…”.
2 - Na segunda, de 11 de Julho de 2008, o banco antecessor da exequente declarou conceder aos ora executados BB e esposa CC um empréstimo no montante de 52.655,74€, para multiusos, e do qual estes se confessaram solidariamente devedores. Mais declararam que o empréstimo e a hipoteca do imóvel então descrito (o mesmo da escritura anterior) se regulavam pelas condições constantes do documento complementar, que se arquivou, que foi declarado ser do conhecimento de todos e que todos aceitaram.
2.1. – No documento complementar a esta escritura, conta que o empréstimo foi utilizado de uma só vez, naquela data, e o seu montante creditado na conta dos mutuários. Mais consta que o mesmo foi feito pelo prazo de 480 meses, devendo ser pago em 480 prestações mensais e sucessivas de capital e juros, com início um mês após a data da escritura, compreendendo uma taxa de juros de 7,8415%. Constam várias previsões para o caso de incumprimento das obrigações assumidas pelos mutuários “tanto de natureza pecuniária como de outra espécie”, tanto as desse contrato como as de outro com este credor nos termos da respectiva cláusula 17ª, incluindo “o imediato e automático vencimento de toda a dívida e, em consequência, a exigibilidade de tudo quanto constituir o crédito…”.
3 - A exequente juntou outra escritura nos termos da qual o Banco 1.., declarando ser titular de um conjunto de créditos hipotecários com ou sem garantias, vencidos e vincendos, concedidos a diversos mutuários, prometeu vender à exequente P..., S.A., que os prometeu comprar, os créditos e as garantias indicadas em anexo ao referido contrato, mais declarando que esses créditos se encontram identificados no anexo onze a esse Contrato Promessa.
Declararam ainda que, nessa data, a .Banco 1.. cedia à P..., S.A. “cada um desses créditos identificados em anexo, (…) produzindo o Contrato Promessa os efeitos do contrato prometido. (…)
Que a presente cessão comporta, relativamente a cada um dos Créditos, a transmissão para a Cessionária (…) todos os direitos, garantias e acessórias a eles inerentes, designadamente hipotecas constituídas para sua garantia (…)”
4 - Em anexo a esse contrato, integrando uma listagem de créditos, consta:
BB - Unpaid Principal Balance - 126.114,02€
- Gross Book Value - 127.918,26€
- Agreed Value - 118.735,88€
5 – Na exposição dos factos justificativos do pedido executivo, a exequente descreveu o seguinte, depois de ter explicado a aquisição do crédito exequendo:
“ No exercício da sua actividade creditícia o Banco 2... S. A. celebrou com os Executados BB e CC na qualidade de mutuários, dois Contratos de Mútuo com Hipoteca no montante de € 87.344,26 e € 52.655,74, em 11/07/2008, formalizados por Escritura que servem de título à presente Execução e Documentos Complementar, conforme cópias que ora se juntam e se dão por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais – cfr. Documentos n.ºs 3 e 4.
Para garantia das obrigações assumidas, foram constituídas hipotecas voluntárias sobre o imóvel correspondente ao imóvel descrito na CRP de Amarante sob o número ..., freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo ..., que se encontram registadas através da AP. ... de 2008/08/06 e ... de 2008/08/06.
Tais créditos e respectivas garantias foram posteriormente cedidos à .Banco 1.. - Cfr. Documento n.º ... Ap. AP. ... de 2011/06/29 e AP. ... de 2011/06/29.
Sucede que, os Executados procederam à doação do imóvel, em 2014, a DD e AA, conforme AP. ... de 2014/03/14. Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no nº. 2 do art. 54º do CPC, deverá a presente execução correr igualmente contra estes, na qualidade de proprietários do imóvel sobre o qual recai a garantia do Exequente.
No Documento Complementar anexo à Escritura supra mencionada, ficou convencionado que o pagamento do referido mútuo seria efectuado em prestações mensais, sucessivas e constantes, de capital e juros. Ora, sucede que os Executados faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao mutuante em 26/08/2018 e 23/04/2019, respectivamente.
O pagamento não se presume e a falta de pagamento de qualquer das prestações implica o vencimento de toda a dívida, conforme artigos 781.º e 817.º do Código Civil.
Pelo que, na presente data, o valor total em dívida relativamente aos supra mencionados contratos é de € 125.892,38 (cento e vinte e cinco mil oitocentos e noventa e dois euros e trinta e oito cêntimos).
Valor a que acrescerão os respectivos juros de mora vincendos, desde a presente data até efectivo e integral pagamento, calculados sobre o capital em dívida à taxa de 4% onde se inclui a sobretaxa de mora de 3%.
O mencionado crédito encontra-se vencido e é exigível. O crédito aqui peticionado, respectivos juros vencidos e vincendos está consubstanciado em título executivo, de harmonia com o disposto no artigo 703.º do C.P.C e goza de garantia real sobre o bem imóvel, dado como garantia.”
Compulsados os elementos que antecedem, constata-se que a exequente, no requerimento executivo, apresenta devidamente a causa de pedir, constituída pelos contratos de mútuo titulados pelas escrituras públicas dadas à execução e seus complementos, que supra se descreveram sumariamente, bem como pela alegação do seu incumprimento, designadamente quanto às prestações previstas para as datas de 26/08/2018 e 23/04/2019.
Para além disso, e no que toca à exigibilidade do crédito exequendo, sustenta igualmente a sua pretensão, especificando que isso resulta do ingresso em incumprimento quanto aos contratos de mútuo, designadamente a propósito das prestações supra referidas.
Por conseguinte, quanto a tais pressupostos, tem de ter-se por cumpridos os requisitos do requerimento executivo e a regularidade da instância executiva.
No entanto, isso já não se verifica quanto à liquidação da quantia exequenda.
Com efeito, em face dos títulos dados à execução, onde se concretizam as quantias mutuadas e as taxas de juro aplicáveis, mas também se prevêem uma sucessão de prestações mensais a vencer a partir de Agosto de 2008, as quais compreendiam capital e juros, é óbvio que a quantia exequenda não é líquida.
Porém, estando definidos os juros aplicáveis e verificando-se quais as prestações pagas, é de admitir que a liquidação da quantia exequenda resultante do incumprimento de cada um dos contratos depende de simples cálculo aritmético.
Por isso, a contrario do disposto no nº 4 do art. 716º e em observância do previsto no respectivo nº 1, tem o exequente que especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir por um pedido líquido. Não lhe basta apontar um valor e referir que esse é o seu pedido, sem permitir aferir em que termos é que este se pode considerar sustentado pelos títulos dados à execução.
Acresce que, a este propósito, não é válida a afirmação do exequente de que o pagamento não se presume, devendo, por isso, deixar-se para a alegação de quaisquer pagamentos um qualquer abatimento à quantia exequenda indicada. É que, na sua própria versão, tais contratos obtiveram pagamento durante mais de 10 anos, ou seja, quanto a mais de 120 prestações.
Com efeito, no caso, a especificação dos valores que a exequente alega serem-lhe devidos é tanto mais relevante quanto se considere que, segundo os contratos oferecidos como títulos executivos, o pagamento dos dois valores mutuados (87.343,26€ + 52.655,74€), num total de 139.999,00€, haveria de obter pagamento em 480 prestações mensais e sucessivas, a compreender capital e juros, a partir de Agosto de 2008, e para as quais é apontada o primeiro incumprimento em Agosto de 2018, seguido de um outro em Abril de 2019.
Assim sendo, não se percebe minimamente em que termos a exequente liquidou o seu crédito exequendo, para concluir por um valor de 125.892,38€.
Conclui-se, assim, que o requerimento executivo não cumpre o disposto no art. 724º, al. e) do CPC, designadamente no tocante ao pressuposto previsto no art. 716º, nº 1 do CPC.
Escusado será referir a importância do cumprimento desse pressuposto, mesmo para a executada ora apelante, demandada apenas enquanto titular da propriedade do bem hipotecado para garantia do crédito exequendo. Convencida que seja da justeza do pedido, pode, por exemplo, pôr fim à execução, satisfazendo esse mesmo crédito e salvaguardando o seu direito.
A consequência prevista para a deficiência acima apontada ao requerimento executivo está prevista no nº 4 do art. 726º do CPC, mas não corresponde à conclusão por uma ineptidão do requerimento executivo e subsequente extinção da instância executiva. Segundo o referido preceito legal, o juiz deve convidar o exequente a superar a deficiência verificada, o que, no caso, corresponderá a especificar os termos do cálculo da quantia exequenda, em função dos valores mutuados, das quantias recebidas e dos juros aplicados. Só no caso de incumprimento dessa imposição ocorrerá o indeferimento do requerimento executivo.
Esse será, pois, o procedimento a seguir, devendo adaptar-se o processado com esse objectivo, nos termos do art. 6º, nº 2 do CPC, aplicável por remissão do nº 4 do art.726º do mesmo código.
Assim, na sequência da procedência da presente apelação, será revogado o despacho de indeferimento liminar dos presentes embargos de executado, o qual se substitui por outro que, admitindo os embargos e reconhecendo a deficiência do requerimento executivo, de acordo com o supra decidido, determina ao exequente o aperfeiçoamento do mesmo, de forma a que especifique os termos do cálculo da quantia exequenda, em função dos valores mutuados, das quantias recebidas e dos juros aplicados.
Subsequentemente, serão os executados notificados para a possibilidade de oferecimento de embargos à pretensão executiva, quanto ao segmento aperfeiçoado, sendo caso disso.
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Em qualquer caso, esta solução não prejudica a apreciação de outra que se mostra suscitada, relativa à decisão de indeferimento liminar dos embargos da executada ora apelante, em razão da sua afirmada ilegitimidade para arguir questões atinentes à relação contratual consubstanciada nos dois contratos de mútuo dados à execução, por neles não ser parte, bem como para arguir excepções que se possam reflectir no exercício dos direitos atribuídos por esses contratos, quais sejam as arguidas nulidade da cessão de créditos à ora exequente, bem como a da não observância prévia do regime extrajudicial de regularização de situações de incumprimento.
Com efeito, nos termos do art. 698º do Código Civil estabelece-se que, sempre que o dono da coisa ou o titular do direito hipotecado seja pessoa diferente do devedor, é-lhe lícito opor ao credor, ainda que o devedor a eles tenha renunciado, os meios de defesa que o devedor tiver contra o crédito, com exclusão das excepções que são recusadas ao fiador.
Considerando o disposto nos arts. 637º e 642º do C.C, para os quais opera a remissão desse art. 698º, conclui-se que pode a ora apelante, na vez dos executados mutuários, invocar as duas excepções em causa: a inexistência do direito da exequente, em razão da nulidade do negócio por via do qual alega ter adquiridos a titularidade nas relações contratuais de que procedem os créditos exequendos e a falta do pressuposto processual invocado, sobre a necessidade de recurso ao PERSI, antes da acção executiva.
Nessa medida, depois de aperfeiçoado, nesse pressuposto e complementada a oposição por embargos, será deles notificada a exequente, para os contestar, nos termos do nº 2 do art. 732º do CPC, em qualquer caso sem prejuízo da contestação, entretanto já oferecida. Revoga-se, pois, a decisão recorrida também nessa parte.
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Procederá, nos termos descritos, a presente apelação.
Sumariando:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida que se substitui por outra nos termos da qual, admitindo os embargos e reconhecendo a deficiência do requerimento executivo, se determina à exequente o respectivo aperfeiçoamento, de forma a que especifique os termos do cálculo da quantia exequenda, em função dos valores mutuados, das quantias recebidas e dos juros aplicados.
Mais se determina que, subsequentemente, sejam os executados notificados para a possibilidade de oferecimento de oposição à pretensão executiva, quanto ao segmento aperfeiçoado, sendo caso disso.
Sucessivamente, depois de aperfeiçoado o requerimento executivo, nesse pressuposto e complementada a oposição por embargos, será deles notificada a exequente para os contestar, nos termos do nº 2 do art. 732º do CPC, em qualquer caso sem prejuízo da contestação, entretanto já oferecida, assim se revogando a decisão recorrida também nesse segmento.
Custas pelo exequente que, apesar de não ter respondido, deu causa ao recurso.
Registe e notifique.
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Porto, 8 de Março de 2022
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda