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DECISÃO SOBRE LIBERDADE CONDICICIONAL
EQUIPARAÇÃO A UMA SENTENÇA PENAL
NATUREZA DA DECISÃO SEUS REQUISITOS E REGIME
NULIDADE DA DECISÃO
Sumário
I–A decisão de concessão ou não de liberdade condicional é equiparável a uma sentença, sendo-lhe aplicáveis os regimes, quer dos requisitos, quer das nulidades da sentença;
II–Assim, a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal não pode bastar-se com referências e considerações de carácter genérico, tendo de reportar-se às concretas provas produzidas em que o julgador baseou a sua convicção, sob pena de nulidade da decisão.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I–RELATÓRIO:
No âmbito do Processo n.º 1359/18.9TXLSB-B, do Juízo de Execução de Penas de Lisboa - Juiz 8, por despacho proferido no dia 13.12.2021, foi decidido, na parte que ora releva:
“A–Não conceder a liberdade condicional ao condenado J, pelo que o cumprimento efectivo da pena de prisão se manterá.”
Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido, J....., interpor o presente recurso, que, na sua motivação, após dedução das alegações, culmina com as seguintes conclusões e petitório (transcrição):
“1.–O recorrente foi condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p.p pelo artigo 21º do DL 15/93, encontrando-se no cumprimento da pena de 6 anos e 6 meses; 2.–Através de sentença proferida a 13 de Dezembro de 2021, o tribunal a quo decidiu recusar a concessão de liberdade condicional ao recorrente, após o cumprimento de mais de metade da pena de prisão em que foi condenado ou seja, mais de 3 anos e 3 meses; 3.–Incidindo ora, o presente recurso sobre tal decisão, por se afigurar que face à factualidade dada como provada em juízo e ao Direito aplicável, impunha-se decisão diversa e que concedesse a liberdade condicional ao recorrente; 4.–Entendendo, outrossim, que tal decisão não teve em devida linha de conta a prova produzida, ou que a tenha valorado de forma acertada, ponderada e criteriosa, enfermando a decisão de erro de facto e de direito, impondo-se a reapreciação da prova gravada; 5.–O tribunal a quo considerou como provado que o recluso:“(…) assume motivações económicas para a prática criminal, situação que segundo o próprio terá sido facilitada pelas relações de conhecimento que mantinha, invocando um envolvimento menor, pese embora lhe tenha sido atribuído um maior protagonismo em sede de condenação; (…) trata-se de um indivíduo com recursos cognitivos e com capacidade para adaptar o seu discurso às expectativas e desejabilidade sociais, adoptando uma narrativa pró-social, ainda que deixe transparecer necessidades ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta.” 6.–O facto em causa, foi parafraseado de um dos últimos parágrafos do Relatório Social elaborado pela DGRS, e transposto para os factos dados como provados, sem reservas; 7.–O recorrente impugnou as conclusões desse relatório; 8.–As declarações do recorrente, prestadas em sede de audição para concessão de liberdade condiciona, demonstram uma versão e postura diametralmente oposta aquela que resultou desse documento e do ponto 4 da alínea G) dos factos dados como provados; 9.–Em momento algum da decisão do tribunal a quo, é dado a explicar ao recorrente o porquê que, no seu entender, entendeu não dar como provado que o recorrente assumiu, na íntegra, e sem reservas o crime pelo qual foi condenado, a preponderância e relevo que lhe foi atribuído pelo tribunal de julgamento, em contraponto com o que entendeu dar como provado, ou tão pouco valorou as suas declarações que iam no sentido inverso às conclusões do dito relatório, e explicou a razão pela qual as mesmas não eram merecedoras de credibilidade; 10.–Dito de outro modo, não se se afigura possível compreender através da leitura da sentença, a razão pela qual o tribunal a quo deu como provado o facto 4 da alínea G) dos factos dados como provados, quando existia prova nos autos em sentido manifestamente contrário e nada diz quanto à sua eventual desconsideração; 11.–Como é consabido, o exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, e a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, em detrimento de todos; 12.–Não o fazendo, o tribunal a quo omitiu um aspecto essencial para a fundamentação da sentença, levando a que esta fique inquinada da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP ou, pelo menos, incorreu em erro de julgamento, devendo a mesma ser nessa linha, revogada; 13.–Em sede de apreciação de liberdade condicional, o arrependimento e interiorização o desvalor da conduta do condenado é essencial para aferir o preenchimento das razões de prevenção especial, relativas à reinserção do condenado e prevenção da reincidência; 14.–Portanto, saber se existe e se, existindo, foi dado ou não como provado, esse arrependimento e desvalor da conduta, é um facto essencial a apurar e a sua omissão, ante a sua relevância, não pode deixar de consubstanciar uma omissão de pronúncia; 15.–Inexiste quer nos factos dados como provados quer nos dados como não provados (que inexistem), qualquer alusão relativamente a esta questão; 16.–No entanto, resulta das declarações do recorrente que o mesmo interiorizou o desvalor da sua conduta e assumiu a prática dos factos pelos quais foi condenado, demonstrando arrependimento, assumindo relevo para verificar o nível de consciência crítica do recorrente face aos comportamentos que o levaram à prisão; 17.–In casu, o Tribunal a quo nem chegou a considerar essa questão quer na matéria dada como provada ou como não provada, quando se impunha decisão quanto à mesma; 18.–Pelo que a decisão está inquinada de nulidade, por omissão do dever de pronúncia, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 379º do CPP, devendo ser declarada nula e assim, revogada, ou aditado à matéria de facto dada como provada que o recorrente;
19.– O tribunal a quo considerou como provado que o recluso: a)-Não tem antecedentes criminais; b)-Não tem processos pendentes; c)- Não tem outras penas autónomas a cumprir; d)-Mantém um comportamento normativo e quase sem registo de infracções disciplinares; e)-ingressou no decurso da reclusão na Universidade Aberta, estando a frequentar a licenciatura em “Línguas Aplicadas”;
20.–Não se compreendendo a razão pela qual, na sua fundamentação, considerou que o recorrente revela: a)-uma reiterada actuação particularmente reveladora do modo de ser (valorando
que à razão de ser dos crimes está subjacente a imaturidade que nem com o andar da idade deixa de ser o mote de personalidade e revela carestia de vontade que mantém quanto ao trilhar do bom caminho da lei; b)-que se está perante um quadro de personalidade pouco alterado face ao quanto foi o seu comportamento anterior, revelador de uma cultura própria de tendência dita irresistível para factos da índole daqueles pelos quais cumpre pena; c)-Um quadro criminológico muito sedimentado, sendo que em relação ao mesmo o recluso não tem adesão de consciência bastante, antes o justificando de forma injustificável;
21.–Da matéria factual dada como provada, não é, s.m.o., possível extrair-se a conclusão de nenhuma da fundamentação supra referida, com única e exclusiva excepção do que foi extraído do relatório social que foi impugnado, e contrasta com as declarações do arguido que nem sequer foram objecto de valoração ou exame crítico; 22.–A fundamentação do tribunal a quo, está pois, em contraste com os factos dados como provados na sua quase totalidade, não sendo compreensível em que medida ou em quê que o tribunal se baseou para formular a motivação supra; 23.–Tendo aqui também, s.m.o., errado no seu julgamento, inquinou de vício a decisão em causa, devendo ser revogada a decisão porquanto a matéria de facto dada como provada é insuficiente para retirar a fundamentação e conclusão formulada pelo tribunal a quo; 24.–Para além disso, cumpre salientar que o recorrente tinha apenas 23 anos à data da prática dos factos pelos quais foi condenado; 25.–Não tem antecedentes criminais; 26.–Não tem processos pendentes; 27.–Não tem outras penas autónomas a cumprir; 28.–Mantém um comportamento normativo e quase sem registo de infracções disciplinares; 29.–Ingressou no decurso da reclusão na Universidade Aberta, estando a frequentar a licenciatura em “Línguas Aplicadas”, o qual tem tido aproveitamento positivo; 30.–Assumiu a prática dos factos pelos quais foi condenado e a preponderância do seu papel na sua execução; 31.–Demonstrou arrependimento e assumiu o desvalor da sua conduta; 32.–No que tange ao preenchimento dos pressupostos materiais, dir-se-á que os mesmos estão pois, preenchidos; 33.–O recorrente apresenta um percurso muito investido e adequado, realçando-se não só a adequada postura comportamental, como o desempenho de funções laborais, a ingressão num curso superior, e o facto de integrar diversas actividades; 34.–Do ponto de vista do seu posicionamento relativamente ao ilícito cometido, nota-se capacidade crítica na avaliação das suas acções; 35.–O recorrente, após cumprido mais de metade da pena, não conta com a existência de uma única medida de flexibilização, apesar de já a ter requerido por mais do que uma vez, razão pela qual não pode nem deve ser valorado contra si; 36.–Se a finalidade das penas é reintegrar, ressocializar e recuperar o condenado para a sociedade, devolvendo-o ao meio social, para que este retorne os caminhos dos valores humanistas e éticos, poucas dúvidas podem subsistir no sentido em que essa finalidade foi já alcançada quanto ao recorrente, sendo perfeitamente possível realizar um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento em meio livre do recorrente, sendo exígua a probabilidade da reincidência, assim como a satisfação das exigências de prevenção geral, sendo compatível a libertação com a defesa da ordem e da paz social, porquanto considera-se que já se esbateram na sociedade os efeitos negativos do crime e a necessidade de execução da pena; 37.–Por todo o exposto, entende-se que o tribunal a quo, também neste circunspecto, incorreu em erro de julgamento, porquanto não teve em devida linha de conta a demais matéria dada como provada e que deveria ter sido objecto na ponderação global da decisão a proferir, devendo a decisão proferida ser revogada e, em consequência, substituída por outra que conceda a liberdade condicional ao recorrente.
Nestes termos, e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, verificada a nulidade por ausência de exame crítico das provas e/ou por omissão de pronúncia, e assim, a decisão em causa ser revogada, ou, ainda que assim não se entenda, a decisão ser revogada e substituída por outra que decida pela concessão de liberdade condicional face ao erro de julgamento de facto e de direito”
Na primeira instância, a Digna Magistrada do MP, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que pugna pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.
Para tanto, formulou as seguintes conclusões:
“a)-O Tribunal a quo baseou-se em elementos fácticos/probatórios para decidir pela não concessão da liberdade condicional, sendo que a sua convicção se mostra motivada, alicerçando-se em razões objetivas, impregnadas de lógica e racionalidade e destituídas de quaisquer presunções. b)-O processo de formação da sua convicção está nitidamente apontado na sentença, baseando-se, fundamentalmente, quanto à inexistência de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do recluso, na incerteza de que este vai, em liberdade, comportar-se como um homem fiel ao direito, donde sentir que o recluso necessita de evoluir a reflexão critica sobre os seus comportamentos ilícitos, investindo na aquisição de competências que facilitem a alteração comportamental, que tem de ser testado e provar em meio livre, numa nova etapa do seu percurso prisional, que consegue consolidar uma trajetória já evolutiva, mas insuficiente, através do gozo – com sucesso –medidas de flexibilização da pena. c)-Daí considerar que não se mostra concluído o trabalho a efetuar em ambiente prisional havendo que assegurar que o recluso melhore a sua capacidade crítica sobre a gravidade das suas ações e o dano e impacto para as vítimas prováveis e para a sociedade em geral. d)-Efetivamente, a verdadeira assunção dos factos sem desculpabilização e a reflexão autocrítica sobre a conduta criminosa e suas consequências, mormente para as vítimas, são indispensáveis para uma cabal interiorização do desvalor da conduta e, como tal, essenciais para que se conclua que o condenado está munido de um relevante inibidor endógeno. e)-Necessário se torna também que, através deste cumprimento da pena, o recluso se responsabilize, tomando melhor consciência dos factos que cometeu e mantenha uma atitude proactiva e empenhada, de forma a que consiga planear a sua vida de forma estruturada e com respeito pelas normas sociais e jurídicas vigentes. f)-O percurso prisional do recluso deve ainda ser consolidado, em volta de fatores positivos, não se verificando, por ora, as necessárias condições excecionais suscetíveis de revelar patentemente a compatibilidade da medida com a defesa da ordem e paz social e, por outro lado, a aptidão do condenado a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. g)-O recorrente pretende fazer valer a sua própria apreciação da prova, desprezando, nitidamente, o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127.º do Código de Processo Penal. h)-A decisão recorrida, apreciando a liberdade condicional a meio do cumprimento da pena, concluiu, quer no sentido de um ajuizamento de prognose desfavorável sobre o comportamento futuro do ora recorrente (prevenção especial positiva ou de ressocialização) e dos efeitos negativos da sua libertação, nesse momento, junto da comunidade jurídica, designadamente o enfraquecimento da confiança da consciência jurídica comunitária no seu sistema protetor de bens jurídico criminais (prevenção geral positiva de integração e defesa do ordenamento jurídico), tendo, para o efeito, o Mm.º Juiz que a prolatou ponderado, de forma concreta, as circunstâncias fácticas que se lhe depararam. i)-Não se descortina também qualquer violação do disposto no artigo 61.º, n.º 2, alíneas a) e b) do Código Penal, ou de outros preceitos legais também invocados. j)-Assim, a decisão que denegou a liberdade condicional é de manter, nos seus precisos termos, negando-se provimento ao presente recurso.”
Neste Tribunal da Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que, aderindo à argumentação e posição expressas na resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1.ª instância, aduziu o seu entendimento de que o recurso deve ser julgado improcedente.
Cumprido o disposto no Art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, não houve resposta ao sobredito parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo conhecer e decidir.
II–ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO(QUESTÕES A DECIDIR):
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP)1][2].
Assim sendo, no caso vertente enunciam-se, pela ordem lógica de conhecimento, as seguintes questões que importa decidir: A–Nulidade da sentença por ausência de exame crítico das provas; B–Nulidade por omissão de pronúncia; C–Erro de julgamento da matéria de facto/erro notório na apreciação da prova; D–Preenchimento dos pressupostos para a concessão da liberdade condicional.
III–APRECIAÇÃO:
A–Da alegada nulidade da decisão por ausência de exame crítico das provas:
A questão em análise demanda que tomemos desde já posição sobre a natureza da decisão de concessão ou não de liberdade condicional, nos termos previstos no art. 61.º do CP, afigurando-se-nos convincentes os argumentos que reiteradamente têm sido aduzidos pelos defensores de que se trata de decisões equiparáveis a sentenças – fundamentalmente, pela «importância do que está em causa: a concessão ou não da liberdade, que implica uma ponderação aprofundada de cada caso, que não se compadece com uma qualquer fundamentação (exigida pelo disposto no art.º 97º/5 do CPP) que fique aquém do que exige o disposto no art.º 374º/2 do C.P.P.», e «porque só este tipo de fundamentação permite que a decisão seja verdadeiramente sindicável em sede de recurso» - pelo que perfilhamos o entendimento de que tais decisões devem ter uma estrutura idêntica à das sentenças, sendo-lhes aplicáveis as normas dos artigos 374.º e 379.º do CPP[3].
Assim, sob pena de nulidade (art. 379.º, n.º 2, do CPP), as decisões sobre liberdade condicional devem conter a “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (n.º 2 do art. 374.º do CPP; cf. também art. 205.º, n.º 1, da CRP).
Este dever de fundamentação impõe que a decisão contenha, pois, e no que para o caso importa, a indicação clara dos factos que suportam a decisão e a respectiva motivação.
O que impõe ao Julgador que “explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, isto é, dando a conhecer as razões pelas quais valorou ou não valorou as provas e a forma como as interpretou”[4] (sublinhamos)
Assim, embora não dizendo expressamente a lei em que consiste o exame crítico das provas, seguramente que terá de revelar os elementos que, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, constituem o substracto racional que conduziu a que se valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados ou que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, sem prejuízo de o cumprimento de tal exigência dever ser aferido com critérios de razoabilidade, de acordo com a concreta situação.
Como se escreveu num recente acórdão desta Relação (Ac. RL de 08.01.2020)[5], “O que importa para satisfazer a exigência legal do exame crítico das provas é que a fundamentação da decisão de facto expresse quais as provas cujo valor probatório se encontra pré-estabelecido na lei (v.g., a confissão do arguido, a prova pericial e a prova documental autêntica e autenticada) que foram produzidas e quais os factos que demonstram, bem como, que dessa fundamentação resulte, com clareza, quais as regras de experiência comum, os critérios de razoabilidade e de lógica, ou os conhecimentos técnicos e científicos utilizados para conferir credibilidade a determinados meios de prova e não a outros e em que medida os meios de prova produzidos oferecem informação esclarecedora e convincente que permite considerar provados os factos ou, pelo contrário, não oferecem segurança para alicerçar uma conclusão positiva acerca da verificação de determinados factos e, por isso, se justifica a sua inclusão, nos factos não provados.”
Essa exigência legal, de exame crítico das provas, é uma decorrência, como tem sido assinalado pela doutrina[6] da necessidade de assegurar "a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina".
Vejamos então se a decisão sob recurso enferma do referenciado vício.
Afirma-se na motivação do recurso que “a douta decisão e fundamentação nem parecem dizer respeito ao recorrente, tanto até que, abundam as referências doutrinárias e jurisprudenciais na douta decisão, e ao mesmo tempo, parca e extremamente exígua no que toca a referências quanto à situação em concreto do recluso.
Sendo, ao mesmo tempo, nas parcas referências concretas a que faz alusão quanto ao arguido, assemelham-se a referências genéricas, porquanto alude a situações distintas e diametralmente opostas, e não as precisa.”
Questiona nomeadamente o recorrente porque não foram relevantes as suas declarações, prestadas em sede de audição para concessão de liberdade condicional, e que, alega, infirmam completamente o que consta do n.º 4 da al. G. dos factos provados, em particular quando aí se diz que o recorrente invoca um “envolvimento menor” (“pese embora lhe tenha sido atribuído um maior protagonismo em sede de condenação”) e quando se refere que ainda deixa “transparecer necessidade ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta”, factos que, em sede de apreciação das necessidades de prevenção especial (art. 61.º/2 a) do CP), foram valorados em desfavor do recorrente (quando, pretende o recorrente, as suas declarações impunham que se desse, antes, como provado que interiorizou o desvalor da sua conduta e assumiu a prática dos factos pelos quais foi condenado, demonstrando arrependimento).
Considerou o Tribunal a quo, designadamente e sob o n.º 4 da al. G. dos factos provados, provado que:
“Caracterização pessoal:
Chegou a manter consumos de canabinóides que assumiram um caracter ocasional, situação entretanto ultrapassada; J..... tem evidenciado um comportamento ajustado e envolvido no trabalho; permaneceu anteriormente no sector da cozinha, mantendo-se desde Junho de 2021 a trabalhar como faxina, actividade que concilia com a frequência da licenciatura pela Universidade Aberta; assume motivações económicas para a prática criminal, situação que segundo o próprio terá sido facilitada pelas relações de conhecimento que mantinha, invocando um envolvimento menor, pese embora lhe tenha sido atribuído um maior protagonismo em sede de condenação; conta com anterior contacto com o sistema de justiça, tendo sido sujeito a uma medida de suspensão provisória do processo pela prática de um crime de consumo de substâncias estupefacientes; trata-se de um indivíduo com recursos cognitivos e com capacidade para adaptar o seu discurso às expectativas e desejabilidade sociais, adoptando uma narrativa pró-social, ainda que deixe transparecer necessidades ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta.”
A motivação da matéria de facto está consignada nos seguintes termos:
“4–Motivação dos factos com relevo para a decisão a proferir:
O dever constitucional de fundamentação dos despachos judiciais basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito em que assenta a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a convicção para efeitos de apreciação de concessão de liberdade condicional1. Exige-se, deste modo um duplo momento: o da indicação dos meios de prova que serviram para formar tal convicção, como, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção livre se forme em determinado sentido ou se valorem de determinada forma os diversos meios de prova apresentados nos autos2.
Considera-se, assim, em particular: A)–certidão da(s) decisão(ões) condenatória(s) e do(s) cômputo(s) de pena(s), com homologação (artigo 477.º e 479.º, ambos do Código de Processo Penal), print do certificado de registo criminal [ou referência em sede de decisão(ões) condenatória(s)] do condenado – todos nos limites de percepção dos concretos factos praticados e do seu reportado e fixado enquadramento típico; B)– print do SIP do condenado – nos limites de percepção de regime de execução da pena ao nível de concessão de medidas de flexibilização (regime comum, RAI, RAE, LSJ, LCD, temporalidade, número e (in)sucesso das mesmas), avaliação do comportamento prisional, relacionamento quer com os membros do sistema prisional, quer com os demais reclusos, (in)existência de infracção(ões) discpilinar(es) e, neste último caso, o tipo da(s) mesma(s) – leve(s) ou grave(s), a ocorrência, ou não, de pluralidade e/ou reiteração; C)–relatório (eventual actualização) da equipa dos Serviços de Reinserção Social da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais contendo avaliação da evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena, das competências adquiridas nesse período, do seu comportamento prisional e da sua relação com o crime cometido e relatório (eventual actualização) da equipa dos Serviços Prisionais da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais contendo avaliação das necessidades subsistentes de reinserção social, das perspectivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso e das condições a que deve estar sujeita a concessão de liberdade condicional, ponderando ainda, para este efeito, a necessidade de protecção da vítima; D)–teor das declarações do condenado prestadas em sede de audição; E)– demais documentos juntos aos autos, mormente, existindo, de reporte a actividade laboral futura do condenado. Refere-se, ainda o sentido do parecer do Ministério Público, assim como o conteúdo da acta de realização de conselho técnico, ponderando a sua valência de órgão auxiliar do Tribunal de Execução de Penas com funções consultivas – artigo 142.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade –, considerando o sentido dos pareceres emitidos pelos membros, a natureza de oralidade dos esclarecimentos nessa sede prestados, designadamente quanto aos relatórios que os respectivos serviços hajam produzido, assim como o sentido de votação de cada um dos membros, quanto à concessão da liberdade condicional e às condições a que a mesma deve ser sujeita.
Assim, o tribunal formou a sua convicção com base, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, pelos esclarecimentos orais fornecidos em sede de conselho técnico, pelas declarações e depoimentos, constantes do quanto é o somatório factual inerente ao teor e fundamento dos relatórios juntos aos autos, e declarações do condenado em sede de audição, tudo em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que, porventura, transpareçam das mesmas declarações e depoimentos. No que concerne directamente aos relatórios (eventuais actualizações) das equipas de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais juntos aos autos, desde já se refira que a valoração feita dos mesmos o foi no sentido do seu alcance concreto. Tal não se confunde com vinculação. De facto, muito embora sejam relevantes meios de obtenção de prova sobre as condições pessoais e prisionais do recluso, os mesmos não são vinculativos, não constituem prova pericial e, como tal, não alcançam o patamar de subtracção de livre apreciação de prova do julgador.
Foram, assim, apreciados como informação auxiliar à formação de convicção nos limites legais do artigo 127.º do Código de Processo Penal. No que diz respeito às declarações do condenado, em particular ao que das mesmas resulta vertido em sede de formação de teor dos relatórios (eventuais actualizações) das equipas de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e na comparação destes com o produzido em sede de audição, atendeu-se primordialmente ao sentido das mesmas nesta última situação, o que se fez face à valoração de assunção/confissão e/ou negação/contradição e ao tempero que da mesma se faz em sede de conjugação de princípio da imediação com princípio da livre apreciação da prova.”
Ora, relida a motivação da matéria de facto, temos inexoravelmente de concordar com o recorrente.
Com efeito, o Mm.º Juiz a quo usa uma formulação tendente a abarcar toda e qualquer situação, expressando assim uma motivação, do princípio ao fim, no condicional, para uma mescla de hipóteses... mas que não contém um único segmento que demonstre que valorou, em que sentido, e porquê qualquer das provas a que - genericamente - alude.
Independentemente do estilo que se adopte, mais ou menos descritivo, pormenorizado ou conciso, recorrendo a fórmulas padrão ou não, tem sempre de descer-se ao caso concreto, às provas que realmente existem e se têm em consideração, às provas que efectivamente contam, identificando-as e, ainda que num limiar mínimo (desde que os tais «critérios de razoabilidade» permitam concluir como suficiente) explicitar em que medida e sentido convenceram o Julgador, e porquê.
Sucede que, como se disse, a citada motivação da matéria de facto constante da decisão recorrida não permite descortinar qualquer exame crítico das provas.
Nomeadamente, não se alcança porque considerou o Tribunal recorrido provada a matéria de facto que o recorrente enfatizou, designadamente a razão do crédito/descrédito que atribuiu às provas a propósito produzidas.
Resulta do exposto – total ausência de exame crítico das provas – que se verifica o invocado fundamento de nulidade da sentença recorrida, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 1, al. a), com referência ao artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP, invalidade que, naturalmente, se circunscreve a esse aspecto.
Como assim, fica prejudicado o conhecimento das demais questões enunciadas.
Verificada a apontada nulidade, não pode a Relação substituir-se ao Tribunal a quo e proceder ao seu suprimento pois, para além de inviável atenta a falta dos necessários elementos, como a gravação áudio das declarações do condenado, se assim fizéssemos estaríamos a negar-lhe o único grau de recurso de que dispõe, violando-se por essa via o duplo grau de jurisdição exigido pelo artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
IV–DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, anulando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que sane a nulidade apontada.
Sem custas (arts. 513.º/1 do Código de Processo Penal).
Notifique (art. 425.º, n.º 6, do CPP).
*
Lisboa, 21 de Abril de 2022
Francisco de Sousa Pereira- (relator) [assinatura digital]
Lídia Renata Goulart Whytton da Terra - (adjunta) [assinatura digital]
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cf. art. 94.º, n.º 2, do CPP)
[1]Cf., neste sentido e a título de exemplo, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª Edição Actualizada, UCE, 2009, anot. 3 ao art. 402.º, págs. 1027/1028; António Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal Comentado, 3.ª Edição Revista, Almedina, 2021, anot. 3 ao art. 403.º, pág. 1265. [2]Acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/95, DR-I, de 28.12.1995. [3]Cf. a título de exemplo, Ac. RL de 26.3.2019, Proc. 507/14.2TXLSB-E.L1-5, e Ac. RP de 29.4.2015, Proc. 1331/11.0TXPRT-D.P1, ambos em www.dgsi.pt [4]Oliveira Mendes, comentário ao n.º 2 do art. 374.º do CPP, citado Código de Processo Penal Comentado de António Henriques Gaspar e outros, pág. 1144 [5]Proc. 133/17.4PGSXL.L1-3, www.dgsi.pt [6]Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2.ª Ed., VERBO, 2000, vol. III. pág. 294