CONTRAORDENAÇÃO
BUSCAS E APREENSÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

I.–A arguição de nulidade de um mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público, no exercício da esfera de competências que a LdC lhe atribui, na fase administrativa do processo contraordenacional, deve ser suscitada perante o Ministério Público, e dessa decisão caberá recurso hierárquico, não cabendo recurso para o Tribunal de Instrução Criminal.

II.–Por seu turno, a arguição de nulidade do próprio acto de busca e apreensão executado pela AdC no âmbito de um processo de natureza contraordenacional em matéria da concorrência, de acordo com os poderes que a LdC lhe atribui, deve ser suscitada perante a AdC e dessa decisão da AdC caberá recurso para o TCRS, não para o Tribunal de Instrução Criminal.

III.–Na fase administrativa do processo contraordenacional de concorrência, qualquer decisão que diga respeito à actuação da AdC, por esta proferida, mormente quanto à execução do mandado, é sindicável em sede de recurso interlocutório ou recurso de impugnação da decisão final, cuja competência está atribuída em exclusivo ao TCRS.

IV.–Não obstante, a legalidade do mandado poderá sempre ser sindicada, de forma plena, pelo TCRS, na fase judicial do processo de contraordenação, em sede de impugnação da decisão final a proferir pela AdC.

V.–Uma vez que ao Tribunal de Instrução Criminal não está atribuída por lei qualquer competência material para decidir sobre nulidades dos actos de busca e apreensão levados a cabo pela AdC sob mandado emitido pelo Ministério Público, no âmbito da Lei da Concorrência, tendo o Juiz de Instrução Criminal proferido decisão a esse respeito, em vez de se ter declarado incompetente para o efeito, imiscuiu-se numa área de competência que não é sua, enfermando a sua decisão de nulidade insanável, enunciada no art. 119º al. e) do CPP.

(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem esta Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa.


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I.– RELATÓRIO.


1.–A sociedade Grupo 8- Vigilância e Prevenção Electrónica, SA não se conformando com a apreensão de ficheiros de correio electrónico levada a cabo pela AdC nas suas instalações, na fase administrativa do processo de contraordenação que corre os seus termos sob o PRC/2019/4, apresentou requerimento submetido a 25 de Novembro de 2019 junto do Tribunal de Instrução Criminal, requerendo a Revogação da Apreensão de ficheiros de correio electrónico realizada pela AdC, nos termos do art. 178º nº 7 do CPP ex vi do art. 13º nº 1 do Regime Jurídico da Concorrência e art.41º nº 1 do RGCO, por entender que tal apreensão se encontrava ferida de ilegalidade.

2.– Esse requerimento veio a ser decidido por despacho do JIC de 24 de Fevereiro de 2020 (Refª 393251126), com o seguinte teor:
“Consigna-se que o tribunal tem apenas para apreciar o requerimento de fls. 2 a 26, que lhe é dirigido.
Vem a Grupo 8- Vigilância e Prevenção Electrónica, SA, com os fundamentos de fls. 2 a 25 pedir a revogação do acto de apreensão de 116 ficheiros de correio electrónico pertencentes a colaboradores da requerente, realizado pela Autoridade da Concorrência em 14.11.2019.
Em sínteses, afirma que a Autoridade da Concorrência procedeu a uma diligência de busca e apreensão nas instalações da requerente, diligência que decorreu entre 16.10 e 14.11 de 2019 e que culminou na apreensão de 116 ficheiros de correio electrónico de colaboradores da requerente. Defende a requerente que a apreensão apenas pode ocorrer em processo criminal e mediante a ordem ou autorização do juiz (cfr. Art.º 37 a fls. 11), não existindo qualquer norma que permita à Autoridade da Concorrência fazê-lo, sendo que a autorização para o fazer se encontra conferida constitucionalmente a um juiz.
O MºPª pronunciou-se nos termos constantes a fls. 630.
Cumpre decidir:
A diligência de busca e apreensão a que se refere o requerimento inicial foi determinada por despacho do MºPº, despacho no qual se delimitou o alcance da diligência (cfr. Fls. 30 a 35).
Aquele despacho mostra-se fundamentado de facto e de direito, neste particular fazendo menção expressa das disposições legais aplicáveis, nomeadamente aquelas do Regime Jurídico da Concorrência.
De acordo com a informação prestada pela Autoridade da Concorrência a fls. 635 e seg., não foi apreendida qualquer correspondência fechada.
A competência dada ao MºPº no art. 18º nº 1 al. c) e nº 2 do Regime Jurídico da Concorrência, em nada bole com a defesa de direitos constitucionalmente garantidos, sendo aliás semelhante às disposições da lei processual penal, facultando-se a apreensão de documentos, qualificação que se aplica à correspondência ( em papel ou outro suporte) aberta.
Logo, aquele particular do Regime Jurídico da Concorrência é conforme aos princípios constitucionais.
Nesta conformidade, entende-se que não se verificam os vícios referidos no requerimento em apreço, assim se indeferindo o pedido de declaração de nulidade.
Notifique a requerente e o MºPº.”

3.–Inconformada com a decisão proferida pelo Juizo de Instrução Criminal de Lisboa, datada de 24 de Fevereiro de 2020, que indeferiu o pedido de revogação da diligência de buscas e apreensões levada a cabo pela Autoridade da Concorrência, a sociedade Grupo 8- Vigilância e Prevenção Electrónica, SA impugnou judicialmente tal decisão, peticionando a revogação do despacho recorrido e, em conformidade, que se declare nulo o acto de busca e apreensão levado a cabo pela AdC nas instalações do Grupo 8, com consequente destruição dos emails apreendidos, apresentando para o efeito as seguintes  
Conclusões
i.- O Despacho Recorrido entendeu que, nos termos dos artigos 18º, n 1, al. c) e n 2 da LdC, a diligência de busca e apreensão executada pela AdC seria legítima, uma vez que (i) havia sido precedida de mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público, devidamente fundamentado e (ii) só teria sido apreendida correspondência aberta.
ii.-No entender da Recorrente, um mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público é insuficiente, nos termos normativos aplicáveis, para que a AdC possa proceder à apreensão de correio eletrónico.
iii.-Com efeito, o artigo 34º n. 1 da CRP consagra a inviolabilidade do sigilo da correspondência e o seu n. 4 dita que "[é] proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, processo criminar, o que inviabiliza, a priori, a apreensão de correspondência em sede de processo contraordenacional por infração ao Direito da Concorrência.
iv.- A mera consideração do disposto no artigo 34ºn. 4, da CRP é suficiente para concluir pela manifesta ilegalidade da conduta da AdC ao proceder à consulta, exame e apreensão de mensagens de correio eletrónico fora do âmbito de um processo criminal, e sem estar munida de uma autorização de um juiz.
v.-Refira-se, ainda, que, por via da garantia constitucional da inviolabilidade da correspondência, o artigo 32º n. 8, da CRP determina que "[s]ão nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações".
vi.-De igual modo, também o CPP vem consagrar este princípio, nomeadamente na norma prevista no artigo 126º n 3, nos termos da qual "[dessalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular".
vii.-Por sua vez, também o artigo 42º n 1 do RGCO vem dizer que "[n]ão é permitida a prisão preventiva, a intromissão na correspondência ou nos meios de telecomunicação nem a utilização de provas que impliquem a violação do segredo profissional'.
viii.-Sobre a matéria em apreço é, ainda, necessário trazer à colação o disposto na Lei do Cibercrime.
ix.- Para o presente caso relevam as disposições processuais que se encontram no capítulo III da Lei do Cibercrime. Aí se estabelece que, com exceção do disposto nos artigos 18º e 19º do mesmo diploma (não aplicáveis ao presente caso), as disposições processuais previstas no referido capítulo aplicam-se a processos relativos a crimes: (a) previstos na Lei do Cibercrime; (b) cometidos por meio de um sistema informático; ou (c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico (cf. artigo 11º n 1, da Lei do Cibercrime). Cabe, portanto, constatar que a Lei do Cibercrime contém disposições processuais aplicáveis a qualquer processo criminal no âmbito do qual seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico (cf. artiqo 11º , n1. al. c), da Lei do Cibercrime).
x.-A conclusão que se retira das disposições conjugadas dos artigos 11º e 17º da Lei do Cibercrime (e que consiste, aliás, numa mera concretização do previsto no artigo 34º n. 4, da CRP) resulta que a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante apenas pode ocorrer em processo criminal e mediante ordem ou autorizacão do juiz (quando este considere que os elementos em causa se afiguram ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova), sendo aplicável, por remissão, o regime de apreensão de correspondência previsto no artigo 179º do CPP.
xi.-É por estas razões que a Recorrente entende, desde logo, que não existe qualquer norma que habilite a AdC a apreender correio eletrónico, uma vez que esta autoridade não atua no âmbito de um procedimento criminal. Acresce que, para além de não atuar no âmbito de um processo criminal, nunca poderia a autorização para exame, recolha e apreensão  eletrónico pela AdC ser conferida por decisão do Ministério Público, visto que, como se viu, essa prerrogativa se encontra constitucional e legalmente reservada a um juiz.
xiii.- Na verdade, o que se constata é que a Lei do Cibercrime em particular o seu artigo 17º concretiza o princípio da inviolabilidade da correspondência consagrado nos artigos 34º n.1 e n.4, da CRR determinando que a apreensão de mensagens de correio eletrónico só pode ocorrer no contexto de investigação criminal e se encontra dependente de autorização ou ordem de um juiz.
xiv.- Se assim é, o Despacho Recorrido procedeu a uma errada aplicação dos artigos 18º, n.1, al. c) e n.2 da LdC, por ter desconsiderado os dados sistemáticos relevantes — de entre os quais, os artigos 34º, n 1, 34º, n. 4 e 32º, n. 8 da CRP, o artigo 126º, n.3 e o artigo 42º, n. 1 do RGCO - ao entender que um mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público seria suficiente para que a AdC pudesse proceder à apreensão de correio eletrónico da Recorrente. Como se viu, essa diligência só é viável em processo criminal e mediante autorização do juiz.
xv.-Por sua vez, subjacente ao Despacho Recorrido está a ideia de que, para efeitos de apreensão, haveria uma diferença substancial entre o correio eletrónico fechado e o correio eletrónico aberto. O primeiro caso estaria sujeito às limitações legais aplicáveis à apreensão de correspondência, enquanto que o segundo seria qualificado como mero documento, e enquanto tal excluído do escopo de proteção que é dada à correspondência.
xvi.-Ora, este entendimento, quando aplicado às mensagens de correio eletrónico, não tem qualquer suporte legal, sobretudo depois da entrada em vigor densificação, recorde-se, do artigo 34º, n.1 e 4, da CRP — do artigo 17º da Lei do Cibercrime.
xvii.-Se, como se viu, a Lei do Cibercrime é-nos termos acima enunciados - uma concretização do princípio da inviolabilidade da correspondência consagrado nos artigos 34º, n.1 e n.4, da CRP, fará sentido compreender os termos em que a Lei do Cibercrime trata a distinção entre correio eletrónico aberto e fechado.
xviii.-Na verdade, os artigos 18º, n. 1, al. c) e n. 2, da Lei da Concorrência, ao preverem que a AdC pode proceder à busca, exame, recolha e apreensão de extratos de escrita e demais documentação, independentemente do seu suporte, encontram-se necessariamente limitados pelo disposto na CRP (e concretizado na Lei do Cibercrime).
xix.-O artigo 1 7º da Lei do Cibercrime aplica-se, sem exceção, a todas as mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicação de natureza semelhante que se encontrem "armazenados [no] sistema informático" alvo de busca. Ao mencionar expressamente as mensagens de correio eletrónico armazenadas no sistema informático, a lei pretende abranger também, como não poderia deixar de ser, as mensagens de correio eletrónico já abertas pelo destinatário. Resulta, assim, claro que a proteção constitucional da correspondência eletrónica abrange tanto a correspondência eletrónica fechada como a correspondência eletrónica aberta.
xx.-Por sua vez, não existe qualquer ferramenta informática que assegure, com inteira fiabilidade, que uma determinada mensagem de correio eletrónico, apesar de surgir como aberta, foi efetivamente aberta e lida pelo seu destinatário, pelo que carece de sentido a aplicação de regimes diferentes ao correio eletrónico aberto e ao correio eletrónico fechado.
x.- Assim, o correio eletrónico apreendido pela AdC resulta de uma intromissão ilícita na correspondência da Recorrente, correspondendo a uma violação dos artigos 26º, n.1, e 34º, n.1 e 4, da CRP.
xi.- Em causa está prova manifestamente nula, por violação do disposto nos artigos 32º, n.8, e 34º, n.4, da CRR do artigo 42º, n.1 do RGCO e do artigo 126º n 3, do CPP.
xii.- Acresce ainda referir que, caso se interpretasse os artigos 18º n.1, al. c), e 20ºn. 1, da Lei da Concorrência como permitindo a busca e apreensão de correspondência eletrónica pela Autoridade da Concorrência, tal interpretação, pelos motivos acima aduzidos, padeceria de manifesta inconstitucionalidade por violação dos artigos 26º, n 1, e 34º, n.1 e 4, da CRP.
xiii.-Face ao exposto, o correio eletrónico apreendido resulta de uma intromissão ilícita da AdC na correspondência do Grupo 8, impondo-se a sua imediata destruição.

Concluiu, requerendo que seja revogado o Despacho Recorrido por deficiente aplicação do Direito e, em conformidade, que seja declarado nulo o exercício de busca e apreensão levado a cabo pela AdC nas instalações do Grupo 8, com consequente destruição dos e-mails apreendidos.
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4.–O Ministério Público respondeu ao recurso, elaborando a seguinte Síntese Conclusiva:

a)- Os mandados de busca e apreensão emitidos pelo MP nos presentes autos habilitam a Autoridade da Concorrência para apreender os ficheiros de correio electrónico com mensagens abertas/ lidas .
b)- A apreensão dos ficheiros em causa nos autos não fere o princípio constitucional da inviolabilidade da correspondência porque este não se aplica a correspondência aberta.
c)- Há equivalência entre correio electrónico e correio em papel porque são formas equivalentes de correspondência nos dias de hoje .
d)- A Lei do Cibercrime não se aplica no caso porque estamos perante contraordenações com lei especial, substantiva e processual, posterior.

Concluiu que fez bem a Sra. JIC quando decidiu que a apreensão em causa não padece de qualquer vício, decisão que deverá ser mantida, rejeitando-se o recurso.
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5.–Também a Autoridade da Concorrência respondeu ao recurso, apresentando, por seu turno, as seguintes

Conclusões

Razão de ordem e contexto
A.– No âmbito do processo de contraordenação que corre termos na AdC sob a referência interna 2019/4 ( e presentemente, em fase de instrução), foi a Recorrente alvo de diligências de busca, exame, recolhe e apreensão realizadas pela AdC entre os dias 29.10.2019 e 14.11.2019, devidamente autorizadas pelo Ministério Público em 25.10.2019.
B.– Em 14.11.2019, a Grupo 8, a ora Recorrente, apresentou um requerimento dirigido à ilustre Procuradora do Ministério Público, onde, de forma sucinta, arguiu a nulidade do despacho que autorizara as buscas realizada pela AdC, assim como a nulidade da apreensão de correio electrónico efectuada pela AdC ao abrigo das referidas diligências.
C.– O recurso a que ora se responde vem interposto do Despacho (refª 392251126) do Juiz de Instrução Criminal que indeferiu as nulidades arguidas pela ora Recorrente, validando, o ato de apreensão realizado pela AdC dos 116 ficheiros de correio electrónico - lido - de colaboradores da Grupo 8;
D.–Ao presente recurso foi correctamente fixado o efeito meramente devolutivo, inexistindo base legal que acolha a pretensão de efeito suspensivo propugnada pela Recorrente.

A (falta de) competência do Juiz de Instrução para apreciar a validade das diligências de busca, exame e apreensão autorizadas pelo Ministério Público.

E.–O requerimento apresentado pela Grupo 8 tinha como propósito o da declaração de nulidade do despacho emitido pelo Ministério Público que autorizou as diligências de busca, exame e apreensão promovidas pela AdC no PRC/2019/4 e da subsequente nulidade da apreensão de qualquer mensagem de correio electrónico que seja efectuada pela AdC no decurso da diligência autorizada pelo mandado de busca e apreensão ( emitido pelo Ministério Público).
F.– Deste modo e pese embora o despacho recorrido não mereça, no plano substantivo, qualquer reparo pela AdC, a verdade é que, ao apreciar a validade do despacho emitido pelo Ministério Público, o Tribunal imiscuiu-se, salvo o melhor respeito, numa esfera de competências que não lhe pertence.
G.– Tal escrutínio da validade do mandado só poderia ser feito em sede reclamação hierárquica junto do próprio Ministério Público- isto sem prejuízo do controlo de plena jurisdição que caberá sempre ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TVRS) fazer, em sede de recurso de impugnação judicial de eventual decisão final condenatória que venha a ser proferida no âmbito do respectivo processo contraordenacional.
H.–O Juiz de Instrução Criminal não assume nenhum papel como instância recursiva dos atos praticados pelo Ministério Público: inexiste qualquer disposição processual penal suscetível de sustentar semelhante competência e nem poderia ser de outra forma, à luz do princípio de separação de poderes, o princípio da legalidade e as garantias de independência e autonomia do Ministério Público.
I.–São diversas as decisões judiciais que corroboram a referida incompetência. VEJAM-SE, DESIGNADAMENTE, OS Despachos do Juiz de Instrução Criminal (Juiz 6 e juiz) proferidos no âmbito do processo nº 10626/18.0T9LSB e do processo nº 3376/17.7T9LSB, respectivamente e o Tribunal deste Tribunal ad quem, proferido no processo nº 71/18.3YUSTR-J.L1.
J.–A transposição, atualmente em curso, da Directiva ECN+ (cuja referência mais detalhada se fará adiante) virá clarificar definitivamente as esferas de competência entre o Ministério Público e o Juiz de Instrução Criminal (veja-se a redação proposta para o artigo 86º-A da Lei da Concorrência), sendo certo que a sua proposta de transposição para o ordenamento jurídico interno afasta derradeiramente qualquer papel de instância recursória do Juiz de Instrução Criminal relativamente a atos do Ministério Público, única solução, de resto, compaginável com o princípio de separação de poderes, o princípio da legalidade e as garantias de independência e autonomia do Ministério Público.
K.–Isto posto e sem questionar, todavia, a bondade do respectivo sentido decisório do Despacho recorrido, a verdade +é que, ao apreciar a validade do mandado emitido pelo Ministério Público, o Tribunal a quo não respeitou as regras de competência ínsitas na alínea c) do nº 1 do artigo 18º e no artigo 21º da Lei da Concorrência, o que, se antecipa, consubstanciará uma nulidade insanável, nos termos da alínea e) do artigo 119º do CPP.
L.– E, se é certo que a AdC não tem interesse em suscitar um vício que enferma um despacho que lhe é integralmente favorável e que validou os mandados que autorizaram as diligências de busca levadas a cabo no PRC/2019/4 e o subsequente ato de apreensão, a verdade é que se entende colocar a este Tribunal a referida falta de competência, em coerência, de resto, com o que a AdC já fez em outros processos e no sentido de corroborar e cumprir aquele que tem sido o entendimento deste Tribunal a propósito da divisão de competências supra exposta.

Sem embargo: da alegada inadmissibilidade legal de apreensão de correspondência electrónica no âmbito de um processo contraordenacional

M.– À semelhança daquela que parece ter sido a posição tomada pelo Tribunal a quo e daquela que tem vindo a ser a orientação defendida pela maioria da jurisprudência a este propósito, entende a AdC que a Recorrente falha ao pretender aplicar o nº 4 do artigo 34º da CRP à aprensão de mensagens de correio electrónico lidas/abertas- as únicas que foram apreendidas nos presentes autos.
N.–A doutrina e a jurisprudência mais autorizadas - e que inclusivamente se versam sobre o processo contraordenacional por infração às leis da concorrência- têm entendido, de forma uníssona, que o escopo do nº 4 do artigo 34º da CRP apenas inclui o correio electrónico fechado/por ler, pois só este convocará a (especial) necessidade de proteção, enquanto comunicação que ainda não chegou ao seu recetor: o que aquele preceito salvaguarda é a privacidade em sentido formal, ou seja, a interação e o processo comunicativo ( ou o ato comunicativo em si) ao invés do objecto da comunicação, isto é, do seu conteúdo.
O.–O critério do correio electrónico aberto/lido versus correio electrónico fechado/não lido é o critério que tem sido, até à data, acolhido pela jurisprudência especializada como permitindo traçar a fronteira entre o que é correspondência e o que não é. A partir do momento em que o correio é lido e armazenado no computador, deixa de subsistir a vontade de o tornar confidencial e privado da curiosidade alheia, passando a valer como um mero documento, desprotegido de tutela constitucional.
P.–Este entendimento tem sido igualmente partilhado pela doutrina produzida em contexto criminal, designadamente por Santos Cabral, Conde Correia, Gama Lobo, Pedro Verdelho e Costa Andrade (mas cujo entendimento conceptual é extensível ao regime jurídico da concorrência).
Q.– A jurisprudência, inclusive a de jurisdição especilaizada, vem perfilhando semelhante entendimento quanto à distinçãpo entre correspondência lida e não lida, a propósito do nº do artigo 34º da CRP.– Nesse sentido, vejam-se, entre outros, o Acórdão do TRL, no processo nº 744/09-1S5LSB-A.L1-9, o Acórdão do TRL proferido no processo nº 229/18.5YUSTR-L2 e as Sentenças, posteriormente corroboradas pelo TRL nos processos nº 71/18.3YUSTR-I de 23.09.2019 e nº 159/10.3.YUSTR (apensos A e B9 de 03.10.2019 e a recente Sentença (ainda não transiatada) do TCRS proferida no âmbito do processo nº 71/18.3YUSTR-M.
R.– O que a AdC apreendeu, no âmbito do PRC/2019/4, foram mensagens de correiro electrónico abertas/lidas que, de acordo com a doutrina e a jurisprudência supra citadas, constituem meros documentos escritos, estando, por isso, estão afastadas do regime de proteção da reserva de correspondência e das comunicações conferido pelo nº 4 do artigo 34º da CRP.
S.–Tão pouco igualmente será aplicável ao regime sancionatório da concorrência o nº 1 do artigo 42º do Regime Geral das Contraordenações só o seria se não houvesse norma específica na Lei da Concorrência a propósito do âmbito objectivo das diligências de busca, exame e apreensão promovidas pela AdC.
T.– Sucede que essa previsão legal existe e está contida na alínea c) do nº 1 do artigo 18º da Lei da Concorrência, razão pela qual, tal como entendeu já o TRL, designadamente no Acórdão proferido no processo nº 71/18.3YUSTR-D, se afasta a aplicação subsidiária do referido nº 1 do artigo 42º do Regime Geral das Contraordenações.

Da alegada nulidade da prova recolhida com fundamento no despacho do Ministério Público

U.– Da alínea c) do nº 1 do artigo 18º conjugada com o nº 1 do artigo 20º e com o artigo 21º da Lei nº 19/2012 decorre que a AdC, desde que autorizada, ordenada ou validade pelo Ministério Público, pode apreender qualquer documentação independentemente do seu suporte.
V.– Por seu turno, ao Juiz de Instrução Criminal cabe autorizar as diligências previstas nos nºs 1 e 7 do artigo 19º e no nº 6 do artigo 20º da Lei nº 19/2012, significando isto que a AdC apenas poderá proceder a (i) buscas domiciliárias; (ii) buscas em escritório de advogado; (iii) buscas em consultório médico e (iv) apreender, em bancos e outras instituições de crédito, documentos abrangidos pelo sigilo bancário, desde que autorizada, ordenada ou validada pelo Juiz de Instrução Criminal.
W.– As diligências encetadas pela AdC dependem, pois, de um controlo prévio, ora efectuado pelo Ministério Público, ora efectuado pelo Juiz de Instrução Criminal, em função da proporcionalidade da medida em causa e decorrente de uma pré-determinação normativa que prevê uma verdadeira repartição de competências entre a autoridade judiciária que emite a ordem de busca e a autoridade administrativa que executa essa mesma ordem, enformada por um princípio de proteção da esfera privada contra intromissões abusivas e arbitrárias resultantes do exercício de poderes públicos.
X.–A validação e autorização do Minsitério Público é uma condição sine qua non da diligência prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 18º do referido diploma (assim como a autorização do JIC para as diligências previstas nos nºs 1 e 7 do artigo 19º e no nº 6 do artigo 20º da lei nº 19/2012). O legislador transferiu para o Ministério Público a competência para, em face da notícia da infração, da sua qualificação e do pedido de autorização fundamentado pela AdC nos termos do nº 3 do artigo 18º da Lei da Concorrência, efectuar o seu próprio juízo de ponderação sobre a indispensabilidade ou necessidade dessa diligência ( neste sentdio vide, designadamente, a jurisprudência do TCRS no processo nº 159/19.3YUSTR, posteriormente corroborada por este TRL).
Y.– Essa eventual decisão de autorização da busca e apreensão de correio electrónico lido concedida por uma autoridade judiciária orientada pelo “princípo da legalidade” nos termos do nº 1 do artigo 219º da CRP parametriza e baliza a actuação da AdC, definindo limites que esta não pode ultrapassar sob pena de actuar fora do âmbito de competências que lhe foi delimitado e é susceptível de ser judicialmente escrutinável pela empresa visada.
Z.–O Ministério Público assume, no processo contraordenacional de concorrência, uma função de controlo e de sindicância materialmente homólogas àquelas exercidas pelo JIC no plano processual penal (que aqui não é o caso) tendo em vista o controlo da actuação do poder público e a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias, imprimindo um equilíbrio ao sistema legal.
AA.– O artigo 21º da Lei nº 19/2012 assegura a intervenção do Ministério Público não como responsável pelo processo, mas como terceiro ao mesmo, numa lógica de checks and balances da actuação da AdC, transportando especial apelo á proprocionalidade da ingerência nos direitos fundamentais da empresa. Esta atribuição de competência própria e exclusiva ás autoridades judiciárias para determinadas diligências tem em vista a prolação de decisões por parte de autoridades independentes e a dissipação de qualquer confundibilidade entre o estatuto e orgânica da entidade que investiga/acusa e aquela que autoriza, salvaguardando o princípio de separação de poderes.
BB.– Não é aplicável - nem a título subsidiário - ao processo contraordenacional da Concorrência a Lei do Cibercrime, que tem como objecto processos relativos a crimes no domínio da cibercriminalidade e um âmbito de aplicação circunscrito aos ilícitos criminais, com as consequências que daí derivam. Pelo contrário, as infrações por violação das regras da concorrêncioa não são crimes, são contraordenações, conforme artigos 67º e 68º da Lei da Concorrência, sendo certo que as regras atinentes às diligências de busca e apreensão emergem de um regime de natureza contraordenacional.
CC.– A Lei da Concorrência atual data de 08.05.2012, tendo revogado a anterior, a Lei nº 18/2003 de 11 de Junho. A lei do Cibercrime data de 15.09.2009, ou seja, quando ainda não tinha entrado em vigor a actual Lei da Concorrência. Donde, se o legislador tivesse intencionado relacionar a apreensão de documentação em suporte digital com outros diplomas legais- como a Lei do Cibercrime - tê-lo-ia feito.
DD.– O legislador foi taxativo em permitir a recolha e apreensão de qualquer documentação, independentemente do seu suporte, no âmbito de processos contraordenacionais no domínio concorrencial, sem prejuízo do regime jurídico anteriormente definido para a recolha de prova em suporte electrónico no âmbito da investigação de crimes informáticos.
EE.–Existem já diversas decisões judiciais que afastam a aplicabilidade da Lei do Cibercrime ao regime da apreensão de correio electrónico no domínio contraordenacional jusconcorrencial: disso são exemplos
os Acórdãos proferidos por este Tribunal ad quem no processo nº 18/19.0YUSTR-D e no processo nº 71/18.3YUSTR-D.

Em todo o caso: o âmbito subjectivo do nº 4 do artigo 34º da CRP.

FF.– Danbdo um passo mais do que o próprio Tribunal a quo, não vá sem referir-se que, de qualquer modo, o artigo 34º da CRP se reconduz á inutilidade da vida provada e à tutela da privacidade da pessoa singular, sem aplicação ao contexto da vida empresarial e da informação criada, produzida e veiculada entre empresas, pelo que, tratando-se o litígio sub judice de uma diligência de busca feita a uma empresa em sede de processo contraordenacional da concorrência, a apreensão de correio electrónico da mesma não seria em qualquer caso objecto do crivo constitucional prescrito pelo nº 4 do artigo 34º da CRP.
GG.– A própria jurisprudência do Tribunal Constitucional e a doutrina nele citada que vêm acolhendo uma diferenciação ou graduação de proteção entre a esfera de intimidade da vida privada e a esfera de privacidade de uma pessoa colectiva- distinção essa com impacto no alce subjectivo do artigo 34º da CRP. Veja-se, por exemplo, o Acórdão proferido pelo Tribunal Conjstitucional nº 593/08. A doutrina autorizada inclui Jorge Miranda/Rui Medeiros e Gomes Canotilho/Vital Moreira. Igualmente pertinente é o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no âmbito do processo nº 1590/17.4BEPRT.
HH.– Até razões de ordem sistemática apontam para a natureza intrinsecamente pessoal do aludido nº 4 do artigo 34º, dado que o capítulo da Lei Fundamental onde se insere aquele artigo- capítulo I do título II- tem como epígrafe a referência aos direitos liberdades e garantias pessoais”, sendo certo, por outro lado, que prescreve o nº 2 do artigo 12º da CRP que as pessoas colectivas gozam dos direitos compatíveis com a sua natureza- que vale por dizer, que as pessoas colectivas só gozam dos direitos que sejam compatíveis com a sua natureza.
II.–A pretensão do legislador subjacente a este preceito terá sido a de consagrar e proteger o direito fundamental á inviolabilidade do domicílio e da correspondência, como corolários da reserva da vida privada.
JJ.–Aqui chegados, é forçosos concluir que ocorrendo a apreensão de mensagens de correio electrónico em ambiente empresarial, como sucedeu nos presentes autos, nunca se verificaria - independentemente os ter sido apreendido correio electrónico já lido- qualquer ofensa ao direito à inviolabilidade das comunicações, porquanto estando no âmbito da esfera jurídica da pessoa colectiva e não das pessoas singulares que colaboram com a Recorrente- e tal sempre seria quanto baste para encerrar em definitivo a discussão em torno da conformidade constitucional do teor da alínea c) do nº 1 do artigo 18º da Lei da Concorrência e julgar improcedente o argumentário da Recorrente.

Segue: o primado do Direito da União Europeia e a transposição da Diretiva ECN+
KK.– A apreciação do despacho recorrido deverá ter igualmente lugar não perdendo de vista o primado do Direito da União Europeia- proclamado, entre outros, no conhecido Acórdão Costa c. Enel- cuja primazia perante a ordem constitucional interna apenas cederá, nos termos do nº 4 do artigo 8º da CRP, em face de ameaça dos aspectos essenciais dos princípios fundamentais do Estado de direito.
LL.– Acontece que a convicção do Dieito da União em tornop da relevância e instrumentalidade da apreensão de correio electrónico para a prossecução de infrações à concorrência é tal que a Diretiva ECN+- em fase de transposição para o ordenamento jurídico interno- vem precisamente constituir um instrumento adicional de defesa da concorrência e de garantia do bom funcionamento do mercado interno em face dos novos desafios que emergem do ambiente digital, sendo certo que, com a transposição da referida Directiva (actualmente em curso), é límpida a admissibilidade de apreensão de correio electrónico por parte da Comissão Europeia, e das autoridades nacionais da concorrência, independentemente de qualquer filtro como o “lido” ou “não lido”. Aliás, no Acórdão proferido no processo nº 18/19.0YUSTR-D, este Tribunal explicou por que razões as finalidades e o sentido precsritivo das normas relativas á apreensãi de correio electróncio previstas no regime contraordenacional da concorrência carecem de ser harmonizadas com aquela Diretiva.
MM.–A admissibilidade e validade da prova electrónica apreendida pela AdC nos presentes autos e propugnada pelo Tribunal a quo é, pois, a única que se compadece com as especificidades do direito da concorrência a que se aludiram nos pontos precedentes, respaldados na Diretiva ECN+, e a única que observará um espaço de interconstitucionalidade europeu, onde inclusivamente se caminha para a possibilidade inequívoca de apreensão, em meio empresarial, de correio electrónico marcado pelo respectivo utilizador como não lido.

Finalmente: breves palavras sobre o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 687/2021 e a sua inaplicabilidade aos presentes autos.

NN.–Pese embora o momento em que a Recorrente tenha interposto o recurso a que ora se responde seja anterior ao Acórdão nº 687/2021 proferido pelo Tribunal Constitucional, proferido em sede de fiscalização preventiva do artigo 17º do Decreto nº 167/XIV, a cautela de patrocínio impõe que, por variadas ordens de razão, desde já se afaste liminarmente qualquer aplicação ou sequer semelhança de soluções com o litígio sub judice.
OO.–Em primeiro lugar e como salienta o Tribunal a quo, porque a declaração de inconstitucionalidade de determinada norma em sede de fiscalização preventiva não tem qualquer consequência quanto á Lei da Concorrência atualmente em vigor e para estes autos, particularmente: seriam necessárias três decisões sobre as referidas normas do Regime Jurídico da Concorrência para que uma eventual declaração de inconstitucionalidade ganhasse força obrigatória geral ( nº 3 do artigo 281º da CRP).
PP.–Em segundo lugar, as normas com relevância para a temática da apreensão de correio electrónico nos presentes autos (al. C) do nº 1 do artigo 18º e artigo 21º da Lei da Concorrência) não são as mesmas postas em crise naquele acórdão de fiscalização preventiva e não viram, aliás e até á presente data, qualquer inconstitucionalidade reconhecida.
QQ.–Em terceiro lugar, o circunstancialismo legislativo subjacente àquele Acórdão não é comparável com o dos presentes autos- e isso tem sido afirmado designadamente por este Tribunal da Relação, ao afastar a aplicação da lei do Cibercrime ao regime contraordenacional da concorrência.
RR.–Em quarto lugar, o Tribunal Constitucional tão pouco apreciou a aplicabilidade do nº 4 do art,. 34º da CRP ao domínio contraordenacional: a fiscalização que lhe foi suscitada cingia-se ao processo penal.
SS.– Em quinto lugar, porque existem especificidades no direito da concorrência que reclamam uma solução diferente daquela outra adotada no Acórdão nº 687/2021: as diligências de busca, exame e apreensão previstas na alínea c) do nº 1 do artigo 18º da lei da Concorrência se cingem às instalações, terrenos ou meios de transporte das empresas, não estando pois aqui em causa diligências de busca a pessoas singulares. Por seu turno e como se elucidou supra, o núcleo do artigo 34º da CRP reconduz-se à intimidade da vida privada e à tutela da privacidade da pessoa singular, primordialmente vocacionado para proteção de informação nesse específico contexto e não no contexto empresarial.
TT.–Assim, estando em causa as diligências de busca, exame e apreensão feitas tão somente a empresas e às contas de email profissional dos seus colaboradores, na problematização sobre a conformidade constitucional da alínea c) do nº 1 do artigo 18º e do artigo 21º da lei da Concorrência deve ser devidamente ponderada a dissemelhança da tutela concedida pela Lei Fundamental às pessoas singulares e às pessoas colectivas.
UU.–Em sexto lugar, uma das razões invocadas naquele Acórdão de fiscalização preventiva relativamente á necessidade de reservar ao juiz de instrução criminal a autorização de apreensão de correio electrónico reside na necessidade de salvaguardar um processo isento e imparcial, não permitindo que o mesmo órgão que investiga em processo penal ( o Ministério Público) também autoriza a possibilidade de obtenção daquele meio de prova. Acontece, contudo, que no processo contraordenacional da concorrência semelhante preocupação se encontra salvaguardada porquanto a entidade que investiga, acusa e instrui o processo ( a AdC) não é a mesma a quem caberá autorizar as diligências de busca, exame e apreensão- função reservada ao Ministério Público e, alguns casos particulares, ao próprio Juiz de Instrução Criminal.
VV.– Esta separação orgânica, funcional e material de entidades acautela assim a necessidade de isenção, neutralidade e imparcialidade exigidas, sendo certo, como se viu já, que a Lei da Concorrência inclusivamente discrimina as matérias da competência do Ministério Público e aqueloutras reservadas ao Juiz de Instrução Criminal.
WW.– Inexiste, pois, qualquer subsídio útil suscetível de se retirar do aludido Acórdão de fiscalização preventiva para a discussão dos presentes autos.
XX.–Em face de tudo quanto se expôs, impõe-se a improcedência, em toda a linha, do recurso interposto pela Recorrente, com a consequente confirmação do Despacho recorrido.

Concluiu, pedindo que seja negado provimento ao recurso e seja mantido, na íntegra, o Despacho recorrido proferido pelo Tribunal a quo.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto, apôs o seu visto, nada acrescentando à posição assumida pelo Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, mantendo-a integralmente.
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Foram colhidos os vistos.
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II.–Questões a decidir.

Atentas as conclusões formuladas pela Recorrente, condensando as razões da sua divergência com a decisão recorrida, as quais delimitam o recurso e definem as questões a decidir (cf. artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1 do Código de Processo Penal), excetuando as que sejam de conhecimento oficioso, importa apreciar e decidir neste caso:
Questão prévia- competência do Tribunal de Instrução Criminal para conhecer do pedido de nulidade do acto de busca e apreensão de ficheiros electrónicos, levada a cabo pela AdC, no âmbito de um processo de contraordenações por alegadas práticas restritivas da concorrência, a coberto de um Mandado emitido pelo Ministério Público;
a ser competente,
- inadmissibilidade legal de apreensão de correio electrónico no processo por infração jusconcorrencial e sem autorização judicial.
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III.–Fundamentação Jurídica.

Constitui uma das incumbências prioritárias do Estado, no âmbito económico e social, de acordo com o disposto no art. 81º al. f) da CRP, “Assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral.

Para assegurar o cumprimento da defesa dos referidos interesses protegidos constitucionalmente, foi criada e instalada a Autoridade da Concorrência, que, de acordo com os arts 1º e 5º dos respectivos Estatutos (DL nº 125/2014 de 18/8), tem por missão assegurar a aplicação das regras de promoção e defesa da concorrência nos setores privado, público, cooperativo e social, no respeito pelo princípio da economia de mercado e de livre concorrência, tendo em vista o funcionamento eficiente dos mercados, a afetação ótima dos recursos e os interesses dos consumidores.
A Autoridade da Concorrência (doravante AdC) rege-se pelo Regime Jurídico da Concorrência (Lei nº 19/2012 de 8/5, com as alterações introduzidas pela Lei nº 23/2018 de 5/6).

Segundo o art. 5º do referido diploma legal, o respeito pelas regras de promoção e defesa da concorrência é assegurado pela Autoridade da Concorrência, que, para o efeito, dispõe dos poderes sancionatórios, de supervisão e de regulamentação estabelecidos na presente lei e nos seus estatutos.
No âmbito do exercício dos seus poderes sancionatórios, cumpre à Autoridade identificar e investigar as práticas suscetíveis de infringir a legislação da concorrência nacional e europeia, proceder à instrução e decidir sobre os respetivos processos, aplicando, se for caso disso, as sanções previstas na lei (art. 6º nº 2 al. a) dos Estatutos).
Deste modo, no exercício de poderes sancionatórios, a AdC, através dos seus órgãos ou funcionários, pode, designadamente proceder à busca, exame, recolha e apreensão de extractos de escrita e demais documentação, independentemente do seu suporte, sempre que tais diligências se mostrem necessárias á obtenção de prova, nos termos previstos no art. 18.° nº 1 al. c) da LdC, dependendo essas diligências de decisão da autoridade judiciária competente (nº 2)- neste caso o MP por força do disposto no art. 21º-, solicitada previamente pela AdC, em requerimento fundamentado, como aconteceu no caso sub judice.
Nesta fase administrativa, o modo de realização dessas diligências, o prévio requerimento a apresentar pela AdC ao MP, a obtenção do mandado, o modo de execução desses poderes de investigação- que envolvem poderes de realizar buscas e apreender-, a ocorrer nos termos do referido preceito legal, pode ser sindicado através da arguição de irregularidades ou nulidades pelo Visado junto da AdC e, depois de proferida decisão administrativa que delas conheça, pode ser interposto recurso dessa decisão interlocutória para o TCRS ou suscitada a nulidade em sede de recurso de impugnação judicial da decisão final, dependendo do tipo de nulidades suscitadas.

Entre elas está a questão suscitada pela Recorrente atinente à inadmissibilidade de emissão de mandado de busca e apreensão pelo MP no âmbito de um processo contraordenacional jusconcorrencial movido pela AdC, que, em seu entender determina a nulidade da apreensão executada nas suas instalações, questão essa que sujeitou à apreciação do Tribunal de Instrução Criminal.

Conforme resulta evidente dos autos e consta expressamente da interposição de recurso pela Visada Grupo 8- Vigilância e Prevenção Electrónica, SA, no âmbito do processo contraordenacional (PRC/2019/4), por alegadas práticas restritivas da concorrência, a AdC procedeu a uma diligência de busca e apreensão nas instalações daquela, que decorreu entre os dias 29 de Outubro de 2019 e 14 de Novembro de 2019, que terá culminado na apreensão de 116 ficheiros de correio electrónico de diversos colaboradores da Recorrente, com base em Mandado de Busca e Apreensão emitido pelo Ministério Público, precedido de despachos emitidos pelo mesmo.

Não se conformando com a apreensão levada a cabo pela AdC, a Recorrente apresentou requerimento submetido a 25 de Novembro de 2019 junto do Tribunal de Instrução Criminal, requerendo a Revogação da Apreensão de ficheiros de cor jreio electrónico realizada pela AdC, nos termos do art. 178º nº 7 do CPP ex vi do art. 13º nº 1 do Regime Jurídico da Concorrência e art.41º nº 1 do RGCO, entendendo que tal apreensão se encontrava ferida de nulidade por a AdC ter procedido à consulta, exame e apreensão de mensagens de correio eletrónico fora do âmbito de um processo criminal, e sem estar munida de uma autorização de um juiz.
Esse requerimento veio a ser decidido por despacho do JIC de 24 de Fevereiro de 2020 (Refª 393251126), o qual constitui o objecto do presente recurso.

No que para esta questão importa, aquele despacho tem o seguinte teor:
“A diligência de busca e apreensão a que se refere o requerimento inicial foi determinada por despacho do MºPº, despacho no qual se delimitou o alcance da diligência (cfr. Fls. 30 a 35).
Aquele despacho mostra-se fundamentado de facto e de direito, neste particular fazendo menção expressa das disposições legais aplicáveis, nomeadamente aquelas do Regime Jurídico da Concorrência.
De acordo com a informação prestada pela Autoridade da Concorrência a fls. 635 e seg., não foi apreendida qualquer correspondência fechada.
A competência dada ao MºPº no art. 18º nº 1 al. c) e nº 2 do Regime Jurídico da Concorrência, em nada bole com a defesa de direitos constitucionalmente garantidos, sendo aliás semelhante às disposições da lei processual penal, facultando-se a apreensão de documentos, qualificação que se aplica á correspondência (em papel ou outro suporte) aberta.
Logo, aquele particular do Regime Jurídico da Concorrência é conforme aos princípios constitucionais.
Nesta conformidade, entende-se que não se verificam os vícios referidos no requerimento em apreço, assim se indeferindo o pedido de declaração de nulidade.
Notifique a requerente e o MºPº.”

Com o presente recurso pretende a Recorrente que este Tribunal revogue o referido despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal e, que declare nulo o exercício de busca e apreensão levado a cabo pela AdC nas suas instalações, com consequente destruição dos emails apreendidos.
Em suma, a Recorrente impugnou a busca e apreensão levada a cabo pela AdC junto do Tribunal de Instrução Criminal, sem que tenha suscitado junto da AdC qualquer fundamento de oposição contra esse acto que determinasse decisão da AdC recorrível para o TCRS ou, sem que tenha arguido junto do Ministério Público qualquer nulidade da emissão do mandado que autorizou a referida busca e apreensão, de modo a obter despacho passível de recurso hierárquico.
Optou por requerer ao Tribunal de Instrução Criminal que revogasse o acto levado a cabo pela AdC sob mandado emitido pelo Ministério Público- não sob mandado emitido pelo JIC- julgando, a nosso ver mal, que compete ao JIC a competência para revogar um acto autorizado por outra autoridade judiciária distinta, no âmbito de um processo contraordenacional jusconcorrencial.
Acontece que, a apreciação da questão da admissibilidade ou inadmissibilidade legal de emissão de mandados de busca e apreensão no âmbito de um processo de contraordenação da competência da AdC, nos casos em que a LdC prevê ser da competência exclusiva do Ministério Público, tendo por fundamentos a necessidade de autorização de Juiz e só ser admissível no âmbito de um processo-crime, não cabe, ao Juiz de Instrução Criminal - nem de acordo com a LdC, nem mesmo da LOTJ.
Qualquer arguição de nulidade de um mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público, no exercício da esfera de competências que a LdC lhe atribui, na fase administrativa do processo contraordenacional, deve ser suscitada perante o Ministério Público, e dessa decisão caberá recurso hierárquico, não cabendo recurso para o Tribunal de Instrução Criminal.
Por seu turno, qualquer arguição de nulidade do próprio acto de busca e apreensão executado pela AdC no âmbito de um processo de natureza contraordenacional em matéria da concorrência, de acordo com os poderes que a LdC lhe atribui, deve ser suscitada perante a AdC e dessa decisão da AdC caberá recurso para o TCRS, não para o Tribunal de Instrução Criminal.
Na fase administrativa do processo contraordenacional de concorrência, qualquer decisão que diga respeito à actuação da AdC, por esta proferida, mormente quanto à execução do mandado, é sindicável em sede de recurso interlocutório ou recurso de impugnação da decisão final, cuja competência está atribuída em exclusivo ao TCRS.
Não obstante, a legalidade do mandado poderá sempre ser sindicada, de forma plena, pelo TCRS, na fase judicial do processo de contraordenação,  em sede de impugnação da decisão final a proferir pela AdC.
Entendemos, porém que, na fase administrativa, nem sequer o Juiz do TCRS tem competência para proferir decisão sobre a legalidade ou ilegalidade do próprio mandado emitido pelo MP, não cabendo àquele juiz (e por maioria de razão ao JIC) pronunciar-se sobre a validade substancial do mandado a coberto do qual a busca é feita, apenas o podendo fazer o juiz do TCRS na fase judicial do processo, se essa questão vier a ser colocada pela Recorrente.
Já assim se decidiu nesta Secção PICRS, em casos similares,cujo entendimento se secunda, designadamente no âmbito dos Proc. Nº 71/18.3YUSTR-J.L1-PICRS,Proc.Nº 18/19.0YUSTR-D.L1-PICRS, Proc. Nº 229/18.5YUSTR-L1-3 (todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt), o último dos quais condensa os seguintes princípios (e passo a citar):
A Lei da Concorrência ( Lei 19/2013 de 08.05 na versão da Lei nº 23/2018 de 05/06) define um regime recursal específico no que respeita à impugnação de buscas em matéria de contra-ordenações;
Por via da dita Lei são admissíveis recursos interlocutórios de actos e diligências efectuadas na fase administrativa do processo.
Contudo, no que respeita a buscas, na fase administrativa, não pode ser objecto de impugnação judicial a própria decisão de ordenar a busca e a sua dimensão.
Tal acto é do Ministério Público e é insindicável em fase administrativa contra-ordenacional.
Se a parte desejar colocar em crise a decisão de buscar terá de o fazer na fase judicial do processo de contra-ordenação indicando aí qual a prova apurada na busca que foi tida em conta e não o poderia ter sido e porquê.
“(…) tendo sido o MP a dar autorização não tem de ser ele, juiz, a decidir da correcção da emissão da autorização. O juiz não é superior hierárquico do MP e não tem de se imiscuir nas competências próprias deste. Tal não significa que a questão seja insindicável. É-a e pode ser suscitada na fase jurisdicional do processo pois que aí se poderá colocar em crise o acervo probatório obtido na busca sendo que a mesma foi feita com base na autorização dada pelo MP.
(…)O juiz do Tribunal a quo é incompetente para se pronunciar sobre a validade substancial do mandado a coberto da qual a busca é feita (sem prejuízo da questão poder ser alvo de discussão na fase jurisdicional do processo se a tal se chegar).”

O Tribunal de Instrução Criminal não tem competência para se pronunciar sobre se o MP tem ou não legitimidade para autorizar buscas e apreensões no âmbito do Regime Jurídico da Concorrência e, muito menos revogar tais actos, não sendo nem instância de recurso dos actos praticados ou autorizados pelo MP nos processos de natureza contraordenacional jusconcorrencial, quando não foi o emitente do mandado de busca e apreensão em apreciação ( sendo que ao Juiz de Instrução Criminal apenas cabe autorizar as buscas e apreensões especificamente previstas nos arts. 19º nº 1 e 7 e 20º nº 6 da LdC).

Tal como menção feita pela AdC na resposta ao presente recurso, essa destrinça de esfera de competências é evidenciada na transposição em curso da Diretiva (EU) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Dezembro de 2018, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno, cuja Proposta de Lei nº 99/XIV/2ª está em discussão, na qual claramente se distingue os vários recursos judiciais nos processos contraordenacionais e os tribunais competentes, não estando prevista a competência do Tribunal de Instrução Criminal no âmbito de decisões que recaiam sobre diligências de busca e apreensão, nem na lei actual, nem nas alterações projectadas.

Segundo o art. 86º-A dessa Proposta de Lei, a reação a decisões no âmbito de diligências de busca e aprensão far-se-á do seguinte modo:
1–No âmbito de diligências de busca e apreensão, todos os incidentes, arguições de nulidade e requerimentos devem ser dirigidos à entidade que praticou o respectivo ato, no prazo de 10 dias úteis após o encerramento das referidas diligências ou da respectiva tomada de conhecimento.
2–Das decisões da AdC referentes à execução do despacho da autoridade judiciária para as diligências de busca e apreensão cabe recurso nos termos do art. 85º (recurso de decisão interlocutória para o TCRS).
3–Das decisões do Ministério Público relativas à validade dos seus atos há reclamação para o superior hierárquico imediato.
4–das decisões do juiz de instrução relativas à validade dos seus atos cabe recurso, nos termos do nº 4 do art. 89º, com efeito meramente devolutivo, para o tribunal da relação competente, que decide em última instância.

Uma vez que ao Tribunal de Instrução Criminal não está atribuída por lei qualquer competência material para decidir sobre nulidades dos actos de busca e apreensão levados a cabo pela AdC sob mandado emitido pelo Ministério Público, no âmbito da Lei da Concorrência, tendo o Juiz de Instrução Criminal proferido decisão a esse respeito, em vez de se ter declarado incompetente para o efeito, imiscuiu-se numa área de competência que não é sua, enfermando a sua decisão de nulidade insanável, enunciada no art. 119º al. e) do CPP aplicável ex vi do art.41º do RGCO e 83º da LdC, que pode e deve ser conhecida oficiosamente e, que impõe a revogação da decisão recorrida.[1]

Verificada a falta de competência do Tribunal de Instrução Criminal para proferir a decisão recorrida e, determinando-se a sua revogação, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pela Recorrente neste recurso.
***

VI.–DECISÃO

Em face do exposto, deliberam os Juizes deste Tribunal da Relação de Lisboa, em revogar a decisão recorrida, por verificação da nulidade prevista no art. 119º al. e) do CPP, e no mais considerar prejudicado o peticionado no âmbito deste recurso.

Custas pela Recorrente, com taxa de justiça de 2 UCs.

Notifique.



Lisboa, 7-4-2022



Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
Carlos M G de Melo Marinho
Ana Pessoa



[1]Neste sentido, em sede de processo-crime, vejam-se os Ac RL de 21/2/2017, Proc. Nº 2/15.2IFLSB-D.L1-5; Ac RL de 6/10/2021, Proc. Nº 68/18.3JELSB-A.L1-3; Ac RL de 15/3/2021, Proc. Nº
2413/11.3TAFAR-A.L1-9, www.dgsi.pt