REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PRESSUPOSTOS DA REVISÃO
PRÉVIA TRANSCRIÇÃO NO REGISTO NACIONAL
Sumário


I A procedência da ação de revisão de decisão estrangeira exige, além do mais, e no caso de dois cidadãos brasileiros, casados no Brasil e lá divorciados, que estes transcrevam previamente no registo nacional o seu casamento.
II Só assim pode ser atribuída eficácia à dissolução do casamento na nossa ordem interna.

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO.

A. C., brasileira, natural de …, divorciada, reformada, inscrita no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) sob o n.º ….-00, com número de identificação fiscal …., residente na …, freguesia de …, concelho de Braga (…), intentou a presente ação, invocando o disposto nos artºs. 978º e seguintes do C.P.C. e os fins do artº. 7º, nº. 2, do Decreto-Lei n.º 131/95, de 06-06 (Código do Registo Civil –C.R.C.), contra
G. L., brasileiro, natural de …, divorciado, analista de sistemas, inscrito no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) sob o n.º ……-70, com número de identificação fiscal ……., residente na Rua …, freguesia de …, concelho de Viana do Castelo (…).
Para o efeito alegou que requerente e requerido contraíram matrimónio no dia 15 de março de 2002, sob o regime da comunhão parcial de bens, conforme assento feito na matrícula n.º ................., no “Cartório do Registro Civil do Distrito do ...” -que juntou como Doc. 1. Sucede que, no dia 16 de Novembro de 2021, no “5º OFICIO DE NOTAS CARTÓRIO M. F.”, requerente e requerido outorgaram uma “ESCRITURA PÚBLICA DE DIVÓRCIO DIRETO E CONSENSUAL COM PARTILHA DE BENS”, através da qual procederam a realização do divórcio consensual, conforme Doc. 2 que juntou. Por força da supra referida escritura, no dia 06 de dezembro de 2021, no “Cartório do Registro Civil do Distrito do ...”, procedeu-se a “AVERBAÇÃO” na “Certidão de Casamento”, com a matrícula n.º matrícula n.º ................., nos termos seguintes:
De acordo com Escritura Pública de Divórcio lavrada no 5º OFÍCIO DE NOTAS CARTÓRIO M. F. - …, no livro … e folha 105 na data 16/11/2021, AVERBO para constar que o casal G. L. e A. C. encontra-se DIVORCIADO. A mulher voltará a usar nome de solteira, ou seja, A. F.. Dou fé. …, 06/12/2021. Selo …. (Ass) A. M. - Escrevente Substituta. A presente certidão envolve elementos de averbação do CPF a margem do termo –cfr. mesmo Doc. 1.
Conclui assim que foi extinto o vínculo conjugal entre requerente e requerido, que passaram a ter o estado civil de divorciados.
Mais diz que para que tal decisão produza efeitos civis em Portugal, é mister a revista e confirmação por este competente Tribunal da Relação (artigo 979.º do CPC). E que a tal desiderato nada obsta.
Pede por isso que seja revista e confirmada a decisão que decretou o divórcio entre requerente e requerido, corporizada no Doc. 2, para que produza efeitos em Portugal, com todas as consequências legais, designadamente para os fins do citado artº. 7º.

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O requerido foi citado e não apresentou oposição.
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Por este Tribunal foi proferido o seguinte despacho:

“Analisada a p.i. verifica-se que requerente e requerido são ambos de nacionalidade brasileira, casaram e divorciaram-se no Brasil, constando dos autos a certidão de casamento respeitante à República Federativa do Brasil –Registo Civil das Pessoas Naturais- e aí estando averbado o divórcio; não havendo certidão do assento de casamento transcrito para Portugal, e sendo esta a circunstância que impõe a necessidade de revisão do acto que decreta o divórcio, notifique a requerente para quanto a tal se pronunciar conforme tiver por conveniente, já que tal contende com a procedência do seu pedido.”

Nessa sequência a requerente veio dizer que:
-A requerente sufraga o entendimento de que o facto de não haver certidão do assento de casamento transcrita para Portugal, não contende com a procedência do seu pedido; isto porque, as partes não são nacionais portugueses. Uma vez que, “caso se pretenda a revisão de sentença estrangeira que tenha dissolvido por divórcio o casamento de cidadão português, a transcrição constitui condição sine que non da produção dos efeitos do casamento em Portugal (Arts. 1º, al. d), 2º, 6º e 7º do CRC), sendo necessária a sua comprovação através do correspondente assento no registo civil nacional, a fim de posteriormente poder ser averbado o divórcio em resultada da revisão da decisão estrangeira que o declarou (art. 7º, nº 1, do CC; STJ 5-6-13, 75/11 e RE 8-11-12, 75/11). Em segundo lugar, o artigo 7.º, n.º 2 do CRC, estabelece que “As decisões dos tribunais estrangeiros, referentes ao estado ou à capacidade civil dos estrangeiros, estão nos mesmos termos sujeitas a registo, lavrado por averbamento ou por assento, consoante constem ou não do registo civil português os assentos a que devam ser averbadas."
-Tanto a requerente, quanto o requerido, atualmente residem em Portugal legalmente, porquanto ambos possuem autorização de residência emitida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, conforme Doc. 1 que juntou. Ora, pese embora, não exista uma certidão do assento de casamento no Registo Civil - e tal facto, s.m.o., já se encontre sanado -, aquando da solicitação do visto de residência, realizada no Consulado Geral de Portugal em São Paulo, pela requerente e requerido, na época casados, com o objetivo de residirem no país, foi solicitada e apresentada a respetiva Certidão de Casamento do antigo casal. Mais, como a requerente é reformada no Brasil, tendo por anos exercido funções na Justiça do Trabalho, esse facto foi o que fundamentou o seu pedido de residência em Portugal. Por sua vez, o seu ex-marido, aqui requerido, obteve o direito de residir em Portugal, com a sua ex-esposa, aqui requerente, por força do casamento que já existia há mais de uma década, graças ao direito ao reagrupamento familiar presente em nosso ordenamento jurídico. E, em razão deste circuntancialismo, a requerente sempre teve como assente que, para todos os efeitos legais, encontrava-se casada em seu novo país de residência.
-Em terceiro lugar, o artigo 978.º, n.º 1, in fine, do CPC, estabelece que “nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.” Por isso, há de se considerar que, para além do divórcio e da partilha de bens, existem outras consequências legais decorrentes da Decisão estrangeira que se pretende rever e confirmar, em concreto, a alteração do nome completo da requerente, que passou (voltou) a ser A. F.. Neste sentido, faz-se necessário destacar que a alteração do nome da requerente está contemplada no pedido vertido na P.I., posto que se trata de uma consequência legal da revisão e confirmação da Decisão.
-De modo que, a decisão estrangeira, em concreto, a “ESCRITURA PÚBLICA DE DIVÓRCIO DIRETO E CONSENSUAL COM PARTILHA DE BENS”, junta como doc. 2 com a P.I., outorgada no Brasil, devidamente apostilada, não é título bastante para, sem ser revista e confirmada por este Tribunal, instruir, por exemplo, um requerimento para a emissão de um novo título de residência, atualizado, junto ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Da mesma forma, o supra referido documento jamais seria título bastante para confirmar o seu estado civil perante a instituição financeira em que a requerente possuí conta bancária, com a finalidade de se obter um crédito à habitação para a aquisição de um imóvel, tendo em consideração que no momento da abertura da tal conta procedeu a apresentação da sua certidão de casamento. Neste seguimento, pode-se afirmar que, tanto as entidades públicas, como as entidades privadas, de Portugal, não são obrigadas a reconhecerem os efeitos legais e a eficácia do divórcio da requerente, enquanto a decisão que decretou o mesmo seja revista e confirmada.
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Foi cumprido o artº. 982º, nº. 1, C.P.C..
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O M.P. apresentou alegações dizendo, além do mais (e nada mais obstando à revisão) que a falta de transcrição no registo nacional de casamento celebrado no estrangeiro - sendo, aliás, a requerente e o requerido de nacionalidade brasileira -, constituindo pressuposto da revisão da decisão de divórcio que dissolveu o mesmo, obsta, segundo cremos, à procedência do respetivo pedido de revisão. Na verdade, o assento de casamento da requerente A. C. e do requerido G. L. -, é estrangeiro, emitido que foi pelas autoridades brasileiras. E tratando-se do estado das pessoas, a prova correlativa somente é admissível através do Registo Civil português, ainda que por virtude da transcrição de atos de registo ocorridos no estrangeiro, sendo tal registo obrigatório, como decorre dos artigos 1.º, n.º 1, d) e q), 2.º e 4.º, do Código do Registo Civil. Ora, visando este processo, precisamente, levar ao registo civil nacional a dissolução do casamento das partes, afigura-se que tal apenas será viável uma vez transcrito o mesmo casamento, como de resto resulta do artigo 6.º, n.º 2, do Código do Registo Civil.
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A requerente apresentou alegações reiterando a sua posição. Discorda da posição do M.P. supra destacada dizendo que “Com o devido respeito, descordamos veementemente da posição sufragada pelo Ministério Público, quanto à obrigatoriedade do registo dos atos ocorridos no estrangeiro, em concreto, o assento de casamento, quando tal ato diz respeito único e exclusivamente a cidadãos estrangeiros.” “Neste sentido, cumpre referir que o artigo 1.º, n.º 2, do CRC, estabelece que “os factos respeitantes a estrangeiros só estão sujeitos a registo obrigatório quando ocorram em território português.”. “In casu, a requerente e o requerido, ambos nacionais brasileiros, contraíram matrimónio no Brasil, pelo que, tal facto não se encontra abrangido pelo disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea d), do CRC.”
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem de todo.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, estando devidamente patrocinadas.
Não existem outras exceções dilatórias, nulidades processuais ou questões prévias de que importe conhecer.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Cabe verificar se existe algum obstáculo à revisão e confirmação da decisão que decretou o divórcio entre requerente e requerido, e decidir em conformidade.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

Os factos a tender constam do relatório supra.
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IV APLICAÇÃO DO DIREITO.

Dispõe o artº. 978º nº. 1 do Código de Processo Civil que “Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro ou por árbitros no estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”
Conforme Ferrer Correia (“Licões de Direito Internacional Privado – Aditamentos”, Coimbra, 1973, pags. 45 e 46 “o acto formal de reconhecimento ou de exequatur não é outra coisa, no fundo, senão a condição necessária (conditio juris) para que a sentença estrangeira possa estender ao Estado do foro os efeitos que lhe competem: os seus efeitos de acto jurisdicional. Antes do exequatur, a sentença estrangeira não produz efeitos no Estado do foro, salvo aquele que se traduz na admissibilidade da própria acção de revisão: a sua eficácia encontra-se num estado de pendência. Quanto à sentença de confirmação, ela não tem valor constitutivo, a não ser na medida em que declara que todas as condições às quais a lex fori subordina o reconhecimento das sentenças estrangeiras se encontram preenchidas. O objectivo do processo de revisão não consiste, assim, na obtenção de uma sentença nacional idêntica à sentença estrangeira, mas de uma sentença nacional que permita que a decisão estrangeira opere na ordem jurídica do foro os efeitos que lhe são próprios, de acordo com a lei do estado de origem”.
Alberto dos Reis (“Processos Especiais”, volume II, Coimbra 1982, pags. 141 a 143) identifica três sistemas de revisão de sentenças estrangeiras: reconhecimento de plano, no qual a sentença é reconhecida directamente no Estado onde se pretende que produza os seus efeitos, independentemente de qualquer intervenção dos tribunais nacionais ou de qualquer processo de exequatur; o sistema de revisão meramente formal ou delibação em que o tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz os requisitos de forma e se estão verificadas certas condições de regularidade (se transitou em julgado ou se os demandados foram citados) e o sistema de revisão de mérito em que o tribunal conhece do fundo ou mérito da causa, procedendo a novo julgamento. Mais refere que sob o “aspecto doutrinal o único sistema aceitável, enquanto se não chega ao último termo da evolução (reconhecimento de plano) é o da revisão formal ou delibação. E, em princípio, “se o tribunal nacional verificar que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais” não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa.
O nosso sistema é essencialmente ou em regra de revisão meramente formal ou de delibação: o tribunal da revisão apenas curará de verificar se a decisão a rever satisfaz certos requisitos de forma (controlo da regularidade formal ou extrínseca), não conhecendo do fundo ou mérito da causa (fundamentos de facto ou de direito). “Na sequência desta forçosa “revisão formal” ao tribunal de revisão e confirmação cabe apenas adquirir documentalmente a certeza de que o ato jurídico foi postulado por decisão revidenda – mesmo que tal ato não se encontre plasmado em sentença, ao menos na aceção pátria do conceito” (Acórdão da Relação do Porto de 17/04/2012, disponível em wwwdgsi.pt e António Marques dos Santos, “Revisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras”, in “Aspectos do Novo Processo Civil”, Lex, Lisboa, 1997, pag 141).
Há contudo que atentar no disposto no artº. 983º do Código de Processo Civil que contendo o nº. 2 um desvio àquele sistema: se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, a requerimento deste, o tribunal terá que averiguar se a ação lhe teria sido mais favorável, caso o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este dever ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.
Voltando aos ensinamentos de Ferrer Correia, diz-nos que o princípio do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras tem por finalidade a garantia da estabilidade, uniformidade e certeza da regulamentação das situações jurídicas interindividuais da vida internacional, tendendo à realização do mesmo tipo de justiça do Direito Internacional Privado, ou seja, de uma justiça formal, sob pena de adesão a um sistema de justiça material, que implicaria a sujeição sistemática de todas as sentenças estrangeiras a uma revisão de mérito ou de fundo –pags. 17 e 18 dos Estudos citados. E diz-nos ainda que “reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo), ou pelo menos alguns desses efeitos (como o caso julgado e a possibilidade de execução) –“Lições de Direito Internacional Privado”, I, Almedina, 2000, pag. 454.
Existe ainda um limite a atentar neste nosso sistema de revisão formal: a não violação dos princípios de ordem pública internacional do Estado Português –Ac. do STJ de 27/4/2017 (dgsi.pt).
“A excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na alª) do artº 1096º (actual artº 980º) do Código de Processo Civil só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com o atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende.
Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português – núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, e que opera em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira.
O cabimento da reserva de ordem pública só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência” Ac. STJ de 21/2/2006, e ainda Acs. também do STJ de 3/7/2008 e de 21/3/2019 (todos publicados em wwwdgsi.pt). Tal posição está em conformidade com o artº. 22º do Código Civil. Assim, a revisão só cederá quando contiver decisão que conduza a um resultado manifestamente incompatível com aqueles princípios.
Trata-se assim na presente ação de apreciar e decidir se estão verificados os requisitos para a requerida revisão e confirmação de uma sentença estrangeira.
E conforme se diz no Ac. da Rel. de Lisboa de 04/10/2011 (publicada também em wwwdgsi.pt) “sendo uma sentença um acto pelo qual se definem direitos, a atribuição de eficácia a uma sentença estrangeira coloca aquele a quem ela atribui direitos numa posição de, no território nacional, a fazer impor a quem aquela sentença constitui na obrigação de reconhecer aqueles direitos. Daí que o pedido de revisão dessa sentença deva ser formulado no confronto com quem possa ser directamente atingido pelo deferimento de tal pedido (daí que o pedido deva ser formulado contra quem se pretenda fazer valer a acção – e não necessariamente o vencido na mesma – no tribunal da área da sua residência para a ela ser chamado por meio de citação). Mas nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem; de a fazer valer contra outrem. Com efeito, situações há em que com atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efectivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro. Ora nesses casos a acção de revisão não se estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, mas numa simples demanda ao Estado de atribuição de eficácia à sentença estrangeira; ao reconhecimento da situação por ela definida. Pelo que a mesma não terá qualquer sujeito a ocupar o lado passivo da relação processual (abstraindo aqui do papel do MP enquanto defensor da legalidade e dos princípios de ordem pública). O caso paradigmático dessa situação é o pedido de revisão de sentença estrangeira de divórcio formulado por ambos os ex-cônjuges(…)”.

Isto posto, para que uma sentença seja confirmada, é necessário, segundo o artº. 980º do Código de Processo Civil:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.”

Sendo que “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”, conforme dispõe o artº. 984º do mesmo diploma legal, o que, nestes casos, quase que equivale a uma presunção da sua verificação –cfr. Ac. da Rel. de Lisboa 19/12/2016 (wwwdgsi.pt e cfr. Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Coimbra, 1999, pag. 676).
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Porém o artº. 978º, nº. 1, do C.P.C. ao estabelecer a necessidade de revisão e confirmação para efeitos de atribuição de eficácia da decisão na nossa ordem interna tem de ser conjugado com as demais disposições aplicáveis ao caso para efeitos de verificação da possibilidade de concretização prática dessa eficácia. Ou seja, a possibilidade de eficácia tem de ser previamente aferida em concreto.
Ora, a revisão e confirmação da decisão relativa ao divórcio que é o que aqui se pretende importa para efeitos de reconhecimento da dissolução do casamento.
Quer o casamento, quer o divórcio, são situações que dizem respeito ao estado civil das pessoas e que estão sujeitos a registo civil. No caso dos nacionais, é obrigatório –cfr. em concreto quanto ao casamento e divórcio o artº. 1º, d) e q), do C.R.C.. Tratando-se de cidadão estrangeiro, é igualmente obrigatório se o facto ocorrer em território português –nº. 2
No nosso caso estamos porém perante dois cidadãos brasileiros, casados e divorciados no Brasil, e a decisão que se pretende rever respeita, como dissemos, ao divórcio.
Impõe-se a leitura do artº. 7º, do C.R.C., respeitando às decisões de tribunais estrangeiros -ultrapassada aqui, para já e porque essa apreciação não se mostrará necessária no caso concreto, a discussão quanto à equiparação do ato em causa –escritura pública que provém de autoridade administrativa a decisão judicial- cfr. por todos o Ac. do STJ de 9/3/2021, relator António Magalhães, www.dgsi.pt.
É essa a norma que terá de ser conjugada no caso com aquele artº. 978º, nº. 1, para efeitos de aferição da possibilidade de atribuição de eficácia à decisão a rever.
De facto, o objetivo é a sujeição ao registo civil do estado dos requerente e requerido, pois só através da sujeição ao registo é que esse estado pode ser invocado (artº. 4º do C.R.C.). Sendo certo que essa sujeição no caso de estrangeiros não é obrigatória e apenas é permitido quando o requerente mostre legítimo interesse na transcrição –processo e prova que decorre perante a Conservatória do Registo Civil competente.
Significa isto que, se a requerente pretende invocar o seu divórcio em Portugal, terá de obter, é certo, a revisão e confirmação da decisão que o decretou, mas para que a sua eficácia concreta seja obtida, terá de inscrever tal estado no registo civil, e para tal terá de previamente obter a transcrição para o mesmo registo nacional do seu casamento, conforme o artº. 6º, nºs. 1 e 2, do mesmo C.R.C..
Ao contrário do que defende a requerente, não existe nesta situação qualquer diferença entre um português que se casou e divorciou por exemplo no Brasil, ou um brasileiro que lá se casou e divorciou. Ambos terão previamente de efetuar a transcrição do casamento para o registo civil, sendo que no caso do cidadão brasileiro este terá de mostrar o seu interesse legítimo na transcrição (precisamente porque não é obrigatório). A esse propósito poderão proceder as razões aqui invocadas pela requerente no que concerne ao interesse na revisão.
Essa é a leitura que terá de ser feita, a nosso ver, do artº. 7º, nºs. 1 e 2, do C.R.C.. No caso do cidadão português, é feito o averbamento ao assento de casamento -já existente se casaram em Portugal, ou registado por meio de assento prévio se casaram no estrangeiro, e de nascimento-, depois de revista e confirmada a decisão; no caso do cidadão estrangeiro, é igualmente necessário o registo conforme refere o nº. 2 do artº. 7º -se casaram em Portugal será feito o averbamento ao assento de casamento; se não casaram em Portugal, terão de previamente efetuar a transcrição do casamento e depois será feito o averbamento, igualmente após revisão e confirmação da decisão de dissolução do casamento.
Quando o artº. 7º, nº. 2, refere “…lavrado por averbamento ou por assento, consoante constem ou não do registo civil português os assentos a que devam ser averbadas” não coloca a hipótese de, no caso de casamento no estrangeiro, ser lavrado assento de divórcio, pois que a dissolução de um casamento depende sempre do averbamento no assento de casamento conforme o artº. 70º, nº. 1, b) do C.R.C. (-tão pouco que será lavrado com base na decisão revista o assento de casamento e o averbamento do divórcio simultaneamente, pois que já vimos a imposição prévia prevista no artº. 6º).
Note-se que o artº. 7º não se refere apenas a situações de casamento/divórcio, mas a todas as decisões respeitantes ao estado ou à capacidade civil (sendo configuráveis situações de decisões que dão lugar a assentos –cfr. os casos de assentos a que se reportam os artºs. 52º e 53º, C.R.C.; veja-se por exemplo o caso do assento de óbito lavrado com base em prévia justificação judicial ou morte presumida).
Por sua vez o artº. 50º do C.R.C. refere-se aos assentos e aos averbamentos como meios de ingressão dos factos no registo civil, sendo que os averbamentos fazem parte integrante dos assentos.
O artº. 51º refere que os assentos podem ser lavrados por inscrição ou por transcrição –cfr. a sua conjugação com o artº. 6º, nº. 4, expressamente prevista no artº. 53º, nº. 1, e).
Face às precedentes considerações, entendemos por isso que a falta de comprovação documental do casamento entre o requerente e a requerida devidamente transcrito no registo civil português (cfr. a exigência do Tribunal o Ac. da Rel. de Évora de 8/11/2012, relatora Maria Alexandra A. Moura Santos, wwwdgsi.pt), que se aplica também neste caso de dois cidadãos brasileiros casados no Brasil, constituindo pressuposto de procedência do pedido de revisão e confirmação da decisão que dissolveu o mesmo casamento, conduz à improcedência desta ação.
Aliás, só se procedendo como equacionamos, poderia ser dado cumprimento à comunicação deste Tribunal ao Registo Civil que resulta 7º, nº. 1, e 78º, nº. 1, do C.R.C..
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar improcedente o pedido de revisão de decisão que decretou o divórcio e dissolveu o casamento celebrado entre a requerente e o requerido por falta de verificação do pressuposto da transcrição do casamento.
Custas a cargo da requerente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C..
Valor da causa: € 30.000,01.
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Guimarães, 21 de abril de 2022.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro