Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
CONTRATO-PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Sumário
I- É válido a cláusula acordada no contrato-promessa de multa diária por atraso na marcação da escritura. II- Esta obrigação, abrangida pela relação sinalagmática fundamenta a excepção de não cumprimento parcial do contrato. III- A sanção pecuniária para o atraso na marcação pode fazer-se compensar no preço ainda em dívida.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
B..........., LDª, com sede na Rua ......, nº .../...., Porto, instaurou acção declarativa, com processo ordinário,
contra
C.........., LDª, com sede na Rua ....., nº ..., ...., Vila Nova de Gaia,
requerendo a execução específica do contrato-promessa de compra e venda celebrada entre si, como promitente compradora, e a ré, como promitente vendedora, relativo a uma fracção autónoma, proferindo-se sentença que produza os efeitos da declaração negocial da venda em falta.
Alega, no essencial, que celebrou com a ré um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma, devendo a escritura referente ao contrato definitivo ser outorgada até 26 de Dezembro de 1998. Apesar de marcada a escritura muito tempo depois, confirmou mesmo assim o seu interesse na sua celebração, mas condicionando-a ao pagamento da sanção clausulada no contrato-promessa, o que a ré se negou a cumprir, recusando por isso a outorga da escritura e resolvendo posteriormente o contrato.
Contestou a ré, alegando, sinteticamente, que a autora solicitou a realização de determinadas obras na fracção prometida vender, desvinculando-a, por isso, do prazo estabelecido para a celebração da escritura e renunciando ao pagamento da sanção preconizada. Além de que foi a autora que protelou a marcação da escritura e que a inviabilizou depois ao não fornecer os elementos necessários para o efeito.
E pretende reaver a fracção em posse da autora, que ela perca em seu favor o montante entregue a título de sinal, bem como pretende ser ressarcida do valor das obras realizadas na fracção, pretensão que formula em sede reconvencional.
Replicou a autora para reafirmar a posição inicialmente assumida, impugnando a versão da ré e alegar que as obras efectuadas não atingiram o valor que a ré refere.
Termina pedindo a improcedência da reconvenção.
Saneado o processo e fixados os factos que se consideraram assentes e os controvertidos, prosseguiu o processo para julgamento e na sentença, subsequentemente, proferida, foi a acção julgada totalmente improcedente e a reconvenção parcialmente procedente e a autora condenada a pagar à ré a quantia de 14.963,94 €, acrescida de juros desde a notificação da contestação/reconvenção até efectivo e integral pagamento.
Inconformada com o assim decidido, recorreu a autora pugnando pela revogação da sentença e procedência total da acção.
E recorreu subordinadamente a ré defendendo a procedência dos restantes pedidos por si formulados.
Contra-alegou a autora apelada, defendendo a improcedência do recurso subordinado da ré.
***
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. Âmbito do recurso
A- De acordo com as conclusões, a rematar as suas alegações, verifica-se que o inconformismo das apelantes radica no seguinte:
recurso principal
1- A execução específica (art.º 830º do Cód. Civil) consiste no exercício de um direito potestativo, destinado a obter uma sentença constitutiva que visa produzir os efeitos próprios do contrato definitivo, independentemente do consentimento do promitente, exigindo a validade do próprio contrato promessa; não ser incompatível com a substituição da declaração negociai a natureza da obrigação assumida pela promessa; não existir convenção em contrário; haver incumprimento por parte do demandado;
2- Errou, salvo o devido respeito a Mm.a Juíza ao considerar que se não verifica in casu o último dos referidos requisitos (i.e., haver incumprimento por parte do demandado);
3- É pacifico – cfr. supra 3) da factualidade provada enunciada em II – que o contrato promessa dos autos foi celebrado em 26 de Maio de 1998, pelo que os sete meses para a outorga da escritura se completariam no dia 26 de Dezembro de 1998 (cfr. art.º 279º ai. c) do Cód. Proc. Civil), sendo à Recorrida que competia a sua marcação – cfr. cláusula quarta daquele;
4- Da cláusula quarta do contrato resulta que as partes outorgantes, por um lado, estabeleceram prazo certo, consistindo numa obrigação de prazo fixo relativo para a realização da escritura pública prometida;
5- Atento o disposto no nº 2 do art.º 804º e no nº 2, al. a), do art.º 805º do Cód. Civil não tendo sido celebrada a escritura no prazo contratualmente fixado – cfr. supra 4) da factualidade provada enunciada em II – a Recorrida constituiu-se em mora, mantendo, obviamente, a Recorrente o interesse na prestação, ocorrendo o incumprimento da Recorrida (requisito de admissibilidade da execução especifica);
6- Como resulta do supra enunciado supra em 3) da factualidade provada enunciada em II as partes estabeleceram na cláusula quarta do contrato promessa que celebraram uma cláusula penal – “...Esc. 10.000S00 (...)por cada dia de atraso na outorga da referida escritura a partir daquela data.” -, pois convencionaram antecipadamente – isto é, antes de ocorrer o facto constitutivo da responsabilidade – uma prestação, que consiste numa quantia em dinheiro, que a Recorrida tinha de satisfazer à Recorrente no caso, verificado, do não cumprimento perfeito, em tempo, da obrigação de celebrar a escritura prometida;
7- Interpretando-se tal cláusula contratual nos termos do disposto nos art.ºs 236º - que consagra a teoria da impressão do destinatário – e 238º do Cód. Civil conclui-se que as partes quiseram compelir a promitente-vendedora ao cumprimento da promessa no prazo contratualmente estabelecido, isto é, até 26 de Dezembro de 1998 estabelecendo uma sanção diária devida por esta até à verificação desse facto;
8- É uma cláusula penal com uma finalidade de compulsão ao cumprimento pontual do contrato, isto é, uma cláusula penal moratória com a “finalidade de compulsão do cumprimento pontual do contrato, que não a de fixação de indemnização, nos termos do artigo 810º, nº L do Cód. Civil”;
9- O montante devido a título de cláusula penal era exigível pela Recorrente aquando da outorga da escritura pública de compra e venda, ao contrário do entendimento da Mm.a Juíza a quo, sendo que, ao contrário do referido na douta Sentença, no contrato promessa as partes convencionaram expressamente o prazo a partir do qual a Autora poderia exigir junto da Ré a indemnização, o qual era de sete meses a contar da data da celebração do contrato, isto é, a partir de 26 de Dezembro de 1998 o credor promitente-comprador podia exigir a cláusula penal, isto é Esc. 10.000$00 por cada dia decorrido sem que a escritura fosse celebrada;
10- De resto, mesmo que assim não fosse, nos termos do art.º 777º, nº 1 do Código Civil “ ... o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento ...”, pelo que, como in casu, “Tendo as partes estipulado em contrato bilateral de fornecimento, cláusula penal moratória, prevista no art.º 811º, nº l do CC, e tendo fixado o seu montante, a simples constituição em mora legitima a exigência do seu pagamento;
11- Consequentemente, no momento designado pela Recorrida para a celebração da escritura pública prometida o promitente-comprador podia impor, como impôs, a compensação (art.º 847º nº l do C. Civil) do seu crédito – decorrente da cláusula penal contratualmente estabelecida – ao crédito do promitente-vendedor- que consistia na parte do preço devido pela compra e venda e que nos termos contratualmente estabelecidos teria de ser pago aquando da celebração da escritura pública prometida, ao contrário do entendimento vertido na douta Sentença recorrida;
12- A compensação é um direito potestativo que opera mediante declaração receptícia (art.º 848º do Cód. Civil);
13- Como resulta da factualidade julgada provada, aquando da pretendida celebração da escritura pública prometida, a Recorrente manifestou a vontade de operar a compensação dos créditos, verificando-se todos os requisitos porque a Recorrente, era, por um lado, devedora perante a Recorrida na parte do preço devido pela compra e venda e que nos termos contratualmente estabelecidos teria de ser pago aquando da celebração da escritura pública prometida, sendo, por outro lado, credora deste no montante decorrente da aplicação da cláusula penal contratualmente estabelecida (reciprocidade de créditos);
14- Em segundo lugar, o crédito da Recorrente era válido – decorrendo do contratualmente acordado com a Recorrida -, exigível e exequível – uma vez que no momento escritura pública a Recorrente podia impor à Recorrida a realização coactiva do seu crédito, não procedendo contra o mesmo qualquer excepção (o que, de resto, resulta da factualidade julgada provada nos autos), sendo, por último manifesta a fungibilidade de ambos os créditos pois que de quantias em dinheiro se tratava;
15- Se é certo – como afirma a Mm.a Juíza a quo – que “Simplesmente no caso em apreço, a outorga da escritura e o respectivo pagamento do resto do preço não ficaram subordinados ao pagamento simultâneo da sanção prevista no referido contrato promessa”, é também certo que não tinham que ficar atento o direito da Recorrente de exigir a todo o tempo o pagamento daquela indemnização e, bem assim, o seu direito potestativo de operar a compensação de créditos;
16- Do exposto conclui-se que a Recorrente tinha o direito de exigir a todo o tempo o pagamento da indemnização devida nos termos contratualmente fixados pela mora da Recorrida na marcação e outorga da escritura pública prometida e, bem assim, a Recorrente era, também, titular do direito potestativo de operar a compensação de créditos no momento em que o fez, isto é, na data – tardiamente – designada pela Recorrida para a celebração da escritura pública prometida e à Recorrida não assistia o direito de recusar, como recusou, a compensação que a Recorrente manifestou vontade de operar;
17- Não assistindo tal direito à Recorrida é evidente que a mesma permaneceu -porque já então o estava como supra se referiu – em mora e, por outro lado, tendo-se a Recorrente limitado a exercer direitos de que era titular não se constituiu, ela própria, em mora ao contrário do referido pela Mm.a Juiz a quo na douta sentença recorrida;
18- Consequentemente, a acção deveria ter sido julgada totalmente procedente, o que ora se peticiona revogando-se a Sentença recorrida pois que à Recorrente assistia o direito de peticionar a execução especifica do contrato, sempre sendo considerada a referida compensação de seu crédito decorrente do montante devido a título de cláusula penal pela mora da Recorrida na celebração da escritura pública prometida, com a parte do preço ainda em dívida;
19- Ao contrário do referido na douta Sentença recorrida, a cláusula penal não poderia deixar de ser aplicada, nem sequer reduzido o respectivo montante;
20- Consequentemente, o montante que a Recorrida deveria receber na procedência da peticionada execução especifica do contrato promessa, relativo à parte do preço devido pela compra e venda e ainda em dívida, sempre teria de ser reduzido no montante devido nela mesma Recorrida à Recorrente nos termos da cláusula penal acordada entre as partes, o que, se espera e peticiona, este Tribunal da Relação do Porto não deixará de reconhecer;
21- Não se verifica, também o abuso de direito aludido na Sentença recorrida pois que não se provou factualidade susceptível de estribar o entendimento de que o comportamento da Recorrente ao exigir receber o montante que foi acordado a título de cláusula penal, configura agir em termos clamorosamente ofensivos da justiça, mostrando-se gravemente chocante e reprovável e uma contradição manifesta no seu comportamento;
22- Não resulta da factualidade provada que a Recorrente tenha adoptado uma conduta anterior que objectivamente considerada, fosse de molde a despertar na Recorrida a convicção de que a Recorrente no futuro não exigiria o montante devido a título de cláusula penal;
23- Também absolutamente nada se provou que legitime a conclusão de que a Recorrida com base na situação de confiança criada tenha tomado disposições ou organiza planos de vida, tendo-lhe surgido danos por a sua confiança legítima ter sido frustrada pela Recorrente, uma vez que não se provou que a Recorrida se tenha abstido de marcar a escritura por acreditar que com isso estava a Recorrente de acordo e/ou que esta não lhe exigiria o montante da cláusula penal;
24- Por ultimo, não se provou, também, que da situação fáctica tenham advindo danos para a Recorrida nem que a Recorrida estava de boa fé e que agiu com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico;
25- Pelo exposto entende a Recorrente que improcede o considerado, a título eventual, abuso de direito, na douta sentença recorrida;
quanto à reconvenção
26- Resulta da citada factualidade julgada provada que nos termos contratualmente acordados – parágrafo primeiro da cl. Segunda do contrato promessa – a Recorrida estava obrigada a que aquando da realização da escritura pública as instalações sanitárias da fracção prometida vender se encontrassem devidamente adaptadas à utilização de deficientes e que – 12) da factual idade provada – a Recorrente solicitou à Recorrida diversas obras, entre as quais o reboco de 195 m2 de paredes para a construção de duas casas de banho com medidas para deficientes e a alteração das portas das casas de banho;
27- Mais se provou por um lado, - resposta ao quesito 15 – que a Recorrida procedeu à execução das obras, cujo custo ascendeu a 3.000.00SOO e que a alteração da porta da casa de banho já existente na fracção estava prevista no contrato promessa – resposta ao quesito 31º da base instrutória;
28- Como resulta dos autos – cfr. art.ºs 5º e 65º e, também, 15º, 56º e 82º al. c) da contestação-Reconvenção da Recorrida- os referidos Esc. 3.000.000$00 reportamse a todas as obras que a Recorrida efectuou na fracção prometida vender na sequência da outorga do contrato promessa;
29- Estando a execução da obra referida na conclusão II contratualmente prevista como uma das obrigações contratuais da Recorrida – “condição” da obrigação de outorgar a escritura pública prometida – e sem qualquer estipulação de pagamento de qualquer quantia, para além do preço da compra e venda prometida, evidentemente que a Recorrente não podia ter sido, salvo o devido respeito, condenada a pagar o valor de tal trabalho;
30- Isto é, estando a Recorrida obrigado a executar tal obra cujo custo não foi estabelecido contratualmente ser devido pela Recorrente e estando, no entanto, provado que o respectivo custo se inclui no montante de Esc. 3.000.000$00 a que ascenderam o total das obras, nunca a Recorrente poderia ter sido condenada no pagamento da totalidade de tal montante;
31- Por outro lado, tendo-se provado que a Recorrida estava contratualmente obrigada a que as respectivas instalações sanitárias da fracção prometida vender se encontrassem devidamente adaptadas à utilização de deficientes aquando da celebração da escritura pública prometida jamais a Recorrente podia ter sido condenada a pagar à Recorrida Esc. 3.000.000$00 relativos a custos globais de todas as obras por esta realizadas, entre as quais se encontra, também, o “reboco de 195 m2 de paredes para a construção de duas casas de banho com medidas para deficientes”;
32- Atento o exposto conclui-se que a Mm.a Juíza a quo errou, salvo o devido respeito, ao condenar a Recorrente a pagar à Recorrida a quantia de Esc. 3.000.000$00, acrescidos de juros legais contados desde a notificação da contestação-reconvenção, devendo, em consequência ser a douta Sentença recorrida revogada também nessa parte, absolvendo-se a Recorrente na integra do pedido reconvencional, o que ora se peticiona;
33- Em conclusão, e salvo o devido respeito, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 236º, 238º, 777º, 804º nº 2, 805º nº 2 al. a), 810º, 812º, 830º, 847º e 848º, todos do Código Civil devendo, em consequência, ser revogada, com as legais consequências.
recurso subordinado
1- A aqui recorrida não cumpriu por sua culpa exclusiva o contrato promessa de compra e venda celebrado, pois recusou-se a celebrar a escritura pública de compra e venda sem qualquer motivo que justificasse tal recusa;
2- Nestas circunstâncias, nos termos do artº 442º, 799 e 801 todos do Código Civil impunha-se a procedência dos pedidos reconvencionais de
Restituir à recorrente a fracção em causa
A perda a favor da Ré do sinal pago no valor de Esc. 3.800.000$00 (€18.954,32);
3- A recorrente, no uso dos direitos que lhe eram conferidos por carta enviada em 28-03-2001 declarou resolvido o contrato, por culpa exclusiva da recorrida e exigiu a entrega à sua legitima dona da fracção em causa nos oito dias a seguir à data em que foi interpelada para o fazer, 5 de Abril de 2001, o que não fez, nem posteriormente;
4- A partir dessa data a recorrida não tinha qualquer legitimidade para ocupar a fracção em causa;
5- A recorrida ilicitamente continuou a abusar do direito de uso e fruição da fracção em causa, sem pagar o respectivo preço;
6- Nestas circunstâncias, impõe-se que, até à restituição do imóvel ou até ao momento em que a recorrente receba a totalidade do preço a recorrida pague o preço da vantagem ilicitamente usufruída e que é calculada, para efeitos de indemnização, à recorrente com base no valor locativo da coisa;
7- A não ser assim, a recorrida enriqueceria à custa da recorrente sem justa causa justificativa, nos termos do artº 473º do C.C., o que não pode aceitar-se;
8- A douta sentença recorrida na parte visada pelo presente recurso desrespeitou entre outros os seguintes preceitos legais art.º 442º, 436º 473º, 799º, 801º todos do C. Civil;
9- Sendo certo que uma correcta interpretação e aplicação dos ditos preceitos legais ao caso presente, necessariamente, leva à procedência dos pedidos formulados na reconvenção ou seja:
a restituição imediata à Ré da fracção identificada no art.º 2º da P.I.;
a perda em favor da Ré do sinal pago no valor de Esc. 3.800.000$00;
o pagamento à Ré de 300.000$00 por cada mês de atraso na restituição da fracção em causa, contados a partir do 5 de Abril de 2001 acrescida do pagamento dos juros vencidos e vincendos até efectivo pagamento.
B- Face às conclusões das alegações, delimitativas do âmbito do recurso, são as seguintes as questões a dilucidar:
recurso principal
exigibilidade do montante fixado a título de cláusula penal
compensação do crédito decorrente da cláusula penal com a parte do preço referente à compra e venda ainda em dívida
responsabilidade pelo valor das obras efectuadas na fracção prometida vender
recurso subordinado
restituição da fracção prometida vender
perda do sinal a favor da ré
indemnização pelo atraso na restituição da fracção
III. Fundamentação
A- Os factos
Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos que, por não terem sido postos em causa por qualquer das partes e neles não se ver qualquer deficiência, obscuridade ou contradição, se consideram definitivamente assentes:
1- A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto social a prestação de serviços concernentes à actividade de laboratório de análises clínicas (al. A) dos factos assentes.
2- A ré tem registada a seu favor na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob a ap. 30/041196, a fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente a um estabelecimento comercial, serviços, posto de recolha de análises clínicas no rés-do-chão, com entrada pelo n.º .... do prédio urbano situado na Rua ..... n.os ..., ..., ..., ... e ...., freguesia de Valadares, descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1110, afecto ao regime de propriedade horizontal pela inscrição F-2 e omisso na matriz predial mas com declaração para a sua inscrição apresentada na 2.ª Repartição de Finanças de Vila Nova de Gaia, em 18 de Maio de 1999 (al. B) dos factos assentes).
3- Em 26 de Maio de 1998, Autora e Ré celebraram um escrito que denominaram de “contrato-promessa de compra e venda", do qual constam as seguintes cláusulas:
"SEGUNDA: Pelo presente contrato, a Primeira Outorgante (Ré) promete vender pelo preço de Esc. 19.000.000$00 (...) livre de quaisquer ónus ou encargos, à Segunda Outorgante (Autora) que por sua vez promete comprar a fracção autónoma (identificada em A)).
Parágrafo primeiro: A realização da compra e venda prometida fica subordinada à verificação cumulativas das seguintes condições:
- da respectiva escritura pública de constituição em regime de propriedade horizontal respeitante ao prédio a que pertence a fracção autónoma objecto da compra e venda aqui prometida deverá constar expressamente, quanto à destinação dessa fracção, que na mesma será exercida a actividade de "comércio, serviços e análises clínicas”;
- A fracção autónoma terá, necessariamente, um "pé direito" superior a 3 (...) metros;
- As respectivas instalações sanitárias deverão encontrar-se devidamente adaptadas à utilização de deficientes;
- e os acessos à referida fracção autónoma terão igual modo de ser adequados a permitir o uso por deficientes.
Terceira: O referido preço de Esc. 19.000.000$00 (...) será pago (...) da seguinte forma:
- Esc. 3.800.000$00 (...) no acto do outorga do presente contrato-promessa, a título de sinal e princípio de pagamento (…);
- Esc. 15.200.000$00 (...) será pago no acto da escritura pública de compra e venda prometida a realizar nos termos constantes da cláusula seguinte.
Quarta: A escritura pública de compra e venda prometida deverá ser outorgada quando o prédio de que faz parte a fracção autónoma aqui em causa estiver devidamente constituído em regime de propriedade horizontal e emitida licença de utilização, mas sempre no prazo máximo de 7 (...) meses a contar da data da celebração da presente promessa, sob pena de a promitente-vendedora (aqui Ré) ser obrigada apagar à promitente-compradora (aqui Autora) Esc. 10.000$00 (...) por cada dia de atraso na outorga da referida escritura a partir daquela data.
- Parágrafo primeiro: A Promitente vendedora (aqui Ré) compromete-se a tomar a seu cargo a realização de todas as diligências necessárias à marcação da escritura comunicando à promitente-compradora (aqui Autora) do dia, hora e Cartório Notarial onde terá lugar a sua celebração, por meio de carta registada com aviso de recepção com a antecedência mínima de 8 (...) dias.
(…)” (al. C) dos factos assentes).
4- Em 21 de Fevereiro de 2001, a Ré comunicou à Autora que a escritura de compra e venda estava marcada para o dia 14 de Março, pelas 10 horas, no Cartório Notarial de Espinho (al. D) dos factos assentes).
5- No dia designado para a realização da escritura, estando presentes no referido Cartório Notarial todos os intervenientes a mesma não foi concretizada, tendo sido lavrado um documento pela funcionária daquele Cartório onde consta que “À mencionada escritura compareceram todos os intervenientes, não tendo a mesma sido outorgada por o representante da sociedade compradora ter declarado não concordar com o preço declarado pela sociedade vendedora, em virtude de não ter sido deduzida a sanção prevista na cláusula quarta do contrato-promessa, motivo pelo qual não apresentou a sisa“ (al. E) dos factos assentes).
6- Em 28 de Março de 2001, a Ré enviou à Autora uma carta da qual consta que “...Apesar de, o sócio gerente dessa sociedade ter comparecido no notário, não remeteu, como lhe competia, a esta sociedade os elementos necessários à marcação da escritura e no dia da mesma não estava habilitado com o comprovativo do pagamento da sisa devida, tendo-se recusado a celebrar a escritura pública de compra e venda.
Verifica-se, pois, incumprimento culposo do contrato promessa por parte dessa sociedade.
A situação é de tal forma grave que esta sociedade não pode mantê-la em face dos danos que o incumprimento do contrato lhe está a causar.
Nestas circunstâncias, com os fundamentos, expostos, declara resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado com culpa exclusiva de V. Ex.as, com as consequências legais, designadamente fazer seu o sinal pago por V. Ex.as. (…)” (al. F) dos factos assentes)
7- A Autora solicitou à Ré, pelo menos, a realização das seguintes obras: substituição das dobradiças e fechaduras das portas das casas de banho de latão amarelo para latão branco; criação de, pelo menos, mais dois pontos de água; o levantamento de uma parede, pelo menos, com 15 m2 e colocação de uma porta no arrumo (al. G) dos factos assentes).
8- No dia 22 de Outubro de 1999, a Autora enviou uma carta à Ré onde solicitava a esta o envio urgente de certidão de teor do registo comercial, fotocópia notarial da acta da Assembleia Geral a deliberar a venda e nomear outorgantes; fotocópia do cartão de pessoa colectiva, do cartão de contribuinte dos outorgantes, certidão da conservatória do Registo Predial, caderneta predial e fotocópia notarial da licença de utilização, para assim poder elaborar o processo leasing com a entidade locadora (al. H) dos factos assentes).
9- Após a celebração do acordo descrito em 3) a Ré entregou à Autora fracção autónoma e respectivas chaves (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
10- A Ré sabia que a Autora teria de fazer obras de adaptação na fracção autónoma antes da sua entrada em funcionamento (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
11- A Ré entregou as chaves da fracção à Autora para que esta realizasse as obras de adaptação e ainda para que usasse a fracção autónoma (resposta aos quesitos 4º, 17º, 18º e 33º da base instrutória).
12- A Autora solicitou à Ré, por encomenda sua e a suas expensas, que executasse na fracção as seguintes obras: a) demolição de cerca de 12m2 de parede de tijolo; b) reboco de 195 m2 de paredes para a construção de duas casas de banho com medidas para deficientes; c) um espaço para a zona de lavatórios e um outro para arrumos com instalação de água e esgotos para a colocação de um lavatório, d) revestimento cerâmico de material decorativo das paredes das casas de banho com a extensão de 93 m2; e) alteração das portas das casas de banho; f) alteração da instalação eléctrica (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
13- A alteração das casas de banho, para além da criação de mais dois pontos de água referidos em 7), implicou a alteração do abastecimento de águas e esgotos (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
14- A Ré procedeu à execução das obras, cujo custo ascendeu a 3.000.000$00 (resposta ao quesito 15) da base instrutória).
15- As obras foram concluídas pelo menos em Julho de 1998 (resposta ao quesito 16) da base instrutória).
16- A Autora começou a realizar as obras de adaptação, designadamente, colocação de tectos falsos, revestimentos dos chãos, instalação de divisórias amovíveis, de ar condicionado, pintura, tapa vento e outras (resposta ao quesito 19) dos factos assentes).
17- A Autora após ter feito as obras de adaptação instalou o seu laboratório de análises na fracção em causa (resposta ao quesito 25) da base instrutória).
18- Não pagando qualquer quantia pela sua utilização (resposta ao quesito 26º da base instrutória).
19- Um inquilino que ocupasse aquele espaço pagaria o valor correspondente a cerca de 300.000$00 mensais (resposta ao quesito 27º da base instrutória).
20- A parede referida em 12)-a) à data da celebração do acordo referido em 3) não estava construída (resposta ao quesito 29º da base instrutória).
21- A alteração da porta da casa de banho já existente na fracção estava prevista no acordo referido em 3) (resposta ao quesito 31º da base instrutória).
B- O direito
Recurso principal
1- exigibilidade do montante fixado a título de cláusula penal
Na sentença recorrida, perante a factualidade apurada, considerou-se que não podia a autora fazer depender a outorga da escritura do contrato-promessa do pagamento da indemnização sancionatória por parte da ré, pelo que foi infundada a sua recusa em celebrar o contrato prometido.
Dos factos acima transcritos evidencia-se que a escritura de compra e venda devia ser outorgada no prazo máximo de sete meses a contar da data da celebração do contrato-promessa, que foi a 26 de Maio de 1998, tendo-se a ré comprometido a diligenciar pela sua marcação. E convencionaram as partes que, se a escritura não fosse celebrada dentro daquele prazo, a ré seria obrigada a pagar à autora 10.000$00 por cada dia da atraso na outorga da escritura. Apesar da escritura ter sido marcada para 14 de Março de 2001, a autora continuou a manter interesse na sua celebração, só que se recusou a outorgá-la por a ré não concordar em abater ao preço em dívida o montante resultante da sanção entre eles estipulada.
Neste contrato bilateral as obrigações fundamentais que o integram reconduzem-se, para além do dever de outorga da escritura de compra e venda, do respeito pelo prazo fixado para a sua realização. Na formação deste contrato estabeleceu-se um vínculo de correspectividade entre estas obrigações, ainda que a obrigação de respeito pelo prazo aqui estabelecido nos apareça como uma prestação acessória. É que, não obstante não ter sido respeitado o prazo inicialmente estabelecido, o certo é que o promitente comprador continuou a manifestar-se interessado na compra da fracção, ou seja, em cumprir o contrato-promessa, embora sem abdicar da indemnização clausulada no contrato para o seu incumprimento tardio.
No momento da formação do contrato cada uma destas obrigações constituiu a causa de vinculação dos sujeitos contratuais, mantendo-se depois ligadas pelo mesmo vínculo de interdependência recíproca.
Esta interdependência pode existir, como se referiu no ac. S.T.J., de 2003/04/03 [in C.J.,XI-2º,22 (acs. S.T.J.)], ainda que uma das prestações seja acessória.
Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, diz-se no nº 1 do art. 428º C.Civil, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou oferecer o seu cumprimento simultâneo.
É precisamente o vínculo de reciprocidade funcional existente entre as obrigações integradoras do sinalagma que explica que cada um dos contraentes subordine o cumprimento da sua prestação ao cumprimento da contraprestação pelo outro contraente.
Essencial é que a invocação da excepção não contrarie o princípio da boa fé exigível pelo nº 2 do art. 762º C.Civil: no cumprimento da obrigação, assim como no exercido do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
A ré obrigou-se a marcar a escritura até determinada data, arcando com determinadas consequências monetárias se esse prazo não fosse respeitado. A autora em nada contribuiu para esta situação de atraso no cumprimento da obrigação, além de que a culpa da ré se presume – nº 1 do art. 799º C.Civil.
É logicamente justo e está conforme aos ditames da boa fé que a violação deste dever acessório determine a ré ao pagamento da sanção a que se vinculou pelo atraso no cumprimento da respectiva obrigação.
Esta obrigação, abrangida pela relação sinalagmática, fundamenta a excepção de não cumprimento parcial do contrato.
compensação do crédito decorrente da cláusula penal com a parte do preço referente à compra e venda ainda em dívida
O montante indemnizatório clausulado no contrato-promessa foi estipulado pelos contraentes visando prevenir o atraso na celebração da respectiva escritura. Quando a cláusula penal é estipulada tendo em vista a compulsão do pontual cumprimento do contrato, procurando evitar atrasos no cumprimento da prestação, é uma cláusula penal moratória e que, como tal, pode ser exigível juntamente com o pedido de execução específica – cfr. nº 1 do art. 811º C.Civil.
O estabelecimento desta cláusula penal foi livremente contratado pelas partes, o que lhes era permitido face ao princípio da liberdade contratual ínsito no art. 405º C.Civil e com ela teve-se em vista pressionar o cumprimento atempado do contrato, pelo que a sua validade e eficácia não está dependente da verificação efectiva de quaisquer danos na esfera do credor [cfr., neste sentido, ac. R.C., de 1999/10/19, in C.J.,XXIV-5º,8].
A indemnização fixada a este título passou a ser exigível a partir de 26 de Dezembro de 1998, data em que se perfizeram sete meses sobre a celebração do contrato-promessa.
A partir desse momento sem que a escritura tivesse sido outorgada, a ré incorreu em mora e a cláusula penal passou a ser exigível – art. 804º C.Civil.
Quando foi marcada a escritura, parte do preço da prometida venda estava em dívida. Para além disso, também a ré, por força da mora em que incorrera, era devedora perante a autora do montante correspondente à sanção penal livremente acordada pelo atraso na outorga dessa escritura.
Face ao estipulado no art. 847º C.Civil obstáculo algum existia a que a autora impusesse à ré a realização coactiva do seu crédito e que se operasse a compensação dos dois créditos na parte correspondente, já que ela manifestara o desejo de que assim se procedesse e a compensação, como ensina o Prof. Antunes Varela [in Das Obrigações em Geral, II, pág. 162], é um verdadeiro direito potestativo, depende da declaração de uma das partes à outra, só assim se tornando efectiva.
Pode-se, portanto, concluir que, num contrato-promessa em que se estabeleceu uma sanção pecuniária para o atraso no marcação da escritura, a cargo da ré, pode o autor, promitente comprador, fazer compensar no montante do preço ainda em dívida a importância dessa sanção pecuniária.
Aqui chegados, é já possível afirmar que não será de manter o teor da decisão recorrida, porquanto nada obstará à execução específica do contrato-promessa tal como requerido pela autora.
A autora opôs-se a pagar o remanescente do preço correspondente à compra e venda da fracção prometida comprar apenas e enquanto a ré não aceitasse abater no montante desse preço a importância correspondente à sanção estipulada pelo atraso na celebração dessa mesma escritura.
A excepção de não cumprimento do contrato de que a autora lançou mão apenas temporariamente obstou à celebração do contrato definitivo, não extinguindo o vinculo contratual que o une ao outro contraente, tendo tão só suspendido os seus efeitos.
Haverá, pois, que declarar a execução específica do contrato, procedendo-se à compensação do crédito da autora, emergente daquilo que lhe é devido pela ré a título de cláusula penal, com a parte do preço correspondente à compra e venda ainda em dívida.
responsabilidade pelo valor das obras efectuadas na fracção prometida vender
Na parcial procedência do pedido reconvencional, foi a autora condenada a pagar à ré as obras que realizou a seu pedido na fracção prometida vender, no valor de 3.000.000$00.
Entende, porém, a reconvinda que não está obrigada a suportar o pagamento dessa importância porquanto incumbia contratualmente à reconvinte efectuar essas mesmas obras.
Da factualidade provada ressalta inequivocamente que as obras realizadas pela ré na fracção prometida vender o foram a solicitação da autora. E que essas obras representavam um mais relativamente aquilo a que a ré estava contratualmente vinculada, à excepção da alteração da porta da casa de banho já existente – cfr. respostas negativas aos pontos nºs 28, 29, 30 e 32 da base instrutória. Apenas a obra visando aquela alteração era já incumbência da ré, como expressamente decorre da resposta restritiva que mereceu o ponto controvertido nº 31.
Todas as outras obras, realizadas pela ré na sequência do contrato de empreitada celebrado com a autora, estava esta obrigada a satisfazer o respectivo preço, em conformidade com o disposto nos arts. 1207º e nº 2 do 1211º C.Civil, podendo a ré reclamar judicialmente o seu pagamento – art. 817º C.Civil.
Como, porém, não se apurou em quanto importou o custo de alteração da porta daquela casa de banho e porque o respectivo montante foi englobado no valor total das obras realizadas pela ré e uma vez que a autora não tem de suportar o valor deste trabalho, haverá que relegar para execução de sentença o valor exacto desta obra de alteração para então se apurar o montante devido pela autora à ré, em conformidade com o disposto no nº 2 do art. 661º C.Pr.Civil.
Recurso subordinado
A procedência da apelação da autora acarreta logo a improcedência da apelação subordinadamente interposta pela ré.
Na verdade, subjacente à procedência daquela apelação está o entendimento de que o contrato-promessa mantém a sua eficácia e que a ré o incumpriu, assistindo à autora a possibilidade de o executar especificamente, obtendo sentença que supra a declaração negocial do faltoso e produza os efeitos equivalentes ao do contrato prometido.
Perante isso, como é evidente, não assiste à ré a possibilidade de ver satisfeitas as pretensões expressas em sede reconvencional porque incompatíveis e afastadas pela manutenção da eficácia do contrato-promessa e sua execução expecífica.
IV. Decisão
Perante tudo quanto exposto, acorda-se nos seguintes termos:
1. julgar parcialmente procedente a apelação da autora e, consequentemente:
declara-se transmitida para a autora a fracção autónoma identificada sob o nº 2 dos factos provados;
condena-se a autora a pagar à ré a quantia de 14.963,94 €, abatida da importância correspondente ao custo das obras em que importou a alteração da porta da casa de banho já existente na fracção prometida vender, montante este a apurar em posterior liquidação;
2. julgar totalmente improcedente a apelação da ré;
3. condenar nas custas autora e ré, na proporção do respectivo decaimento.
Porto, 6 de Dezembro de 2005
Alberto de Jesus Sobrinho
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho