REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
PRESSUPOSTOS LEGAIS
Sumário

I. Se o requerimento de abertura de instrução tinha como único fundamento a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, a não ser possível a aplicação desta solução de oportunidade, por falta dos respetivos pressupostos - ante as imputações constantes do libelo acusatório (281.º, § 1.º CPP) -, sempre terá o arguido de ser submetido a julgamento. O que torna inócua a fase de instrução.
II. E nessas circunstâncias a instrução é legalmente inadmissível.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora

I. RELATÓRIO
No processo de inquérito que, com o n.º 1312/20.2GBABF, correu termos pela 1.ª Secção de Albufeira do Departamento de Investigação e Ação Penal dos Serviços do Ministério Público de Faro, o Ministério Público acusou FN… [[1]] pela prática, na forma consumada e em concurso efetivo, (i) de um crime de condução perigosa, previsto e punível pelos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, (ii) de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347.º, n.º 2, do Código Penal, e (iii) de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 292.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, alínea a) e 101.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, alínea c), todos do Código Penal

O Arguido requereu a abertura da instrução, com vista à prolação de decisão de suspensão provisória do processo.

E distribuído que foi o processo – ao Juízo de Instrução Criminal de Portimão [Juiz 1] da Comarca de Faro –, por decisão judicial datada de 22 de novembro de 2021, foi rejeitado o requerimento para abertura de instrução.

Inconformado com esta decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«i. Tem o presente recurso por objeto a decisão do Tribunal a quo de 22 de novembro de 2021, mediante a qual foi rejeitado o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo Arguido, com fundamento em inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
ii. Tal inadmissibilidade legal fundou-se, no entender do Tribunal a quo, na circunstância de, tendo o Arguido sido acusado, em 26 de abril de 2021, em concurso efetivo, pela prática dos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário, na modalidade prevista e punida pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal; de resistência e coação sobre funcionário, na modalidade prevista e punida pelo artigo 347.º, n.º 2, do Código Penal e de condução de veículo em estado de embriaguez, na modalidade prevista e punida pelos artigos 292.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 101.º, n.º 2, alínea c), todos do Código Penal, a pena de tais infrações, em concurso, ultrapassaria o limite máximo da pena aplicável, configurado como condição para a suspensão provisória do processo pelo disposto no artigo 281.º, n.º 1, do Código Penal.
iii. No requerimento de abertura da instrução apresentado pelo Arguido em 20 de outubro de 2021, este requereu apenas a suspensão provisória do processo, nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
iv. A circunstância de o Arguido se encontrar acusado, em concurso efetivo, por crimes em que para nenhum deles se encontra prevista uma pena de prisão superior a 5 (cinco) anos, não obsta a que possa ter lugar a suspensão provisória do processo, nos termos do disposto no artigo 281.º, do Código de Processo Penal.
v. O argumento literal que o Tribunal a quo pretende extrair do disposto no artigo 281.º, n.º 1, proémio, do Código de Processo Penal, no sentido de limitar a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo às situações em que apenas um crime com uma pena (necessariamente única) até cinco anos de prisão é objeto do despacho de acusação, salvo o devido respeito, não colhe.
vi. E não colhe por três razões fundamentais: (i) o instituto em questão encontra-se destinado às situações de pequena e média criminalidade, encontrando-se todas as infrações pelas quais o Arguido foi acusado dentro dessa bitola – isto independentemente ter o Ministério Público ter lançado mão do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, questão que analisaremos no capítulo seguinte - ; (ii) a letra do artigo 281.º, n.º 1, proémio não restringe a aplicação do regime legal da suspensão provisória do processo em caso de concurso de infrações.
vii. No caso em apreço nenhum dos crimes imputados ao Arguido é sancionado com pena abstratamente aplicável superior a cinco anos de prisão.
viii. A tese do Tribunal a quo implicaria que a suspensão provisória do processo estivesse centrada, exclusivamente, nas situações em que (i) ou houvesse apenas indiciação por um crime, com pena punível até cinco anos de prisão; (ii) ou pluralidade de crimes, com pena abstrata conjunta até cinco anos.
ix. Um tal entendimento centraria, exclusivamente, a possibilidade de suspensão provisória do processo na medida das penas singulares e não nos requisitos previstos nas várias alíneas do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
x. O caso em apreço é um caso de pequena criminalidade, onde até pode aventar-se a consumpção entre as infrações de condução perigosa e a de condição em estado de embriaguez, pelo que, olhando para o Despacho de Acusação e à análise, para efeitos de aplicação do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que aí é feita, e que converge para a verificação das condições de suspensão provisória do processo, incluindo no que tange à medida da pena, facilmente se intui que o julgamento nestes autos é um ato absolutamente desnecessário, até do ponto de vista da finalidade das penas.
xi. É, por isso, inaceitável a forma restritiva como o Tribunal a quo analisou o requisito da medida máxima da pena abstratamente aplicável enquanto condição para a suspensão provisória do processo, já que não existe suporte literal ou teleológico na interpretação do disposto no artigo 281.º, n.º 1, proémio, do Código de Processo Penal que autorize interpretação tão restritiva do âmbito de aplicação do instituto em questão.
xii. Em sede de Despacho de Acusação, o Ministério Público lançou mão do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, justificando tal opção processual com elementos atinentes à gravidade dos factos, à culpa do Arguido, à ausência de antecedentes criminais, à moldura concreta das penas aplicáveis a cada um dos crimes (todas inferiores a 5 anos de prisão) e à preferência a dar à pena não privativa de liberdade.
xiii. Tal opção processual diz bem da pouca gravidade do presente caso, onde a pena máxima abstratamente aplicável não poderá nunca, mesmo atendendo ao concurso de infrações, ultrapassar os 5 anos de prisão.
xiv. Lançando o Ministério Público mão, no despacho de acusação, do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, assiste-se a uma convolação da medida abstrata da pena aplicável – note-se, aliás que o disposto no artigo 16.º, n.º 4, do mesmo Código é claro ao determinar que o recurso a tal faculdade, por parte do Ministério Público, impede o Tribunal de aplicar pena superior a cinco anos.
xv. Se já se sabe, neste momento, que ao Arguido nunca será aplicada pena superior a 5 anos de prisão, já que, por força da atribuição de competência para julgá-lo ao Tribunal singular, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não pode entender-se que a suspensão provisória do processo, na fase de instrução requerida após a dedução de Despacho de Acusação, se encontra inviabilizada, por força do limite máximo da moldura penal abstrata das três infrações em concurso.
xvi. Tal obstáculo inexiste desde a prolação do Despacho de Acusação.
xvii. Nesta conformidade, deve a decisão recorrida ser revogada, determinando-se que se encontra verificado o requisito do limite da pena máxima abstratamente aplicável previsto no artigo 281.º, n.º 1, proémio, do Código de Processo Penal, em virtude do exercício, da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal por parte do Ministério Público em sede de Despacho de Acusação.
xviii. A interpretação do disposto nos artigos 281.º, n.º 1, proémio, na parte em que fixa como condição para a suspensão provisória do processo o limite máximo de 5 anos de pena abstratamente aplicável, no sentido segundo o qual tal limite, em caso de ter sido proferido Despacho de Acusação por crimes em concurso que, em abstrato, ultrapassem tal medida de pena, mas em que o Ministério Público exerce a faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, no sentido segundo o qual, em tal situação, não é admissível a suspensão provisória do processo e é de rejeitar, com fundamento em inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 3, do mesmo Código, sempre redundará em norma materialmente inconstitucional, em razão da violação do princípio do Estado de Direito democrático, da restrição mínima de direitos, liberdades e garantias e das garantias de defesa em processo penal, previstos, respetivamente, nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2 e 32.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que, para todos os efeitos legais, se deixa expressamente invocada.

Termos em que:
Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida.»
O recurso foi admitido.

Na resposta que, sem conclusões, foi apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, concluiu-se pela improcedência do recurso.

Não foi feito uso da faculdade consagrada no n.º 4 do artigo 414.º do Código de Processo Penal.

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Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu o parecer que se transcreve:
«Recurso interposto pelo arguido do despacho do juiz de instrução que lhe rejeitou o pedido de abertura de instrução.
O arguido requeria a abertura de instrução pretendendo que lhe fosse aplicado o instituto da suspensão provisória do processo, face à acusação pública do Ministério Público em tribunal singular pela prática de crimes cuja soma material das penas excede os cinco anos de prisão, mas em que entende que, no caso concreto, não lhe deverá ser aplicada uma pena superior a cinco anos.

O Juiz de instrução entendeu ser de rejeitar a instrução por falta de um pressuposto legal, no caso ser a soma material das penas abstratamente aplicáveis superior a cinco anos.

Já seria discutível (em nossa opinião) a admissibilidade da abertura Instrução, atentas as suas descritas pela doutrina e consignadas na letra da lei, para discutir a aplicação da suspensão provisória do processo quando a ação penal cabe ao Ministério Público e ele não aplica o referido instituto…
Agora pretender aplicar a suspensão provisória do processo que o legislador reservou para a pequena criminalidade, a situações em que nenhuma das penas é superior a cinco anos mas a soma material das penas abstratas é superior a cinco anos ou a situações em que uma das penas é superior a cinco anos mas em que ambos os casos o Ministério Público requeira o julgamento em tribunal singular por entender que concretamente não deverá ser aplicada uma pena de prisão superior a cinco anos é, em nosso entender, misturar questões e retirar efeitos não pretendidos pelo julgador.
Na verdade, há que perceber que tudo isto tem uma ordem temporal, determinados pressupostos e finalidades.
Assim, depois da denúncia ou queixa é aberto o Inquérito.
Neste processo, de que é titular o Ministério Público decorre a investigação com a produção das provas, sejam elas requeridas ou oficiosas, delegadas ou presididas pelo Magistrado. Quando se esgotam os meios de prova ou os existentes já permitem formular um juízo indiciário dos factos ocorridos e se estes são subsumíveis a algum tipo legal de crime ou a alguns.
Se a resposta for negativa, surge o despacho de arquivamento.
Se a resposta for positiva, há que atentar então se estamos perante uma situação em que é aplicável a suspensão provisória do processo porque se verificam todos os seus pressupostos (e um deles é o limite máximo da pena aplicável ao crime) ou caso não seja, porque não se verifica um ou mais dos seus pressupostos, deve ser proferida acusação contra o arguido.
Mas depois de ser decidido que é para formular a acusação e já no âmbito da mesma, o Ministério Público deverá aferir da composição (competência) do tribunal, se singular se coletivo.

Por razões várias, desde a economia de meios, simplicidade do julgado, menor impacto na sociedade e menos exigência simbólica do julgamento para o arguido, o legislador atribuiu competência ao Ministério Público, através do art.º 16.º n.º 3 do CPP, para analisar a situação correta e, para, não requerer o julgamento em tribunal coletivo em casos em que este seria naturalmente o competente face à pena abstrata aplicável ao crime ou à soma das penas de cada um dos crimes pelos quais é deduzida acusação.
Não se pode é, no caso em que o Ministério Público formula uma acusação em tribunal singular, por entender que embora o crime seja punido por uma pena abstrata de montante superior a cinco anos, em concreto tal não lhe deverá ser no caso aplicado o limite máximo pelo que se torna desnecessário o coletivo – porque na escolha da pena concreta há outros fatores a ponderar além da culpa, como as condições pessoais passadas, o comportamento posterior ao crime – vir defender que se assim é, então em vez de ser acusado e julgado, volte-se atrás e vamos também aplicar-lhe a suspensão provisória do processo.
O poder/dever concedido pelo Legislador através do art.º 16.º n.º 3 do CPP diz respeito já à fase do julgamento, definido na acusação.
E como dissemos, tem por base a economia de meios, bem como a simplicidade do julgado e a garantia para o arguido de que embora seja apenas uma pessoa a valorar aqueles factos nunca poderá resultar concretamente pena que exceda 5 anos.
Enquanto que a suspensão provisória do processo visa não sujeitar á exposição pública e estigmatizante do julgamento arguidos que praticaram pequenos delitos e em que se crê que a simples ameaça da pena, com ou sem outras injunções, bastará para os trazer para a normatividade.

Ora, em concreto na questão que se coloca no presente recurso – rejeição do pedido de abertura de instrução formulado pelo arguido, após acusação do Ministério Público em tribunal singular nos termos do art.º 16.º n.º 3 do CPP peticionando a suspensão provisória do processo – entendemos que está correta a decisão recorrida e que a suspensão provisória do processo não é admissível.»

Observou-se o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal.
Na resposta que apresentou, o Recorrente manteve a posição anteriormente assumida nos autos.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[2]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

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A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«1. Nos presentes autos, o Ministério Público, findo o inquérito, por despacho proferido em 26.04.2021 [ref.ª 119687974 – fls. 53-57], acusou o arguido pela prática, em autoria imediata, na forma consumada e em concurso efetivo, de:
- um crime de condução perigosa, p. e p. pela al. a) do n.º 1 do art. 291.º e al. a) do n.º 1 do art. 69.º do Código Penal;
- um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo n.º 2 do art. 347.º do Código Penal;
- um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas do n.º 1 do art. 292.º, da al. a) do n.º 1 do art. 69.º, al.s a) e b) do n.º 1 e al. c) do n.º 2 do art. 101.º todos do Código Penal.

2. O arguido FN…, não se conformando com o teor do despacho de acusação proferido pelo Ministério Público, veio requerer a abertura da fase de instrução através do requerimento que antecede, no qual pugna, única e exclusivamente, pela aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.
*
Da rejeição do requerimento para a abertura da instrução por inadmissibilidade legal:
Analisemos o requerimento para abertura da fase de instrução apresentado pelo arguido e respetiva conformidade legal.
No sistema processual penal português a sindicância dos motivos imanentes a uma decisão de arquivamento do inquérito ou de acusação tem lugar através da fase de instrução, que é da competência de um juiz e tem cariz facultativo – ex vi artigo 286.º do Código de Processo Penal.
A instrução, descrita nestes moldes, tem como finalidade “saber se existe fundamento para abrir a fase de julgamento, que é a fase central e paradigmática do processo penal, segundo o modelo garantista herdado do Iluminismo” (Cfr. MAIA COSTA, in Código de Processo Penal Comentado, HENRIQUES GASPAR [et. alii.], Almedina, 2.ª Edição, 2016, p. 958).
Embora seja comum apelidar a fase instrutória de “instrumental” e “preparatória” da fase de julgamento, aquela não se traduz numa espécie de audiência de julgamento antecipada, razão pela qual é inexigível a mesma intensidade a nível de produção e valoração da prova.
Nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.
Por sua vez, o artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal estipula que que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
No que ora interessa, insere-se na inadmissibilidade legal da instrução a circunstância de não ser viável a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo ante as imputações constantes do libelo acusatório.
De facto, visando a instrução, quando requerida pelo arguido, evitar o prosseguimento do processo para a fase de julgamento, temos que inexiste qualquer fundamento para declarar aberta a instrução quando, a única finalidade por esta pretendida, é a aplicação de um instituto cujos pressupostos, podemos já adiantar, não se verificam.
O mesmo é dizer que o arguido não retiraria qualquer benefício com a abertura da fase de instrução, pois o processo estaria sempre, e de forma irremediável - porquanto a factualidade de suporte às imputações constantes do Ministério Público não foi sequer sindicada no RAI -, “condenado” a seguir o seu rumo para a fase de julgamento.
Vejamos com maior concretização.
O instituto da suspensão provisória do processo, previsto legalmente pelo artigo 281.º do Código de Processo Penal, assume-se como uma medida de diversão da paradigmática cadência processual penal, privilegiando soluções de consenso e oportunidade, abrindo uma “brecha” no princípio da legalidade que impende sobre o órgão responsável pela perseguição penal, o Ministério Público.
Destarte, a existência de um instituto como a suspensão provisória do processo serve propósitos de índole político-criminal, permitindo aos tribunais um aligeiramento do volume processual mediante um tratamento diferenciado à pequena e média criminalidade, evitando, assim, a asfixia judiciária.
Concomitantemente, ao introduzir a possibilidade de consenso alargado entre os sujeitos processuais envolvidos, há a crença de que a sanção aplicada possa obter maior recetividade por parte do visado, contribuindo desta forma para a satisfação das exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir com a prática de um ilícito criminal.
A redação do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal é a seguinte:
“1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.” [negrito e sublinhado nosso]
No caso decidendo, estamos perante a indiciada prática, pelo arguido, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 2, do Código Penal com uma pena de prisão de 1 a 5 anos, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal com uma pena de prisão de 1 mês a 3 anos e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, previsto e punido com uma pena de prisão de 1 mês a 1 ano.
Relativamente à abertura da fase de instrução com o único fito de obter a suspensão provisória do processo, é entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência a sua admissibilidade, como aliás resulta cristalino da profusa e pertinente mobilização de decisões dos Tribunais superiores no requerimento de abertura da fase de instrução, a qual, por razões de economia e brevidade processual nos escusamos de transcrever e relativamente à qual nada há a acrescentar.
A (verdadeira) questão curial que ora se coloca é a de saber se, estando o arguido indiciado pela prática de 3 crimes em concurso efetivo, o instituto da suspensão provisória do processo pode ser mobilizável. A resposta, adiante-se, é negativa. Vejamos porquê.
É certo, e não ignoramos tal pormaior, que a Diretiva n.º 1/2015, de 30.04 (Publicada em Diário da República, Série II de 18.05.2015, Série I, Capítulo I.), da Procuradoria-Geral da República, que altera e republica a Diretiva n.º 1/2014, respeitante à suspensão provisória do processo, dá orientações gerais aos magistrados do Ministério Público nos seguintes termos [para o que ora importa]:
1) Os magistrados do Ministério Público devem optar, no tratamento da pequena e média criminalidade, pelas soluções de consenso previstas na lei, entre as quais assume particular relevo a suspensão provisória do processo.
2) A suspensão provisória do processo é aplicável aos casos em que foram obtidos indícios suficientes da prática de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão.
3) É também aplicável aos casos em que se indicia suficientemente um concurso de crimes punível com pena de prisão superior a 5 anos, mas em que a pena de cada um deles não excede esta medida. [negrito nosso]
Naturalmente, em face das orientações plasmadas na dita Diretiva, os magistrados do Ministério Público têm-se socorrido da solução de consenso e oportunidade que é o instituto da suspensão provisória do processo em processos onde se verifica a indiciação de vários tipos de crime em concurso efetivo, em que cada um deles é punido, abstratamente, com uma moldura inferior aos ditos 5 anos de prisão exigidos pelo artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, mas em que a moldura abstrata do concurso ultrapassa os 5 anos de prisão.
Ora, o primeiro argumento de que se pode lançar mão para afastar o instituto da suspensão provisória do processo quando a moldura legal abstrata do concurso ultrapassa os 5 anos de prisão é o elemento literal da norma.
Apelando ao disposto no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, nos termos do qual presume-se que o legislador “soube exprimir o seu pensamento de forma razoável”, do elemento literal ressalta que a norma em causa foi redigida para uma situação de crime único, não estando pensada para um caso de concurso de crimes. Se assim não fosse, a redação seria “se os crimes forem puníveis com pena de prisão não superior a 5 anos” e não, como acontece, “se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos”.
Além do mais, estando aqui subentendida a pena abstratamente aplicável ao crime sob indiciação, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
Assim, uma situação de concurso de crimes só permite a aplicação da suspensão provisória do processo se a pena abstratamente aplicável não for superior a 5 anos de prisão.
Acompanhando o límpido raciocínio de ROSA PINTO, que sufragamos na íntegra, pode dizer-se que “nem se compreenderia que um crime punível, por exemplo, com 6 anos de prisão não permitisse a aplicação da suspensão provisória do processo, mas já dois crimes puníveis, cada um, com 3 anos de prisão permitisse a aplicação de tal instituto. Poderiam ser 2, como 3, 4, 5 ou até mesmo uma infinidade de crimes, desde que puníveis com pena de prisão não superior a 5 anos. Tal solução seria, de facto, incompreensível face à redação da norma do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, à autorização legislativa que a permitiu e, ainda, à intenção do legislador. Este pretendeu que a suspensão provisória do processo fosse aplicada a situações de pequena e média gravidade, gravidade esta revelada pelas penas a aplicar.
Também não se pode afirmar que a situação sempre estaria salvaguardada com o pressuposto da alínea e) da mesma norma (ausência de um grau de culpa elevado e inicialmente carácter diminuto da culpa). Relembra-se que os pressupostos são cumulativos e o primeiro a apreciar é precisamente o da pena aplicável ao crime.
Como também não se pode afirmar que exista uma situação de desigualdade pelo facto de a suspensão provisória do processo poder ser aplicada se os vários crimes estiverem em processos separados e, eventualmente, não puder ser aplicada se os crimes estiverem nos mesmos autos. Esta questão prende-se intimamente com o objeto do processo. É aquele processo em concreto, com o seu objeto definido pelo despacho do Ministério Público, que está em análise aquando da verificação dos pressupostos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e não qualquer outro. Objeto do processo é o acontecimento histórico, um acontecimento da vida real, o assunto ou pedaço de vida vertido naquele despacho e imputado a um determinado agente. Acontecimento esse que, sem a verificação de circunstâncias anómalas, se encontra num mesmo processo.[[3]]
Também a jurisprudência tem decidido de forma concordante com este pensamento.
A título de exemplo, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.02.2005, onde pode ler-se que “a expressão «se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos…» do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, abarca o concurso de crimes em que a pena abstratamente aplicável não é superior a 5 anos de prisão”[[4]]
Num outro aresto, do Tribunal da Relação do Porto, datado de 14.06.2006, decidiu-se que “não é de aceitar a suspensão provisória do processo estando em causa vários crimes puníveis individualmente com pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias” [[5]]
Neste mesmo aresto pode ler-se que “o legislador utilizou no n.º 1 do artigo 281.º o singular do substantivo “crime”, o que não terá sido, seguramente, por acaso … se é certo que individualmente considerados, cada um destes crimes não ultrapassam em abstrato a fasquia imposta no n.º 1 do artigo 281.º do CPP, queremos não ser despiciendo para o legislador estar-se em presença não de uma mas de várias condutas integradoras de dois tipos incriminadores distintos.”
De igual forma, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE defende que “no caso de concurso (real ou ideal) de crimes imputados a um mesmo arguido, o processo só pode ser suspenso relativamente a todos os crimes e na condição de a moldura penal abstrata do conjunto dos crimes em concurso ser igual ou inferior a cinco anos de prisão”.[[6]]
Destarte, e face ao disposto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a suspensão provisória do processo, em caso de concurso de crimes, só pode ser aplicada se a moldura abstrata do concurso não ultrapassar os 5 anos de prisão.
No caso concreto, considerando que se encontra indiciada a prática, pelo arguido, de 1 crime de resistência e coação sobre funcionário, 1 crime de condução perigosa de veículo rodoviário e 1 crime de condução de veículo em estado de embriaguez em concurso efetivo, previstos e punidos pelos artigos 347.º, n.º 2, 291.º, n.º 1, alínea a) e 292.º, n.º 1, respetivamente, do Código Penal, cuja moldura legal abstrata do concurso ultrapassa os 5 anos de prisão, não pode ter lugar a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo por falta de observância de um dos pressupostos exigidos pelo artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal: se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos.
Assim, e considerando que a abertura da fase de instrução tinha como único e exclusivo fundamento a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo temos que, a não ser possível a aplicação desta solução de oportunidade, por falta dos respetivos pressupostos, sempre terá o arguido de ser submetido a julgamento, tornando inócua a fase de instrução.
Em jeito de síntese, se a finalidade (única) aduzida pelo requerimento de abertura da fase de instrução não é passível de produzir tal resultado, rectius, a suspensão provisória do processo, mantendo-se a imputação dos três crimes constantes do despacho de acusação sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento e, como tal, a instrução é legalmente inadmissível.
Pelo exposto, e por inadmissibilidade legal da instrução nos termos do n.º 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido FN…
*
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal – artigo 8.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique e, oportunamente, remeta os autos à distribuição como processo comum com intervenção do Tribunal Singular.»

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Conhecendo.

À suspensão provisória do processo reporta-se o artigo 281.º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:
«1 — Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
2 — São oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, as seguintes injunções e regras de conduta:
a) Indemnizar o lesado;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia ou efetuar prestação de serviço de interesse público;
d) Residir em determinado lugar;
e) Frequentar certos programas ou atividades;
f) Não exercer determinadas profissões;
g) Não frequentar certos meios ou lugares;
h) Não residir em certos lugares ou regiões;
i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;
j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões;
l) Não ter em seu poder determinados objetos capazes de facilitar a prática de outro crime;
m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.
3 – Em processo por crime de corrupção, de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de criminalidade económico-financeira, é sempre oponível à arguida que seja pessoa coletiva ou entidade equiparada a injunção de adotar ou implementar ou alterar programa de cumprimento normativo, com vigilância judiciária, adequado a prevenir a prática de futuros crimes. – aditado pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro
4 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor.
5 — Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.
6 — Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas.
7 — A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é suscetível de impugnação.
8 — Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.
9 — Em processos por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, o Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.
10 — No caso do artigo 203.º do Código Penal, é dispensada a concordância do assistente prevista na alínea a) do n.º 1 do presente artigo quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas.
11 – Em processo contra pessoa coletiva ou entidade equiparada, são oponíveis as injunções e regras de conduta previstas nas alíneas a), b), c), l) e m) do n.º 2, bem como a injunção de adotar ou implementar um programa de cumprimento normativo com medidas de controlo e vigilância idóneas para prevenir crimes da mesma natureza ou para diminuir significativamente o risco da sua ocorrência.» – aditado pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro

Interessa-nos, ainda, o que dispõe o artigo 282.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Duração e efeito da suspensão”
«1 — A suspensão do processo pode ir até dois anos, com exceção do disposto no n.º 5.
2 — A prescrição não corre no decurso do prazo de suspensão do processo.
3 — Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
4 — O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.
5 — Nos casos previstos nos n.ºs 6 e 7 do artigo anterior, a duração da suspensão pode ir até 5 anos.»

A suspensão provisória do processo, face ao disposto nos artigos 281.º e 282.º do Código de Processo Penal, «É uma solução processual, imbuída do espírito dos sistemas de oportunidade, para crimes de reduzida gravidade, em que o Ministério Público, com o acordo do arguido e do assistente e com a homologação do juiz, suspende provisoriamente a tramitação do processo penal e determina a sujeição do arguido a regras de comportamento ou injunções durante um determinado período de tempo. Se tais injunções forem cumpridas pelo arguido, o processo é arquivado; se não forem cumpridas, o Ministério Público revoga a suspensão, isto é, deduz acusação e o processo penal prossegue os seus ulteriores termos.»[[7]]

«A suspensão provisória do processo perfila-se como uma “alternativa” à dedução da acusação pelo Ministério Público. É um instituto processual a que estão subjacentes ideias como “informalidade, cooperação, consenso, oportunidade, eficácia e celeridade, não publicidade, diversão e ressocialização.”
A suspensão provisória do processo surgiu em resposta à pequena e média criminalidade, numa altura de “crise da justiça”, em que aumentaram massivamente estas formas de criminalidade, colocando em risco o funcionamento do sistema de justiça penal.»[[8]]

As questões que somos, neste processo, chamados a decidir, são conhecidas e controversas.
Como assinala Rosa Margarida Maia Alves Pinto [[9]], «A Diretiva n.º 1/2015, de 30 de abril, da Procuradoria-Geral da República, que altera e republica a Diretiva n.º 1/2014, respeitante à suspensão provisória do processo, dá orientações gerais aos magistrados do Ministério Público nos seguintes termos:
1) Os magistrados do Ministério Público devem optar, no tratamento da pequena e média criminalidade, pelas soluções de consenso previstas na lei, entre as quais assume particular relevo a suspensão provisória do processo.
2) A suspensão provisória do processo é aplicável aos casos em que foram obtidos indícios suficientes da prática de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão.
3) É também aplicável aos casos em que se indicia suficientemente um concurso de crimes punível com pena de prisão superior a 5 anos, mas em que a pena de cada um deles não excede esta medida (sublinhado nosso).
4) Não é aplicável aos crimes puníveis com pena de prisão de duração superior, salvo nos casos expressamente previstos na lei, mesmo que o magistrado entenda que, no caso concreto, a pena não deveria exceder os 5 anos de prisão.
Face a tal Diretiva, os juízes de instrução criminal são, amiúde, confrontados com despachos do Ministério Público para aplicação da suspensão provisória do processo em que se verifica a indiciação de vários crimes, em concurso, punidos, cada um deles, com uma pena de prisão não superior a 5 anos mas em que a moldura abstrata do concurso ultrapassa os 5 anos de prisão.
Daí a pertinência da presente questão, tanto mais que, não sendo recorrível o despacho do juiz de instrução de concordância ou discordância com a suspensão provisória do processo, é escassa a jurisprudência sobre a mesma.»

No caso que nos ocupa, o Ministério Público, entendeu não suspender provisoriamente o processo e acusou o Arguido fn…, fazendo uso do disposto no n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal, pela prática (i) de um crime de condução perigosa, previsto e punível pelos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, (ii) de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347.º, n.º 2, do Código Penal, e (iii) de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 292.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
E é o Arguido que em sede de instrução, que requereu, pretende sindicar a opção do Ministério Público de não aplicar a suspensão provisória do processo.

Trata-se de mecanismo processual perfeitamente apto ao desiderato do Arguido, sendo certo que a não utilização da suspensão provisória do processo é opção indiscutivelmente sindicável.
Como bem aponta o Arguido, no seu requerimento para a abertura da instrução, «No sentido de a suspensão provisória do processo poder constituir o único fundamento do requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo Arguido é, aliás, unânime, a jurisprudência dos Tribunais Portugueses.»
Neste sentido, podem consultar-se:
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de novembro de 2006, proferido no processo n.º 7073/2006-9 e acessível em www.dgsi.pt
- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de fevereiro de 2008, proferido no processo n.º 07P4561 e acessível em www.dgsi.pt
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16 de março de 2011, proferido no processo n.º 8/07.5GBLRA-A.C1 e acessível em www.dgsi.pt
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28 de março de 2012, proferido no processo n.º 53/10.3GAAPMS.C1 e acessível em www.dgsi.pt
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30 de janeiro de 2013, proferido no processo n.º 68/10.1TATND-A.C1 e acessível em www.dgsi.pt
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de janeiro de 2014, proferido no processo n.º 3132/10.3TACSC.L1-3 e acessível em www.dgsi.pt
- o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16 de março de 2016, proferido no processo n.º 12931/13.3TDPRT.P1 e acessível em www.dgsi.pt
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6 de novembro de 2017, proferido no processo n.º 258/14.8GDGMR-A.E1 e acessível em www.dgsi.pt
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 6 de novembro de 2018, proferido no processo 139/17.3 T9VVC.E1 e acessível em www.dgsi.pt
No mesmo sentido,
- João Conde Correia, in «Questões práticas relativas ao arquivamento e à acusação e à sua impugnação», Porto, Publicações Universidade Católica, 2007.
-Anabela Miranda Rodrigues, in «Celeridade e Eficácia – Uma opção politico-criminal, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria», Coimbra Editora, 2003, páginas 54 e 55, nota de rodapé 46.
- Rui do Carmo, in «A suspensão provisória do processo no Código Penal revisto – Alterações e clarificações», Revista do CEJ, 9 (2008), páginas 329 e 330, nota de rodapé 25.
- Pedro Caeiro, in «Legalidade e Oportunidade: a perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta” e o fetiche da “gestão eficiente” do sistema» – Revista do Ministério Público, Ano 21, n.º 84
- Fernando José dos Santos Pinto Torrão, in «A Relevância Político-Criminal da Suspensão Provisória do processo» – Almedina, Coimbra, 2000
- Ana Cláudia Nogueira, in «Instrução Criminal: Mudanças Precisam-se» – Revista Julgar, n.º 33
- Rosa Margarida Maia Alves Pinto, «Suspensão provisória do processo: questões controvertidas», in Julgar Online, novembro de 2018, pp. 6-12, disponível em http://julgar.pt

Isto posto, cumpre agora deixar expresso termos entendimento coincidente com o que consta da decisão recorrida.
A suspensão provisória do processo destina-se, verificados os pressupostos consagrados no n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, às situações de crime único punível com pena até 5 (cinco) anos de prisão, ou de vários crimes puníveis com penas abstratas cujo conjunto não ultrapassa os 5 (cinco) anos de prisão.
É este o entendimento que melhor se adequa com o espírito e a letra da lei.
O instituto da suspensão provisória do processo visa a criminalidade de pequena e média gravidade, que se revela através das penas a aplicar.
A suspensão provisória do processo está configurada- tal como resulta da redação do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal – para situações de crime único e não para situações de concurso de crimes.
O instituto da suspensão provisória do processo surgiu, como acima se deixou dito, em resposta à pequena e média criminalidade, numa altura de “crise da justiça”, em que aumentaram massivamente estas formas de criminalidade, colocando em risco o funcionamento do sistema de justiça penal.
«Aliás, nem se compreenderia que um crime punível, por exemplo, com 6 anos de prisão não permitisse a aplicação da suspensão provisória do processo, mas já dois crimes puníveis, cada um, com 3 anos de prisão permitisse a aplicação de tal instituto. Poderiam ser 2, como 3, 4, 5 ou até mesmo uma infinidade de crimes, desde que puníveis com pena de prisão superior a 5 anos.
(…)
Também não se pode afirmar que a situação sempre estaria salvaguardada com o pressuposto da alínea a) da mesma norma (ausência de um grau de culpa elevado e inicialmente caráter diminuto da culpa). Relembra-se que os pressupostos são cumulativos e o primeiro a apreciar é precisamente o da pena aplicável ao crime.
Como também não se pode afirmar que exista uma situação de desigualdade pelo facto de a suspensão provisória do processo poder ser aplicada se os vários crimes estiverem em processos separados e, eventualmente, não puder ser aplicada se os crimes estiverem nos mesmos autos. Esta questão prende-se intimamente com o objeto do processo. É aquele processo em concreto, com o seu objeto definido pelo despacho do Ministério Público, que está em análise aquando da verificação dos pressupostos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e não qualquer outro. Objeto do processo é o acontecimento histórico, um acontecimento da vida real, o assunto ou pedaço de vida vertido naquele despacho e imputado a um determinado agente. Acontecimento esse que, sem a verificação de circunstâncias anómalas, se encontra num mesmo processo.[[10]]
Neste sentido,
- Paulo Pinto de Albuquerque, «Comentário do Código de Processo Penal», 4.ª Edição, pág. 470;
- Marisa Nunes Ferreira David, in «O Regime Legal da Suspensão Provisória do Processo», http://estudogeral.sib.uc.pt, páginas 11 e 12;
- Cláudia Isabel Ferraz Dias Matias, in «A suspensão provisória do processo: o regime legal presente e perspetivado», páginas 15 e 16;
- Isabel Maria Fernandes Branco, in «Considerações sobre a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo», página 52;
- o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de fevereiro de 2005, in Coletânea de Jurisprudência, XXX, Tomo I, página 46;
- o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de junho de 2006, acessível em www.dgsi.pt

O que acaba de se concluir não interfere nem colide com a circunstância de o Ministério Público ter feito uso do disposto no artigo no n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal quando deduziu acusação contra o Arguido.
Porque a declaração prevista no n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal pretende fixar a competência de um Tribunal e no n.º 1 do artigo 281.º do mesmo compêndio legal consagram-se os pressupostos para a aplicação da suspensão provisória do processo.
E porque a declaração prevista no n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal só condiciona a pena concreta a aplicar, não alterando a moldura penal abstrata do crime.
Neste sentido,
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10 de dezembro de 2007, proferido no processo n.º 2168/07-2, acessível em www.dgsi.pt;
- o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26 de abril de 2017, proferido no processo n.º 191/15.6SMPRT-A.P1, acessível em www.dgsi.pt;
- Paulo Pinto de Albuquerque, «Comentário do Código de Processo Penal», 4.ª Edição, página 760.

Uma palavra, a concluir, para o que invoca o Recorrente no ponto xviii das conclusões da sua motivação do recurso.
«A interpretação do disposto nos artigos 281.º, n.º 1, proémio, na parte em que fixa como condição para a suspensão provisória do processo o limite máximo de 5 anos de pena abstratamente aplicável, no sentido segundo o qual tal limite, em caso de ter sido proferido Despacho de Acusação por crimes em concurso que, em abstrato, ultrapassem tal medida de pena, mas em que o Ministério Público exerce a faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, no sentido segundo o qual, em tal situação, não é admissível a suspensão provisória do processo e é de rejeitar, com fundamento em inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 3, do mesmo Código, sempre redundará em norma materialmente inconstitucional, em razão da violação do princípio do Estado de Direito democrático, da restrição mínima de direitos, liberdades e garantias e das garantias de defesa em processo penal, previstos, respetivamente, nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2 e 32.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que, para todos os efeitos legais, se deixa expressamente invocada.»

A mera invocação de inconstitucionalidade não basta para alcançar o seu conteúdo, nem para a reconhecer.
E não nos compete imaginar as razões de tal arguição, quando o Arguido não ajuda, apresentando-as.

Resta deixar expresso, como se diz no acórdão desta Relação, de 13 de julho de 2021, proferido no processo n.º 45/17.1GBFTR.E1 e acessível em www.dgsi.pt, «(…) caso resulte dos autos, não estarem verificados os pressupostos da suspensão provisória do processo, previstos no artigo 281.º, n.º 1, do CPP e o requerimento da abertura da instrução apresentado pelo arguido, com vista à aplicação daquele instituto sem suscitar a discussão da verificação dos respetivos pressupostos, deve ser liminarmente rejeitado, na medida em que, nesse caso, a instrução se traduzia na prática de um ato inútil, dado que estaria afastada, ab initio, a possibilidade de aplicação da suspensão provisória do processo
E o recurso improcede.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s

û
Évora,
Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz
Renato Amorim Damas Barroso
Gilberto da Cunha – Presidente da Secção

__________________________________________________

[1] ] Identificado nos autos como solteiro, nascido a 12 de novembro de 1995, na Argentina, e aí residente em La Pampa, (…).
[2] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[3] ] PINTO, Rosa Margarida Maia Alves, «Suspensão provisória do processo: questões controvertidas», in Julgar Online, novembro de 2018, pp. 6-12, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/11/20181126-Suspens%C3%A3o-provis%C3%B3ria-do-processo-Rosa Pinto.pdf.)
[4] ] In CJ, XXX, tomo I, p. 46).
[5] ] Disponível em www.dgsi.pt.
[6] ]” ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., p. 760.
[7] ] Cláudia Matias, in “A suspensão provisória do processo: o regime legal presente e perspetivado “ – Dissertação apresentada à Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra , em 2014.
[8] ] Marisa Nunes Ferreira David, in “O Regime Legal da Suspensão Provisória do Processo”, Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, página 11.
[9] ] In “Suspensão provisória do processo: questões controvertidas” – Julgar Online, novembro de 2018
[10] ] Rosa Margarida Maia Alves Pinto, in «Suspensão provisória do processo: questões controvertidas», in Julgar Online, novembro de 2018, pp. 6-12, disponível em http://julgar.pt