Decisão COLOCAR AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA QUESTÕES PREJUDICIAIS E DECLARAR A SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA ATÉ À RESOLUÇÃO DAS QUESTÕES PREJUDICIAIS SUSCITADAS
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LEI DA CONCORRÊNCIA
TRATADO DE FUNCIONAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA
BUSCAS E APREENSÃO DE CORREIO ELECTRÓNICO
RESTRIÇÃO POR EFEITO/POR OBJECTO
INFRAÇÃO PERMANENTE
PRESCRIÇÃO
REENVIO PREJUDICIAL
Sumário
A apreensão de mensagens de correio electrónico efectuada em buscas levadas a cabo pela Autoridade da Concorrência no âmbito de processo contraordenacional encontra suporte no Regime Jurídico da Concorrência (artigos 18º/1 c) e 20º da Lei 19/2012, de 8 de Maio) e não na Lei do Cibercrime (Lei 109/2009, de 15 de Setembro), não se enquadrando o correio electrónico lido/aberto na noção de correspondência/meio de comunicação, tratando-se de um mero documento e como tal apartado da tutela constitucional do sigilo da correspondência. É da competência do Ministério Público (e não do juiz de instrução criminal) a autorização das buscas e apreensões em processo contraordenacional da concorrência, excepto nos casos das buscas e apreensões previstas nos art. 19º e 20º/6 ambos do Regime Jurídico da Concorrência. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício previsto no art. 410º/2 b) do Código de Processo Penal), implica que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito. Constituem questões prévias face ao pedido de reenvio prejudicial a prescrição do procedimento, a nulidade da prova e os vícios previstos no art. 410º/2 do CPP. O art. 9º do Regime Jurídico da Concorrência, tal como o art. 101º/1 a) do Tratado de Funcionamento da União Europeia, descreve um conjunto de comportamentos, traduzidos em acordos e práticas concertadas de empresas, que têm por objecto ou como efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência. A distinção entre os conceitos de infracção/restrição da concorrência por objecto e por efeito reside, no essencial, na própria natureza e objectivo da conduta e no grau de prova exigido; no primeiro caso, provando-se o objectivo anticoncorrencial revelado pelo “grau de nocividade suficiente”, não há que verificar os seus efeitos no funcionamento do mercado; já no segundo caso, não é necessário provar o objectivo anticoncorrencial, impondo-se a demonstração dos efeitos anticoncorrenciais prováveis no mercado. A interpretação e aplicação uniformes do Direito da União Europeia no conjunto dos Estados Membros, assim como o princípio do primado daquele Direito sobre o Direito Nacional impõem ao juiz nacional que, ao abrigo do art. 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, submeta ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) as questões prejudiciais julgadas pertinentes para a resolução do litígio concreto, sempre que exista dúvida interpretativa razoável quanto àquela solução à luz do Direito Europeu e não exista jurisprudência consolidada do TJUE (“teoria do acto claro”).
Texto Integral
Acordam na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa
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I.–RELATÓRIO
SUPER BOCK BEBIDAS, S.A., LCM e JLF impugnaram judicialmente a decisão da AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA, que condenou cada um dos arguidos pela prática de uma contraordenação às regras da concorrência prevista no artigo 9º/1 a) da Lei nº 19/2012 (Novo Regime Jurídico da Concorrência, doravante RJC) e no art. 101º/1 a) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e punível nos termos do art. 68º/1 a) e b) da Lei nº 19/2012, no pagamento das seguintes coimas:
- SUPER BOCK BEBIDAS, S.A. – coima de €24 000 000 (vinte e quatro milhões de euros);
-L…– coima de €12 000 (doze mil euros);
- J…– coima de €8 000 (oito mil euros);
Sendo a SUPER BOCK BEBIDAS, S.A. ainda condenada na sanção acessória de publicação da decisão de condenação na II série do Diário da República e em jornal de expansão nacional, nos termos do art. 71º da Lei nº 19/2012.
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Foi proferida sentença pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), julgando improcedente a impugnação judicial deduzida pelos recorrentes, mantendo a decisão da Autoridade da Concorrência, nos seguintes termos [transcrição]:
“Face ao exposto e pelos fundamentos expendidos, decido julgar totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida pelos Recorrentes Super Bock, S.A., JLF e LCM contra a decisão da Autoridade da Concorrência (AdC), mantendo-a essa decisão e, em consequência, decido: a)-Julgar todas as questões prévias e incidentais, nulidades e inconstitucionalidades suscitadas pelos Recorrentes e que foram concretamente apreciadas por este tribunal improcedentes (exceptuando-se, por isso, todas as questões que se devem considerar de apreciação prejudicada); b)-Declarar que a Recorrente SUPER BOCK BEBIDAS, S.A., ao participar numa prática de fixação, por meios directos e indirectos, de preços e outras condições aplicáveis à revenda por uma rede distribuidores independentes no canal HORECA em todo o território nacional (com excepção de Lisboa – incluindo Amadora e Sintra, Porto e arquipélago autónomo da Madeira, até 2013 Coimbra e após 2014 as ilhas do Pico e Faial dos Açores) durante um período de onze anos consecutivos, praticou uma contra-ordenação às regras da concorrência, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º19/2012 e da alínea a) do n.º 1 do TFEU, punível com coima, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 68.º da Lei n.º19/2012; c)-Declarar que o Recorrente LCM, ao participar numa prática de fixação, por meios directos e indirectos, de preços e outras condições aplicáveis à revenda por uma rede distribuidores independentes no canal HORECA em todo o território nacional (com excepção de Lisboa – incluindo Amadora e Sintra, Porto e arquipélago autónomo da Madeira, até 2013 Coimbra e após 2014 as ilhas do Pico e Faial dos Açores) durante um período de dois anos consecutivos, praticou uma contra-ordenação às regras da concorrência, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º19/2012 e da alínea a) do n.º 1 do TFEU, punível com coima, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 68.º e do n.º 6 do artigo 73.º da Lei n.º19/2012; d)-Declarar que o Recorrente JLF, ao participar numa prática de fixação, por meios directos e indirectos, de preços e outras condições aplicáveis à revenda por uma rede distribuidores independentes no canal HORECA em todo o território nacional (com excepção de Lisboa – incluindo Amadora e Sintra, Porto e arquipélago autónomo da Madeira, até 2013 Coimbra e após 2014 as ilhas do Pico e Faial dos Açores) durante um período de quatro anos consecutivos, praticou uma contra-ordenação às regras da concorrência, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º19/2012 e da alínea a) do n.º 1 do TFEU, punível com coima, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 68.º e do n.º 6 do artigo 73.º da Lei n.º19/2012; e)-Manter e condenar a Recorrente SUPER BOCK BEBIDAS, S.A. na coima aplicada de € 24.000.000,00 (vinte e quatro milhões de euros), nos termos do disposto no artigo 69.º da Lei n.º 19/2012; f)-Manter e condenar o Recorrente LCM na coima aplicada de € 12.000,00 (doze mil euros), nos termos do disposto no artigo 69.º e do n.º 6 do artigo 73.º da Lei n.º 19/2012; g)-Manter e condenar o Recorrente JLF na coima aplicada de € 8.000,00 (oito mil euros), nos termos do disposto no artigo 69.º e do n.º 6 do artigo 73.º da Lei n.º 19/2012; h)-Manter e condenar a Recorrente SUPER BOCK BEBIDAS, S.A. na sanção acessória, de proceder à publicação, no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da presente Decisão, de um extracto da mesma, nos termos e conforme a cópia que lhe será oportunamente comunicada, na II série do Diário da República e em jornal de expansão nacional, nos termos do disposto no artigo 71.º da Lei n.º 19/2012”. *
Inconformados com tal decisão, vieram os arguidos SUPER BOCK BEBIDAS, S.A., LCM e JLF interpôr o presente recurso para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
I–DAS NULIDADES
I.–Os Recorrentes sustentam que (i) é inadmissível a apreensão/utilização de correspondência eletrónica no âmbito de processos contraordenacionais; e, ainda que fosse admissível – o que não se consente –, (ii) sempre a apreensão de correspondência dependeria de prévio despacho de Juiz de Instrução.
II.–A sua posição é sustentada em Parecer do Dr. Rui Carlos Pereira e, mais recentemente no acórdão do Tribunal Constitucional, de 2021.08.30, proferido em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, sobre as normas constantes do artº. 5.º do Decreto n.º 167/XIV, “na parte em que altera o artigo 17º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro”.
III.–Nos termos do referido acórdão, o Tribunal Constitucional, confirmando na íntegra o teor do Parecer do Dr. Rui Carlos Pereira vem (i) enquadrar o conceito de correspondência para efeitos constitucionais, concluindo que o conceito constitucional de correspondência, em matéria de correio eletrónico, se aplica às mensagens lidas e não lidas, independentemente do endereço de correio eletrónico ser pessoal ou laboral; (ii) confirmar a existência de uma reserva de direito criminal em matéria de buscas a correspondência; e (iii) confirmar a necessidade de as buscas a correspondência serem autorizadas, necessariamente, por Juiz de Instrução.
IV.–O Tribunal a quo, afastando-se do entendimento do Tribunal Constitucional, veio sustentar que o conceito de correspondência apenas incorpora as mensagens de correio eletrónico não lidas/não abertas, concluindo que a apreensão de mensagens de correio eletrónico lidas/abertas, por se tratarem de escritos/documentos (i) não é inadmissível em processos contraordenacionais; e (ii) não depende de despacho de Juiz de Instrução.
V.–Importa, antes de mais, acordar no que se entende ser o conceito constitucional de correspondência, permitindo-se, dessa forma, a delimitação das nulidades.
VI.–Com efeito, a matéria relativa a buscas a correspondência é matéria de tratamento constitucional, regulada nos n.ºs 1 e 4 do artº. 34.º da Constituição da República Portuguesa daqui se concluindo que (i) o acesso a correspondência é constitucionalmente tutelado; e (ii) nos termos dessa tutela constitucional, a ingerência na correspondência, apenas é admissível em matéria de processo criminal.
VII.–O Tribunal Constitucional veio, através do Acórdão n.º 681/2021, de 30.08.2021, confirmar o entendimento de que, no âmbito objectivo, o conceito jusconstitucional de correspondência, em matéria de correio eletrónico, não é suscetível de permitir a distinção entre correio eletrónico aberto (lido) e correio eletrónico fechado (não lido), estando a busca, apreensão e utilização de correspondência, mensagens de correio eletrónico (lidas ou não lidas), sujeita aos mesmos limites e regras constitucionais.
VIII.–O analisado conceito e os seus limites estendem-se às pessoas coletivas, como forma de proteção às garantias do processo criminal aplicáveis, ao direito de iniciativa económica previsto no artº. 61.º, n.º 1, da CRP, e ao direito à propriedade previsto nos art.ºs 12.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, 61.º, n.º 1 e 62.º, n.º 1, todos da CRP.
IX.–No caso em presença, não há que duvidar também da proteção constitucional do direito ao sigilo da correspondência, porquanto, não só se cuida aqui de correspondência integrada nas comunicações mantidas pelos Recorrentes e colaboradores da Recorrente, pessoas singulares, indiscutivelmente titulares do direito àquela tutela constitucional, como também a Recorrente Super Bock, mesmo na qualidade de pessoa coletiva, se perfilha como natural destinatário da proteção constitucional da correspondência mantida pelas pessoas coletivas, em especial enquanto decorrência dos direitos à liberdade de associação, liberdade de empresa, direito de propriedade, etc., todos eles com pleno assento constitucional, até porque o artº. 12.º, n.º 2, da CRP impõe que se reconheça que a garantia de inviolabilidade da correspondência é extensível às pessoas coletivas, tal como sustentam diversos autores e jurisprudência constitucional.
X.–Nesta conformidade, a interpretação do art.º 18.º, n.º 1, alínea c), e do artº. 20.º, n.º 1, ambos da Lei da Concorrência (LdC), do art.º 42.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Contra Ordenações (RGCO) e do artº. 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), no sentido interpretativo de que a proteção constitucional segundo a qual a correspondência eletrónica, aberta ou fechada, enviada ou recebida através do computador ou da caixa de correio profissional, não está protegida pela garantia da inviolabilidade da correspondência, é inconstitucional, por violação do disposto no artº. 34.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, por violação das garantias do processo criminal aplicáveis a um processo de contraordenação concorrencial consagradas no artº. 32.º da CRP, especialmente no seu n.º 8, por violação do disposto no artº. 12.º, n.º 2, da CRP, por violação do direito de iniciativa económica previsto no artº. 61.º, n.º 1, da CRP, e do direito à propriedade previsto no artº. 62.º da CRP, e, ainda, por violação do artº. 18.º da CRP, inconstitucionalidade que aqui expressamente se argui para todos os efeitos legais.
XI.–Assim sendo, a questão que se coloca é se, sabendo que o conceito de correspondência integra as mensagens de correio eletrónico lidas/não lidas, é admissível a busca, apreensão de mensagens de correio eletrónico e, consequentemente, utilização em processos contraordenacionais.
XII.–Há que concluir que o correio de correio eletrónico apreendido no âmbito de um processo contraordenacional concorrencial constitui prova proibida, conforme o disposto no art.º 34º., nº. 4, da CRP e no art.º 42.ºº., nº. 1, do RGCO.
XIII.–Na verdade, há uma reserva absoluta de processo penal no âmbito da apreensão de “correspondência”, sendo claro o entendimento do Tribunal Constitucional de que apenas em matéria criminal se admite intromissões nas comunicações/correspondência.
XIV.–Mesmo em matéria criminal, existem restrições à apreensão de correspondência, visto que o legislador entendeu graduar a sua admissibilidade tendo presente o bem jurídico tutelado pela norma penal, pelo que nos termos do disposto no artº. 179.º, nº. 1, alínea b), do CPP, apenas se permite a apreensão de correspondência quando está em causa um crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.
XV.–Do exposto resulta que (i) é inconstitucional o disposto no artº. 18º., nº. 1, alínea c), e no artº. 20º. da LdC e no artº. 42º. do RGCO, por violação do artº. 34º., nº. 4, no artº. 32.º, nºs. 2, 4 e 8, no artº. 18.º e no artº. 26.º, nº. 1, todos da CRP, quando interpretado no sentido de permitir a busca a correspondência eletrónica (aberta ou fechada) em processos contraordenacionais; e, em consequência (ii) o correio eletrónico apreendido no âmbito de um processo contraordenacional concorrencial constitui prova proibida e, por isso, insuscetível de qualquer valoração processual em face da inadmissibilidade legal de apreensão de correspondência eletrónica num processo contraordenacional.
XVI.–O Tribunal a quo, partindo do entendimento (como vimos errado), de que o conceito de correspondência não abrange correspondência aberta, veio concluir que, integrando-se a correspondência aberta, no conceito de escrito/documento, não beneficia de específica tutela legal e constitucionalmente consagrada.
XVII.–Partindo deste entendimento, o Tribunal a quo entendeu indeferir a nulidade invocada pelos Recorrentes, considerando legal e constitucionalmente admissível que a autorização para as buscas e apreensão daquela correspondência fosse autorizada por despacho do Ministério Público (por desconsiderar, desde logo, a aplicação da Lei do Cibercrime).
XVIII.–Não lhe assiste, contudo, fundamento, desde logo, como se viu, pelos limites imposto pelo artº. 34.º, n.º 4, da CRP;
XIX.–A matéria relativa à busca e apreensão de correio eletrónico no âmbito do processo penal mostra-se regulada pelo artº. 17.º da Lei do Cibercrime, aplicando-se o regime de apreensão de correspondência prevista no Código de Processo Penal, pelo que o mesmo terá que seguir a disciplina do seu artº. 179. °;
XX.–Assim, nos termos destas disposições legais, conjugadas com as normas previstas nos artºs. 17.º, 268.º, n.º 1, alínea d), e 269.º, n.º 1, alínea d), todos do CPP, compete exclusivamente ao Juiz de Instrução Criminal ordenar ou autorizar apreensões de correspondência e tomar conhecimento em primeiro lugar do seu conteúdo, o que se estende ao correio eletrónico, por força do disposto no artº. 17º. da Lei do Cibercrime que expressamente remete para o disposto a este respeito no Código de Processo Penal.
XXI.–Face ao exposto, atendendo ao disposto no artº. 17.º da Lei do Cibercrime e à remissão para o regime da apreensão da correspondência do Código de Processo Penal, deverá concluir-se que a busca e a apreensão de correspondência eletrónica estão condicionadas às seguintes condições legais de validade processual (i) devem ser autorizadas ou determinadas por despacho judicial; (ii) O juiz deve ser a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida; se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tornado conhecimento e não tiver interesse para a prova; (iii) deve tratar-se de correspondência expedida pelo suspeito ou que a este seja dirigida; (iv) deve estar em causa um crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e (v) a diligência deve revelar-se de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
XXII.–Tal regime compreende-se em face dos direitos fundamentais em conflito, nomeadamente, a reserva da intimidade da vida privada (artº. 26.º, n.º 1, da CRP) e a inviolabilidade da correspondência (artº. 34.º da CRP).
XXIII.–No caso do presente processo de contraordenação, verifica-se que o artº 18.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Concorrência, atribui à AdC o poder de “proceder, nas instalações, terrenos ou meios de transporte de empresas ou de associações de empresas, à busca, exame, recolha e apreensão de extratos da escrita e demais documentação, independentemente do seu suporte, sempre que tais diligências se mostrem necessárias à obtenção de prova”, encontrando-se a validade de tal diligência dependente de decisão da autoridade judiciária competente, nos termos do artº 18.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
XXIV.–Por sua vez, o artº. 20, n.º 1, da Lei da Concorrência, afirma que “As apreensões de documentos, independentemente da sua natureza ou do seu suporte, são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária.” (negrito nosso), o que significa que a apreensão de documentos pode ser ordenada ou validada por despacho do Ministério Público ou de um Juiz.
XXV.–O acervo de correio eletrónico apreendido pela AdC nas instalações da Super Bock em execução de um despacho do Ministério Público, não integra a categoria legal de documentos, mas sim a de correspondência eletrónica (aberta ou fechada), o que exigia um controlo jurisdicional que no caso concreto não existiu.
XXVI.–Temos, pois, que o Ministério Público praticou no caso concreto um ato – prolação de um despacho que determinou buscas e apreensões de correspondência nas instalações da Recorrente sociedade - que pertencia à competência exclusiva do juiz de instrução criminal, nos termos do disposto nos artºs 179.º, 269.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPP, e do artº 17.º da Lei do Cibercrime, o que torna nulo esse ato e proibida a prova obtida em resultado desse mesmo ato, nos termos do artº. 42.º, n.º 1, do RGCO, por remissão do artº. 13.º, n.º 1, da Lei da Concorrência.
XXVII.–A violação das regras de proibição de prova sempre implicará a nulidade da prova assim obtida e a consequente proibição da sua valoração, nos termos do disposto no artº. 126.º, n.º 3, do CPP.
XXVIII.–A correspondência eletrónica apreendida nas instalações da Recorrida Super Bock, ao não ter sido precedida da necessária autorização judicial, consubstancia prova proibida, insuscetível de valoração nos presentes autos de contraordenação, nos termos do disposto no artº. 17.º da Lei do Cibercrime, nos artºs. 179.º, n.º 1, e 126.º, n.º 3, 268.º, n.º 1, alínea d), 269.º, n.º 1, alínea d), todos do CPP, e, ainda, no artº. 34.º, n.ºs 1 e 4 da CRP.
XXIX.–Por conseguinte, toda a correspondência eletrónica apreendida nos autos de contraordenação deverá ser desentranhada do processo, devolvida à Recorrente Super Bock e desconsiderada como meio de prova, alterando-se a factualidade dada como provada na decisão recorrida em conformidade.
XXX.–No caso de assim não se entender, aqui se suscita expressamente a inconstitucionalidade das normas conjugadas dos artºs. 17.º da Lei do Cibercrime e 179.° do CPP, se interpretadas e aplicadas no sentido de ser permitido que parte ou a totalidade da matéria relativa a apreensão de correspondência, designadamente os mandados de busca, a pesquisa e a consequente apreensão de correspondência eletrónica, seja subtraída à reserva de juiz, podendo tais atos ser ordenados ou autorizados e visualizados por autoridade judiciária diversa do juiz de instrução, por violação do disposto nos artºs. 18.º, n.ºs 1 e 2, 32.º, n.º 8, 34.º, n.ºs 1 e 4, e 202.º, n.º 2, e 268.º, n.º 4, todos da CRP.
XXXI.–Em todo o caso, diga-se, ainda, que ao contrário do que refere o Tribunal a quo, a Lei do Cibercrime é aplicável ao caso concreto, por efeito remissivo do artº. 41.º, nº. 1, do RGCO, na medida em que o objeto de tal remissão não é exclusivo para o Código de Processo Penal, mas sim para “os preceitos reguladores do processo criminal”,
XXXII.–Os artºs. 12.º a 19.º Lei do Cibercrime são preceitos reguladores do processo criminal, na medida em que, efetivamente, constituem o conjunto de regras processuais penais aplicáveis à recolha válida de prova digital, incluindo os requisitos legais que têm de ser observados relativamente à apreensão de correio eletrónico, previstos no referido artº. 17.º.
XXXIII.–A Lei do Cibercrime trata, indistintamente, as mensagens de correio eletrónico abertas ou fechadas, não procedendo a qualquer distinção relevante nesta matéria.
XXXIV.–Da norma não resulta que a mensagem só é correio até à recolha, mas antes que a mensagem é correio se for armazenável até à recolha, isto é, a mensagem é considerada correio eletrónico quando o sistema/meio pela qual é transmitida contemple a possibilidade de ser armazenada (evidentemente) até à sua recolha.
XXXV.–É que o dispositivo legal, veja-se bem, nem faz depender a qualificação de correio eletrónico do seu estado de armazenamento, constituindo correio eletrónico antes e depois da sua recolha, sendo antes o carácter distintivo da sua qualificação como correio a possibilidade de ser armazenada até à recolha e não a recolha.
XXXVI.–A lei estende a proteção jurisdicional, através da intervenção de um juiz de instrução - sob pena de nulidade -, ao correio eletrónico armazenado em suporte digital, independentemente de o destinatário ter tomado ou não conhecimento do seu conteúdo.
XXXVII.–As mensagens de correio eletrónico armazenadas em sistema informático, quer sejam abertas ou não abertas, lidas ou não lidas, se encontram abrangidas pela tutela constitucional do sigilo da correspondência (artº. 34.º, n.º 4, da CRP), sendo inclusivamente por essa razão que a Lei exige a intervenção do juiz de instrução para a sua apreensão.
XXXVIII.–De acordo com a interpretação objetiva do artº. 17.º da Lei do Cibercrime, integram o âmbito da noção de “correspondência” as mensagens de correio eletrónico, independentemente de se encontrarem abertas ou fechadas,
XXXIX.–Assim, mesmo que no decurso das buscas realizadas nas instalações da Recorrente apenas tivessem sido apreendidas mensagens de correio eletrónico profissional já lidas, a circunstância de não terem sido ordenadas por despacho judicial em violação dos artºs. 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º do CPP, determina a sua nulidade e a consequente proibição da sua valoração, nos termos do disposto no artº. 42.º, n.º 1, do RGCO, e no artº. 126.º, n.º 3, do CPP.
XL.–Ademais, mesmo que se admita que é admissível a apreensão de correspondência em processos contraordenacionais, será inconstitucional o artº. 18.º, n.º 2, e o artº. 20.º da LdC, por violação do artº. 32.º, nº. 4, do artº. 18.º e do artº. 20.º da CRP, quando interpretados no sentido de permitir a busca a correspondência eletrónica (aberta ou fechada) sem prévia autorização de juiz de instrução.
II–DOS ERROS, INSUFICIÊNCIAS E CONTRADIÇÕES DA MATÉRIA DE FACTO
XLI.–A decisão recorrida encontra-se viciada por erros, insuficiências e contradições insanáveis no que concerne à fundamentação de facto acolhida na decisão, tomando como provados factos cujo alcance não é compatível, entre si e/ou com a factualidade dada como não provada, podendo esses erros, insuficiências e contradições ser fundamento do presente recurso, com vista ao reenvio do processo para o Tribunal a quo para os sanar, à luz do disposto no artº. 75.º, n.º 1, do RGCO, e artº. 410.º, n.º 2, do CPP,
XLII.–Assim quanto ao âmbito geográfico do mercado relevante, não só o juízo a realizar é de direito e não de facto, como há contradição evidente ao considerar, simultaneamente, que o âmbito geográfico do mercado relevante é nacional (Linhas 3496-3497 da sentença); e que daquele âmbito se excluem“(…) de Lisboa (incluindo Amadora e Sintra, até 2017), Porto, Madeira, até 2013 com excepção também de Coimbra e desde 2014, também com excepção das ilhas do Faial e do Pico, por serem áreas abastecidas mediante vendas directas da Recorrente Super Bock]”, (Linhas 3405-3414) onde a Recorrente SBB desenvolve a sua atividade com recurso a abastecimento direto, portanto, sem a intervenção de distribuidores independentes;
XLIII.–Quanto às funções atribuídas à fixação de preços, afirma-se na decisão recorrida, simultaneamente, que objetivo da fixação de preços mínimos não se esgota na função de (a) estabelecimento de um patamar até ao qual a Recorrente SBB faria a reposição do desconto em sell out; servindo também como (b) mecanismo de fixação propriamente dita do preço mínimo de revenda; e que o abandono generalizado da aplicação de descontos em sell out em 2015 eliminou o sentido da prática de fixação de preços mínimos (Linhas 9695-9699 da sentença);
XLIV.–Por outro lado, o Tribunal afirma uma relação de dependência entre a aplicação de descontos em sell out e a prática de fixação de preços mínimos – em termos tais que uma não subsistiria sem a outra –, o mesmo Tribunal opta, ao mesmo tempo, por concluir também pela relevância dos descontos em sell in na fixação de preços mínimos,
XLV.–Ou seja, o Tribunal recorrido afirma que, na ausência de sell out, deixa de fazer sentido a referência a preços mínimos, mas depois, associa o sell in à ideia de fixação preços mínimos, sem explicar como;
XLVI.–Relativamente ao mecanismo de apuramento do desconto de extraciclo, deteta-se uma nova contradição, em tudo relacionada com a precedente, entendendo o Tribunal em algumas passagens que o referencial de reposição correspondia ao preço mínimo de revenda fixado pela Recorrente Super Bock ao distribuidor (Linhas 3775-3778); e
XLVII.–Noutras passagens aquele exercício já tomaria em vista o preço de revenda efetivamente praticado pelo distribuidor ao seu cliente (Linhas 3772-3775 da sentença);
XLVIII.–Ou seja, ao mesmo tempo, afirma-se que a reposição de descontos em sell out toma como referência (i) o preço mínimo de revenda fixado ao distribuidor ou (ii) o preço efetivo de revenda praticado pelo distribuidor ao seu cliente, não tendo a decisão recorrida logrado afirmar qual o critério efectivamente utilizado, referindo-lhes indistintamente como sendo uma e a mesma coisa, que não são;
XLIX.–Acabando mesmo por afirmar a possibilidade de aplicação do desconto de extraciclo … em fatura!!. (Linhas 7167-7168 da sentença) ou
L.–Também surpreendentemente, a descontos em sell in, em que seriam considerados os preços de revenda pelos distribuidores (Linhas 8360-8362 da sentença), o que constitui a verdadeira quadratura do círculo,
LI.–Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas: (i) o desconto extraciclo pode ser processado logo na fatura de venda ao distribuidor; e o desconto extraciclo toma como referência o preço praticado na revenda pelo distribuidor.
LII.–Também quanto à relação a fixação de preços e a margem do distribuidor, assume-se simultaneamente que a realidade fixada seriam os preços de revenda – e mediante essa fixação iria a Recorrente Super Bock manipulando outros elementos, como fosse a aplicação dos descontos no preço de venda ao distribuidor e a sua (do distribuidor) margem de distribuição (Linhas 3690-3692 da sentença); mas também se afirma que, afinal, a realidade fixada seria já a própria margem do distribuidor – e mediante essa fixação iria a Recorrente Super Bock manipulando outros elementos, como fosse a determinação do preço a praticar na revenda e a aplicação dos descontos no preço de venda ao distribuidor (Linhas 5465-5469 da sentença).
LIII.–Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas: (i) o sistema de remuneração dos distribuidores baseia-se nos preços de revenda; (ii) o sistema de remuneração dos distribuidores baseia-se nos descontos de Apoio Logístico e Apoio Comercial.
LIV.–Também quanto à questão da aptidão dos descontos em sell in para a atribuição de margem/remuneração do distribuidor, o Tribunal ora confirma essa finalidade daquela categoria de descontos (Linhas 9695-9705 da sentença), ora adverte para a inaptidão do sell in para proporcionar uma injeção de margem aos distribuidores (Linhas 6450-6451 da sentença).
LV.–Contradição que se manifesta, enfim, na assunção simultânea das seguintes premissas: (i) os descontos em sell in são aptos à remuneração dos distribuidores; (ii) os descontos em sell in não são aptos à remuneração dos distribuidores.
LVI.–No que respeita ao reporte das vendas pelos distribuidores, o Tribunal afirma, ao mesmo tempo, que a Recorrente Super Bock estabelece, junto dos distribuidores, o preço mínimo de revenda; e que a Recorrente Super Bock estabelece, junto dos clientes dos distribuidores, o preço efetivo de revenda;
LVII.–O que induziu efeitos muito perversos na compreensão da questão do reporte da informação das vendas, enquanto pretensa técnica de controlo e monitorização, na medida em que, se fosse de admitir - que não é - que a Recorrente Super Bock fixava diretamente aos clientes do distribuidor o preço que este praticaria àquele cliente na revenda, então haveria que concluir-se pela inutilidade de um tal sistema de informação, por desnecessário: para quê recolher informação sobre aquilo que a própria Recorrente implementava e que, por isso mesmo, já conheceria.
LVIII.–Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas: a Recorrente Super Bock, por estabelecer, junto dos clientes dos distribuidores, o preço efetivo de revenda, tem imediato acesso a essa informação; a Recorrente Super Bock monitoriza os preços de revenda praticados pelos distribuidores aos seus clientes, mediante um sistema de reporte de informação (Linhas 5056-5062 da sentença).
LIX.–No que respeita ao (in)cumprimento pelos distribuidores das condições fixadas pela Recorrente Super Bock, o Tribunal refugia-se numa descrição obscura da questão, limitando-se a indicar que, generalizadamente, os preços de revenda supostamente fixados pela Recorrente Super Bock eram implementados pelos distribuidores (Linhas 3705-3708 da sentença), mas termina com a revelação da real e inquestionável inobservância dos mesmos preços de revenda – o tal desalinho, protagonizado por distribuidores e que inspiraria a reclamação dos demais.
LX.–Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas: (i) os distribuidores, quando insatisfeitos com as condições comerciais fixadas, não se distanciam delas, praticando preços distintos, limitando-se a reclamar; (ii) os distribuidores desalinhados incumprem os preços fixados.
LXI.–Mas também por referência ao impacto associado àquela pontual inobservância das condições de venda fixadas pela Recorrente Super Bock, mormente para os próprios distribuidores “subversivos”, a sentença avança diferentes consequências, pronunciando-se indiferentemente ao incumprimento domo causa de incremento dos resultados positivos daqueles distribuidores incumpridores, fruto de um aumento dos respetivos lucros (Linhas 3734-3738 da sentença) e como causa de prejuízos para os mesmos operadores revéis, originados na ausência de reposição – motivada nesse mesmo incumprimento –, porquanto, em teoria, à falta de comparticipação por via dos descontos, o negócio da distribuição não teria viabilidade (Linhas 3787-3788 da sentença).
LXII.–Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas (i) os distribuidores incumpridores eram mais lucrativos; (ii) os distribuidores incumpridores eram menos lucrativos;
LXIII.–Ainda a este respeito, verifica-se igualmente contradição quanto aos requisitos de preenchimento do próprio conceito de fixação, havendo passagens dissonantes quanto sobre se a fixação dos preços mínimos exigia ou, em si mesma, que os distribuidores cumprissem com as condições que lhe eram transmitidas/impostas, aparecendo ora como irrelevante (Linhas 6575-6577 da sentença), ora como um elemento essencial (Linhas 3709-3711 da sentença).
LXIV.–Por outro lado, Tribunal recorrido afirma que a retaliação face ao incumprimento, não raras vezes, integrava um programa de corte relacional com o distribuidor subversivo (Linhas 5881-5885 e Linhas 7539-7547 da sentença),
LXV.–Mas o que significaria que, implementada essa retaliação, estaria automaticamente excluído o potencial de fixação de preços, na exata medida em que os próprios mecanismos incorporados na retaliação contendem com a existência dos instrumentos de execução da imposição – se a Super Bock deixa de fornecer o distribuidor, já não lhe pode impor preços;
LXVI.–Do mesmo modo, é igualmente óbvio que, se como se afirma na decisão recorrida, a retaliação englobava também medidas de corte dos incentivos financeiros aos distribuidores, (Linhas 3722-3726 da sentença) me se tais incentivos correspondem ao instrumento de execução da fixação dos preços, haveria que concluir que a retaliação – e, como tal, o incumprimento/inobservância que a motiva – afasta, pelos seus próprios termos, qualquer infração – se a Recorrente Super Bock corta os descontos, já não pode fixar preços por via dos descontos;
LXVII.–Ou seja, a fixação de preços e retaliação, na aceção que deles feita pelo Tribunal, são conceitos que se excluem mutuamente!
LXVIII.–Quanto aos propósitos subjacentes à fixação de preços e ao pass-through, fica sem se perceber se, no entendimento do Tribunal, a Recorrente Super Bock tinha em vista, com a prática de fixação de preços, o seu posicionamento na revenda em sentido da subida dos preços de revenda (Linhas 6035-6036, 7954-7958, 8665-8666 e 10336-10339da sentença) ou da descida dos preços de revenda (Linhas 5129-5131 e a Linhas 10091-10093 da sentença).;
LXIX.–Também no que concerne à apreciação em matéria de pass-through – leia-se: o impacto da política de preços observada pela Recorrente Super Bock, ora sobre o preço de revenda dos distribuidores, ora a jusante, na variação registada no preço praticado ao consumidor –, verifica-se também uma assinalável contradição entre os pressupostos de facto assumidos.
LXX.–Na verdade, o Tribunal balança entre (i) a imprestabilidade do estudo económico por falta de desagregação entre “cumpridores” e “incumpridores” (Linhas 10791-10793 da sentença), em linha com o anterior indeferimento da prova pericial requerida pelos Recorrentes – e que visava também a análise do pass-through no segmento dos preços de revenda dos distribuidores ;
LXXI.–E a - pasme-se - (ii) insuficiência da prova provida pelos Recorrentes no sentido da inexistência do pass-through, precisamente aquilo que o mesmo Tribunal havia entendido irrelevante, e que não pôde ser objeto de prova mais profunda, por determinação dessa mesma instância,
LXXII.–Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas: (i) é irrelevante a apreciação do pass-through no segmento dos preços de revenda dos distribuidores e, por isso, não é admitida uma perícia requerida pelos Recorrentes; (ii) os Recorrentes não lograram produzir prova da inexistência do pass-through no segmento dos preços de revenda dos distribuidores.
LXXIII.–Acresce que é igualmente contraditório o posicionamento do Tribunal recorrido no que respeita ao significado do pass-through sobre os preços praticados aos consumidores,
LXXIV.–Também ele assumido pelo Tribunal como indiferente ao objeto dos presentes autos – e também por isso rejeitou a prova pericial requerida pelos Recorrentes –, por outro foi tomada como questão dotada de relevância, (i) ora para apontar a existência de prejuízos para os consumidores (Linhas 12545-12548 da sentença); (ii) ora para apontar o caráter neutral da infração (Linhas 12889-12892 da sentença); (iii) ora para afirmar desconhecimento da questão, fosse no sentido da existência ou da inexistência de efeitos no mercado (Linhas 11072-11077, 11446-11448 e 13764-13766 da sentença);
LXXV.–Finalmente, também a respeito do dolo, enquanto elemento subjectivo do tipo, a sentença mostra-se claramente insuficiente e errada nos seus fundamentos.
LXXVI.–Na verdade, a Linhas 10994-10997 da sentença constam apenas afirmações circulantes, que definem com o definido e em que se diz, simplesmente, que quem fixa preços fá-lo porque quer.
LXXVII.–Nada mais.
LXXVIII.–A linha de pensamento seguido faz coincidir a culpa com a prática do facto, pelo que qualquer facto ilícito, porque praticado, seria necessariamente doloso, por que querido, pela mesmíssima e simplíssima razão de ter sido praticado, esvaziando totalmente a apreciação do elemento subjetivo de qualquer interesse prático.
LXXIX.–Do exposto resulta que a decisão recorrida não alicerçou a sua conclusão quanto elemento subjetivo em pressupostos de facto suficientes – ou, sequer, existentes –, havendo que consubstanciar em elementos externos ao mero facto praticado o nexo psicológico que o determinou e que constitui o elemento de desvalor de imputação da conduta ao agente,
LXXX.–Pelo que, por existirem múltiplos vícios subsumíveis no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, não é possível decidir da causa esta instância, devendo este Venerando Tribunal determinar o reenvio dos autos para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou, caso, assim não se entenda, às questões identificadas neste capítulo das conclusões.
III–DA EXECUÇÃO TEMPORAL E DA PRESCRIÇÃO
LXXXI.–Pelo Tribunal a quo, foi considerado que as práticas imputadas aos Recorrentes se enquadrariam no conceito de contraordenação permanente, e consequentemente, entendeu o Tribunal a quo que não se verifica o decurso do prazo de prescrição, na medida em que a imputada prática se manteve, na visão do Tribunal a quo, até pelo menos, janeiro de 2017.
LXXXII.–Os factos narrados na sentença reportam-se a um período temporal que medeia entre os anos de 2006 e 2017, compreendendo cerca de onze anos de atividade profissional e comercial da Recorrente Super Bock, correspondendo aquela faixa temporal ao período de infração balizado pela Recorrida.
LXXXIII.–O prazo prescricional do procedimento de contraordenação é de cinco anos, sem que se encontrem contabilizadas as suspensões e interrupções taxativamente prevenidas na lei, conforme dispõe a alínea b) do n.º 1 do artº. 74.º da LdC.
LXXXIV.–As causas de suspensão do prazo de prescrição, encontram previsão legal no artº. 74.º, nº. 4, da LdC, correspondendo a(o) (i) interposição de recurso judicial da decisão final, pelo período de tempo que esta seja objeto de recurso; e (ii) envio do processo para o Ministério Público, pela Recorrida, nos termos do disposto no artº. 40.º do RGCO.
LXXXV.–Apenas nesta sede e entre 11 de outubro de 2019 e a presente data ocorreu uma causa de suspensão da prescrição, por força da interposição de recurso judicial da decisão final.
LXXXVI.–No que concerne ao efeito interruptivo do prazo de prescrição, o n.º 3 do mesmo artº. 74.º atribui relevância normativa à (i) constituição formal de Visado; e (ii) à notificação de qualquer ato que pessoalmente afete o Visado.
LXXXVII.–A Recorrida relevou totalmente a ausência de um momento de constituição formal da Recorrente na qualidade de Visada, mas esse momento se poderia ter por verificado em data anterior à notificação da Nota de Ilicitude.
LXXXVIII.–Pois que esse é o primeiro ato que pessoalmente a afeta a Recorrida e do qual foi notificada, pelo que o primeiro ato, naqueles termos qualificado, notificado à Recorrente, nunca seria anterior a 09.08.2018.
LXXXIX.–A notificação à Recorrente do mandado de busca e apreensão não pode configurar, para efeitos de interrupção do prazo prescricional, um ato que pessoalmente afete a Recorrente, na aceção descrita.
XC.–No que respeita aos demais co-Visados, a Recorrente Super Bock desconhece as datas concretas em que os mesmos foram notificados de qualquer ato suscetível de os afetar pessoalmente, na aceção supra expendida.
XCI.–E outro tanto se diga dos Recorrentes LCM e JLF relativamente à notificação da Recorrente Super Bock e restantes co-Visados de qualquer ato dessa natureza.
XCII.–A afetação em apreciação, por revestir natureza pessoal, obsta a que a prescrição se tenha interrompida com a simples notificação daquele ato a qualquer um dos visados, como parece sugerir a norma legal, valendo inteiramente, nesta sede, a regra tertium non datur.
XCIII.–Resta, portanto, retomar o momento cronológico da notificação da Nota de Ilicitude, datada de agosto de 2018, e aferir, naquela data, das infrações imprescindivelmente prescritas.
XCIV.–Ora, na medida em que o prazo de prescrição equivale a cinco anos, deve ter-se por prescrito todo o procedimento respeitante a factos cuja verificação anteceda 9 de agosto de 2013.
XCV.–No limite, proferida a decisão condenatória, sempre haveria que respeitar o limite intransponível previsto no artº. 74.º, nº. 8, da LdC, pelo que, mesmo se verificada alguma das causas de suspensão ou interrupção do prazo legalmente fixado, o efeito prescritivo sempre se produzirá decorridos sete anos e meio depois da prática dos factos.
XCVI.–Para a demonstração de uma infração permanente seria essencial o reconhecimento de uma unidade antijurídica ao longo do período da infração, facto esse irremediavelmente afastado pelas alterações registadas na composição dos órgãos de administração e direção da Recorrente Super Bock,
XCVII.–Pois as decisões de estratégia empresarial e comercial, veiculadas através dos respetivos órgãos, correspondem a decisões materialmente promanadas de pessoas integradas na estrutura da Recorrente, exigindo sempre um nexo de imputação pessoal e subjectiva,
XCVIII.–Concluindo-se, por isso, em face das diferentes decisões assumidas nos respetivos mandatos e dos distintos programas comerciais implementados no período em que exerceram funções, que a atuação da Recorrente não pode ser perspetivada como se de um rígido e unitário modo de operar no mercado se tratasse, antes assumindo necessariamente diferenças de comportamento ao longo do tempo, cuja equivalência cumpriria demonstrar.
XCIX.–O Tribunal a quo, em vez de se analisar em que medida o comportamento alterado, reconhecido pelo tribunal, concorreu ele próprio para a existência de uma conduta infractora, afirma, sem mais, que a alteração manteve a conduta infractora anteriormente caracterizada, mas que se reconhece que não é factualmente a mesma.
C.–Por outro lado, mesmo que fosse de considerar perpetrada a infração após 2015, sempre se teria de atentar na circunstância de que a mesma estaria já a ser executada com recurso a instrumentos muito distintos.
CI.–Não sendo de todo irrelevante o facto de um agente infrator, mesmo a considerar-se-lhe imputável a prática de uma infração em vários períodos temporais, ter atuado nesses períodos de formas diversas.
CII.–É que, se, fruto de uma atuação diversa, o agente vai realizando os elementos do mesmo tipo legal “incriminador”, não há ali logicamente qualquer nexo de permanência, mas apenas de sucessão.
CIII.–Dizer o contrário é afirmar que toda a infracção por objecto é permanente, independentemente de o preenchimento do mesmo tipo de infração se haver dado com recurso a uma conduta factual diversa.
CIV.–Assim, se o Tribunal a quo considerou ter existido uma reconfiguração factual do modo como seria implementada a fixação de preços de revenda no período posterior a 2015, tal não pode significar, por perfeita falta de identidade com a conduta anterior, uma mesma infração permanente, apenas e somente porque o tipo contraordenacional preenchido seria o mesmo.
CV.–Aliás, da decisão recorrida resulta uma adesão à realidade demonstrativa de factos interruptivos de uma alegada uniformidade na execução da infração, como é o caso da manifestação de dissídios na execução da informação comercial tida pelo Tribunal e pela própria Recorrida como ilícita (Linhas 3705 a 3708, 3727 a 3729, 5699 a 5703 e 6569 a 6574);
CVI.–Não estamos diante de uma atuação da Recorrente protelada no tempo suscetível de ser qualificada de infração permanente, mas antes diante da imputação de múltiplas infrações instantâneas sucedidas no tempo ou, quando muito, dois conjuntos de infracções instantâneas, antes e depois de 2015.
CVII.–Dilucidada esta questão, havendo que reconhecer nos factos imputados à Recorrente um qualquer desiderato de ilicitude, nunca a infração seria legitimamente qualificada de permanente.
CVIII.–E tampouco seria de aceitar imputar-se à Recorrente a prática de uma infração continuada, pois a referida categoria jurídica encontra-se deliberadamente ausente da constelação legislativa tida por aplicável ao concreto caso em presença.
CIX.–Na verdade, não existe correspondência entre a modalidade continuada da infração contraordenacional e a justificação legal última prevista no artº. 30.º, nº. 2, do CP, podendo-se, quando muito, atribui-lhe a qualificação de persistente ou sucessiva,
CX.–Ora, a admitir-se a referida execução protraída no tempo, nos termos defendidos, estaríamos perante, não uma única e indivisível infração, mas sim de um quadro de infrações enquadrável na infração persistente enquanto categoria de Direito - qualificação essa, por sinal, mas sem qualquer fundamentação, flagrantemente irrelevada pelo Tribunal a quo.
CXI.–A inevitável parcelarização dos factos carreados implica que sobre os diversos factos isoladamente considerados se faça incidir o instituto da prescrição,
CXII.–Pelo que sempre que terão que se considerar prescritos todos os factos anteriores a agosto de 2013, revogando-se a sentença proferida e substituindo-a por decisão que determine a referida prescrição.
CXIII.–Se ainda assim não se entender e convergindo no sentido do exposto, sempre existiriam razões para admitir, como sucederia no caso da infração continuada, a prescrição dos atos parcelares,
CXIV.–Pelo que sempre estariam prescritos todos os factos imputados à Recorrente com data anterior a agosto de 2013, entendimento cuja admissão se requer seja seguida por este Tribunal, revogando-se a sentença proferida quanto a esses.
IV–DOS ERROS DE JULGAMENTO DE DIREITO
A)-A inexistência de acordo e da fixação directa e indirecta de preços
CXV.–O Tribunal a quo entendeu que a Recorrente procedeu a uma fixação, directa e indirecta, dos preços mínimos de revenda a praticar pelos distribuidores, concluindo a este propósito pela existência de um acordo entre estes e a Recorrente;
CXVI.–Porém, o Tribunal a quo erra, quer ao qualificar o procedimento descrito na sentença como “acordo” para efeitos jusconcorrenciais, quer ao qualificar a prática em apreço como uma fixação directa dos preços;
CXVII.–Quanto ao primeiro desses erros, o Tribunal a quo conclui pela existência de um “acordo” com recurso a elementos meramente indiciários, afastando-se do entendimento que tem sido perfilhado pela jurisprudência europeia que exige a demonstração de que os distribuidores, de facto, seguiram os preços mínimos recomendados, nos termos exigidos pelo TJUE e pelas “Orientações relativas às restrições verticais” – 2010/C 130/01;
CXVIII.–Com efeito, resulta de tais Orientações, em particular, do § 25, que é necessário que se demonstre que foi “efetivamente” aplicada na prática a política do fornecedor;
CXIX.–O Tribunal a quo não deu como provados factos que, na prática, demonstrem que efectivamente a pretensa política da Recorrente foi aplicada pelos Distribuidores, na medida em que a acusação se absteve de analisar se os preços por estes praticados estavam de acordo com as recomendações da Recorrente, respaldada na afirmação redundante de que é uma infração por objeto e que em nada interessam os seus efeitos;
CXX.–Por outro lado, não se poderá deixar de salientar que é intrínseco à noção de acordo de vontades que o mesmo seja estabelecido entre, pelo menos, duas empresas, tendo em vista gerar ou contribuir para um entendimento comum quanto àquela que será a atuação das partes no mercado, relativamente a parâmetros essenciais no processo da concorrência, como preços, qualidade e quantidade;
CXXI.–Ora, no contexto das mensagens de correio eletrónico trocadas entre colaboradores da Recorrente Super Bock e os Distribuidores, não se verifica a existência de um concurso de vontades;
CXXII.–E se a qualificação de um acordo de vontades parte de um comportamento efetivo das empresas envolvidas, que “traduz um estado de convergência estável entre esses comportamentos”, também não é possível concluir, no caso sub judice, que o comportamento dos Distribuidores tenha sido coordenado e ajustado, voluntariamente por estes, aos intuitos da Recorrente, de forma estável e liminar ao longo do tempo;
CXXIII.–Aliás, à luz dos artº. 101.º e 102º. do TFUE, a conduta unilateral de uma empresa que não detenha uma posição dominante não é abrangida pelas normas de concorrência do Tratado, o mesmo se verificando com os equivalentes artºs. 9.º e 11.º da LdC;
CXXIV.–A jurisprudência do TJUE tem evoluído no sentido de tornar mais exigente a demonstração, por parte das autoridades, de que houve efetivamente aceitação de determinada política de distribuição por parte dos distribuidores, sendo que, nos termos do artº. 2.º do Regulamento UE 1/2003 – e do artº. 9.º da LdC - o ónus da prova da infração incumbe à autoridade que alega tal violação;
CXXV.–E, quanto à noção de acordo, importa sublinhar que o nível de prova exigido para demonstrar a existência de um acordo anticoncorrencial no âmbito de uma relação vertical é, por princípio, semelhante ao exigido no âmbito de uma relação horizontal;
CXXVI.–Ainda que certos elementos que sugerem a existência de um acordo horizontal poderão mostrar-se desadequados à demonstração de um acordo vertical, pois, ao contrário do que sucede entre empresas concorrentes, o contacto e a troca de informações entre um fornecedor e os seus distribuidores é necessário e lícito;
CXXVII.–Assim, para que haja acordo, na aceção do artº. 101.º, n.º 1, do TFUE e do artº. 9.º da LdC, é exigível que as empresas em causa tenham expressado a sua vontade comum de se comportarem no mercado de uma determinada forma;
CXXVIII.–Pelo que a AdC teria de ter provado a existência de uma intenção comum, que tende a ser comprovada por meio da verificação de uma proposta e de uma aceitação,
CXXIX.–Não se podendo extrair de uma conduta unilateral – como é o envio de tabelas de preços recomendados –, qualquer conclusão quanto à existência, ou não, de um acordo;
CXXX.–Para que se esteja perante um acordo de vontades, no sentido de se afirmar uma aceitação, não basta que (i) exista orientação e influência do fornecedor na política de preços dos distribuidores, comprovadas pela troca de missivas, (ii) o envio de listas de preços, (iii) a troca de correspondência com distribuidores, incluindo o envio de faturas com referência a preços acordados com o fornecedor, (iv) a existência de mecanismos de retaliação e ameaça que visem provocar a anuência dos distribuidores face à referida política de preços, concretamente, com a ameaça de redução do volume de fornecimentos, se não lograr demonstrar a adoção de medidas tendentes à sua execução, nem (v) a existência de situações em que os próprios distribuidores peçam explicações ao fornecedor quando detetam desvios aos preços fixados por parte de outros distribuidores;
CXXXI.–De onde resulta que, para se concluir pela existência de um acordo, é necessário que se demonstre que foi “efetivamente” aplicada na prática a política do fornecedor, o que manifestamente o tribunal a quo não fez;
CXXXII.–Por outro lado, no que respeita ao elemento de fixação directa e indirecta de preços, o Tribunal a quo, partindo de factos que apenas poderiam, em abstrato, consubstanciar uma prática de fixação de preços por meios indirectos, acaba por concluir pela existência de uma situação de fixação directa e indirecta de preços, assente na premissa de que, entre 2006.05.15 e 2017.01.23, a Recorrente fixou e impôs, de forma regular, generalizada e sem quaisquer alterações, as condições comerciais que os seus distribuidores tinham obrigatoriamente de cumprir na revenda dos produtos por si produzidos e comercializados;
CXXXIII.–Á luz do disposto nos artºs. 9º., nº. 1, alínea a), da LdC, e 101º., nº. 1, alínea a), do TFUE, para além da exigência de um acordo é necessário que o mesmo seja suscetível de refletir as tentativas dos fornecedores de, por forma imediata, controlarem os preços a praticar pelos distribuidores aos seus clientes,
CXXXIV.–Pelo que, para que se verificasse uma situação de fixação directa de preços, seria necessário que o acordo estivesse vertido numa cláusula contratual existente - quer no contrato de distribuição, quer num outro contrato, pré-existente ou não -, que visasse regular tal matéria, atribuindo à Recorrente uma tal prerrogativa;
CXXXV.–Sendo que, no caso das práticas concertadas, é necessário demonstrar uma efetiva aceitação, o que apenas pode ser efetuado através da análise dos preços efetivamente praticados – cfr. § 48 das Orientações Relativas às Restrições Verticais;
CXXXVI.–Na verdade, a fixação de preços mínimos de revenda através de acordos (i) de fixação de margem de distribuição, (ii) de fixação do nível máximo de desconto que o distribuidor pode conceder a partir de um determinado nível de preços estabelecidos, (iii) de subordinação da concessão de reduções, (iv) de reembolso dos custos promocionais por parte do fornecedor a um determinado nível de preços e (v) de associação do preço de revenda estabelecido com o preço de revenda dos concorrentes, poderão, quanto muito, consubstanciar uma forma de fixação indirecta de preços;
CXXXVII.–Assim, sempre que a possibilidade de determinação dos preços de revenda a praticar pelos distribuidores aos respectivos clientes decorra, não de uma específica cláusula contratual ou acordo entre as partes, mas tão só das práticas comerciais unilaterais e efetivamente adotadas pelo fornecedor que forcem o cumprimento pelos distribuidores das instruções por si emitidas e, se tal política unilateral acarretar a coartação absoluta da liberdade de escolha e atuação da contraparte, é que se poderá concluir estar perante uma fixação indirecta de preços,
CXXXVIII.–Pelo que, nestas situações, será necessário fazer prova, em primeiro lugar, de que a política unilateral de uma das partes pressupõe a aceitação da outra e, em segundo, que esta última cumpriu tal exigência aplicando na prática a política unilateral que lhe foi imposta,
CXXXIX.–Em todo o caso, será necessário, em concreto, demonstrar que uma parte solicitou, expressa ou implicitamente, a cooperação da outra na aplicação da sua política unilateral e, em segundo, que esta última cumpriu tal exigência aplicando na prática a política unilateral que lhe foi imposta;
CXL.–Deste modo, inversamente ao que parece decorrer da sentença recorrida, em particular nos pontos 86 e 87 dos factos provados, o nível de coação efetivamente exercido para imposição de uma política comercialmente imposta e o número de distribuidores abrangidos apenas pode servir de indício à existência de uma aceitação tácita, não se podendo daí retirar qualquer conclusão quanto à existência de uma fixação directa ou indirecta de preços;
CXLI.–In casu, o Tribunal a quo não deu como provada a existência de uma cláusula contratual que atribuísse a prerrogativa de fixação dos preços mínimos de revenda, não sendo, por isso, possível afirmar que a Recorrente tivesse a possibilidade de impor contratualmente aos seus distribuidores os preços de revenda que estes deveriam praticar nas respectivas zonas de atuação; e
CXLII.–Na decisão da matéria de facto, não existe qualquer facto provado que permita concluir que a Recorrente tivesse possibilidade de os impor, de forma imediata ou directa, em virtude de um prévio ou posterior acordo de vontades entre as partes,
CXLIII.–Pelo que, o procedimento descrito nas linhas 12348 a 12358 da sentença nunca poderia consubstanciar uma fixação directa de preços de revenda pela Recorrente, aos distribuidores,
CXLIV.–Não sendo igualmente suficientes as afirmações genéricas efetuadas pelo tribunal a quo e vertidas no ponto 82 da decisão da matéria de facto provada, no sentido de que os distribuidores, de forma generalizada, acompanharam os preços recomendados pela Recorrente, dado que essa matéria consubstancia um juízo meramente conclusivo, insuficiente para sustentar a decisão de direito proferida pelo tribunal;
CXLV.–Nesta conformidade, na falta de matéria de facto e a respeito de um acordo susceptível de fundamentar uma fixação directa de preços e não sendo possível fazer qualquer articulação entre os preços recomendados pela Recorrente Super Bock e os preços efetivamente praticados pelos distribuidores, não poderia o tribunal a quo ter concluído no sentido da existência de uma infração ao artº. 9º., nº. 1, alínea a), da LdC, e ao rtº. 101º., nº. 1, alínea a), do TFUE;
B)-Da falta de demonstração da nocividade
CXLVI.–O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento no que diz respeito à (des)necessidade de demonstração, pela AdC, da nocividade do acordo para que se pudesse considerar existir uma restrição por objeto.
CXLVII.–A infração, para que possa ser caracterizada de restrição por objeto, implica a análise, pela AdC, do grau suficiente de nocividade da conduta;
CXLVIII.–Também do Parecer emitido por JV, junto aos autos, claramente resulta que “De forma a concluir que um acordo entre empresas encerra esse grau de nocividade, há que ter em conta o seu teor, os seus objetivos e contexto económico e jurídico em que se insere”.
CXLIX.–Neste específico âmbito, o Tribunal recorrido ignorou a jurisprudência do TJUE e, quando se debate com a questão, limita-se a afirmar, continuamente e de forma apriorística e conclusiva, que em causa estaria uma infração por objeto, julgando que com isso supriria a insuficiência de análise do grau de nocividade do acordo.
CL.–Na abordagem da questão pelo Tribunal a quo, a forma encontrada para justificar uma pronúncia mais concreta quanto ao que na Impugnação da Decisão Final vem alegado pelos Recorrentes, passou pela declaração descontextualizada de «que o contexto económico em que a Super Bock actuou não é “claro, estanque, liminar, sendo bastante complexo”».
CLI.–O entendimento do Tribunal a quo contraria de forma contundente o entendimento mais recente da jurisprudência europeia sobre o tema, pois, ainda que se considerasse, em abstrato, que a conduta-tipo imputada à Recorrente tinha cabimento jusconcorrencial e fosse tida como capaz de distorcer a concorrência – o que não se consente –, por si só essa “capacidade” deveria ter sido concretizada pela AdC, através da demonstração do grau de nocividade do acordo, relativamente (i) ao contexto económico e jurídico, (ii) ao objetivo e (iii) ao teor do “acordo”.
CLII.–Portanto, o Tribunal a quo erra clamorosamente quando considera que a restrição vertical, por fixação de preço, é, sem mais e necessariamente, uma restrição por objeto e bem assim que a AdC não é – e não era – obrigada a fazer um exame rigoroso de todas as circunstâncias do caso precedente à qualificação da conduta da Recorrente como uma restrição por objeto!
CLIII.–No âmbito da análise “restrição por objeto/por efeito”, a avaliação inicial tem que ir no sentido de ver se o acordo tem por objetivo impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum, devendo “esse exame (…) ser efetuado à luz do conteúdo do acordo e do contexto económico em que se inscreve”, conjugando depois essa análise detalhada das circunstâncias sob a perspetiva de saber se, em função desses três critérios, foi ou não criado um estado adverso ao funcionamento do mercado, o que a decisão claramente não faz.
CLIV.–A apreciação rigorosa do “grau suficiente de nocividade” enquadra-se precisamente na análise das circunstâncias do caso e não se presume, contrariamente ao que parece ser entendimento do Tribunal a quo.
CLV.–Contrariamente ao que se imporia, na Decisão Final da Recorrida e, consequentemente, na sentença recorrida, não foi de todo caracterizado o contexto económico que terá presidido às alegadas práticas anti-concorrenciais, não existindo sequer qualquer referência ao mesmo.
CLVI.–São variados e distintos os contextos económicos subjacentes à factualidade e, de forma alguma, poderão estes contextos económicos ser considerados ou tratados como um todo.
CLVII.–E tendo presente que não cabia à Recorrente substituir-se à Recorrida nos parâmetros de análise sobre os quais deveria incidir o contexto económico, impunha-se à AdC analisar os efeitos que o alegado comportamento da Recorrente terá provocado no mercado para se poder afirmar o “grau de suficiente nocividade”.
CLVIII.–A análise do elemento nocividade imporia ainda que se atendesse àqueles que terão sido os objetivos subjacentes à criação de uma não saudável “ambiência” de mercado, leitura que não pode ser desgarrada do devido enquadramento dos diferentes contextos económicos experienciados pela Recorrente.
CLIX.–A Recorrente Super Bock não traçava os mesmos objetivos económicos para a rede de distribuição, para as Operações Diretas, para o caso de lançamento de novos produtos, para os picos de sazonalidade, entre outros.
CLX.–Por forma a procurar avaliar a natureza do racional subjacente, impõe-se ensaiar uma análise mais contrafactual, tendo em vista compreender se a estrutura concorrencial e as condições reais de funcionamento dos mercados onde atua a Recorrente seriam diferentes, caso esta tivesse atuado de outra forma.
CLXI.–Além de a AdC não o ter demonstrado, nem sequer alegado – e, por isso, não constar igualmente da sentença recorrida –, decorre do Estudo Económico junto aos autos que, no se refere à produção de efeitos no mercado, que não se verificaria uma diferença estrutural entre a estrutura concorrencial de mercado e a rivalidade concorrencial se o comportamento da Recorrente tivesse sido distinto.
CLXII.–Neste ponto, o Tribunal a quo concluiu apenas, de forma circular, que um acordo de fixação de preços (i.) “objectivamente, ataca a concorrência”, (ii.) “implica (pelo menos esse era o objectivo) a coarctação da liberdade dos distribuidores em determinar efectivamente os preços a praticar […] eliminando a concorrência pelo preço dos produtos, em prejuízo dos consumidores finais que deixavam de poder beneficiar de produtos a preços mais reduzidos” e que (iii.) “O prejuízo para os consumidores é especialmente grave”.
CLXIII.–Como é bom de ver, seria precisamente por via da concreta análise dos objetivos do acordo que se validaria se este específico acordo “ataca a concorrência” e “elimina a concorrência”, sendo que o Tribunal a quo realiza o seu exercício de substituição recorrendo a conclusões e não a factos que pudessem determinar o grau suficiente de nocividade do acordo.
CLXIV.–Mas o que a lei pretende e impõe é a análise do grau de nocividade do específico acordo em causa e não a análise do grau de nocividade de um acordo.
CLXV.–A AdC nada alega – e da sentença, por isso, nada consta – quanto ao teor do acordo para efeitos de aferição da respetiva nocividade, mas também aqui o Tribunal a quo considerou que, em face da infração que vem imputada aos Recorrentes, tal abordagem se mostra despicienda, o que é errado;
CLXVI.–Antes, deveria a AdC ter demonstrado que o teor do acordo, em linha com o contexto jurídico e económico vividos, contribuiu para a criação de um estado, em si mesmo, adverso ao funcionamento concorrencial dos mercados.
CLXVII.–Impondo-se-lhe fazer uma ponderação – real, concreta e casuística – dos comportamentos efetivos e do seu contributo para a adulteração do bom funcionamento do mercado – coisa que não aconteceu.
CLXVIII.–Efetivamente, a AdC não conferiu a esta conduta qualquer materialização objetiva – isto é, não consubstanciou, em factos, que essa alegada fixação de preços de revenda criou um estado permanente de risco para o funcionamento do mercado, bastando-se a AdC, primeiro, e o Tribunal a quo, depois, com a afirmação de que isso… necessariamente acontece!!
CLXIX.–O entendimento dos Recorrentes quanto à inexistência de uma qualquer limitação da eficiência económica mais resulta corroborado pelo próprio Tribunal a quo, o qual assume que o impacto nos consumidores foi “neutro”.
CLXX.–Portanto, dúvidas não restam de que para se concluir que se trata de uma restrição por objeto, independentemente, da conduta imputada ser a fixação de preços, deveria ter sido demonstrado pela AdC o grau suficiente de nocividade;
CLXXI.–O Tribunal a quo ao desconsiderar esta exigência por considerar que uma infração que redunde na fixação de preço abdica da referida análise incorreu em manifesto erro de julgamento.
C)–Da inaplicabilidade do artº. 101º. do TFUE
CLXXII.–O tribunal a quo comete um erro de julgamento de direito ao ter considerado a aplicação do artº. 101 do TFUE ao caso vertente, concordando, assim, com a AdC de que a infração imputada aos Recorrentes afetaria o comércio entres os Estados Membros da União Europeia.
CLXXIII.–Chegou o Tribunal recorrido a essa conclusão, na pressuposição de que: (i.) a suscetibilidade de afetação do comércio entre Estados-Membros “implica inevitavelmente a desnecessidade do acordo ou a prática terem tido, efectivamente, um efeito no comércio entre os Estados-Membros, não existindo por isso obrigação ou necessidade de calcular o volume efectivo de comércio entre os Estados-Membros afectado pelo acordo ou prática”; (ii.) “a prática em causa se derramou sobre a esmagadora maioria do território nacional”, reforçando “a segmentação ou compartimentação dos mercados numa base nacional”, prejudicando “as trocas comerciais entre Estados-Membros”; (iii.) “estão em causa produtos que são susceptíveis de ser exportados”, e que “a Super Bock é uma das maiores empresas no mercado nacional e integra um grupo empresarial participado por empresas multinacionais”; (iv.) “[o] acordo de fixação de preços mínimos de revenda, nestas condições, é susceptível de afectar o comércio entre Estados Membros, o que inclui o aumento das importações de outros Estados e a diminuição de exportações do nosso país”; (v.) que os descontos sobre sell out de apoio aos distribuidores no barril eram uma política com potencial “efeito bloqueador”, na medida em que “qualquer tipo de investida de uma outra empresa que pretendesse penetrar no mercado era bloqueada pela Recorrente, com a atribuição de descontos extra aos distribuidores”, “dificultando a penetração das empresas de outros Estados Membros no mercado nacional”, afetando “a estrutura do comércio entre os Estados-Membros”.
CLXXIV.–Mais sublinhando, em sede de demonstração do alegado carácter sensível da afetação do comércio entre Estados Membros: “estar em causa uma empresa em situação de duopólio no mercado em todo o território de um Estado Membro, desenvolvendo uma prática restrita por objecto, considerada uma das práticas mais graves em sede de direito jus concorrencial, com os volumes de negócios que se deram como provados, ainda que apartados das vendas directas efectuadas pela Recorrente, poderá ser suficiente para, por si só, dificultar a penetração no mercado de concorrentes de outros Estados Membros no mercado nacional”.
CLXXV.–O critério da afetação do comércio requer, ao invés, a reunião dos seguintes requisitos: (i.) que seja possível prever, (ii.) com um grau suficiente de probabilidade, (iii.) com base num conjunto de fatores objetivos de facto ou de Direito, (iv.) que a conduta impacta de forma sensível o comércio entre os Estados-Membros da UE.
CLXXVI.–Neste contexto, os Tribunais da UE também afirmaram já que não basta alegar simplesmente factos tendentes à descrição de uma certa conduta ou invocar presunções ou premissas de facto hipotéticas ou especulativas sem explicar de que forma os mesmos sustentam a conclusão de que a conduta é suscetível de afetar o comércio entre Estados-Membros.
CLXXVII.–Sustentando essa perceção, o Tribunal da Relação de Lisboa já afirmou: “(…) pelo que se imporia, no mínimo, a prova de ''dificultarem a penetração das empresas, de outros Estados-Membros no mercado nacional em causa quer através de exportações, quer através de estabelecimento (efeito de encerramento).'', o que manifestamente não se mostra efectuada nem revelada na matéria de facto provada; (…)''.
CLXXVIII.–Atente-se em particular, que a Afetação do Comércio entre os Estados Membros, é um critério puramente jurisdicional, destinado a determinar se a conduta em causa tem uma dimensão transfronteiriça e, portanto, europeia (no sentido de lhe ser aplicado o direito da UE) –, caso em que pode cair no âmbito do artº. 101º. do TFUE – ou não tem dimensão europeia –, caso em que apenas pode cair no âmbito das regras nacionais da concorrência.
CLXXIX.–Deste modo, não se demonstrando que a prática que vem imputada à Recorrente foi suscetível de “afetar o comércio entre Estados-membros”, será inaplicável o artº. 101.º do TFUE.
CLXXX.–O tribunal a quo assume a afetação sensível do comércio entre Estados-Membros através de formulações genéricas e inconsubstanciadas, sem ter atendido às características do caso concreto, desse modo aplicando mal o direito.
CLXXXI.–Não há prova de factos concretos que permitam afirmar que os alegados acordos e práticas foram “suscetíveis de afetar sensivelmente o comércio entre os Estados-membros” e muito menos que o façam com um grau de “probabilidade suficiente”.
CLXXXII.–Quanto ao conceito de Comércio entre Estados-Membros ou de atividade económica transfronteiriça, está em causa perceber se a atividade económica prosseguida pela Recorrente afetou a estrutura concorrencial do mercado.
CLXXXIII.–A estrutura concorrencial do mercado será afetada caso o acordo elimine um concorrente ou ameace eliminar um concorrente que opera na União Europeia.
CLXXXIV.–Nenhuma conduta encetada pela Recorrente, em momento algum, desencadeou a exclusão do mercado por parte de outro concorrente, nem tal resulta dos factos dados como provados - não há simplesmente prova de factos concretos que o permitam afirmar.
CLXXXV.–Não bastam as afirmações referidas anteriormente, por parte do tribunal a quo, como “estão em causa produtos que são susceptíveis de ser exportados”, e que “a Super Bock (…) integra um grupo empresarial participado por empresas multinacionais”, para que simplesmente se verifique verdadeiramente a suscetibilidade de afetação sensível do comércio entre Estados-Membros.
CLXXXVI.–Uma qualquer projeção internacional da empresa é, em rigor, um elemento a ter em conta, mas apenas para a qualificação da empresa, ou até de alguns dos seus acionistas, e não para estabelecer a suscetibilidade de afetação do comércio na UE…
CLXXXVII.–Porquanto esta suscetibilidade apenas se coloca, não porque a empresa é mais ou menos reconhecida, mas quando a sua “performance” terá determinado a existência de uma influência na “estrutura do comércio entre os Estados-Membros”, o que não se comprovou pelos factos.
CLXXXVIII.–A afirmação da mera susceptibilidade de exportação dos produtos é observação genérica e não fundamentada, desprovida de relevância para o caso em questão, pois, num mercado livre, qualquer produto é em si mesmo susceptível de ser exportado; e
CLXXXIX.–A circunstância de um acionista ser um grupo multinacional e respectiva relevância para a concorrência no espaço europeu, diz algo apenas do accionista e não da participada, que por exemplo pode ela mesma ser uma empresa de muito pequena dimensão e sem actividade para além da cidade em que se encontra instalada!!
CXC.–Pelo que as afirmações acima referidas nada dizem de concreto sobre a afectação do comércio no espaço da UE e ninguém – nem a AdC, nem o tribunal a quo - sequer mostrou interesse em saber qual o impacto das vendas da Recorrente a nível do comércio entre os Estados-Membros, ou inclusive se as realizou à sua acionista multinacional e em que volume, viciando, por isso, o raciocínio do Tribunal, em especial quando afirma que: (i) “[o] acordo de fixação de preços mínimos de revenda (…) é susceptível de afectar o comércio entre Estados Membros, o que inclui o aumento das importações de outros Estados e a diminuição de exportações do nosso país”; e que (ii) os próprios descontos sobre sell out era uma política com potencial “efeito bloqueador”, “dificultando a penetração das empresas de outros Estados Membros no mercado nacional”.
CXCI.–Essencial é, sim, determinar se, por força da existência de um acordo anti-concorrencial, a estrutura concorrencial do comércio na UE se desenvolveu, provavelmente, de forma diferente daquela que se teria desenvolvido, caso tal acordo não tivesse existido, análise que o Tribunal a quo não atendeu.
CXCII.–Antes, escudou-se o Tribunal recorrido na afirmação redundante de que a infracção é por objecto e que, por isso, não se cura de saber mais nada para além do facto em si mesmo.
CXCIII.–Tal como inclusivamente consta da sentença recorrida, Portugal é mínimo face aos maiores produtores de cerveja na UE e nada oscilou durante todo o período da prática dos factos.
CXCIV.–Já para a análise do impacto da alegada conduta praticada pela Recorrente, para afirmar ser possível prever, “com grau de probabilidade suficiente”, que essa mesma prática influiu ou era suscetível de influir na estrutura concorrencial do comércio da UE, é necessário para essa afirmação ter em conta elementos objetivos de direito e de facto (e que o Tribunal recorrido não considerou).
CXCV.–A avaliação deste critério “depende de uma série de fatores [que incluem a natureza do acordo ou da prática, a natureza dos produtos objeto do acordo ou prática e a posição e importância das empresas em causa] que, considerados individualmente, podem não ser decisivos”, sendo que tais fatores devem ser compreendidos “por referência ao quadro real em que o acordo se coloca”.
CXCVI.–De salientar que o comércio intracomunitário não evoluiu de forma diferente relativamente àquela que seria a sua evolução expetável, devido ao alegado comportamento da Recorrente, nem o contrário se afirma ou se provou nos autos, quando é certo que “[a] probabilidade um dado acordo produzir efeitos indirectos e potenciais deve ser explicada pela autoridade (…) Efeitos hipotéticos e especulativos não bastam para estabelecer a aplicabilidade do direito comunitário”.
CXCVII.–E o tribunal a quo, secundando a AdC, mais não fez do que se alavancar na constatação de que uma qualquer prática que se traduza numa fixação de preços de revenda é problemática.
CXCVIII.–O Tribunal a quo não tem um único facto relativo à afectação do comércio e ao grau de probabilidade suficiente.
CXCIX.–Com o devido respeito, a falta de concretização subjacente a afirmações absolutas da parte do tribunal a quo (“o certo é que”, “é quase”, “a esmagadora maioria”) é suficientemente ilustrativa do facto de, a montante, a AdC (secundada agora pelo tribunal a quo), não ter desempenhado o papel que lhe incumbia de demonstrar, real e concretamente, a suficiente probabilidade, com base em elementos de facto e de direito (não aduzidos), de que o alegado acordo restritivo da concorrência imputado à Recorrente impactava o comércio entre os Estados-Membros.
CC.–Até porque, apesar de não se encontrar minimamente demonstrado ao longo da sentença recorrida ou da decisão final da AdC que a alegada prática afetou a totalidade do mercado nacional, o Tribunal a quo (e a AdC) nem sequer teve em consideração o que decorre das Orientações sobre o conceito de afetação do comércio entre os Estados-Membros, onde se pode ler que: “Os acordos verticais que cobrem a totalidade de um Estado-Membro podem, nomeadamente, afectar a estrutura do comércio entre os Estados-Membros no caso de dificultarem a penetração das empresas de outros Estados-Membros no mercado nacional em causa, quer através de exportações, quer através de estabelecimento (efeito de encerramento)”.
CCI.–Ora, contrariamente ao que afirma o tribunal a quo, mesmo se estivéssemos perante a afetação da totalidade do mercado nacional (quod non), haveria de se demonstrar a existência de um “efeito de encerramento” do mercado, seja ao nível das exportações, seja ao nível das importações, ora também por referência à relevância do negócio da Recorrente no mercado europeu, o que manifestamente não foi feito e não resulta da sentença recorrida, padecendo esta de absoluta falta de fundamentação a este respeito.
CCII.–Acresce que, contrariamente ao que afirma o tribunal a quo, nem sequer é possível, face à prova produzida ao longo do processo, afirmar que a alegada infração afetou todo o mercado nacional (sobre a fórmula utilizada pelo tribunal a quo, certamente consciente da insuficiência da prova, de “a esmagadora maioria do território nacional”, ou a “quase a globalidade de um Estado Membro”).
CCIII.–Com efeito, não podia ter tomado o tribunal a quo a decisão que tomou, de direito, com a insuficiência grave ao nível da prova, pois a prova produzida e a matéria de facto dada como provada levaram precisamente a concluir que a alegada infração não se manifestou em todo o território nacional, sendo manifestamente abusiva a assimilação feita no sentido de “não foi em todo o território nacional, mas foi como se fosse”!!!
CCIV.–O tribunal a quo, infelizmente, acudiu às insuficiências da AdC, como demonstra o facto de ter desconsiderado a importância (óbvia, evidente) das áreas, por exemplo, de Lisboa e Porto, que sempre estiveram fora do sistema de distribuição, canal esse onde terá ocorrido a suposta infração, como se Portugal fosse o mesmo ou sequer equivalente com e sem as áreas das duas maiores cidades!!!
CCV.–É que o Tribunal recorrido não esboçou qualquer balanço sobre o facto de as áreas relevantíssimas de Lisboa e Porto estarem fora do sistema de distribuição alvo do processo e o peso que têm em termos geográficos, de poder de compra e, em consequência, de vendas no total do universo das realizadas pela Recorrente.
CCVI.–É facto notório e isento de prova de que não há qualquer mercado verdadeiramente nacional, em qualquer sector que seja, sem as duas principais metrópoles de Portugal…
CCVII.–Para além de que, como resulta mesmo da pouca prova considerada na sentença, a conduta imputada aos Recorrentes não se estendeu à totalidade dos mercados portugueses de distribuição das diversas bebidas alegadamente objeto da referida conduta, mas apenas a um segmento (HORECA/on-trade) e excluindo deste as vendas ao Cash & Carry e as vendas directas da Recorrente Super Bock.
CCVIII.–Por isso, a conduta em causa nos presentes autos não é suscetível de acionar qualquer presunção ilidível estabelecida pela prática decisória da UE; e
CCIX.–Mesmo que a conduta em causa se estendesse à totalidade dos mercados portugueses para as diversas bebidas, quer em termos de segmentos de mercado, quer em termos de território, a presunção ilidível não seria aplicável, porquanto se refere exclusivamente a condutas horizontais (conforme se extrai das Orientações da Comissão sobre Afetação do Comércio entre os Estados-Membros referem essa presunção apenas no Capítulo 3.2.1., intitulado Cartéis que cobrem um Único Estado-Membro) ou a condutas que, pela sua própria natureza, são suscetíveis de ter um efeito de encerramento de mercado, tais como obrigações de exclusividade de compra, obstrução de importações paralelas e de proteção territorial absoluta.
CCX.–Nenhum destes casos se refere a uma conduta de natureza similar à que foi objeto da decisão recorrida, de alegada fixação vertical individual de preços de revenda, que, na falta de qualquer obrigação de exclusividade de compra, não restringe a concorrência inter-marca e não é suscetível de ter efeitos de encerramento de mercado!
CCXI.–Na verdade, e mesmo nessa situação hipotética, a extensão da conduta da Recorrente à totalidade dos mercados portugueses das várias bebidas abrangidas (quod non) seria, mesmo assim, apenas um dos fatores a ter em conta na análise a fazer; e apenas se tivesse sido explicado de que forma a extensão da conduta em causa poderia sustentar a conclusão de uma afetação do comércio entre os Estados-Membros.
CCXII.–Por fim, saliente-se, que as orientações sobre afetação do comércio não consagram qualquer natureza sensível per se ao nível das restrições por objeto,
CCXIII.–Sendo que, na ausência de qualquer natureza sensível per se ou de qualquer presunção positiva de natureza sensível, não consta dos autos qualquer facto demonstrativo do grau de probabilidade séria de afetação sensível do comércio entre Estados-Membros).
CCXIV.–Resulta, assim, do exposto que não se concretizou, nem se demonstrou minimamente de que forma a conduta imputada à Recorrente teria afetado, de forma sensível, o comércio entre Estados-Membros no que diz respeito a todas as bebidas distribuídas pela Recorrente e abrangidas pela Decisão da AdC durante todo o período da alegada infração,
CCXV.–Sendo claramente insuficiente o tribunal a quo concluir a este propósito que “poderá ser suficiente para, por si só, dificultar a penetração no mercado de concorrentes de outros Estados Membros no mercado nacional”, após ter enunciado para este efeito, tão somente, (i) a posição da Recorrente Super Bock no mercado em Portugal, (ii) o seu volume de negócios e (iii) que esta cometeu uma infração por objeto, como se de uma simples análise à escala nacional se tratasse.
CCXVI.–O que importa reter é, assim, a clara inaplicabilidade do artº. 101.º do TFUE à conduta encetada pela Recorrente por falta de suscetibilidade de afetação sensível do comércio entre Estados-Membros.
V–DA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA COIMA
CCXVII.–No que diz respeito à sanção a aplicar aos Recorrentes, o Tribunal a quo decidiu manter a coima de € 24.000.000,00 aplicada à Recorrente Super Bock, a coima de € 12.000,00 aplicada a LCM e a coima de € 8.000.00 aplicada a JLF;
CCXVIII.–Para tanto, o Tribunal a quo julgou constitucionais os critérios de determinação da medida da coima expressamente previstos nos artºs. 69º., nºs. 2 e 4 da LdC e considerou (simplesmente) como adequadas as coimas concretamente aplicadas aos aqui Recorrentes;
CCXIX.–Também aqui o Tribunal a quo incorreu num clamoroso erro de julgamento, porquanto os critérios de determinação dos limites máximos da coima a aplicar por infrações às regras da concorrência previstos nos artº. 69º., nºs. 2 e 4, encontram-se feridos de inconstitucionalidade, pois a definição da moldura legal da coima, ao estribar-se num dado atinente à atividade negocial do infrator, reflete uma construção do direito sancionatório mais próxima de um direito sancionatório do agente do que da conduta, o que não se pode, de todo, aceitar;
CCXX.–Os referidos critérios revelam-se desadequados para avaliar o desvalor associado ao tipo de ilícito que se sanciona, pois tal significaria que esse desvalor não estaria associado à conduta concreta que se condena, mas ao agente que a praticou;
CCXXI.–Pelo que, a opção legal vertida nos preceitos em exame colide com as exigências basilares de um Estado de Direito Democrático, que pressupõe uma ideia de respeito pela dignidade da pessoa humana e de proteção da confiança, no sentido de segurança, certeza e previsibilidade da ordem jurídica, consubstanciando, por isso, uma violação do artº. 2.º da CRP, norma que vem conferir dignidade constitucional a um padrão de ordenação baseado no Estado de Direito Democrático;
CCXXII.–E, não se diga que aqueles critérios se estribam no desvalor da conduta no mercado afetado pela infração, tendo por base a relevância expectável da infração na capacidade económica da infratora e o peso relativo na infração, pois os critérios fixados nos artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, não têm qualquer tipo de conexão com o suposto desvalor da conduta no mercado ou com a relevância expectável da infração,
CCXXIII.–Pois, desde logo, o exercício económico a ter em conta para efeitos de determinação do limite máximo da coima abstratamente aplicável não corresponde ao do período em que se verificou a infração, mas sim ao ano económico que precede a decisão da AdC,
CCXXIV.–Situação esta que leva à total desconsideração, quer dos efeitos da conduta no mercado, quer das vantagens que o agente possa ter obtido, em resultado do desfasamento temporal entre o momento da prática da infração e o momento da punição;
CCXXV.–Por outro, os critérios os critérios para aferição dos limites máximos da coima abstratamente aplicáveis pela prática das contraordenações previstas no artº. 68º., nº. 1, alíneas a) a g), da LdC, apresentam uma amplitude e indeterminabilidade tais que não permitem aos respetivos destinatários tomar consciência da medida da pena que abstratamente lhes poderá ser aplicada, dado que não é possível que os agentes possam saber, à data da prática dos factos, quais os concretos valores que possam vir a auferir no futuro e que poderão vir a ser utilizados para o cálculo do limite máximo da coima abstratamente aplicável,
CCXXVI.–Sendo, por isso, violador do princípio da natureza temporária, limitada e definida das penas, expressamente previsto no artº. 30º., nº. 1, da CRP;
CCXXVII.–Apesar de o elemento literal do referido preceito constitucional abranger somente as penas privativas ou restritivas da liberdade, é, de acordo com a jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, igualmente aplicável aos processos de contraordenação sempre que, tal como sucede no caso sub judice, tais penas se traduzam numa amputação e restrição, de modo perpétuo ou indefinido, da esfera jurídica das pessoas singulares ou coletivas;
CCXXVIII.–Com efeito, o princípio da tipicidade tem por finalidade possibilitar ao destinatário da norma ter conhecimento do comportamento efetivamente proibido ou imposto, impedindo o legislador de utilizar fórmulas vagas na descrição dos tipos legais de crime ou contraordenação, ou de prever penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto;
CCXXIX.–A aplicação dos critérios legais previstos no artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC impacta também com o princípio da igualdade, na medida em que conduz, para ilícitos valorados identicamente, a molduras abstratas da coima distintas, violando, assim, o disposto no artº 13.º da CRP, na sua modalidade de igualdade na aplicação do direito;
CCXXX.–Não se compreende, por isso, que o legislador venha prescrever diferentes molduras abstratas da coima para a mesma infração, em função do maior ou menor volume de negócios, da maior ou menor remuneração auferida, devendo tais considerações, exclusiva e necessariamente, ser refletidas num exercício de determinação concreta da sanção aplicável, mas nunca na determinação da moldura legal,
CCXXXI.–O princípio da igualdade, previsto no artº. 13º., da CRP, impõe que o legislador fixe uma determinada moldura penal, mais ou menos ampla, igual para todos os casos subsumíveis ao mesmo preceito legal, que deverá refletir o desvalor jurídico associado à conduta sancionada e dentro de cujos limites deve a pena ser fixada, pelo que apenas neste segundo momento poderão ser tidas em conta as circunstâncias atinentes à específica situação do agente, podendo a pena ser aumentada ou reduzida em face das circunstâncias atenuantes e/ou agravantes que no caso se suscitem, por forma a garantir que a pena a determinar seja o reflexo da medida da culpa;
CCXXXII.–De onde facilmente se conclui que os critérios de determinação da pena, fixados nos artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, não são idóneos a refletir o verdadeiro desvalor da conduta sancionada e a assegurar o efetivo cumprimento do princípio da igualdade expressamente previsto no artº. 13º. da CRP;
CCXXXIII.–Para fundamentar a conformidade dos critérios de determinação do montante máximo da coima abstratamente aplicável com o princípio da proporcionalidade, o Tribunal a quo afirma que (i) os juízos de inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da proporcionalidade se encontram reservados para os casos de manifesta excessividade, (ii) a intensidade do princípio da proporcionalidade é menor no direito contraordenacional do que no direito penal, na medida em que no âmbito do processo de contraordenação não se coloca a possibilidade de imposição de penas restritivas da liberdade; e (iii) que o referido critério não se mostra desajustado em face das finalidades prosseguidas em geral pelo legislador no domínio contraordenacional e, em particular, pelas exigências de proteção da concorrência;
CCXXXIV.–Á luz do disposto no artº. 18º., nº. 2, da CRP, o princípio da proporcionalidade comporta três subprincípios distintos: (i) necessidade, (ii) adequação e (iii) racionalidade,
CCXXXV.–Sendo que, no caso sub judice, verifica-se uma situação de manifesta desproporção entre o montante máximo da pena abstratamente aplicável e os objetivos de prevenção geral e especial negativa que o mencionado preceito legal visa alcançar, na medida em que a aplicação de uma coima correspondente a 10% do volume de negócios verificado ou dos rendimentos auferidos é suscetível de colocar em crise o núcleo essencial do direito fundamental restringido, afetando, não só a condição financeira dos visados e a sua respetiva subsistência, como também o desenvolvimento da respetiva atividade comercial;
CCXXXVI.–A garantia do conteúdo essencial consubstancia uma última barreira de defesa dos direitos, liberdades e garantias, delimitando um núcleo que, em caso algum, poderá ser desrespeitado, não sendo, por isso, de aceitar o entendimento sufragado na decisão recorrida, no sentido de que apenas a ameaça de aplicação de uma coima de montante correspondente a 10% do volume de negócio ou do rendimento obtido no ano que precede a decisão da AdC permite garantir o cumprimento das normas de defesa da concorrência e, consequentemente, as exigências de prevenção geral e especial que as mesmas impõem;
CCXXXVII.–Por outro lado, quanto ao argumento da menor intensidade do princípio da proporcionalidade no direito contraordenacional em face do direito penal, dada a impossibilidade de imposição de penas restritivas da liberdade, sempre se dirá que, apesar de o mesmo poder, em abstrato, ser válido no caso das infrações praticadas por pessoas singulares, tal já não se verifica para o caso das pessoas coletivas, que, por natureza, não se encontram sujeitas a medidas privativas da liberdade, sendo as infrações criminais por si praticadas, por intermédio dos seus legais representantes ou de pessoas que ocupem posição de liderança, sancionadas, precisamente, com a afetação do seu património através da necessária convolação das penas de prisão em penas de multa;
CCXXXVIII.–De onde decorre que a aplicação do critério fixado no artº. 69º., nº. 2, da LdC, para determinação do limite máximo da pena abstratamente aplicável por violação das regras da concorrência permite que uma pessoa coletiva possa ser mais gravemente sancionada no âmbito do processo de contraordenação, por violação das regras de concorrência, do que no processo criminal em que, por definição, estão em causa infrações cujo desvalor jurídico é superior e relativamente às quais são mais fortes as exigências de prevenção geral e especial;
CCXXXIX.–Por sua vez, no que ao princípio da legalidade diz respeito, o Tribunal a quo considerou que a moldura da coima abstratamente aplicável ao caso dos autos, por força do disposto no artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, não consubstancia uma pena indeterminável,
CCXL.–Contudo, salvo o devido respeito, é igualmente de concluir pela violação de tal princípio constitucional quando a moldura da pena seja apenas desmesuradamente ampla;
CCXLI.–Na verdade, da aplicação do disposto no artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, resulta, em face dos elementos juntos aos autos, a possibilidade de ser aplicada uma coima máxima à Recorrente Super Bock de € 3,74 a € 39.775.178,80;
CCXLII.–O que exprime a inconstitucionalidade da norma legal, em virtude da amplitude manifestamente exagerada do critério de determinação do montante máximo da coima abstratamente aplicável;
CCXLIII.–Com efeito, com a composição de molduras com margens de tal maneira afastadas, o legislador quase prescinde de realizar a demarcação legal da sanção, refletindo-se, assim, numa sobrevalorização absurda do princípio da culpa em detrimento do princípio da legalidade, verificando-se uma transferência de competências para o aplicador do Direito que prejudica as exigências basilares de previsibilidade nesta matéria, pelo que nenhuma expetativa quanto à sanção aplicável emerge de uma moldura abstrata naqueles termos definida;
CCXLIV.–Nesta conformidade, entendem os Recorrentes que o princípio da legalidade se encontra debilitado, privando-se o agente de qualquer segurança na determinação da sanção e mesmo que assim se não entendesse, sempre a especial configuração das infrações anticoncorrenciais enquanto ilícitos contraordenacionais levaria a concluir pela inadmissibilidade de tais molduras;
CCXLV.–Não basta, para reverter a insegurança detetada, que sobre tão larga moldura se façam incidir os fatores de determinação concreta da medida da coima contidos no artº. 69.º, nº. 1, da LdC;
CCXLVI.–Ainda assim, o Tribunal a quo considerou que, mesmo numa moldura abrangente, a coima máxima abstratamente aplicável é determinável em consequência do volume de negócios efetivamente considerado, mas não basta que exista um critério de determinação da coima máxima abstratamente aplicável assente em critérios objetivos e pré-determinados para que daí se possa concluir, sem mais, pela observância do princípio da legalidade;
CCXLVII.–Pois o princípio da tipicidade pressupõe, por um lado, (i) uma suficiente especificação da infração sancionada, quer se trate de um crime, quer de um ilícito contraordenacional, tornando ilegítimas as definições vagas ou insuscetíveis de delimitação e, por outro, (ii) a inequívoca determinação de qual o tipo de sanção e o quantum que cabe a cada infração,
CCXLVIII.–Assim, radicando o fundamento do princípio da legalidade na segurança jurídica e, em especial, na segurança do indivíduo frente ao Estado, que se traduz no direito de não ser afetado nos seus direitos fundamentais senão na estrita medida exigida por lei à realização dos fins do Estado, mas, também, em motivos de natureza jurídico-política, que pretende atribuir à pena uma função de prevenção geral negativa ou dissuasora,
CCXLIX.–É necessário que no momento da prática da infração, seja possível ao destinatário da norma poder apurar com plena certeza o concreto desvalor associado à conduta sancionada e a medida máxima da pena que lhe poderá vir a ser abstratamente aplicável,
CCL.–O que não se afigura possível através da aplicação dos critérios definidos no artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, uma vez que os referidos normativos legais atendem, para efeitos de determinação da medida da pena a uma situação que, para além de não ter qualquer conexão com a infração em causa, apenas se verificará em momento muito ulterior à sua verificação;
CCLI.–Sendo, por isso, forçoso concluir que os critérios fixados no artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC consubstanciam critérios absolutamente genéricos que não permitem dar resposta às exigências de segurança jurídica e de prevenção geral e especial que no caso se impõem, pois que não permitem que os destinatários das normas possam, à data da prática dos factos, tomar consciência da medida da pena que abstratamente lhes poderá ser aplicada e que, no caso da aqui Recorrente, uma vez mais se diga, varia entre € 3,74 e € 39.775.178,80;
CCLII.–Em face do exposto, a norma em exame – artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC – encontra-se viciada de inconstitucionalidade, ofendendo, designadamente, o princípio da legalidade, acolhido no artº. 29.º, nºs. 1 e 3, e no artº. 30.º, nº. 1, do texto constitucional e o princípio da separação de poderes acolhidos no artº. 111º., nº. 1, mesmo diploma fundamental;
CCLIII.–Deste modo, andou mal o Tribunal a quo, quer ao não declarar a inconstitucionalidade do disposto no artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, quer ao proceder à aplicação ao caso sub judice dos referidos normativos legais, pois que deveria antes ter procedido à aplicação do artº. 17º., do RGCCO, ao caso dos autos, atenta a remissão efetuada pelo artº. 13º., nº. 1, da LdC;
CCLIV.–Sem prescindir de tudo quanto foi supra exposto e, em particular, quanto à licitude da conduta adotada pelos Recorrentes, saliente-se que o Tribunal a quo, apesar de ter reduzido o âmbito geográfico e sectorial da infração em causa nos autos, ainda assim decidiu manter as coimas impostas aos Recorrentes na decisão da AdC, impondo, no caso da Recorrente, uma coima correspondente a 6,03% do volume de negócio relativo ao exercício económico de 2018,
CCLV.–Desconsiderando, por completo, a alteração da matéria de facto dada como provada relativamente àquela que fundamentou a decisão proferida pela AdC, situação que, em qualquer caso, teria sempre de servir como circunstância atenuante, impondo, por isso, a aplicação aos Recorrentes, sempre e em qualquer caso, de coimas muitíssimo mais baixas do que aquelas que foram fixadas na decisão da AdC, o que paradoxalmente não se verificou!
CCLVI.–De entre os critérios legais do artº. 69º., nº. 2, da LdC, o Tribunal a quo apenas teve em conta a presunção legal da gravidade da infração para afetação da concorrência e a sua suposta duração, ignorando, por completo, as circunstâncias atenuantes (i) de diminuição do âmbito geográfico da infração, (ii) de diminuição do âmbito sectorial, (iii) de inexistência de qualquer prova quanto à verificação de quaisquer benefícios para os Recorrentes, (iv) de adopção de medidas quando tomou conhecimento do procedimento de contraordenação em apreço e (v) à inexistência de qualquer prova quanto a uma efetiva distorção da concorrência;
CCLVII.–Na decisão recorrida, o Tribunal a quo deu como provado que, contrariamente ao que decorria da decisão da AdC, a infração não incidiu sobre a totalidade do território nacional, excluindo, assim, as áreas de Lisboa, Porto, Madeira, Coimbra (até 2013) e as Ilhas do Pico e do Faial (desde 2014), sendo algumas daquelas áreas as de maior concentração populacional, com mais visitantes, com mais estabelecimentos abastecidos pela rede de distribuição e com maior poder de compra e níveis de consumo;
CCLVIII.–Na verdade, o Tribunal a quo deveria ter atendido à representatividade populacional das regiões excluídas do âmbito de atuação dos distribuidores e, com base nisso, ter procedido a uma redução muito mais que proporcional da coima a aplicar aos Recorrentes, com base no critério da dimensão do mercado afetado pela infração;
CCLIX.–E, ainda que se pudesse afirmar que a referida prática abrangeu todo o território português – o que, reitere-se, não se verificou –, a mesma nunca seria idónea a afetar o mercado da União Europeia, à luz do artº. 101º., do TFUE, pois que a afetação do atenta a irrelevância do mercado nacional no mercado ibérico e, sobretudo, europeu, pois que conforme reconhece o Tribunal a quo, o mercado nacional representa menos de 2% dos produtos produzidos pelos 28 países da União Europeia – cfr. ponto 135 dos factos provados;
CCLX.–Por isso, inversamente ao que se encontra vertido na decisão recorrida, não se verifica in casu qualquer violação do artº. 101º., nº. 1, alínea a), do TFUE, o que acarreta uma alteração substancial das exigências de prevenção geral negativa que no caso sub judice se fazem sentir, pelo que, também por este motivo, deveria o Tribunal a quo ter procedido à redução das coimas concretamente aplicadas aos Recorrentes;
CCLXI.–Por fim, no que a este específico ponto concerne, não se poderá deixar de salientar que, além da redução do âmbito geográfico (nacional e intracomunitário) da infração, o Tribunal a quo considerou, igualmente, que a infração que vem imputada aos Recorrentes não abrangeu a totalidade dos segmentos que integram o canal on trade,
CCLXII.–Tendo excluído do âmbito da infração os postos de venda e o mercado de cash and carry, reconduzindo, assim, a conduta dos Recorrentes apenas a uma (suposta) (i) imposição de preços (ii) aos distribuidores independentes (iii) do canal HoReCa,
CCLXIII.–Pelo que, o volume de negócio relacionado com a suposta infração é manifestamente inferior ao que foi tido em conta pela AdC aquando da determinação da medida da pena e, consequentemente, ao considerado pelo Tribunal na sua manutenção;
CCLXIV.–Apesar disso, o Tribunal a quo não extraiu daí qualquer consequência quanto ao montante das coimas aplicadas, bastando-se com a sua qualificação de “adequadas”, desconsiderando que o montante das coimas havia sido fixado pela AdC com base em pressupostos factuais diferentes, por mais amplos, na sua extensão;
CCLXV.–O que corresponde a um agravamento da pena, pois, apesar da diminuição dos factos suscetíveis de integrar a conduta contraordenacional e sua respetiva abrangência, o Tribunal a quo mantém o mesmo nível sancionatório, associando, por isso, à prática em causa um desvalor jurídico mais acentuado;
CCLXVI.–Na verdade e em resumo, há a considerar que, por comparação com a condenação pela AdC, não ficou provada (i) a fixação e imposição direta de preços de venda ao público (PVP), indicativamente identificados como mais de 60.000; (ii) o controlo e a monitorização dos preços, tendo os Recorrentes sido absolvidos nesta parte; (iii) a fixação e imposição direta de preços de venda ao público (PVP) nos Cash & Carry, nem o controlo e monitorização dos preços, tendo os Recorrentes sido absolvidos nesta parte, (iv) a fixação unilateral dos objetivos anuais aos distribuidores, (v) nem que a Recorrente Super Bock efectuasse a denúncia de contratos de distribuição como forma de retaliação por tais objetivos não serem cumpridos, tendo ficado antes provado que objetivos eram com os Distribuidores;
CCLXVII.–Ou seja, “caíram”, entre outras, as duas infrações mais graves - pois seriam susceptíveis de afetar diretamente o mercado - e o Tribunal manteve a condenação dos Recorridos nos mesmos termos.
CCLXVIII.–Simplesmente inacreditável.
CCLXIX.–Assim, se já se verificava que a decisão da AdC era violadora do princípio da proporcionalidade, previsto no artº. 18º., nº. 2, da CRP, tal violação é ainda mais evidente na decisão recorrida, porquanto o Tribunal a quo, apesar de partir de pressupostos menos gravosos, mantém a final as coimas aplicadas pela AdC;
CCLXX.–Acresce que relativamente aos benefícios decorrentes da infracção, o Tribunal a quo não logra proceder à sua identificação ou quantificação;
CCLXXI.–Mas afirma a duração da suposta infração e o acatamento generalizado das determinações da Recorrente para, com base nisso e em manifesta contradição, concluir pela existência de vantagens para a Recorrente;
CCLXXII.–Não sendo esta conclusão mais não do que uma mera presunção do Tribunal a quo sem premissas para a retirar, pois que, qualificando a conduta que vem imputada aos Recorrentes como uma infração por objeto, simplesmente se eximiu de analisar os concretos efeitos no mercado;
CCLXXIII.–Pelo que não poderia o Tribunal a quo introduzir o parâmetro em causa para efeitos de determinação da medida da coima a aplicar aos Recorrentes, verificando-se (mais) um erro de julgamento a esse respeito;
CCLXXIV.–Recorrente adotou e fez circular internamente um manual de compliance de procedimentos tendentes a uma postura concorrencial de acordo com as diretrizes legais e regulamentares e, por outro, após 2017, tem vindo a promover diversas ações de formação juntos dos seus colaboradores sobre o domínio do Direito da Concorrência, com o objetivo de consciencializar e fortificar uma cultura interna pró-concorrencial; e
CCLXXV.–Quanto aos Recorrentes JLF e LCM, resulta do ponto 133 dos factos provados que os mesmos foram determinantes para a alteração do modelo de negócio da Recorrente, no que se reporta aos descontos concedidos sobre sell out, não tendo o Tribunal a quo, no entanto, retiradi dos mesmos qualquer efeito para determinação da concreta medida da pena a aplicar e, em particular, para a redução das coimas fixadas na decisão da AdC;
CCLXXVI.–No caso dos autos, resulta, ainda, que, após ter tomado conhecimento da pendência dos presentes autos de contraordenação, a Recorrente Super Bock encetou todos os esforços no sentido de dotar os seus funcionários dos conhecimentos necessários ao escrupuloso cumprimento das normas de direito da concorrência, pretendendo, com isso, garantir a não verificação futura de qualquer prática que, em abstrato, pudesse ser suscetível de ser configurada como violadora das normas de direito da concorrência,
CCLXXVII.–Pelo que não faz sentido a afirmação efetuada pelo Tribunal a quo de que “não resulta dos factos provados que os Recorrentes tenham adotado qualquer comportamento tendente à eliminação das práticas proibidas”, pois que tal afirmação é manifestamente contraditória com a matéria de facto dada como provada e a que supra se fez referência,
CCLXXVIII.–O Tribunal a quo deveria ter concluído que são manifestamente reduzidas as exigências de prevenção especial negativa que se fazem sentir no caso dos autos e, consequentemente, deveria ter procedido à redução das coimas concretamente aplicadas aos Recorrentes;
CCLXXIX.–Não o tendo feito, o Tribunal a quo incorreu num flagrante erro de julgamento, violando o princípio da proporcionalidade expressamente consagrado no artº. 18º., nº. 2, da CRP;
CCLXXX.–Acresce que não se conhecem quaisquer antecedentes contraordenacionais aos Recorrentes, o que apesar de ter sido expressamente salientado pelo Tribunal a quo aquando da análise dos critérios de determinação da medida da coima, não foi corretamente ponderado;
CCLXXXI.–A conduta anterior e posterior do agente assume um papel essencial, razão pela qual o artº. 69º., nº. 1, alínea h), da LdC, impõe a sua análise para efeitos de determinação da concreta medida da pena a aplicar, impondo, por isso, que uma determinada conduta seja mais severamente punida quando se verifique a existência de uma repetição na adoção do comportamento legalmente sancionado e qualificado como ilícito de mera ordenação social, em virtude de se considerar que existe um maior grau de culpa do agente e, igualmente, quando exista um maior risco de reincidência por parte do agente no cometimento da infração concretamente sancionada;
CCLXXXII.–No caso sub judice, o Tribunal a quo, apesar de ter salientado a inexistência de quaisquer antecedentes contraordenacionais dos Recorrentes, ainda assim, manteve as coimas aplicadas na decisão da AdC, desconsiderando que, aquando da prolação da decisão administrativa – e apesar de tal ter sido negado pela Recorrida –, os processos contraordenacionais identificados nos pontos 141 a 143 dos factos provados foram expressamente tidos em conta para efeitos de fixação da coima;
CCLXXXIII.–Deste modo, em face de tal evidência e da impossibilidade de tais processos poderem ser tidos como antecedentes contraordenacionais – dado que não consubstanciam qualquer condenação pela prática de um ilícito contraordenacional –, o Tribunal a quo podia, e devia, em qualquer caso, ter procedido à redução muito substancial das coimas aplicadas aos Recorrentes; mas bastou-se em as considerar “adequadas”, mantendo-as acriticamente;
CCLXXXIV.–Termos em que, o Tribunal a quo, para além de ter violado o disposto no artº. 69º., nº. 1, alínea f), da LdC, violou igualmente os princípios da necessidade, proibição de excesso e proporcionalidade das sanções, expressamente previstos no artº. 18º., nº. 2, da CRP;
CCLXXXV.–Por sua vez, quanto ao grau de participação dos Recorrentes na infração, os concretos pontos da matéria de facto provada em que o Tribunal a quo se apoia para extrair a conclusão, quer quanto ao elevado grau de participação dos Recorrentes na infração, quer quanto à existência de dolo e consequente consciência da ilicitude da conduta, assentam, fundamentalmente, em juízos conclusivos extraídos pelo próprio Tribunal,
CCLXXXVI.–Além destes juízos conclusivos, verifica-se que a matéria de facto provada assenta, de igual modo, numa imputação genérica de fixação de preços e adoção de métodos de retaliação, sem que o Tribunal a quo tenha procedido a uma individualização dos concretos factos imputados ao longo do período em que considerou verificada a infração;
CCLXXXVII.–Estes supostos factos não poderiam, pura e simplesmente, constar da decisão quanto à matéria de facto, pois que consubstanciam afirmações de natureza conclusiva que se inserem na análise das questões jurídicas a decidir, pelo que os mesmos terão de ser considerados como não escritos e, consequentemente, não podem ser objeto de qualquer valoração,
CCLXXXVIII.–Verificando-se, pois, um vício decisório que impossibilita a tomada em consideração dos “factos” elencados nos pontos 73, 74, 82, 84, 87, 104, 105 e 113, 114, 147 e 148 dos factos provados;
CCLXXXIX.–coima de de € 24.000.000,00 aplicada à Recorrente, corresponde a 6,03% do volume total de negócio verificado no ano de 2018, e a uma percentagem de 60,34% da coima máxima abstratamente aplicável, por força do disposto no artº. 69º., nº. 2, da LdC,
CCXC.–Valor este manifestamente superior ao que tem sido aplicado a nível nacional e internacional pela prática de infrações idênticas à que vem imputada aos Recorrentes, como também pela prática de infrações que, por natureza, assumem uma gravidade substancialmente mais elevada do que aquela que está em causa nos presentes autos;
CCXCI.–De onde facilmente se conclui pela manifesta desproporcionalidade da coima em face da experiência verificada, sendo certo que está em causa – nestes autos e naqueloutros – a aplicação de normas de direito comunitário e aplicação de regras nacionais interpretadas conforme o direito comunitário, o que convoca uma harmonização não só das normas, mas também dos procedimentos e das decisões;
CCXCII.–E, no que se refere aos Recorrentes LCM e JLF, as coimas aplicadas pelo Tribunal a quo estão também exageradíssimas;
CCXCIII.–Na verdade, no caso do Recorrente LCM, a condenação abrange um período inferior a 3 anos, pelo que, se tivermos em consideração o valor da remuneração, o tempo da prática e a residualidade da alegada participação na infração, facilmente se conclui pela desproporcionalidade da aplicação de uma coima no valor de € 12.000,00, correspondente a 4,65%, da remuneração anual auferida em 2017,
CCXCIV.–E igual conclusão se terá de extrair relativamente ao Recorrente JLF, a quem foi aplicada uma coima correspondente a € 8.000,00, correspondente a 5,89% do rendimento anual auferido em 2016,
CCXCV.–Ainda para mais se se tiver em atenção que, conforme refere o Tribunal a quo, o Recorrente JLF teve um papel preponderante na alteração das políticas comerciais e, em particular, na alteração dos descontos sobre o sell out.
CCXCVI.–Termos em que, caso o Tribunal a quo venha a considerar verificada uma infração ao disposto nos artº.s 9º., nº. 1, alínea a), da LdC, e ao artº. 101º., nº. 1, alínea a), do TFUE – o que não se concede - sempre as coimas fixadas terão de ser substancialmente reduzidas.
CCXCVII.–que respeita ao conceito de correspondência, inclui a correspondência eletrónica, aberta ou fechada, enviada ou recebida através do computador ou da caixa de correio profissional, sendo inconstitucional o art.º 18.º, n.º 1, alínea c), e o artº. 20.º, n.º 1, ambos da Lei da Concorrência (LdC), o art.º 42.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra Ordenações (RGCO) e o artº. 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretados no sentido de que a proteção constitucional segundo a qual a correspondência eletrónica, aberta ou fechada, enviada ou recebida através do computador ou da caixa de correio profissional, não está protegida pela garantia da inviolabilidade da correspondência, por violação do disposto no artº. 34.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, por violação das garantias do processo criminal aplicáveis a um processo de contraordenação concorrencial consagradas no artº. 32.º da CRP, especialmente no seu n.º 8, por violação do disposto no artº. 12.º, n.º 2, da CRP, por violação do direito de iniciativa económica previsto no artº. 61.º, n.º 1, da CRP, e do direito à propriedade previsto no artº. 62.º da CRP, e, ainda, por violação do artº. 18.º da CRP, inconstitucionalidade que aqui expressamente se argui para todos os efeitos legais; e
Em consequência, a)-deverá ser judicialmente declarado que a prova digital que integra estes autos é prova proibida e, por isso, insuscetível de qualquer valoração processual, em face da inadmissibilidade legal de apreensão de correspondência eletrónica num processo contraordenacional, nos termos do disposto no artº. 42º. do RGCO e no artº. 34º., nº. 4, no artº. 32.º, nºs. 2, 4 e 8, no artº. 18.º e no artº. 26.º, nº. 1, todos da CRP, por apenas se admitir as buscas a correspondência em processo criminal, sendo inconstitucional o disposto no artº. 18º., nº. 1, alínea c), e no artº. 20º. da LdC e no artº. 42º. do RGCO, por violação do artº. 34º., nº. 4, no artº. 32.º, nºs. 2, 4 e 8, no artº. 18.º e no artº. 26.º, nº. 1, todos da CRP, quando interpretado no sentido de permitir a busca a correspondência eletrónica (aberta ou fechada) em processos contraordenacionais; b)-deverá ser declarado que é nulo o despacho do Ministério Público que determinou buscas e apreensões de correspondência nas instalações da Recorrente (ainda que de mensagens de correio eletrónico abertas), que pertencia à competência exclusiva do juiz de instrução criminal, nos termos do disposto nos artºs 179.º, 269.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPP, e do artº 17.º da Lei do Cibercrime, e proibida a prova obtida em resultado desse mesmo ato, nos termos do artº. 42.º, n.º 1, do RGCO, por remissão do artº. 13.º, n.º 1, da Lei da Concorrência e do disposto no artº. 17.º da Lei do Cibercrime, nos artºs. 179.º, n.º 1, e 126.º, n.º 3, 268.º, n.º 1, alínea d), 269.º, n.º 1, alínea d), todos do CPP (todas, disposições da Lei do Cibercrime e do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi artº. 41.º do RGCO), e, ainda, no artº. 34.º, n.ºs 1 e 4 da CRP, sendo inconstitucional o artº. 18.º, n.º 2, e o artº. 20.º da LdC, por violação do artº. 32.º, nº. 4, do artº. 18.º e do artº. 20.º da CRP, quando interpretados no sentido de permitir a busca a correspondência eletrónica (aberta ou fechada) sem prévia autorização de juiz de instrução.
CCXCVIII.–A sentença objecto padece de erros, insuficiências e contradições insanáveis no que concerne à fundamentação de facto acolhida, que se arguem nos termos do disposto no artº. 410.º, nº. 2, do CPP (aplicável ex vi artº. 41.º do RGCO), o que determina o reenvio do processo para novo julgamento pelo tribunal a quo, nos termos dos artºs 426.º e 426.º-A do CPP;
CCXCIX.–O procedimento encontra-se prescrito respeitante a factos cuja verificação anteceda 9 de agosto de 2013, considerando que a infração em causa não constitui uma infração permanente, designadamente, por entender o Tribunal a quo que se trata de uma infração por objeto, violando-se o disposto no artº. 9.º da LdC, 101.º do TFUE e o artº. 25.º, n.º 2, do Regulamento (CE) n.º 1/2003 do Conselho, ou caso assim não se entenda, por se entender verificada alguma das causas de suspensão ou interrupção do prazo legalmente fixado, ao efeito prescritivo produzido decorridos sete anos e meio da prática dos factos, violando-se o disposto no artº. 74.º, n.º 8, da LdC.
CCC.–O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento e, consequentemente, em violação do artº. 9.º da LdC, do 101.º do TFUE e dos artºs. 4.º e 5.º do Regulamento (UE) n.º 330/2010, ao considerar que (i) se verifica uma fixação direta e indireta de preços mínimos e médios mínimos aos distribuidores; (ii) se verifica o elemento do tipo “acordo”; (iii) que a fixação direta e indireta de preços mínimos e médios mínimos aos distribuidores é, per se, uma infração por objeto, não sendo em consequência necessário demonstrar o grau suficiente de nocividade do acordo; e (iv) a infração imputada aos Recorrentes afetaria o comércio entres os Estados Membros da União Europeia.
CCCI.–O Tribunal a quo erra ainda na determinação da medida da coima, considerando que a)-os critérios de determinação da pena, fixados nos artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, não são idóneos a refletir o verdadeiro desvalor da conduta sancionada e a assegurar o efetivo cumprimento do princípio da igualdade expressamente previsto no artº. 13º. da CRP, sendo em consequência a inconstitucional o artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, quanto ao critério de fixação da medida da coima, por violação do disposto no artº. 13º. da CRP; b)-se mostra excessiva a moldura da pena aplicável ao caso dos autos, por força do disposto no artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, violando o princípio da proporcionalidade; c)-a coima prevista no artº. 69º., nºs. 2 e 4, da LdC, é substancialmente indeterminável, encontrando-se viciada de inconstitucionalidade, por ofender, designadamente, o princípio da legalidade, acolhido no artº. 29.º, nºs. 1 e 3, e no artº. 30.º, nº. 1, do texto constitucional e o princípio da separação de poderes acolhidos no artº. 111º., nº. 1, mesmo diploma fundamental, pelo que erro o tribunal a quo, quer ao não declarar a inconstitucionalidade do disposto no artº. 69º., nºs. 2 e 4 da LdC, quer ao proceder à aplicação ao caso sub judice dos referidos normativos legais, devendo antes ter procedido à aplicação do artº. 17º. do RGCCO ao caso dos autos, atenta a remissão efetuada pelo artº. 13º., nº. 1 da LdC; d)-apesar de ter reduzido o âmbito geográfico e sectorial da infração em causa nos autos, ainda assim decidiu manter as coimas impostas aos Recorrentes na decisão da AdC e procedeu a uma errada avaliação da gravidade da infração, em violação do disposto no artº. 69º., nº. 1, da LdC; e)-desconsiderou circunstâncias atenuantes, concretamente (i) o comportamento da Recorrente na eliminação das práticas restritivas, em violação do disposto no artº. 69º., nº. 1, alínea f), da LdC; (ii) a falta de antecedentes por violação das regras da concorrência, em violação do disposto no disposto no artº. 69º., nº. 1, alínea h), da LdC; (iii) a gravidade da infração e o grau de participação dos Recorrentes, em violação do disposto no artº. 69º., nº. 1, alíneas a) e d), da LdC; e (iv) manteve a coima cujo quantum é irrezoavel e desproporcional em face da experiência adquirida em matéria de aplicação de coimas.
Terminam pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão que absolva os Recorrentes ou, caso assim se não entenda, reduza muito substancialmente o valor das coimas aplicadas.
*
Os recorrentes requerem ainda a subida, com o recurso da sentença, do recurso que interpuseram em 24/9/2020 do despacho proferido em 9/9/2020, na parte em que indeferiu o pedido de perícia que haviam deduzido em sede de impugnação judicial, transcrevendo-se aqui o segmento do citado despacho posto em crise:
“- Da requerida perícia pelos Recorrentes, em sede de impugnação judicial:
Os Recorrentes vieram requerer a realização de perícia, cujo objecto indicam como sendo o seguinte:
“Efeitos das alegadas práticas restritivas imputadas à Recorrente, nos mercados relevantes considerados pela Autoridade da Concorrência, em particular nos mercados das cervejas, das águas com gás e das águas lisas”.
Tanto o Ministério Público, como a Autoridade da Concorrência vieram opor-se à sua realização, considerando o tipo de infracção que é imputada aos Recorrentes, em que se revela despiciendo o apuramento dos efeitos das práticas imputadas aos Recorrentes.
Na verdade, não podemos deixar de estar mais de acordo com o Ministério Público e a Autoridade da Concorrência.
Os Recorrentes vêm acusados da adopção de práticas de restrição da concorrência por objecto, infracção essa prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 9.º do RJC e da al. a) do n.º 1 do artigo 101.º do TFUE.
Ora, porque assim é, averiguação dos efeitos concretos da alegada prática no mercado mostra-se totalmente supérflua e irrelevante, ou seja, bastará a comprovação do objecto ou objectivo anticoncorrencial para que o alegado acordo deva ser invalidado, o que torna despicienda a análise dos seus efeitos na estrutura concorrencial do mercado, estando-se perante meras “infracções de perigo” – vide, neste sentido, Miguel Gorjão Henriques e Catarina Anastácio, in Lei da Concorrência – Comentário Conimbricense, 2.ª Ed., pág. 192 e ss, Almedina.
Decorre do disposto no artigo n.º 1 do artigo 476.º do CPC, ex vi do artigo 4.º do CPP, ex vi do n.º 1 do artigo 41.º do RGCO, ex vi do artigo 83.º do RJC, que a perícia é indeferida sempre que se mostre impertinente, o que é, salvo melhor opinião, o caso.
Decisão:
Assim sendo e em face do exposto, por se considerar que não é relevante nem pertinente para a boa decisão da causa, decido indeferir a realização da prova pericial requerida pelos Recorrentes, em sede de impugnação judicial.
Notifique.”
No requerimento de recurso, os recorrentes arguiram as seguintes nulidades do despacho [transcrição]: (i)-Nulidade por omissão de pronúncia quanto à inconstitucionalidade da restrição por objeto, nos termos disposto na al. al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, exvi artigo 41.ºn.ºRCGO, por remissão do artigo 66.º da LdC; (ii)-Nulidade por omissão de pronúncia quanto à necessidade de demonstração da existência de um grau suficiente de nocividade do acordo e de um caráter sensível da restrição à concorrência, nos termos disposto na al. al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º n.º RCGO, por remissão do artigo 66.º da LdC; (iii)-Nulidade por indeferimento da perícia, nos termos do disposto no n.º 1 e al. d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal, por se reputar de essencial para a descoberta da verdade, ex vi artigo 41.º n.º RCGO, por remissão do artigo 66.º da LdC;
E apresentaram as seguintes conclusões [transcrição]:
I.– ENQUADRAMENTO:
1.–No Recurso Judicial da decisão final condenatória adotada pela Autoridade da Concorrência com vista a demonstrar a falta de fundamento, quer da conclusão final de que foi praticada, pela Recorrente SBB, uma infração prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 9.º do RJC e da al. a) do n.º 1 do artigo 101.º do TFUE (tendo alegadamente os demais Recorrentes participado na mesma), quer das conclusões intermédias que determinaram aquela conclusão, designadamente o alegado (i.) alinhamento ou estabilidade dos preços de retalho ao longo do tempo; (ii.) alinhamento de preços entre áreas geográficas ou (iii.) alinhamento de preços entre canais de venda, a Recorrente solicitou um estudo de mercado – junto com o seu Recurso Judicial como DOC n.º 7, junto com o Recurso judicial da Decisão Final condenatória.
Tendo em consideração a tecnicidade do estudo elaborado e, principalmente, para que não se suscitassem dúvidas quanto à (im)parcialidade do estudo realizado e à adequação das conclusões extraídas, a Recorrente requereu, no Recurso Judicial da Decisão Final, uma perícia que permitisse analisar e (eventualmente) confirmar as conclusões do referido estudo. 2.–No seu Recurso Judicial os Recorrentes, a respeito da condenação por objeto, suscitaram: a.-A inconstitucionalidade da possibilidade da condenação por objeto (nos termos alegados pelos Recorrentes), isto é, a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 9.º da LdC quando interpretada no sentido em que não é pressuposto da aplicação da pena, a prova do dano (dos efeitos da conduta), por violação do princípio da culpa (artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2 do 25.º, 26.º e 27.º da CRP e artigo 40.º CP, aplicável ex vi artigo 32.º do RGCO), do princípio da presunção de inocência (n.º 2 do artigo 32.º da CRP), do princípio da ofensividade e do princípio da necessidade;
Ainda que assim não se entendesse, b.-Na esteira das muito recentes Conclusões do Advogado-Geral General Bobek, no Processon.º C-228/18,BudapestBank, de 05.09.2019 (quejáapós aapresentação do Recurso Judicial da Decisão Final condenatória, vieram a ser subscritas pelo TJUE, no Acórdão proferido naqueles autos, de 20.04.2020 – cf., designadamente,o §37 e o §54) e, entre outros, dos Acórdãos T-Mobile e GlaxoSmithKline Services e o./ Comissão, ou a análise do teor do acordo indica “um grau suficiente de nocividade em relação à concorrência” ou, caso contrário, “há que examinar então os seus efeitos e, para que possa ser objeto de proibição, exigir a reunião dos elementos que demonstrem que o jogo da concorrência foi, de facto, impedido, restringido ou falseado de forma apreciável”28, sendo que, a dúvida de que a conduta em causa terá “any special features29” que a tornem numa “exception to the experience-based rule30” será suficiente para se passar a uma análise dos efeitos da conduta no mercado, sendo que na sua decisão a AdC não se pronuncia sobre o grau de nocividade do acordo; c.-Acresce que a AdC não analisou, como lhe incumbia, o eventual grau de nocividade do acordo, por forma a verificar se a conduta se enquadra nas situações admitidas como legais, pelo n.º 3 do artigo 3.º da LdC e n.º 3 do artigo 101.º do TFUE. 3.–Já no despacho, datado de 09.09.2020, o TCRS vem indeferir a perícia requerida, por, tomando como objeto da perícia os “Efeitos das alegadas práticas restritivas imputadas à Recorrente nos mercados relevantes considerados pela Autoridade da Concorrência, em particular nos mercados das cervejas, das águas com gás e das águas lisas”, considerar que de como os Recorrentes “vêm acusados da adopção de práticas de restrição da concorrência por objecto, infracção essa prevista na al. a) do n.º 1 do artigo 9.º do RJC e da al. a) do n.º 1 do artigo 101.º do TFUE”, a “averiguação dos efeitos concretos da alegada prática no mercado mostra-se totalmente supérflua e irrelevante, ou seja, bastará a comprovação do objecto ou objectivo anticoncorrencial para que o alegado acordo deva ser invalidado, o que torna despicienda a análise dos seus efeitos na estrutura concorrencial do mercado”.
Ou seja, para não admitir a perícia requerida, o TCRS decide a final uma das questões controvertidas, isto é, que no caso concreto estamos perante uma restrição por objeto, sendo, na douta opinião do Tribunal, irrelevante a averiguação dos efeitos – isto sem prejuízo do que se dirá a respeito do indeferimento da prova pericial com fundamento numa questão de direito (substantiva). 4.–Ora, não podem os Recorrentes conformar-se, quer com a douta decisão que adota quanto ao facto de estarmos perante uma restrição por objeto, quer quanto ao indeferimento da perícia requerida com esse fundamento e, bem assim, com a delimitação do objeto da perícia que identifica no despacho, pelo que errou o Tribunal, como melhor se demonstrará;
Ao que acresce, o facto de ter decidido a final a questão da restrição por objeto, sem se ter pronunciado sobre a inconstitucionalidade da restrição por objeto, o que constitui uma omissão de pronúncia.
E nem se diga a este respeito de que o TCRS não decidiu a final a questão da restrição por objeto, pois essa decisão é causa, daquela consequência (indeferimento da perícia), isto é, o Tribunal conclui que não existe fundamento para a realização da perícia, porque estamos perante uma restrição por objeto.
Com efeito, sendo a questão da restrição por objeto uma questão controvertida, só uma estabilização da instância relativamente à referida questão permite ao Tribunal indeferir a perícia com esse fundamento.
II.– NULIDADES DO DESPACHO
A.–DA NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA – DA NÃO PRONÚNCIA QUANTO À INCONSTITUCIONALIDADE DA RESTRIÇÃO POR OBJETO 5.–O despacho que decide que estamos perante uma restrição por objeto é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no al. al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º n.º RCGO, por remissão do artigo 66.º da LdC, por não se pronunciar quanto à inconstitucionalidade da admissibilidade da condenação por objeto (nos termos alegados pelos Recorrentes), isto é, a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 9.º da LdC quando interpretada no sentido em que não é pressuposto da aplicação da pena, a prova do dano (dos efeitos da conduta), por violação do princípio da culpa (artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2 do 25.º, 26.º e 27.º da CRP e artigo 40.º CP, aplicável ex vi artigo 32.º do RGCO), do princípio da presunção de inocência (n.º 2 do artigo 32.º da CRP), do princípio da ofensividade e do princípio da necessidade.
B.–DA NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA – DA FALTA DE PRONÚNCIA QUANTO AO GRAU SUFICIENTE DE NOCIVIDADE DO ACORDO E DO CARÁTER SENSÍVEL DA RESTRIÇÃO À CONCORRÊNCIA 6.–No Recurso Judicial da Decisão Final condenatória adotada pela AdC, os Recorrentes invocam (artigos 2815 a 2917) que não está demonstrado o grau suficiente de nocividade do acordo e do caráter sensível da restrição à concorrência – que mesmo que viesse a improceder a arguida inconstitucionalidade quanto à restrição por objeto –, o que determinaria que a restrição tivesse de ser analisada pelos seus efeitos. 7.–Ora, o Tribunal decidindo pela aplicabilidade da restrição por objeto ao caso concreto, não analisa a questão da falta de demonstração pela AdC do grau suficiente de nocividade do acordo e do caráter sensível da restrição à concorrência, decidindo que “bastará a comprovação do objecto ou objectivo anticoncorrencial para que o alegado acordo deva ser invalidado”, (i.) sem concluir se em concreto existe um objetivo anticoncorrencial – embora o admita como relevante para o efeito – e (ii.) sem evidenciar a necessidade de análise do teor do acordo e do seu contexto jurídico e económico e, consequentemente, a respetiva verificação. 8.–Nestes termos, o despacho que decide que se está, nos presentes autos, perante uma restrição por objeto é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no al. al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º n.º RCGO, por remissão do artigo 66.º da LdC, por não se pronunciar sobre a existência de um grau suficiente de nocividade do acordo e do caráter sensível da restrição à concorrência conforme suscitado no Recurso Judicial.
C.–DA NULIDADE DO INDEFERIMENTO DA PROVA PERICIAL 9.–Acresce que, com o devido respeito que é muito, entendem os Recorrentes que é nula a decisão de indeferimento da perícia requerida, nos termos do disposto no artigo do disposto no n.º 1 e al. d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal, por se reputar de essencial para a descoberta da verdade, ex vi artigo 41.º n.º RCGO, por remissão do artigo 66.º da LdC, não tendo subjacentes os fundamentos legalmente previstos para o seu indeferimento, considerando que, na determinação do objeto, o Tribunal considera que a perícia tem como objeto os “Efeitos das alegadas práticas restritivas imputadas à Recorrente nos mercados relevantes considerados pela
Autoridade da Concorrência, em particular nos mercados das cervejas, das águas com gás e das águas lisas”, olvidando na esteira do que se decidiu no acórdão do TRL, de 24.09.2019, proferido no processo n.º 2009/17.6T8OER-C.L1-7, o objeto da perícia “é determinado pelas concretas questões de facto que a parte requerente da perícia pretende ver esclarecidas.”, sendo que as questões de facto que a aqui Recorrente pretende ver esclarecidas não sedelimitamao introito transcrito no despacho proferido pelo Tribunal, conforme se transcreveu e consta do Recurso Judicial da Decisão Final adotada pela AdC. 10.–Ademais, a perícia requerida apenas poderia ter sido indeferida no seu caráter impertinente ou dilatório, o que deverá ser aferido, conforme se decide no Acórdão do TRL supra citado, nos seguintes termos:
“- é impertinente, por não respeitar aos factos da causa; ou,
- é dilatória, por, não obstante respeitar aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.” (realce nosso)
Analisando o Recurso Judicial, com evidência se verifica que a perícia requerida não é impertinente porque respeita aos factos da causa, desde logo, sem exclusão de outros, aqueles articulados nos artigos 940 a 1092, 1883 a 1888, 2241 a 2286, 2448 e 2449, 2643 a 2674, 2716, 2908 a 2911, 3098 a 3121, 3272 a 3275, 3425 a 3426, 3428 a 3429, 3510 e 3511, permitindo demonstrar (reitera-se, sem exclusão) que não existe alinhamento de preços, contrariamente ao que a AdC assume na decisão final, que se verificam os pressupostos do artigo 10.º da LdC e n.º 3 do artigo 101.º do TFUE e, bem assim, ainda que final se venha a considerar que os Recorrentes praticaram /participaram nas infrações de que vêm condenados, o que não se consente, mas se dmite por dever de patrocínio, demonstrar a desproporcionalidade da coima aplicada, pois para a determinação da mesma é sempre importante – rectius, imprescindível – o facto da produção dos efeitos no mercado.
Do mesmo modo, se conclui que não é dilatória, na medida em que a sua análise pressupõe conhecimentos especiais (para não dizer, especialíssimos), não sendo suscetíveis de serem verificados numa análise empírica, ou não técnico-científica. 11.–Ora, por tudo quanto antecedentemente exposto, a realização da prova pericial requerida mostrando-se essencial para a descoberta da verdade, não é, contrariamente ao decidido, impertinente, permitindo, designadamente, para provado alegado nos artigos 940 a 1092, 1883 a 1888, 2241 a 2286, 2448 e 2449, 2643 a 2674, 2716, 2908 a 2911, 3098 a 3121, 3272 a 3275, 3425 a 3426, 3428 a 3429, 3510 e 3511 do Recurso da Decisão Final condenatória, demonstrando que não existe alinhamento de preços, contrariamente ao que a AdC assume na decisão final, que se verificam os pressupostos do artigo 10.º da LdC e n.º 3 do artigo 101.º do TFUE e, bem assim, ainda que a final se venha a considerar que os Recorrentes praticaram/participaram nas infrações de que vêm condenados, o que não se consente, mas se admite por dever de patrocínio, demonstrar a desproporcionalidade da coima aplicada, pois para a determinação da mesma é sempre imprescindível o facto da produção dos efeitos no mercado. 12.–Acresce que, mais se nos afigura perturbador o arrazoado do despacho – “em que se revela despiciendo o apuramento dos efeitos das práticas imputadas aos Recorrentes”–, na medida em que ignora o contributo decisivo de elementos cuja avaliação se impõe ao Tribunal, para efeitos de determinação da concreta medida da sanção aplicada aos Recorrentes.
Não se olvide, por sinal, que o percurso descrito pela Recorrida quanto a uma tal operação já especificamente salientava que “a AdC incorpora no seu exercício o volume de negócios realizado pela Super Bock diretamente relacionado com a infração e durante o período da mesma, de acordo com os dados fornecidos pela Visada (Cf. capítulo IV.3.4 da presente Decisão), ponderando um referencial entre 0% e 30% desse valor, sempre balizado, de acordo com critérios de proporcionalidade e adequação, pelo limite legal de 10% do volume de negócios total da Visada” (sublinhado nosso) – v. o ponto 1336 da decisão final proferida pela Recorrida AdC.
Por conseguinte, por certo não ignorará o Tribunal que o concreto estabelecimento de um valor no referido quadro referencial – que se estende até ao limiar máximo de 30% do volume de negócios diretamente relacionado com a infração – pressupõe, irrecusavelmente, a consideração dos efeitos (alegadamente) produzidos pela infração.
Assim o prescreve o disposto nas Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.º 2, alínea a), do artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, da Comissão Europeia, nos seus n.ºs 21 e 22.
Identicamente, empregando aliás formulação bem mais impressiva, o disposto no n.º 26 das Linhas de Orientação sobre a Metodologia a utilizar na aplicação de coimas no âmbito do artigo 69.º, n.º 8, da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, da AdC, que, a propósito da fixação do montante de base da coima, referencia o preenchimento do referencial 0%-30% à gravidade da infração, referindo-se “aos seus efeitos sobre a economia”.
E, o que é facto, mais se leve em linha de conta a circunstância de o procedimento ora relatado haver sido especialmente consignado à apreciação do Tribunal – integrando, portanto, o conjunto de questões sobre as quais se reclamaria/reclama o seu melhor juízo –, não tivesse a Recorrente, afinal, expressamente oferecido, os artigos 3425 a 3426 e 3428 a 3429 das suas Alegações de Recurso.
É bom de ver que, contrariamente à conclusão vertida no despacho, o apuramento dos efeitos das práticas imputadas aos Recorrentes é, afinal, notoriamente pertinente – mesmo imperioso –, atenta, designadamente, mas sem limitar, a sua contribuição para um cabal esclarecimento da justeza da sanção concretamente aplicada aos Recorrentes, pelo que a admissibilidade da prova pericial requerida – logrando uma perspetiva mais aturada sobre a existência e alcance de tais efeitos – não encontra, afinal, correspondência nos fundamentos expendidos na decisão de indeferimento da prova pericial requerida. 13.–Em face do exposto, o indeferimento e omissão da prova pericial requerida, que é essencial para a descoberta da verdade, constitui uma nulidade nos termos do disposto no n.º 1 e al. d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal, o que se argui.
III.– DOS ERROS DE JULGAMENTO
A.–DO GRAU SUFICIENTE DE NOCIVIDADE DO ACORDO E DO CARÁTER SENSÍVEL DA RESTRIÇÃO À CONCORRÊNCIA 14.–Não assiste razão ao Tribunal a quo ao decidir que “bastará a comprovação do objecto ou objectivo anticoncorrencial para que o alegado acordo deva ser invalidado, o que torna despicienda a análise dos seus efeitos na estrutura concorrencial do mercado”, pois conforme tiveram os Recorrentes oportunidade de salientar no Recurso Judicial da Decisão Final condenatória adotada pela AdC, além de não estar demonstrado o objetivo anticocorrencial é necessário, para que se possa concluir que se está perante uma restrição por objeto, que se verifiquem todos os (demais) pressupostos de que depende a existência de um grau suficiente de nocividade, isto é, que se faça uma análise do teor do acordo e do seu contexto jurídico e económico.
Ora, sem prejuízo do que já se deixou exposto a respeito da arguição de nulidade poromissão pronúncia, caso se entenda que não se verifica a nulidade arguida e, em consequência, que o Tribunal a quo se pronunciou, reputa-se de errada uma decisão que tenha concluído nos referidos termos (de que estamos perante uma infração por objeto). 15.–Na verdade, no âmbito da análise restrição por objeto/por efeito, a avaliação inicial tem que ir no sentido de ver se o acordo tem por objetivo impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum, sendo que “esse exame deve ser efetuado à luz do conteúdo do acordo e do contexto económico em que se inscreve”31, o que a Recorrida claramente não faz, pelo que errou o Tribunal a quo a decidir que estamos perante uma restrição por objeto. 16.–O que decorre do que vem sendo avançado pela jurisprudência europeia que, “a fim de apreciar se um acordo (…) apresenta um grau suficiente de nocividade para ser considerado uma restrição da concorrência por objetivo na aceção do artigo 81.°, n.° 1 CE, deve atender-se ao teor das suas disposições, aos objetivos que visa atingir, bem como ao contexto económico e jurídico em que o mesmo se insere”32 …bem como “tomar em consideração a natureza dos bens ou dos serviços afetados e as condições reais do funcionamento e da estrutura do mercado ou dos mercados em causa”33 – sublinhado nosso.
Paralelamente, acrescenta o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) “sob pena de dispensar a Comissão do dever de provar os efeitos concretos no mercado de acordos em que não está demonstrado que sejam, pela sua natureza, prejudiciais ao bom funcionamento do jogo normal da concorrência, o conceito de restrição da concorrência «por objetivo» só pode ser aplicado a certos tipos de colusões entre empresas que revelem um grau suficiente de nocividade relativamente à concorrência para que se possa considerar que o exame dos seus efeitos não é necessário”34.
17.–O Tribunal a quo não logrou demonstrar o “o grau suficiente de nocividade”, através de uma análise detalhada do: d.-teor do acordo; e.-dos seus objetivos; e f.-do contexto jurídico e económico – coisa que, impreterivelmente, se exige.
18.–Mais se diga que se reputa de inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 9.º da LdC quando interpretada no sentido em que não é pressuposto da aplicação da pena, a prova do dano (dos efeitos da conduta), por violação do princípio da culpa (artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2 do artigo 25.º, artigos 26.º e 27.º da Constituição da República Portuguesa – CRP – e artigo 40.º Código Penal, aplicável ex vi artigo 32.º do Regime Geral das Contraordenações), do princípio da presunção de inocência (n.º 2 do artigo 32.º CRP), do princípio da ofensividade e do princípio da necessidade, conforme decide o Tribunal a quo. 19.–Em face do exposto, errou o Tribunal a quo ao considerar que o único requisito necessário à determinação de uma infração como constituindo uma restrição por objeto, é a demonstração dos seus objetivos e, bem assim, que se devem dar por verificados esses objetivos, no sentido de permitir o respetivo enquadramento da pratica/participação pela qual vêm condenados os Recorrentes se enquadra no âmbito da restrição por objeto, entre outros, violando o disposto no artigo 9.º da LdC e artigo 101.º do TFUE, sendo ainda reputar de inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 9.º da LdC quando interpretada no sentido em que não é pressuposto da aplicação da pena, a prova do dano (dos efeitos da conduta), por violação do princípio da culpa (artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2 do artigo 25.º, artigos 26.º e 27.º da Constituição da República Portuguesa – CRP – e artigo 40.º Código Penal, aplicável ex vi artigo 32.º do Regime Geral das Contraordenações), do princípio da presunção de inocência (n.º 2 do artigo 32.º CRP), do princípio da ofensividade e do princípio da necessidade, conforme decide o Tribunal a quo.
B.–DO INDEFERIMENTO DA PERÍCIA REQUERIDA 20.–Errou ainda o Tribunal a quo ao indeferir a perícia requerida, por considerar que a mesma é impertinente, o que decorre, desde logo, na determinação do objeto da perícia, ao Tribunal considerar que a perícia tem como objeto os “Efeitos das alegadas práticas restritivas imputadas à Recorrente nos mercados relevantes considerados pela Autoridade da Concorrência, em particular nos mercados das cervejas, das águas com gás e das águas lisas”, olvidando na esteira do que se decidiu no acórdão do TRL, de 24.09.2019, proferido no processo n.º 2009/17.6T8OER-C.L1-7, o objeto da perícia “é determinado pelas concretas questões de facto que a parte requerente da perícia pretende ver esclarecidas.”, sendo que as questões de facto que a aqui Recorrente pretende ver esclarecidas não sede limitam ao introito transcrito no despacho proferido pelo Tribunal, conforme se transcreveu e consta do Recurso Judicial da Decisão Final adotada pela AdC.
21.–Ademais, a perícia requerida apenas poderia ter sido indeferida no seu caráter impertinente ou dilatório, o que deverá ser aferido, conforme se decide no Acórdão do TRL supra citado, nos seguintes termos:
- é impertinente, por não respeitar aos factos da causa; ou,
- é dilatória, por, não obstante respeitar aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.” (realce nosso)
Analisando o Recurso Judicial, com evidência se verifica que a perícia requerida não é impertinente porque respeita aos factos da causa, desde logo, sem exclusão de outros, aqueles articulados nos artigos 940 a 1092, 1883 a 1888, 2241 a 2286, 2448 e 2449, 2643 a 2674, 2716, 2908 a 2911, 3098 a 3121, 3272 a 3275, 3425 a 3426, 3428 a 3429, 3510 e 3511, permitindo demonstrar (reitera-se, sem exclusão) que não existe alinhamento de preços, contrariamente ao que a AdC assume na decisão final, que se verificam os pressupostos do artigo 10.º da LdC e n.º 3 do artigo 101.º do TFUE e, bem assim, ainda que a final se venha a considerar que os Recorrentes praticaram/participaram nas infrações de que vêm condenados, o que não se consente, mas se admite por dever de patrocínio, demonstrar a desproporcionalidade da coima aplicada, pois para a determinação da mesma é sempre importante – rectius, imprescindível – o facto da produção dos efeitos no mercado.
Do mesmo modo, se conclui que não é dilatória, na medida em que a sua análise pressupõe conhecimentos especiais (para não dizer, especialíssimos), não sendo suscetíveis de serem verificados numa análise empírica, ou não técnico-científica. 22.–Ora, por tudo quanto antecedentemente exposto, a realização da prova pericial requerida mostrando-se essencial para a descoberta da verdade, não é, contrariamente ao decidido, impertinente, permitindo, designadamente, para provado alegado nos artigos 940 a 1092, 1883 a 1888, 2241 a 2286, 2448 e 2449, 2643 a 2674, 2716, 2908 a 2911, 3098 a 3121, 3272 a 3275, 3425 a 3426, 3428 a 3429, 3510 e 3511 do Recurso da Decisão Final condenatória, demonstrando que não existe alinhamento de preços, contrariamente ao que a AdC assume na decisão final, que se verificam os pressupostos do artigo 10.º da LdC e n.º 3 do artigo 101.º do TFUE e, bem assim, ainda que a final se venha a considerar que os Recorrentes praticaram/participaram nas infrações de que vêm condenados, o que não se consente, mas se admite por dever de patrocínio, demonstrar a desproporcionalidade da coima aplicada, pois para a determinação da mesma é sempre imprescindível o facto da produção dos efeitos no mercado. 23.–Acresce que, mais se nos afigura perturbador o arrazoado na decisão recorrida – “em que se revela despiciendo o apuramento dos efeitos das práticas imputadas aos Recorrentes” –, na medida em que ignora o contributo decisivo de elementos cuja avaliação se impõe ao Tribunal, para efeitos de determinação da concreta medida da sanção aplicada aos Recorrentes.
Não se olvide, por sinal, que o percurso descrito pela Recorrida quanto a uma tal operação já especificamente salientava que “a AdC incorpora no seu exercício o volume de negócios realizado pela Super Bock diretamente relacionado com a infração e durante o período da mesma, de acordo com os dados fornecidos pela Visada (Cf. capítulo IV.3.4 da presente Decisão), ponderando um referencial entre 0% e 30% desse valor, sempre balizado, de acordo com critérios de proporcionalidade e adequação, pelo limite legal de 10% do volume de negócios total da Visada” (sublinhado nosso) – v. o ponto 1336 da decisão final proferida pela Recorrida AdC.
Por conseguinte, por certo não ignorará o Tribunal a quo que o concreto estabelecimento de um valor no referido quadro referencial – que se estende até ao limiar máximo de 30% do volume de negócios diretamente relacionado com a infração – pressupõe, irrecusavelmente, a consideração dos efeitos (alegadamente) produzidos pela infração.
Assim o prescreve o disposto nas Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.º 2, alínea a), do artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, da Comissão Europeia, nos seus n.ºs 21 e 22.
Identicamente, empregando aliás formulação bem mais impressiva, o disposto no n.º 26 das Linhas de Orientação sobre a Metodologia a utilizar na aplicação de coimas no âmbito do artigo 69.º, n.º 8, da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, da AdC, que, a propósito da fixação do montante de base da coima, referencia o preenchimento do referencial 0%-30% à gravidade da infração, referindo-se “aos seus efeitos sobre a economia”.
E, o que é facto, mais se leve em linha de conta a circunstância de o procedimento ora relatado haver sido especialmente consignado à apreciação do Tribunal a quo – integrando, portanto, o conjunto de questões sobre as quais se reclamaria/reclama o seu melhor juízo –,não tivesse a Recorrente, afinal, expressamente oferecido, os artigos 3425 a 3426 e 3428 a 3429 das suas Alegações de Recurso.
É bom de ver que, contrariamente à conclusão vertida na decisão recorrida, o apuramento dos efeitos das práticas imputadas aos Recorrentes é, afinal, notoriamente pertinente – mesmo imperioso –, atenta, designadamente, mas sem limitar, a sua contribuição para um cabal esclarecimento da justeza da sanção concretamente aplicada aos Recorrentes, pelo que a admissibilidade da prova pericial requerida – logrando uma perspetiva mais aturada sobre a existência e alcance de tais efeitos – não encontra, afinal, correspondência nos fundamentos expendidos na decisão de indeferimento de que ora se recorre. 24.–Em face do exposto, erra o Tribunal a quo ao indeferir a perícia por impertinência, entre outros, por violação do disposto no al d) do n.º 2 do artigo 120.º, artigo 151.º, artigo 154.º, todos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º n.º RCGO, por remissão do artigo 66.º da LdC e o n.º 1 do artigo 32 nº 1 da C.R.P.
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Tal recurso foi admitido por despacho proferido em 2/10/2020, com subida diferida, aquando do recurso da decisão final, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Aos recursos interpostos, responderam o Ministério Público e a Autoridade da Concorrência, pugnando pela sua improcedência.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmº Senhor Procurador Geral Adjunto, subscrevendo a fundamentação da resposta do Ministério Público junto da primeira instância, emitiu parecer consonante, no sentido de que o recurso da sentença deve ser julgado improcedente, sendo de manter o decidido no Tribunal a quo.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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II.–QUESTÕES A DECIDIR
O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (cf. artigos 402º, 403º e 412º/1 do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º/1, 123º/2 e 410º/ 2 als. a), b) e c) do Código de Processo Penal).
Estando em causa o recurso de sentença que conheceu de impugnação judicial de uma decisão administrativa proferida em processo de contra-ordenação, importa ainda ter presente o disposto no artigo 75º/1 do D.L. n.º 433/82, de 27/10 (RGCO) ex vi art. 83º do Regime Jurídico da Concorrência (aprovado pela Lei nº 19/2012, de 8 de Maio, doravante RJC), nos termos do qual, em regra e salvo se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito.
Assim, este Tribunal da Relação não pode reapreciar a matéria de facto julgada pelo Tribunal recorrido, sem prejuízo de poder tomar conhecimento das nulidades previstas no artigo 410º/2 do Código de Processo Penal.
Atentas as conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a decidir: A)–Recurso do despacho proferido em 9/9/2020:
- Nulidades e erros de julgamento do despacho de indeferimento da perícia requerida pelos ora recorrentes; B)–Recurso da sentença: 1.-Prescrição do procedimento e qualificação da infracção como permanente; 2.-Nulidade do despacho do Ministério Público que ordenou as buscas às instalações da Super Bock; nulidade da prova constituída pelo correio electrónico apreendido; e inconstitucionalidade do art. 17º da Lei nº 109/2009 (Lei do Cibercrime); 3.-Vícios decorrentes de insuficiências e contradições da fundamentação de facto (art. 410º/2 do CPP); 4.-Erros de julgamento de direito: a)-(in)existência de acordo de fixação directa e/ou indirecta de preços; b)-qualificação da infracção como restrição da concorrência por objecto ou por efeito e necessidade (ou não) de demonstração do grau de nocividade para a concorrência; c)-aplicação ao caso do art. 101º/1 do TFUE; d)-determinação da medida da coima e inconstitucionalidade do art. 69º/2 e 4 do RJC. e)-pedido de reenvio prejudicial (art 267º do TFUE).
Como adiante veremos, a decisão quanto ao pedido de reenvio prejudicial, prejudicará a apreciação, por ora, de várias das questões acima enunciadas em sede de erros de julgamento de direito, sem prejuízo da apreciação das questões prévias (ao pedido de reenvio) supra elencadas nos pontos 1., 2. e 3. *
III.–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A)–FACTOS PROVADOS
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos: I.1- Identificação e caracterização da Super Bock:
1.– A Super Bock é uma sociedade anónima, actualmente com o capital social de € 38.500.000, que tem por objecto a “produção e comercialização de bebidas em geral e outras actividades conexas”; 2.–É detida a 100% pela Super Bock Group, SGPS, S.A., holding do grupo empresarial actualmente detido pela Viacer, SGPS, Lda. (56% do capital social) e pela Carlsberg Breweries A/S (44% do capital social); 3.–A holding Viacer é constituída por dois grupos portugueses: Violas, SGPS, S.A., que detém uma participação de 71,5% e Arsopi - Indústrias Metalúrgicas Arlindo S. Pinho, S.A. que detém 28,5%; 4.–O grupo empresarial Super Bock assume-se como “a maior empresa portuguesa de bebidas refrescantes, com uma estratégia multimarca e multimercado, cuja actividade core assenta nos negócios das cervejas e das águas engarrafadas. [Estando], igualmente, presentes nos segmentos dos refrigerantes, dos vinhos, na produção e comercialização de malte e no negócio do turismo”; 5.– A Super Bock comercializa as marcas de bebidas Super Bock, Carlsberg, Cristal, Cheers, Somersby, Água das Pedras, Vitalis, Melgaço, Caramulo, Vidago, Frutea, Frisumo, Frutis, Guaraná Brasil, Snappy, Vinha de Mazouco, Campo da Vinha, Vinhas das Garças, Porta Nova, Tulipa, Planura, Monte Sacro, Quinta do Minho e Sangria Vini; 6.–A maior parte destas marcas são marcas reconhecidas por qualquer consumidor médio em Portugal, que congregam a preferência de muitos consumidores portugueses e têm visibilidade ao nível internacional; 7.– Por exemplo, em 2008 e em 2016, a Superbrands distinguiu a Super Bock como a marca líder em Portugal e a cerveja nacional mais vendida em todo o mundo; 8.–Em 2013, segundo o estudo realizado pela Marktest, os portugueses elegeram a Super Bock como a marca mais reputada com um índice de notoriedade de 85,44%, liderando o ranking em Word of Mouth (a marca sobre a qual os consumidores ouvem falar de uma forma mais positiva), confiança e imagem; 9.–Em 2016, o Marktest Reputation Index atribuía à Carlsberg o terceiro lugar do ranking na categoria de cervejas, com um índice de notoriedade de 66,96%; 10.–Em 2017, segundo o estudo realizado pela Marktest, a Super Bock voltou a distinguir-se como líder em reputação na categoria de cervejas, com um índice de notoriedade de 78,97%; 11.–Mas também no sector das águas com gás sem sabor, as marcas comercializadas pela Super Bock, designadamente Água das Pedras e Vidago, têm sido distinguidas como marcas com grande visibilidade junto dos consumidores; 12.–A este propósito, o estudo Awareness Index Tracking (A.I.T.) da Marktest, em Fevereiro de 2003 distinguiu a Água das Pedras como a marca de águas com gás com maior notoriedade top of mind, atribuindo o terceiro lugar à Vidago; 13.–A Superbrands também já distinguiu a marca Água das Pedras, como sinónimo de água com gás em Portugal; 14.–O volume de negócios realizado pela Super Bock nos anos de 2016 e 2017 foi, respectivamente, de € 401.381.826 e € 461.170.892; 15.–O volume de negócios realizado pela Super Bock no ano de 2018 foi de € 397.751.788,00; 16.–A diminuição de volume de negócios de 2018 por referência ao ano de 2017 deveu-se significativamente à aplicação da norma internacional de contabilidade IFRS 15 “Rédito de contratos com clientes”, cuja aplicação se iniciou em 2018, estimando a Recorrente que se se expurgasse o efeito da norma referida a redução apenas se situaria em 1,75%;
I.2-Identificação dos Recorrentes singulares: 17.–LCM é vogal do conselho de administração da Super Bock desde 31 de Março de 2014, tendo auferido a remuneração anual de € 258.199,79 no ano de 2015 e a remuneração anual de € 285.861 no ano de 2016; 18.–JLF foi director do departamento comercial da Super Bock para as vendas no canal on-trade desde 4 de Fevereiro de 2013, tendo auferido a remuneração anual de € 135.769,59 no ano de 2016;
I.3- Identificação dos mercados envolvidos: 19.–A empresa Super Bock dedica-se à produção e comercialização de bebidas, designadamente cervejas, águas engarrafadas (lisas e com gás), refrigerantes, iced tea, vinhos, sangrias e sidras, que distribui em Portugal através de dois canais, o canal alimentar (também designado canal “off-trade”) e o canal HoReCa (também designado canal “on-trade”); 20.–Quanto ao canal alimentar (off-trade), correspondente à compra em hipermercados, supermercados, Cash & Carry, Lojas Tradicionais e lojas discount para consumo em casa, a Super Bock implementa a sua política comercial de forma directa, ou seja, a Super Bock fornece directamente um conjunto restrito de clientes, designados “clientes directos” ou “grandes clientes retalhistas”, que tendencialmente exigem negociação directa com a Super Bock devido ao seu volume de compras;
21.–Quanto ao canal HoReCa (on-trade), correspondente à compra em “hotéis, restaurantes e cafés” para consumo fora de casa, a Super Bock recorre maioritariamente a uma rede de distribuidores independentes, que compra os produtos para revenda no território nacional, com excepção das seguintes áreas, por serem áreas abastecidas mediante vendas directas da Recorrente Super Bock:
- de Lisboa (incluindo Amadora e Sintra, até 2017);
- de Porto;
- da Madeira;
- até 2013, de Coimbra; e
- desde 2014, das ilhas do Faial e do Pico, nos Açores; Mercados de bebidas: Dimensão do Produto: 22.–Do ponto de vista do produto, as bebidas cervejas, águas (lisas e com gás), refrigerantes com gás, iced tea, vinhos tranquilos (ou de mesa), sangrias e sidras constituem mercados distintos, na medida em que não são substituíveis na perspectiva da procura; Cervejas: 23.–A cerveja corresponde a uma bebida alcoólica produzida a partir da fermentação de produtos à base de amido, principalmente cereais maltados, como cevada e trigo; 24.–Além destes ingredientes, a água constitui um importante ingrediente para o fabrico da cerveja; 25.–Existe uma grande variação nos tipos de cerveja, sendo que alguns podem conter lúpulo, fermento, temperos, frutas, ervas e outras plantas; Águas lisas sem sabor: 26.–As águas minerais naturais e de nascente engarrafadas são de origem subterrânea; 27.–As suas características de pureza tornam-nas próprias para consumo humano sem que seja necessário nenhum tipo de tratamento químico ou de desinfecção prévio; 28.–Diferenciam-se das águas de distribuição pública, geralmente captadas nos rios e em albufeiras, na medida em que as últimas são sujeitas a tratamentos químicos que visam atribuir-lhes características de potabilidade, facto que origina a presença de resíduos de desinfecção (sabor, cor, odor, entre outros); 29.–Do ponto de vista da procura, as águas minerais naturais e de nascentes engarrafadas e as águas de distribuição pública são percebidas como produtos distintos, atentas as características das águas minerais naturais e de nascentes engarrafadas, nomeadamente as relacionadas com o preço, a composição, a imagem e o gosto; Águas com gás sem sabor: 30.–As águas com gás sem sabor distinguem-se das águas com gás aromatizadas, nomeadamente pelas características intrínsecas à primeira: inodora, insípida, incolor e sem qualquer valor calórico. 31.–Além disso, os preços das águas com gás sem sabor tendem a ser inferiores aos das águas com gás aromatizadas; Refrigerantes com gás: 32.–Os refrigerantes com gás são bebidas não alcoólicas e não fermentadas produzidas a partir de água, açúcar ou edulcorante, concentrados, extractos, aromas e dióxido de carbono (carbonatação), apresentando igualmente diferentes sabores (por exemplo, cola, lima-limão ou outras frutas); Bebidas iced tea: 33.–As bebidas iced tea referem-se a qualquer forma de chá servido fresco; 34.–O formato industrial utiliza diversos tipos de folhas (verde, preto e branco) e habitualmente é misturado com outros sabores (limão, lima, maracujá, pêssego, laranja, cereja, etc.); 35.–Grande parte das bebidas iced tea são adoçadas artificialmente com xaropes de milho e açúcares; 36.–Atendendo ao diferencial de preço entre os refrigerantes de fruta sem gás e os iced tea, assim como ao facto do marketing associado a estes últimos estar mais orientado para jovens adultos e, ainda, devido à imagem de bebida saudável que se atribui a este tipo de bebidas, entende-se que estes produtos não são substitutos entre si; Vinhos tranquilos (ou de mesa): 37.–O vinho é definido como o produto obtido exclusivamente por fermentação alcoólica, total ou parcial, de uvas frescas, esmagadas ou não, ou de mostos de uvas, devendo possuir um título alcoométrico igual ou superior a 9% mas não podendo exceder, em princípio, os 15%.; 38.–O vinho espumante resulta da primeira ou segunda fermentação alcoólica e ao qual poderá ser ou não adicionado dióxido de carbono em solução, igual ou superior a 3 bar; 39.–Atentas as características físicas distintas de cada produto e dos diferentes fins/utilizações a que se destinam – os vinhos tranquilos são geralmente utilizados para acompanhamento de refeições enquanto os vinhos espumantes são utilizados em diferentes situações, nomeadamente, festivas –, entende-se que os vinhos tranquilos e os vinhos espumantes não são substitutos; 40.–Existe uma elevada substituibilidade do lado da procura entre vinhos tranquilos das várias origens; Sangrias: 41.–A sangria é um cocktail feito à base de vinho (tinto ou branco), sumo de fruta e açúcar, podendo conter pedaços de frutos, especiarias e ervas aromáticas; 42.–Face, em particular, ao seu teor alcoólico, a sangria distingue-se, do ponto de vista da procura, dos vinhos e de outras bebidas sem álcool; 43.–A Recorrente não comercializa um produto de sangria vendável à unidade, mas apenas um produto em barril designado “vini sangria” (tinta ou branca); 44.–Este produto é habitualmente utlizado pelo cliente para confeccionar a “sangria da casa” em conjunto com outros produtos que não têm necessariamente de ser comercializados pela Recorrente; Sidras: 45.–A sidra é uma bebida obtida através da fermentação alcoólica de maçãs, água e glucose, sendo geralmente apresentada em garrafa, lata, barril ou cascos; 46.–O consumidor não tende a substituir a sidra e a cerveja entre si, se bem que existe semelhança entre os dois produtos em termos de níveis de preço e formas de comercialização; Dimensão Geográfica: 47.–Por força da preferência dos consumidores; da fidelização às marcas nacionais; da necessidade de dispor de uma rede de distribuição e logística que assegure o fornecimento até aos pontos de venda, da tributação e da legislação aplicável, os mercados dos produtos acima identificados possuem dimensão nacional [com excepção de Lisboa (incluindo Amadora e Sintra, até 2017), Porto, Madeira, até 2013 com excepção também de Coimbra e desde 2014, também com excepção das ilhas do Faial e do Pico, por serem áreas abastecidas mediante vendas directas da Recorrente Super Bock]; Canal Alimentar e Canal HoReCa: 48.–O canal alimentar (off-trade) corresponde, grosso modo, ao canal de escoamento de produtos para comercialização em hipermercados, supermercados, lojas de conveniência e outras superfícies equivalentes, para o consumo fora do local de compra, incluindo também cash’s & carrys; 49.–O canal HoReCa (on-trade), que inclui hotéis, restaurantes e cafés, corresponde, grosso modo, ao canal de escoamento de produtos para o consumo no local de compra, apresentando características semelhantes ao pequeno retalho alimentar tradicional ao nível da atomicidade dos estabelecimentos e do contrapoder negocial pouco significativo, sendo ambos abastecidos maioritariamente através de redes de distribuidores independentes e redes grossistas, como os cash and carry; 50.–Da análise da substituibilidade entre os canais alimentar e HoReCa, entende-se que os mesmos não são substitutos entre si, atenta a diferenciação ao nível das respectivas estruturas da procura, os níveis de preços praticados no retalho ‒ mais elevados no canal HoReCa ‒ e variações nas margens, bem como a rede de distribuição utilizada e a existência de dimensões e tipos distintos de algumas embalagens, consoante o canal a que se destinam;
Posição da Super Bock nos mercados nacionais das cervejas, das águas lisas sem sabor, das águas com gás sem sabor, dos refrigerantes com gás, das bebidas iced tea, dos vinhos tranquilos, das sangrias e das sidras no canal HORECA: 51.–O volume de negócios realizado pela Super Bock nos mercados nacionais das cervejas, das águas lisas sem sabor, das águas com gás sem sabor, dos refrigerantes com gás, das bebidas iced tea, dos vinhos tranquilos, das sangrias e das sidras no canal HORECA (incluindo vendas directas e vendas através da Rede de Distribuidores), entre 2007 e 2017, foi o seguinte:
Tabela 1: volume de negócios realizado pela Visada Super Bock nos mercados identificados
52.–Relativamente ao ano de 2006, o volume de negócios realizado nos mercados identificados não terá sido significativamente diferente do apresentado para o ano de 2007;
53.–As percentagens relativas ao volume de negócios realizado pela Super Bock em cada um dos mercados identificados no contexto do seu volume de negócios total no conjunto dos mercados identificados são os seguintes:
Tabela 2: percentagens relativas ao volume de negócios realizado pela Visada Super Bock em cada um dos mercados identificados no contexto do seu volume de negócios total no conjunto dos mercados identificados
54.–As vendas realizadas pela Super Bock nos mercados identificados na presente Decisão nos anos de 2006 a 2017 correspondam às quotas de mercado a seguir indicadas nas Tabelas 3 a 9 infra:
Tabela 3: Estimativa das quotas da Visada Super Bock no mercado nacional das cervejas, nos anos de 2006 a 2017
Tabela 4: Estimativa das quotas da Visada Super Bock no mercado nacional das águas lisas sem sabor, nos anos de 2006 a 2017
Tabela 5: Estimativa das quotas da Visada Super Bock no mercado nacional das águas com gás sem sabor, nos anos de 2006 a 2017
Tabela 6: Estimativa das quotas da Visada Super Bock no mercado nacional dos refrigerantes com gás, nos anos de 2006 a 2017
Tabela 7: Estimativa das quotas da Visada Super Bock no mercado nacional das bebidas iced tea, nos anos de 2006 a 2017
Tabela 8: Estimativa das quotas da Visada Super Bock no
mercado nacional dos vinhos tranquilos, nos anos de 2006 a 2017
Tabela 9: Estimativa das quotas da Visada Super Bock no mercado nacional das sidras, nos anos de 2006 a 2017
55.–Para os mercados das cervejas, águas lisas sem sabor e águas com gás sem sabor nos anos de 2006 a 2008 (inclusive), para o mercado dos refrigerantes e iced tea nos anos de 2006 a 2015 (inclusive), para o mercado dos vinhos tranquilos nos anos de 2006 a 2014 (inclusive) e para o mercado das sidras nos anos de 2011 a 2014 (inclusive), as respectivas quotas de mercado não foram significativamente diferentes às apresentadas para os restantes anos, respectivamente, para cada mercado identificado, com excepção das quotas no mercado dos refrigerantes, que poderão ter sido superiores, embora tal não tenha sido concretamente apurado; 56.–Quanto ao mercado nacional das sangrias, a quota neste mercado da Super Bock foi inferior a 5% desde o início da comercialização por si de “vini sangria” tinta em 2010 e de “vini sangria” branca em 2014; 57.–A informação apresentada nas Tabelas 3 a 9 supra inclui elementos do canal cash and carry;
58.–O volume de negócios realizado pela Visada Super Bock nos mercados identificados, expurgado dos montantes relativos às vendas directas foi o seguinte:
Tabela 10: volume de negócios realizado pela Visada Super Bock nos mercados identificados, expurgado dos montantes relativos às vendas directas
59.–O montante das vendas totais da Recorrente aos seguintes distribuidores que operavam nas seguintes áreas para o canal HORECA, no período entre 15.05.2006 e 23.01.2017, totalizou € 136.883.515,00:
- JMSR: área dividida pela Refrescante e Sotarvil;
- Refrescante: Almeida; Belmonte; Celorico da Beira; Covilhã; Figueira De Castelo Rodrigo; Fornos de Algodres; Fundão; Gouveia; Guarda; Manteigas; Pinhel; Sabugal; Trancoso.
- Sotarvil: Castro Daire; Mangualde; Oliveira De Frades; Penalva Do Castelo; Santa Comba Dão; São Pedro do Sul; Sátão; Tábua; Tondela; Vila Nova De Paiva; Viseu; Vouzela.
- Cerdilima (1): Barcelos; Ponte de Lima.
- FF: integrado 100% Dibinorte
- JS: Barcelos
- Ribacer: Almeirim; Alpiarça; Benavente; Cartaxo; Rio Maior; Salvaterra de Magos; Santarém.
- SoSousas: Madeira e Porto Santo;
- Suminho: Amares; Braga; Guimarães;
-Teles: Alandroal; Évora; Montemor-o-Novo; Mourão; Portel; Redondo; Reguengos de Monsaraz; Vendas Novas; Viana do Alentejo; Vila Viçosa.
-Vidis C (Coimbra): Anadia; Cantanhede; Coimbra; Condeixa-a-Nova; Mealhada; Oliveira do Bairro.
- DSB CER / DSB Alcanena; Chamusca; Entroncamento; Golegã; Torres Novas.
- Bastos & Bastos: Aveiro; Ílhavo; Vagos;
- F. Gomes: Arcos de Valdevez; Melgaço; Monção; Paredes de Coura; Ponte da Barca; Valença; Vila Nova de Cerveira.
- Rota do Lis: Batalha; Leiria; Marinha Grande; Porto de Mós.
- Segorbe, Ferreira & Mesquita: Ferreira do Zêzere; Tomar; Vila Nova da Barquinha; Vila Nova de Ourém.
-FGP: Alcobaça; Alenquer; Arruda dos Vinhos; Azambuja; Bombarral; Cadaval; Lourinhã; Mafra; Nazaré; Peniche; Sobral de Monte Agraço; Torres Vedras; Vila Franca de Xira
- JF: Guimarães; Póvoa de Lanhoso; Terras de Bouro; Vieira do Minho.
- Besul: Alcochete; Almada; Barreiro; Moita; Montijo; Palmela; Seixal; Sesimbra; Setúbal.
- Cerdisa (1): Felgueiras; Lousada; Paços de Ferreira; Paredes; Penafiel; Vizela.
- Teófilo: Albufeira; Lagoa; Monchique; Silves.
(1) A Cerdilima e a Cerdisa consideram-se o mesmo distribuidor.
- Outras características do mercado aludidas na impugnação judicial: 60.–O mercado cervejeiro em Portugal está assente, primordialmente, em quatro empresas, concretamente:
- SuperBock Bedidas, S.A. (comercializa as marcas Super Bock, Cristal, Carlsberg, Cheers e Marina);
- SCC – Sociedade Central de Cervejas e Bebidas, S.A. (comercializa as marcas Sagres, Imperial, Heineken e Cergal);
- SUMOL/COMPAL, S.A. (comercializa a marca Tagus e a Estrella Damm);
- Font Salem – Companhia de Indústria de Bebidas e Alimentação, S.A. (comercializa a marca Cintra, em exclusivo para uma central de Cash&Carry da Unimark). 61.–Não obstante o mercado principal em que estas empresas actuam seja o cervejeiro, as mesmas comercializam outras bebidas além de cerveja, como por exemplo água engarrafada, refrigerantes, sumos, vinhos e café; 62.–Em termos de quotas de mercado, a Recorrente e a SCC, conjuntamente, representam, grosso modo, cerca de 90% do mercado nacional da cerveja; 63.–Sabendo que o sector cervejeiro português apresenta uma estrutura de mercado Duopolista, é possível afirmar que cada empresa toma as suas decisões, relativamente às variáveis estratégicas que controla [como preços, quantidades, marketing (planeamento do produto, publicidade e distribuição) e I&D (Inovação & Desenvolvimento)], tendo em conta, nomeadamente, as decisões e reacções da rival; 64.–No mercado cervejeiro, a diferença entre os custos dos factores (entendido como o conjunto dos elementos custos, incluindo dos diversos intervenientes na cadeia de produção e/ou cadeia de abastecimento – como o seja, a margem de lucro) e os preços de mercado são reduzidos, sendo um mercado, tendencialmente, de venda em quantidades;
I.4–Comportamentos:
I.4.1-Introdução:
65.–Entre a Super Bock e a sua rede de distribuidores independentes (doravante designados “distribuidores”) existe uma relação comercial, no âmbito da qual estes adquirem àquela um conjunto variado de bebidas, incluindo cervejas, águas engarrafadas, sumos/refrigerantes, sidras e vinhos para, nomeadamente, revenderem ao retalho no canal HoReCa; 66.–As relações comerciais entre a Super Bock e os distribuidores desenvolvem-se com base em contratos de distribuição exclusiva para determinada área geográfica de vendas; 67.–Os distribuidores não têm nenhuma relação de grupo com a Super Bock e, nos termos e para os efeitos dos referidos contratos, são tomadores do risco comercial e financeiro associado à revenda dos produtos em causa e ao negócio de distribuição por si prosseguido; 68.–Estes contratos têm a duração de um ano, com prorrogações iguais e sucessivas, podendo, a qualquer momento, ser cessados por qualquer uma das partes; 69.–No âmbito destes contratos, a Super Bock e os distribuidores negoceiam objectivos de venda para estes distribuidores, para cada ano e para cada grupo de produtos, estando previsto nos contratos de distribuição que caso os mesmos não sejam atingidos, que a Recorrente poderá resolver o contrato de distribuição; 70.–Nos termos dos contratos celebrados, é acordada a atribuição aos distribuidores de um território exclusivo de vendas (tipicamente correspondente a um concelho ou conjunto de freguesias); 71.–Os distribuidores da Super Bock são em número não concretamente apurado, mas que rondará o número de 39, os quais se encontram repartidos geograficamente pelas zonas norte, centro e sul, especificadamente Minho, Trás-os-Montes, Beira Interior, Douro Litoral, Beira Litoral, Algarve, Estremadura e Alentejo + Estremadura Interior, excepto nas concretas áreas acima identificadas onde operam as vendas directas da Recorrente Super Bock; 72.–Às 8 áreas geográficas referidas acresce a área correspondente ao arquipélago da dos Açores, abastecido mediante cinco distribuidores, nos moldes acima mencionados (excepto, desde 2014, as ilhas do Faial e do Pico cujo abastecimento é feito mediante operações directas da Recorrente);
IV.4.2- Fixação e imposição directa dos preços de revenda: 73.–No decurso das relações comerciais estabelecidas entre os distribuidores e a Super Bock, esta tem vindo a fixar e a impor, de forma regular, generalizada (a toda a rede de distribuidores) e sem quaisquer alterações durante o período de, pelo menos, 15 de Maio de 2006 a 23 de Janeiro de 2017, as condições comerciais que aqueles têm obrigatoriamente de cumprir na revenda dos produtos que adquirem à Super Bock, designadamente, os preços que cobram aos seus clientes retalhistas, quer concretamente, quer em termos mínimos, ou em termos mínimos médios; 74.–A Super Bock arroga-se expressamente do direito a fixar tais preços de revenda dos produtos que comercializa, sem que, na prática, seja reconhecida aos distribuidores capacidade para auto-determinação nesta matéria; 75.–A referida prática é implementada pela Super Bock através dos seus colaboradores, internamente designados, consoante o âmbito das funções que ocupam, por Gestores de Rede, Gestores de Área ou Gestores de Mercado; 76.–Os Gestores de Mercado têm por função acompanhar o desenvolvimento do negócio dos distribuidores in loco, ou seja, são presença diária nas instalações dos distribuidores, chegando mesmo a acompanhá-los na visita aos respectivos clientes; 77.–Aos Gestores de Área ou de Rede, superiores hierárquicos daqueles, cabem outras funções específicas, ainda que muito vocacionadas para o contacto directo com os parceiros (incluindo, distribuidores) da Super Bock, alocados em função da área geográfica ou do canal de distribuição em causa; 78.–A maioria das vezes os colaboradores da Visada Super Bock impõem aqueles preços de revenda aos distribuidores de forma oral ou transmitem-nos por escrito, via mensagens de correio electrónico; 79.–Os preços de revenda impostos aos distribuidores são determinados pela Recorrente Super Bock de forma a garantir a manutenção de um nível mínimo de preços, estável e alinhado, em todo o mercado nacional; 80.–O procedimento habitual para a fixação e imposição dos preços de revenda aos distribuidores consiste no seguinte: com uma periodicidade mensal (regra geral), a Direcção de Vendas da Recorrente Super Bock aprova uma tabela de preços mínimos de revenda que depois é encaminhada pelos Gestores de Rede ou Gestores de Mercado da Visada Super Bock aos respectivos distribuidores, muitas vezes com a indicação de que a implementação dos preços é obrigatória, não podendo ser praticados preços inferiores ao mínimo fixado, sob pena do incumprimento ser sinalizado pelos colaboradores da Visada Super Bock responsáveis pela Coordenação e Controlo à Direcção de Vendas que tomará medidas em conformidade; 81.–Há ainda ocasiões em que a Super Bock, reagindo ao reposicionamento de preços pelos seus concorrentes, impõe de forma directa, generalizada e imediata, aos distribuidores novos preços mínimos ou fixos de revenda; 82.–Apesar de existirem casos pontuais em que tal não sucede, os preços de revenda fixados pela Recorrente Super Bock (quer nos moldes supra descritos, quer de forma indirecta, nos moldes que infra se evidenciará) são, generalizadamente, de facto, implementados pelos distribuidores; 83.–Constitui uma prática habitual e generalizada para os colaboradores da Super Bock solicitar expressa e directamente aos distribuidores (em conversa telefónica ou presencial) o respeito pelos preços de revenda indicados pela Super Bock;
IV.4.3- Controlo e monitorização: 84.–A Recorrente Super Bock mantém formas de controlo e monitorização sobre os preços de revenda praticados pelos distribuidores; 85.–O sistema de controlo e monitorização implementado pela Recorrente Super Bock assenta, essencialmente, na imposição aos distribuidores de uma obrigação de reporte de informação relativa à revenda, incluindo quantidade e valores, solicitando-lhes, por exemplo, que enviem periodicamente as facturas das suas vendas e no reporte de incumprimentos pela equipa de Gestores de Rede e Gestores de Mercado e pela equipa de Coordenação e Controlo à Direcção de Vendas;
IV.4.4- Formas de retaliação: 86.–A Recorrente Super Bock intimida os distribuidores com diversas formas de retaliação, como o corte de incentivos financeiros (e.g. descontos comerciais aplicáveis à compra dos produtos pelos distribuidores à Super Bock e reembolso de descontos praticados pelos distribuidores na revenda), de fornecimento e reposição de stocks, como forma de os obrigar a praticar os preços de revenda por si fixados; 87.–A Recorrente chega a cortar efectivamente aos distribuidores o fornecimento de produto e a comparticipação (reposição) dos preços de revenda em caso de incumprimento das condições de transacção aplicáveis à revenda por si fixadas; 88.–De forma a não se encontrarem numa situação de incumprimento, muitas vezes, são os próprios distribuidores a solicitar à Super Bock que indique os preços de revenda, obstando à possibilidade de virem a sofrer retaliações por parte da Recorrente Super Bock, que se lhes apresentam como credíveis; 89.–Os distribuidores queixam-se à Recorrente Super Bock, em vez de praticarem outros preços, quando consideram que os preços de revenda que lhes são impostos não são competitivos ou quando verificam que distribuidores concorrentes estão desalinhados e, portanto, mais lucrativos, obstando à possibilidade de virem a sofrer retaliações daquela;
IV.4.6-Fixação dos preços de revenda por meios indirectos:
90.–De acordo com a Cláusula 2, n.º 1, dos Contratos de Distribuição celebrados entre a Super Bock e os distribuidores, “[o]s Produtos serão vendidos pela UNICER ao distribuidor de harmonia com as tabelas de preços e condições gerais de venda da UNICER que se consideram, para todos os efeitos, elementos integrantes deste contrato”; 91.–Já o n.º 2 da mesma cláusula estipula que “A UNICER poderá alterar, a todo o tempo e por uma ou mais vezes, mediante comunicação dirigida ao DISTRIBUIDOR, as tabelas de preços e as condições gerais de venda referidas no número anterior”; 92.–Está igualmente previsto no n.º 3 que “No prazo de 30 dias a contar da comunicação referida no número anterior, poderá o DISTRIBUIDOR denunciar o contrato por simples comunicação dirigida à UNICER”; 93.–Na prática, porém, as condições de venda são as que se encontram nas facturas, condições essas que são previamente comunicadas aos distribuidores, nomeadamente por mensagens de correio electrónico enviadas por colaboradores da Recorrente Super Bock àqueles; 94.–Desde pelo menos 15 de Maio de 2006 e até pelo menos 23 de Janeiro de 2017, a Recorrente Super Bock fixa condições comerciais aos distribuidores, de forma regular e generalizada, garantindo-lhes margens de distribuição positivas, subordinadas ao cumprimento dos preços mínimos de revenda; 95.–O mecanismo de formação do preço contempla as seguintes operações: 96.–Em primeiro lugar, a Visada Super Bock determina o valor base de produto, que corresponde ao valor base de venda aos distribuidores; 97.–Em segundo lugar, sobre o valor base incidem descontos comerciais em escada (rappel) e/ou outros, aplicáveis na venda aos distribuidores; 98.–Em terceiro lugar, ao valor base acresce, quando aplicável, o IEC – Imposto Especial sobre o Consumo, debitado aos distribuidores; 99.–Em quarto lugar, os colaboradores da Visada Super Bock impõem aos distribuidores os descontos “ciclo”, geralmente numa base mensal, sendo que o montante de referência é geralmente o designado valor base; 100.–Acresce o facto da Super Bock, em alguns casos, conceder (ou impor ao distribuidor que conceda) descontos “extra-ciclo” (EC) ou descontos especiais personalizados para cada tipo de cliente; 101.–A maioria dos descontos extra-ciclo, desde pelo menos, 15 de Maio de 2006 até Fevereiro de 2015, eram concedidos, como sistema, sobre sell out ( ), sendo o seu valor apurado tendo por base os preços praticados pelos distribuidores aos seus clientes do HoReCa, estabelecendo a Recorrente mensalmente os preços mínimos (ainda que, por vezes, em termos médios) a que os distribuidores poderiam vender, que também serviam de limite até ao qual a mesma Recorrente suportaria os descontos “passados aos clientes” dos distribuidores, mediante “reposições”; 102.–Essas reposições eram feitas pela Recorrente mediante notas de crédito; 103.–Após Fevereiro de 2015 e até, pelo menos, 23 de Janeiro de 2017, o sistema de descontos sobre sell out continuou a vigorar para produtos em barril /pressão, concedidos também tendo por base os preços mínimos previamente estabelecidos pela Recorrente, estes contudo, apurados de forma personalizada, em função dos pontos de venda específicos (clientes dos distribuidores), servindo aqueles preços mínimos também de limite até ao qual a mesma Recorrente suportaria os descontos “passados” a esses clientes dos distribuidores, mediante “reposições”; 104.–Sem esses descontos sobre sell out, a margem da distribuição seria, em muitos casos, negativa, o que forçava os distribuidores a cumprir os níveis de preços de revenda impostos pela Recorrente Super Bock; 105.–Os incentivos financeiros traduzidos nos descontos sobre “sell out” concedidos pela Recorrente Super Bock aos distribuidores eram, portanto, essenciais à manutenção da margem de distribuição em níveis positivos; 106.–O consumidor, tradicionalmente, não distingue se o produto que consome à pressão é da Recorrente ou de outra marca, sendo que para os pontos de venda o importante passa a ser apenas o preço que conseguem obter na sua compra, na medida em que o consumidor não valoriza ou distingue as outras características; 107.–A venda do produto de barril não prescinde da intervenção da Recorrente e da sua presença e interacção directamente no ponto de venda, atenta a necessidade de serem fornecidos e mantidos os equipamentos para a extração da cerveja do barril, que são propriedade da Recorrente Super Bock; 108.–Mesmo após Fevereiro de 2015 e até, pelo menos, 23 de Janeiro de 2017, os descontos sobre sell out continuaram a ser realizados pela Recorrente, embora de forma mais pontual, a pedido do distribuidor, relativamente a produtos engarrafados / enlatados, sempre que este precisava dos mesmos para manter um cliente ou captar um novo; 109.–Ainda assim, durante todo o período de 15 de Maio de 2006 até 23 de Janeiro de 2017, a Recorrente, quando o entendia, também impunha e fixava aos distribuidores descontos máximos que estes tinham obrigatoriamente que aplicar aos respectivos clientes, de forma que os distribuidores se viam obrigados a, na prática, respeitar um determinado nível mínimo de preços de revenda, sob pena de terem uma margem de distribuição negativa; 110.–Desde 15 de Maio de 2006 até 23 de Janeiro de 2017 que os descontos máximos e outras condições comerciais são, muitas vezes, prévia e directamente negociadas pela Super Bock com os clientes dos distribuidores (operadores retalhistas); 111.–Por um lado, a Super Bock, em certas ocasiões, aborda directamente os clientes dos distribuidores, com quem contratualiza determinadas condições comerciais para a compra dos produtos, condições essas que posteriormente impõe aos distribuidores para implementação na revenda aos clientes em causa; 112.–No caso de serem os próprios clientes dos distribuidores a exigirem a aplicação de um desconto promocional, ou quando estes pretendam negociar ou renegociar as respectivas condições comerciais, os distribuidores, por sua vez, ou encaminham os mesmos para um comercial da Super Bock, que depois decidirá quais as condições comerciais aplicáveis e/ou em que termos os descontos promocionais serão aplicados pelos distribuidores ou solicitavam os próprios distribuidores autorização à Super Bock para realizar o negócio para esta lhe repor a margem; 113.–O objectivo da Recorrente era garantir a manutenção de um nível mínimo de preços, estável e alinhado, em todo o mercado nacional;
IV.5- Envolvimento dos membros do conselho de administração da Recorrente Super Bock, em especial do Recorrente LCM:
114.–O órgão de administração da Super Bock está directamente envolvido na prática de fixação e imposição de preços de revenda, tendo conhecimento acerca dos factos dados como provados e estabelecendo as directrizes de acordo com as quais os factos que estão em causa nos autos são implementados, verificando-se esse conhecimento e promoção da conduta, ao longo do tempo, designada e especificamente por parte dos membros do conselho de administração JA, LCM, OC e RF ( ); 115.–No período entre 31 de Março de 2014 até 07 de Novembro de 2016, o Recorrente LCM foi vogal do conselho de administração da Super Bock, com o pelouro comercial, tendo conhecimento directo acerca dos factos dados como provados, pelo menos, respeitantes ao período de 1 de Fevereiro de 2015 e 07 de Novembro de 2016; 116.–O Recorrente LCM esteve presente, pelo menos, numa das reuniões, que se realizou em Janeiro de 2015, sobre projectos da Super Bock, entre os quais os projectos “Gestão de Canais” e “Partnership for Growth”; 117.–A reunião em causa consistiu numa reunião onde parte dos membros da administração e da direcção comercial da Super Bock reuniam em contexto de um steering group com o objectivo de trabalhar os referidos projectos, em sede dos quais, designadamente, era definida a política comercial da empresa, o que passava pela definição de preços fixos de revenda de um conjunto de produtos chave e, a partir daí, pela definição da rentabilidade dos distribuidores (“modelo de remuneração dos distribuidores”), onde se decidiu que o desconto em factura do distribuidor reflectia o preço de revenda pretendido pela Recorrente no mercado, descontos que os distribuidores deveriam auferir e sistema de monitorização e controlo para garantir o cumprimento daqueles preços no mercado, não admitindo que o distribuidor possa determinar autonomamente a sua política comercial; 118.–O Recorrente LCM também esteve presente nas reuniões realizadas sobre o mesmo assunto, em Fevereiro e Março 2015, na qualidade de administrador, o qual detinha o controlo da actividade da empresa e desempenhava um papel transversal de direcção, coordenação e supervisão das equipas e respectivos projectos, contribuindo activamente para a definição das directrizes de acordo com as quais a estratégia de fixação dos preços de revenda seria implementada;
119.–Para além disso, o Recorrente era o sponsor dos projectos citados, fazendo parte do steering committee (comité de decisão), juntamente, nomeadamente, com o Recorrente JLF, que aprova todos os aspectos relativos aos projectos, incluindo a definição de preços mínimos de revenda; 120.–O seu conhecimento e participação do Recorrente nos factos dados como provados baliza-se no período que medeia, pelo menos, 1 de Fevereiro de 2015 e 07 de Novembro de 2016; 121.–Não adoptou as medidas adequadas a pôr termo aos comportamentos em causa nestes autos.
IV.6-Envolvimento dos responsáveis pela direcção do departamento comercial da Recorrente Super Bock, em especial do Recorrente JLF:
122.–As funções que, no âmbito da prática em causa nos autos, competiam à Direcção de Vendas Super Bock e que foram sendo identificadas nos factos precedentes eram implementadas pelos directores do departamento comercial da Super Bock para o canal HORECA, verificando-se esse conhecimento e promoção da conduta, ao longo do tempo, designada e especificamente por parte dos seguintes directores dessa área: CC ( ) e JLF, 123.–O Recorrente JLF foi director do departamento comercial da Recorrente Super Bock para as vendas no On Trade desde, pelo menos, 4 de Fevereiro de 2013; 124.–Desde, pelo menos, 7 de Fevereiro de 2013 até, pelo menos, 13 de Janeiro de 2017, que o Recorrente JLF tinha também ele conhecimento directo acerca dos factos em causa nos autos e dados como provados, por referência ao citado período, desempenhando ainda um papel activo na coordenação e supervisão da estratégia de fixação e imposição dos preços de revenda em causa no presente caso, instruindo os gestores de rede a verificar o preço a que os distribuidores devem revender; 125.–Todas as acções comerciais que implicassem alterações aos descontos aplicáveis na revenda e, consequentemente, alterações ao preço fixo de revenda (previamente definido pela Super Bock) eram expressamente autorizadas pela direcção de vendas da Super Bock, em particular, por JLF; 126.–JLF participava na estratégia de fixação e imposição de preços de revenda e modo como se concretizava, também e entre outros aspectos, na coordenação entre as equipas responsáveis pelos vários canais de distribuição, de forma a garantir o nivelamento dos preços praticados pelos distribuidores; 127.–JLF esteve presente nas mesmas reuniões em que esteve LCM, realizadas em Fevereiro e Março de 2015, na qualidade de director do departamento comercial da Super Bock com um papel transversal de coordenação e supervisão das equipas e respectivos projectos, contribuindo activamente para a definição das directrizes de acordo com as quais a estratégia de fixação dos preços de revenda seria implementada; 128.–Ao Recorrente JLF, na qualidade de Director Comercial para as vendas no on-trade, cabiam funções específicas, designadamente de coordenação e supervisão das equipas de vendas e o controlo da actividade comercial neste canal; 129.–Apesar de exercer esta posição de liderança e o controlo da actividade nas áreas em que ocorreram os comportamentos, não adoptou nenhuma medida para lhes pôr termo imediatamente ou deles se distanciar; 130.–Se necessário, o Recorrente JLF contactava os distribuidores com vista a reforçar a posição da Super Bock; 131.–Actualmente, o Recorrente JLF já não trabalha junto da Recorrente Super Bock;
IV.7.- Outros factos:
132.–Os anos de 2006 a 2012 – com especial incidência nos anos de 2006 a 2010 – foram anos financeira e economicamente frágeis e voláteis, não só em virtude da conjuntura económica sofrida na altura (com abalo transversal na estruturas e tecidos de mercado), como também em virtude da ferocidade da pressão concorrencial exercida pela Sociedade Central de Cervejas, resultando num decréscimo de vendas, perda de quota de mercado e problemas financeiros; 133.–Os Recorrentes JLF e LCM foram determinantes para a alteração do modelo de negócio da Recorrente, em Fevereiro de 2015, no que se reporta aos descontos concedidos sobre sell out, nos termos dados acima como provados; 134.–Para além da tendência generalizada dos distribuidores de seguir os preços determinados pela Recorrente, desconhecem-se outros efeitos dos factos imputados aos Recorrentes no mercado, quer junto dos operadores económicos, quer junto dos consumidores; 135.–Relativamente a um cenário económico voltado para a exportação, Portugal não é considerado um dos maiores produtores de cerveja da União Europeia, produzindo menos de 2% da cerveja produzida pelos 28 países da EU; 136.–No período da prática em causa foi lançado pela concorrência um novo produto de sidra “Bandida do Pomar”; 137.–A cerveja Estrella Damm foi conquistada por outros operadores e mercados, como é o caso da concorrente Sumol Compal; 138.–Em data não concretamente apurada mas no ano 2018, a Recorrente adoptou e fez circular internamente um manual de compliance de procedimentos tendentes a uma postura concorrencialmente de acordo com as directrizes legais e regulamentares; 139.–Após 2017, também tem vindo a promover diversas acções de formação junto dos seus colaboradores sobre o domínio do Direito da Concorrência, com o objectivo de consciencializar e fortificar uma cultura interna pró-concorrencial; 140.–Não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais aos Recorrentes singulares; 141.–Por decisão de 18 de Dezembro de 1985, no processo de contra-ordenação n.º 1/85, o Conselho da Concorrência (extinto com a criação da AdC), impôs à então União Cervejeira EP a eliminação de todas as cláusulas que pudessem conduzir à fixação de preços nos contratos de distribuição (mesmo indirectamente, como seja a concessão do abono de frete), e ainda de todas as práticas que indirectamente produzissem esse resultado, como seja a construção de tabelas de preços que pudessem, “por mau entendimento dos agentes”, conduzir à fixação de preços; 142.–Por decisão de 13 de Julho de 2000, no processo de contra-ordenação n.º 2/99, o Conselho da Concorrência condenou a então Unicer – União Cervejeira SA numa coima no valor de cem milhões de escudos (100.000.000$00) por violação da lei da concorrência, considerando que a Super Bock não dera cabal cumprimento à Decisão de 1985 (concluiu-se naquele processo que, relativamente às tabelas de preços e condições de venda, a remuneração do distribuidor fixada em função de um desconto sobre o preço de tabela para os distribuidores eliminava, de forma substancial, a concorrência intramarca formalmente permitida pelos contratos de distribuição), tendo esse procedimento contra-ordenacional sido declarado extinto por prescrição mediante acórdão da Relação de Lisboa, de 28 de Março de 2001; 143.–No processo de contra-ordenação n.º PRC 01/03, o conselho de administração da AdC considerou que se mantinham sérios indícios de cláusulas restritivas da concorrência nos acordos de distribuição da então Unicer – Distribuição de Bebidas, SA e que “ao manter, até muito recentemente, a mesma estrutura formal das tabelas de preços por si praticados, não obstante os compromissos anteriormente assumidos junto do ex-Conselho da Concorrência, no sentido da sua total reestruturação, vinha a potenciar, indiretamente, o seu efeito uniformizador induzindo os distribuidores a alinhar os preços praticados com os seus clientes em função da tabela de preços da empresa”; 144.–O Conselho de administração da AdC viria a ordenar o arquivamento do inquérito na sequência de alterações aos contratos de distribuição propostas pela Visada; 145.–Relativamente ao ano de 2020, o Recorrente LCM apresentou rendimentos em Portugal ilíquidos de trabalho dependente no valor de € 292.576,00 e o Recorrente JLF, em Portugal, apenas rendimentos prediais ilíquidos no valor de € 2.700,00, embora não esteja a residir no território nacional, não tendo comprovado que rendimentos a título de trabalho (dependente ou indepente) aufere actualmente; 146.–A Recorrente Super Bock, por referência ao ano de 2020, apresentou vendas e serviços no valor € 332.960.377,00 e um resultado líquido do período de € 28.701.301,00, empregando 831 trabalhadores;
IV.8- Do elemento subjectivo:
147.–A Recorrente Super Bock agiu de forma livre, voluntária, consciente e intencional, nunca tendo agido, durante o tempo em que a prática em causa durou, no sentido de lhe pôr termo ou de dela se distanciar, antes a prosseguindo, querendo, deliberadamente, criar um entrave à concorrência no mercado e beneficiar das vantagens do seu afastamento; 148.–Actuou com a consciência de que os seus comportamentos consistiam em fixar, de forma directa e indirecta, os preços de revenda praticados por distribuidores independentes e de que esses comportamentos criavam um entrave à concorrência nos mercados afectados, sendo esse o seu objectivo; 149.–Agiu plenamente consciente da censurabilidade da conduta; 150.–A Recorrente Super Bock conhecendo a ilicitude da prática que lhe é imputada, quis implementá-la e quis o seu resultado, mostrando-se insensível às suas consequências, nomeadamente à responsabilidade contra-ordenacional em que poderia vir a incorrer; 151.–Os Recorrente singulares actuaram de forma livre, voluntária, consciente intencional, na prática dos factos em causa.
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B)–FACTOS NÃO PROVADOS
Não se considerou provado que:
I.3-Identificação e caracterização dos mercados envolvidos: 1.–É na totalidade do território nacional que, para o canal HORECA (on-trade), a Super Bock recorre a uma rede de distribuidores independentes, que compra os produtos para revenda, como provado; 2.–Na Madeira, o território é abastecido com os produtos da Recorrente através de distribuidores autónomos; 3.–Nos Açores, os distribuidores constituem agentes da Visada, na medida em que não assumem um risco financeiro e comercial significativo; 4.–Um consumidor fidelizado à “Somersby”, dificilmente transferirá a sua procura para um produto concorrente;
I.4-Comportamentos:
I.4.1- Introdução: 5.–É a Super Bock que fixa unilateralmente os objectivos de venda aos distribuidores; 6.–Para o caso dos distribuidores não cumprirem os objectivos estabelecidos anualmente, os contratos prevêem a possibilidade da Recorrente denunciar o contrato de distribuição; 7.–Os preços mínimos fixados pela Recorrente e comunicados aos distribuidores apenas serviam de patamar até ao qual a Recorrente, mediante descontos sobre sell out, estava disposta a baixar o seu preço de venda aos distribuidores; 8.–A concessão de descontos extra-ciclo apenas tinha o propósito de tornar os distribuidores mais competitivos no mercado;
- Outras características do mercado aludidas na impugnação judicial: 9.–A Recorrente, em sede do mercado cervejeiro, para aumentar os lucros apenas entende como forma mais profícua para atingir esse desiderato o aumento das quotas de mercado, através da diminuição dos preços; 10.–A partir de 2015 deixaram de existir descontos sobre sell out nos produtos engarrafados vendidos pela Recorrente aos distribuidores;
11.–Os factos imputados aos Recorrentes não tiveram quaisquer efeitos no mercado, quer junto dos operadores económicos, quer junto dos consumidores;
IV.4-Formas de retaliação:
12.–A Recorrente Super Bock, como forma de os obrigar a praticar os preços de revenda por si fixados, para além do que ficou provado, também ameaça os distribuidores com a cessação dos contratos de distribuição; 13.–É apenas por medo das retaliações da Recorrente que os distribuidores se queixam à Recorrente Super Bock, quando surgem, como provado, situações em que consideram que os preços de revenda que lhes são impostos não são competitivos ou quando verificam que distribuidores concorrentes estão desalinhados e, portanto, mais lucrativos;
IV.4.5- Fixação e imposição directa do Preço de Venda ao Público:
14.–Desde 15 de Maio de 2006 a 23 de Janeiro de 2017, que a prática de fixação e imposição de preços levada a cabo pela Super Bock visa também os preços de venda ao público, impondo a sua implementação directamente nos pontos de venda, impondo os preços a que operadores retalhistas revendem aos consumidores, com o intuito de garantir um determinado posicionamento do preço ao consumidor “na prateleira” ou “no mercado”, fixando, neste contexto, também aquilo que designa por “preço de venda a retalho” ou “preço de prateleira” ou PVP; 15.–A Recorrente também controla e monitoriza os preços de venda ao público praticados por operadores retalhistas; 16.–Esta imposição do PVP no canal HORECA é assegurada por duas vias: 17.–Por um lado, a Super Bock desloca-se aos pontos de venda para aí negociar os PVP directamente com esses operadores, visitando esses pontos de venda para verificar se o PVP está de acordo com o fixado, para negociar o respectivo alinhamento, incluindo, se necessário for, reforçando a margem do PdV (ponto de venda), no âmbito da definição de estratégia para o posicionamento de determinado produto no mercado; 18.–Por outro lado, sempre que os PVP estejam desalinhados com o nível por si fixado, a Super Bock actua a montante, reposicionando os preços de revenda junto dos distribuidores e de outros canais de distribuição e influenciando o fluxo de stocks que chega ao retalho; 19.–Para os efeitos da fixação e controlo dos PVP, a Super Bock define a estratégia comercial para os produtos que comercializa com base nos resultados do controlo e monitorização que efectivamente exerce sobre os preços no mercado; 20.–Este sistema de controlo e monitorização é assegurado pelo reporte dos seus próprios colaboradores, mas também pelo reporte dos operadores activos nos vários canais de distribuição. 21.–Ao actuarem nos moldes escritos neste item, os Recorrentes agiram de forma livre, voluntária, consciente e intencional, conscientes da censurabilidade da conduta;
IV.4.6-Fixação dos preços de revenda por meios indirectos:
22.–Os colaboradores da Visada Super Bock impõem que os distribuidores implementem os descontos “ciclo” na revenda;
23.–É obrigatório os distribuidores encaminharem os seus próprios clientes quando estes, tal como provado, exigem a aplicação de um desconto promocional, ou quando estes pretendam negociar ou renegociar as respectivas condições comerciais; 24.–A norma é que a Super Bock aborde para todos os produtos directamente os clientes dos distribuidores; 25.–Os descontos sobre sell out, até Fevereiro de 2015, não eram usuais e apenas se destinavam a promoções que duravam determinado período; 26.–A política de descontos sobre sell out era potenciadora apenas de originar preços mais baixos na cadeia de venda e no consumidor;
IV.5- Envolvimento do Recorrente LCM:
27.–O Recorrente tinha conhecimento que a Recorrente Super Bock fixava e impunha preços aos pontos de venda para praticarem junto dos consumidores;
IV.6–Envolvimento do Recorrente JLF, enquanto responsável pela direcção do departamento comercial da Super Bock para o canal HORECA
28.–Todas as acções comerciais que implicassem alterações ao preço de venda ao público obrigatório eram expressamente autorizadas pela direcção de vendas da Super Bock, em particular, por JLF; 29.–O Recorrente tinha conhecimento que a Recorrente Super Bock fixava e impunha preços aos pontos de venda para praticarem junto dos consumidores;
IV.7. Outros factos:
30.–Entre 2006 e 2007, houve um “pico de crescimento” da Sociedade Central de Cervejas e um aumento das vendas das marcas de distribuição e de discount; 31.–A estratégia de actuação das empresas concorrentes da Recorrente e a aposta na sua vocação internacional não mereceu qualquer abrandamento motivado pela actuação da Recorrente; 32.–Foi entre 15 de Maio de 2006 e 23 de Janeiro de 2017 que a Recorrente começou a comercializar vinhos tranquilos; 33.–Com a prática em causa nos autos a Recorrente pretendia que fossem praticados preços mais baixos no mercado, objectivo esse que foi efectivamente conseguido pela Recorrente mediante a concessão de descontos sobre sell out aos distribuidores; 34.–Os Recorrentes não tinham consciência de que os comportamentos que estão em causa nos autos eram proibidos por lei e estavam a praticar condutas desvaliosas à luz do direito, desconhecendo a proibição subjacente às mesmas; 35.–Os preços no mercado, com a conduta da Recorrente, subiram efectivamente; 36.–As condutas em causa nos autos apenas abrangeram os seguintes distribuidores e as áreas onde eles operavam e que se deram como provadas: JMSR; Refrescante; Sotarvil, Cerdilima, FF, JS, Ribacer, SoSousas, Suminho, Teles, Vidis C (Coimbra), DSB CER / DSB, F. Gomes, Rota do Lis, Segorbe, FGP, JF, Besul, Cerdisa e Teófilo; 37.–Após Fevereiro de 2015, os descontos sobre sell out em produtos em barril/pressão são apenas a pedido do distribuidor e totalmente independentes do preço praticado pelos distribuidores junto do ponto de venda.
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Foi ainda consignado na sentença que:
A demais matéria quer constante da acusação, quer alegada pelos Recorrentes que não se compreendeu nem na matéria dada como provada nem na não provada se reporta a matéria considerada pelo tribunal como irrelevante para a boa decisão da causa, (nomeadamente quanto a factos alegados pelos Recorrentes, os mesmos, na sua esmagadora maioria, são factos que apenas consistem numa tese contrária à constante na decisão administrativa, que não importa ser levada à base factual), matéria de direito, de cariz meramente conclusivo ou meras remissões para meios de prova que não relevam para efeitos de subsunção dos factos ao direito.
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IV–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1.–DA PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CONTRAORDENACIONAL
Sob as conclusões LXXXI a CXIV invocaram os recorrentes a prescrição do procedimento contraordenacional, pedindo que sejam declarados prescritos os factos imputados à recorrente com data anterior a Agosto de 2013.
O Ministério Público e a Autoridade da Concorrência defenderam a improcedência deste segmento do recurso.
Cumpre apreciar.
A prescrição do procedimento, enquanto causa extintiva da responsabilidade contraordenacional, designa a extinção do direito do Estado de perseguir contraordenacionalmente o agente da infracção em virtude do decurso de certo período de tempo, sendo justificada por razões de natureza substantiva e processual.
Constitui, antes de mais, questão de conhecimento oficioso que pode ser invocada a todo o tempo, nos termos do disposto nos artigos 417º/6 al. c) do Código de Processo Penal e 652º/ 1 al. f) do Código de Processo Civil.
Na sentença recorrida o tribunal a quo condenou cada um dos recorrentes pela prática de uma contra-ordenação às regras da concorrência, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 19/2012 e da alínea a) do n.º 1 do art. 101º do TFUE, punível com coima, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 68.º da Lei n.º 19/2012, sendo a recorrente Super Bock condenada na coima de €24 000 000,00, o recorrente LCM na coima de €12 000,00 e o recorrente JLF na coima €8 000,00.
Conforme estabelece o art. 74º/1 b) do RJC, tal como definia anteriormente o (revogado) art. 48º/1 b) da anterior Lei nº 18/2003 de 11 de Junho, o prazo de prescrição é de cinco anos.
Os factos pelos quais os recorrentes foram condenados ocorreram no período temporal que medeia entre 15 de Maio de 2006 e 23 de Janeiro de 2017.
Suscita-se a questão de saber em que momento se iniciou a contagem do prazo de prescrição, sendo que o facto se considera praticado no momento em que o agente actuou, ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido (art. 5º do RGCO).
Como estatui o art. 119º/1 do C. Penal aplicável ex vi art. 32º do RGCO e 83º/1 do RJC, o prazo de prescrição do procedimento corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
Por outra banda, o nº 2 do mesmo preceito estabelece que “o prazo de prescrição só corre: a)-Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação; b)-Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto; c)-Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução”.
O Tribunal recorrido entendeu que a contra-ordenação em causa constitui uma infracção permanente.
Contra tal entendimento posicionam-se os recorrentes, sustentando, neste particular e em síntese, que: XCVI.–Para a demonstração de uma infração permanente seria essencial o reconhecimento de uma unidade antijurídica ao longo do período da infração, facto esse irremediavelmente afastado pelas alterações registadas na composição dos órgãos de administração e direção da Recorrente Super Bock, XCVII.–Pois as decisões de estratégia empresarial e comercial, veiculadas através dos respetivos órgãos, correspondem a decisões materialmente promanadas de pessoas integradas na estrutura da Recorrente, exigindo sempre um nexo de imputação pessoal e subjectiva, XCVIII.–Concluindo-se, por isso, em face das diferentes decisões assumidas nos respetivos mandatos e dos distintos programas comerciais implementados no período em que exerceram funções, que a atuação da Recorrente não pode ser perspetivada como se de um rígido e unitário modo de operar no mercado se tratasse, antes assumindo necessariamente diferenças de comportamento ao longo do tempo, cuja equivalência cumpriria demonstrar. XCIX.–O Tribunal a quo, em vez de se analisar em que medida o comportamento alterado, reconhecido pelo tribunal, concorreu ele próprio para a existência de uma conduta infractora, afirma, sem mais, que a alteração manteve a conduta infractora anteriormente caracterizada, mas que se reconhece que não é factualmente a mesma. C.–Por outro lado, mesmo que fosse de considerar perpetrada a infração após 2015, sempre se teria de atentar na circunstância de que a mesma estaria já a ser executada com recurso a instrumentos muito distintos. CI.–Não sendo de todo irrelevante o facto de um agente infrator, mesmo a considerar-se-lhe imputável a prática de uma infração em vários períodos temporais, ter atuado nesses períodos de formas diversas. CII.–É que, se, fruto de uma atuação diversa, o agente vai realizando os elementos do mesmo tipo legal “incriminador”, não há ali logicamente qualquer nexo de permanência, mas apenas de sucessão. CIII.–Dizer o contrário é afirmar que toda a infracção por objecto é permanente, independentemente de o preenchimento do mesmo tipo de infração se haver dado com recurso a uma conduta factual diversa. CIV.–Assim, se o Tribunal a quo considerou ter existido uma reconfiguração factual do modo como seria implementada a fixação de preços de revenda no período posterior a 2015, tal não pode significar, por perfeita falta de identidade com a conduta anterior, uma mesma infração permanente, apenas e somente porque o tipo contraordenacional preenchido seria o mesmo. CV.–Aliás, da decisão recorrida resulta uma adesão à realidade demonstrativa de factos interruptivos de uma alegada uniformidade na execução da infração, como é o caso da manifestação de dissídios na execução da informação comercial tida pelo Tribunal e pela própria Recorrida como ilícita (Linhas 3705 a 3708, 3727 a 3729, 5699 a 5703 e 6569 a 6574); CVI.–Não estamos diante de uma atuação da Recorrente protelada no tempo suscetível de ser qualificada de infração permanente, mas antes diante da imputação de múltiplas infrações instantâneas sucedidas no tempo ou, quando muito, dois conjuntos de infracções instantâneas, antes e depois de 2015. CVII.–Dilucidada esta questão, havendo que reconhecer nos factos imputados à Recorrente um qualquer desiderato de ilicitude, nunca a infração seria legitimamente qualificada de permanente. CVIII.–E tampouco seria de aceitar imputar-se à Recorrente a prática de uma infração continuada, pois a referida categoria jurídica encontra-se deliberadamente ausente da constelação legislativa tida por aplicável ao concreto caso em presença. CIX.–Na verdade, não existe correspondência entre a modalidade continuada da infração contraordenacional e a justificação legal última prevista no artº. 30.º, nº. 2, do CP, podendo-se, quando muito, atribui-lhe a qualificação de persistente ou sucessiva, CX.–Ora, a admitir-se a referida execução protraída no tempo, nos termos defendidos, estaríamos perante, não uma única e indivisível infração, mas sim de um quadro de infrações enquadrável na infração persistente enquanto categoria de Direito - qualificação essa, por sinal, mas sem qualquer fundamentação, flagrantemente irrelevada pelo Tribunal a quo. CXI.–A inevitável parcelarização dos factos carreados implica que sobre os diversos factos isoladamente considerados se faça incidir o instituto da prescrição, CXII.–Pelo que sempre que terão que se considerar prescritos todos os factos anteriores a agosto de 2013, revogando-se a sentença proferida e substituindo-a por decisão que determine a referida prescrição. CXIII.–Se ainda assim não se entender e convergindo no sentido do exposto, sempre existiriam razões para admitir, como sucederia no caso da infração continuada, a prescrição dos atos parcelares, CXIV.–Pelo que sempre estariam prescritos todos os factos imputados à Recorrente com data anterior a agosto de 2013, entendimento cuja admissão se requer seja seguida por este Tribunal, revogando-se a sentença proferida quanto a esses.
A propósito da natureza jurídica da infracção, pode ler-se na sentença recorrida (páginas 432 a 434) que: “Na verdade, está em causa um acordo entre a Recorrente e os distribuidores para o canal HoReCa que teve início, de acordo com os factos provados, pelo menos, em 15 de Maio de 2006. Esse acordo, apesar de não estar escrito, consistia precisamente no facto da Recorrente poder impor preços mínimos, a praticar no mercado por estes, quer de forma directa, quer de forma indirecta. O que se verifica desde, pelo menos, 15 de Maio de 2006 até 23 de Janeiro de 2017 é pura e simplesmente a realização do acordo inicial, em que as partes ostensivamente continuaram a conformar-se e a executar o programa de cooperação que fora delineado no dito acordo inicial, criador de um estado anticoncorrencial. Ora, a execução desse programa inicial restringe, durante todo o tempo em que durar, os bens jurídicos tutelados pelas normas jus concorrenciais e não se exaura num único acto delimitado no tempo coincidente com o início do acordo e muito menos não se exaura com cada acto de cumprimento do mesmo acordo inicial. “Na realidade, os elementos essenciais do desvalor jurídico ligados à tutela do bem jurídico em causa não resultam logo e ‘qua tale’ do acto ou actos isolados de formalização de determinados documentos jurídicos [acrescentamos, nós, ou de acordos tácitos] mas de um todo resultante da inserção dos compromissos constitutivos do acordo entre empresas (…) num certo contexto económico e da sua manutenção num tal contexto, alterando nessa medida o estado e as condições de funcionamento do mercado. Pode até acrescentar-se que uma parte essencial do desvalor jurídico assim produzido resulta especificamente desse duradouro estado alterado de funcionamento do mercado. Ora, é precisamente característico das infracções permanentes que a consumação do facto ilício não se esgota enquanto perdurar a compressão dos bens ou interesses juridicamente tutelados em que a lesão produzida pela conduta inicial se traduziu – no caso das infracções de concorrência em apreço, bens imateriais relacionados com a manutenção de estados de funcionamento concorrencial dos mercados tendentes à maximização da eficiência económica – verificando-se a esse título (…) uma consumação protaída no tempo ou duradoura. “(…) A esta luz, seria completamente artificioso e incompatível com a lógica eficaz de protecção dos bens jurídicos imateriais subjacentes (…), qualquer ideia de separação entre, por um lado, uma suposta consumação, que se verificasse com a realização de actos jurídicos originários de formalização das bases de um acordo entre empresas e, por outro lado, supostas consequências jurídicas de tais actos, ao nível do funcionamento do mercado, mas que já não integrassem a infracção e respectiva consumação.” – vide Luís D.S. Morais, in “Os conceitos de Objecto e Efeito Restritivos da Concorrência e da Prescrição de Infracções de Concorrência”, Almedina, pág. 64 e ss. Não poderíamos estar mais de acordo. Aliás, apesar de não proceder à distinção nos termos dogmáticos que temos vindo a realizar, não se mostra despiciendo aludir ao disposto no n.º 2 do artigo 25.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003 do Conselho, que dita o seguinte: “O prazo de prescrição começa a ser contado a partir do dia em que foi cometida a infracção. Todavia, no que se refere às infracções continuadas ou repetidas, o prazo de prescrição apenas começa a ser contado a partir do dia em que tiverem cessado essas infracções.” Este preceito evidência de forma plena a relevância que tem, para efeitos do direito jus concorrencial, as práticas continuadas ou repetidas que determinam um estado anticoncorrencial permanente. Para além disso, importa ainda referir, na mesma senda, que o artigo 101.º do TJUE “é igualmente aplicável aos acordos que deixaram de estar em vigor, mas que continuam a produzir efeitos para além da sua cessação final” (Tribunal Geral da União Europeia (1991). Acórdão de 17 de Dezembro de 1991, no processo T-7/89: SA Hercules Chemical v. Comissão, parágrafo 257). Se assim é, não fará sentido algum defender que cada actuação isolada, se traduz numa infracção. Nestes termos, tal como já tínhamos defendido, consideramos que estamos perante uma infracção às regras da concorrência de natureza permanente, sendo que a data, para efeitos de consumação, é aquela que decorre da al. a) do n.º 2 do artigo 119.º do Código Penal (o dia em que cessar a consumação), que ocorreu em 23 de Janeiro de 2017. Não é correcto, por contra legem, salvo o devido respeito por melhor opinião, a posição dos Recorrentes, quando defendem que, pelo menos, os factos praticados há mais de 5 anos se mostram prescritos. A natureza da infracção em causa nos autos não permite realizar essa incisão. Tendo em vista que, nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 74.º do RJC, o procedimento de contra-ordenação extingue-se por prescrição no prazo de 5 anos, facilmente se conclui que este procedimento contra-ordenacional, pela globalidade dos factos em causa, não se mostra prescrito, sem necessidade sequer de analisar as causas de interrupção e suspensão do prazo de prescrição que possam ter ocorrido (como ocorreram), pelo que falece a pretensão dos Recorrentes. Tendo em vista que consideramos que estamos perante uma infracção de natureza permanente, fica prejudicada a apreciação respeitante à natureza continuada da infracção, também, em termos teóricos/académicos, refutada pelos Recorrentes. Fica igualmente prejudicada a análise respeitante à aplicação no disposto no n.º 8 do artigo 74.º do RJC”.
Subscrevemos inteiramente o entendimento do Tribunal a quo.
Assim, perfilhamos a tese de que a infracção em causa nos autos, prevista no art. 9º/1 a) do RJC constitui uma infracção permanente, no sentido de uma acção ou estado antijurídico que se prolongou no tempo.
Como tem sido reiterado por este Tribunal (designadamente nos recentes acórdãos proferidos nos processos nºs 290/20.2YUSTR.L1 e 127/19.5YUSTR.L1 desta Secção PICRS), o ilícito de execução instantânea caracteriza-se pela existência de uma só acção ou omissão, que ocorre num momento temporal preciso, concreto e único, e nele se esgota; diversamente, o ilícito permanente caracteriza-se pela ocorrência de uma situação delituosa persistente e decorrente de uma dada actuação ou omissão do agente - há uma só acção, activa ou omissiva, que se protela no tempo. Na infracção permanente estamos perante uma omissão duradoura do cumprimento do dever de restaurar a situação de legalidade perturbada por um acto ilícito inicial. Se há um protraimento da consumação no tempo, este não se verifica mediante a prática de uma pluralidade de actos. É um ilícito que se consuma por um só “facto” ou “acto” susceptível de se prolongar no tempo. Porque o ilícito se consuma por um só acto ou facto que se prolonga no tempo, esse protraimento da consumação no crime permanente apresenta uma estrita continuidade (vide Germano Marques da Silva, In “Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime”, Editorial Verbo, 1998, pág. 32, Lobo Moutinho, “Da “Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português”, Universidade Católica Editora, 2005, pág. 569 e segs.).
Fala-se, então, numa primeira fase que poderá ser uma conduta activa ou omissiva, que diz respeito à realização, num primeiro momento, do facto proibido; a segunda, sempre de natureza omissiva que integra a estrita continuidade própria da permanência, consiste na falta de remoção do estado ou situação ilícita, no incumprimento do dever de contra-agir, dever esse que caracteriza, no plano estrutural, o ilícito permanente, de modo a diferenciá-lo estruturalmente do instantâneo.
Sobre as infracções permanentes, referiu-se no acórdão proferido no mencionado P. nº 127/19.5YUSTR.L1 que: “Porém, no caso de contraordenação permanente, na qual a ação típica perdura por um tempo mais ou menos longo e durante o qual o agente comete uma única infração e a sua ação é indivisível, se a sua execução se tiver iniciado na vigência da lei antiga mas prosseguir no âmbito da lei nova, sendo que o facto ilícito já era punido pela lei antiga, então a contraordenação cabe no âmbito de aplicação da lei nova, ainda que esta última seja mais gravosa. Como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 21.10.2019 , que aqui seguimos de perto, “por assim ser (e por contraponto com a contra-ordenação continuada, que constitui a prática de vários ilícitos, assentes em várias resoluções, num mesmo quadro de solicitação exterior), por estarmos apenas perante uma única contra-ordenação, é de entender que nestas situações, perante o seu carácter unitário, será aplicável a todo o comportamento a lei nova vigente no momento da prática do último ato de execução, ainda que mais gravosa, pois não é possível distinguir partes do facto. E este é o entendimento que tem vindo a predominar na jurisprudência e doutrina (cfr. acórdão da Relação do Porto de 18/12/2013, processo 1074/12.7PEGDM.P1, in www.dgsi.pt, e jurisprudência aí referida; e pela doutrina Maia Gonçalves in "Código Penal Português", VIII ed., pg. 183; Cavaleiro de Ferreira, ob. cit., pg. 169; Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português, I, Editorial Verbo, 1997”, pgs. 278 e 279; e Manuel António Lopes Rocha “Aplicação da Lei Criminal no tempo e no Espaço”, in Jornadas de Direito Criminal, C.E.J., 1983, pg. 101.”
Atento o exposto e analisando a infracção imputada aos recorrentes, traduzida na violação das regras da concorrência, mediante a fixação directa e indirecta de preços aos distribuidores ligados à Super Bock por contratos de distribuição, ao longo de um período de onze anos, não podemos deixar de considerar que tal infracção é uma infracção permanente, materializada nas condutas descritas no elenco factual provado, praticadas pelo menos entre 15/5/2006 e 23/1/2017 (cf. v.g. factos provados 73, 94 e 109), mantendo-se nesse período o estado anti-jurídico/anti-concorrencial, dessa forma sendo ininterruptamente violadas as regras da concorrência durante aquele lapso temporal.
Refutamos, pois, o argumento dos recorrentes de que “a admitir-se a referida execução protraída no tempo, nos termos defendidos, estaríamos perante, não uma única e indivisível infração, mas sim de um quadro de infrações enquadrável na infração persistente enquanto categoria de Direito - qualificação essa, por sinal, mas sem qualquer fundamentação, flagrantemente irrelevada pelo Tribunal a quo” (cf. conclusão CX).
A infracção persistente, também designada sucessiva, é uma construção jurídica proveniente da jurisprudência alemã em matéria contraordenacional, que se desenvolveu a partir da sobreposição de múltiplas violações da lei no domínio económico, mormente no quadro da actividade empresarial. Os pressupostos da figura são três: as condutas são praticadas num dado contexto sistémico ou funcional, obedecendo à mesma situação motivacional; os tipos contraordenacionais realizados visam a protecção do mesmo interesse jurídico; verifica-se apenas um aumento quantitativo e não qualitativo da infracção. As consequências práticas desta construção, sem consagração legal, são, por um lado a aplicação de uma coima única e por outro, o prazo de prescrição do procedimento, que se inicia, seguindo a regra do art. 119º do CP com a consumação da infracção, a qual coincidirá com o dia da prática da última acção parcelar – vide Augusto Silva Dias, Direito das Contraordenações, 2020, Almedina, pág. 149.
Como refere este autor, é questionável se não se trata de reedição da figura da contra-ordenação continuada (contra a qual o mesmo autor se manifesta no domínio do ilícito de mera ordenação social), ou seja, se não estaremos face à mesma realidade jurídica com outras vestes. E por outra banda, pode perguntar-se se não coloca em causa princípios estruturantes do Direito das Contraordenações, designadamente o princípio da legalidade.
Por seu turno, é conhecido o debate em torno da admissibilidade ou não, em sede de direito contraordenacional, da figura da infracção continuada. Contudo, não se afigura relevante esgrimir nesta sede as diversas teses em confronto, porquanto, independentemente da posição que se adopte, entendemos que no caso dos autos, não estariam verificados os respectivos pressupostos (semelhantes aos da infracção persistente), porquanto não revelam os factos apurados a verificação de uma mesma situação exterior que facilitasse a repetição da actividade ilícita, tornando menos exigível ao agente (com a consequente diminuição da sua culpa) o cumprimento das normas jurídicas violadas. Aliás, os próprios recorrentes rejeitam a aplicação ao caso da figura da infracção continuada.
Concluímos não ser possível qualificar as condutas em causa como infracção continuada ou persistente/sucessiva.
Atento o supra exposto, bem andou o Tribunal a quo ao sustentar que a data a considerar, para efeitos de consumação, nos termos do art. 119º/2 a) do C. Penal, é o dia 23/1/2017, ou seja, a data em que cessou a consumação da infracção e, por conseguinte, se iniciou o prazo de prescrição.
Por outra banda e ao invés do que sustentam os recorrentes, à qualificação da infracção como permanente não obstam as alterações registadas na composição dos órgãos de administração e direcção da recorrente Super Bock (cf. conclusão XCVI).
Neste conspecto, pode ler-se na sentença recorrida que: “Com todo o respeito, este tipo de entendimento não colhe e não colhe porque, independentemente no número de pessoas que possam ter ocupado os cargos de administração da Recorrente e que tomaram decisões em seu nome, do manancial fáctico que foi dado como provado resulta, de forma evidente, que estamos perante uma conduta que foi reiterada e contínua no tempo, tendo durado desde durante o período de, pelo menos, 15 de Maio de 2006 a 23 de Janeiro de 2017. Mesmo no que toca à imposição e fixação de preços de forma indirecta, a alteração que se fez registar em Fevereiro de 2015 não tem o condão de interromper a conduta. Com efeito, tal como provado, a Recorrente continuou a fixar de forma directa os preços que os distribuidores deveriam praticar junto do canal HoReCa, mas também de forma indirecta. Na verdade, apesar de após esse período, a Recorrente ter deixado de, com tanta frequência, conceder desconto sobre sell out nos produtos engarrafados e enlatados, o certo é que continuou a fixar margens aos distribuidores, continuou a aplicar descontos sobre sell out de forma frequente aos produtos em barril, continuou a conceder esses mesmos tipos de descontos em produtos engarrafados e enlatados, a pedido do distribuidor e continuou a impor condições de venda como descontos a praticar na revenda. Este tipo de comportamentos, na sua globalidade observado, lesa os bens jurídicos subjacentes às regras da concorrência, fazendo subsistir um permanente estado substantivo de afectação do funcionamento concorrencial do mercado. Ora, decorre da al. a) e b) do n.º 2 do artigo 73.º do RJC, que “as pessoas colectivas e as entidades equiparadas referidas no número anterior respondem pelas contra-ordenações previstas na presente lei, quando cometidas em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança” ou “por quem actue sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem”. “Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade.” (n.º 3 do mesmo artigo 73.º). Ficou provado que o órgão de administração da Super Bock está directamente envolvido na prática de fixação e imposição de preços de revenda, estabelecendo as directrizes de acordo com as quais os factos que estão em causa nos autos são implementados. Independentemente das pessoas singulares que concretamente integraram esse órgão, existe um vínculo do órgão representante da Recorrente ao substrato de facto imputado. Esse vinculo com uma duração de 2006 a 2017 apenas poderia ser mantido pelos administradores da Recorrente ou por pessoas cuja actividade, neste plano específico, estava necessariamente compreendida na esfera de vigilância e controlo daqueles. Assim, quando existe uma actuação de imposição directa e indirecta de preços a distribuidores ligados à Recorrente por contratos de distribuição, durante cerca de 11 anos, é com especial clareza que se assume que subjacente a essa imputação está a assunção de que os factos, nem que seja por via da sua manutenção, foram praticados, em última instância, pelos seus administradores (directamente ou por pessoas cuja actividade estava compreendida na sua esfera de vigilância e controlo). Assim sendo, para além de se desconhecer a que tipo de alterações de políticas comerciais e a que decisões assumidas nos respectivos mandatos a Recorrente se está a referir, o certo é que desde 15.05.2006 que o órgão de administração manteve o estado antijurídico que se deu como provado, não se verificando quaisquer alterações de relevo na conduta em si mesma. Ao contrário do que parece ser o entendimento dos Recorrentes, para a análise da questão que nos ocupa, a perspectiva não deve partir da pessoa que encabeça o órgão de administração, para, relativamente a cada decisão que tenha sido tomada por pessoa distinta que encabeça esse órgão, afirmar que existiu uma manifestação autónoma de vontade da representada, ou seja, da Recorrente. Com todo o respeito por melhor entendimento, o ponto de partida é a conduta analisada em si mesma, independentemente de quantas as pessoas que, tendo encabeçado o órgão de administração da Recorrente, contribuíram para a mesma conduta. Na realidade, os administradores, membros da sociedade, actuam em representação da pessoa colectiva. Dita o n.º 1 do artigo 409.º do Código das Sociedades Comerciais que “os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas.” Assim entre o administrador e a sociedade existe uma relação de organicidade que é pressuposta pela própria natureza das pessoas colectivas, na medida em que estas terão de agir sempre por intermédio de "órgãos" (designadamente conselhos de administração), os quais necessitam de um suporte humano. Todavia, este suporte humano, que é designado para integrar tais órgãos, é tão-somente um mero suporte de órgãos independentes. Por isso, é totalmente falacioso pretender defender que cada pessoa que integra um órgão decisório de uma determinada pessoa colectiva define o número de decisões que é tomada por esta. As decisões que são tomadas pelo órgão de administração são imputadas à sociedade e essas decisões mantêm-se até que o mesmo órgão, encabeçado por uma mesma ou por outra pessoa física (é indiferente), aja no sentido de pôr termo à decisão primeiramente tomada e mantida. Conforme ensina Jorge Manuel Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, vol. II, Das Sociedades, Almedina, pág. 57, “as sociedades actuam através de órgãos, isto é, através de centros institucionalizados de poderes funcionais a exercer por pessoas ou pessoas com o objectivo de formar e/ou exprimir a vontade juridicamente imputável às sociedade.” Não se descura que, para efeitos de responsabilidade contra-ordenacional no âmbito da concorrência, para que exista aquela imputação de responsabilidade à sociedade, importa que exista um dos vínculos a que já se fez alusão, constantes do n.º 2 do artigo 73.º do RJC. Mas esse vinculo não é quebrado e reiniciado um outro vínculo sempre que existe uma mudança de titularidade do órgão correspondente, especialmente quando está em causa uma conduta inicial traduzida num consenso de vontades, que leva a cabo uma estratégia comercial restrita da concorrência, que perdura no tempo, sem que exista alterações de monta (ainda que existam alterações nas pessoas físicas titulares dos órgãos de administração). Com efeito, aquele consenso de vontades foi iniciado e mantido pelo órgão de administração, durante todo o lapso temporal em causa nos autos, sem que exista nos factos provados alguma actividade tendente a pôr-lhe termo. Esta actuação do órgão de administração, é imputável necessariamente à Recorrente sociedade. Por outro lado, não subsiste qualquer dúvida, acresce, que estamos perante uma actuação em nome e no interesse da Recorrente sociedade. Na verdade, a actuação em causa relaciona-se com os distribuidores da Recorrente, existindo entre ambos contratos de distribuição celebrados. A actuação em causa nos autos regulava as próprias relações com os distribuidores, motivo pelo qual necessariamente está conexionada com a organização, funcionamento e a realização dos fins da Recorrente sociedade”.
Tal fundamentação não nos merece qualquer censura, subscrevendo-se inteiramente a posição assumida na 1ª instância, com respaldo nas normas ali invocadas.
Face a todo o exposto e sem deixar de considerar as causas de suspensão previstas no art. 74º/4 do RJC (período de tempo em que a decisão da AdC for objecto de recurso judicial; e período após o envio do processo ao Ministério Público e até à sua devolução à AdC, nos termos do art. 40º do RGCO) e as causas de interrupção previstas no nº 3 da mesma disposição, assim como o prazo de sete anos e meio previsto no nº 8 do citado preceito, é indubitável que o procedimento não se mostra prescrito, conforme se concluiu na sentença recorrida.
Parecem-nos despiciendas outras considerações, designadamente acerca das causas de suspensão da prescrição decorrentes das medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica causada pela COVID-19, (concretamente definidas pelos arts 7º/3 da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março e art. 6º-B nº3 da Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, sendo este revogado pela Lei nº 13-B/2021, de 5 de Abril, correspondendo esses períodos de suspensão a 86 dias - período de 9/3/2020 até 3/6/2020 - a que se somam 74 dias - período de 22/1/2021 até 5/4/2021, perfazendo um total de 160 dias), cuja aplicação aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respectiva vigência o Tribunal Constitucional tem entendido reiteradamente ser conforme à Constituição da República Portuguesa (vide nomeadamente os acórdãos do TC nº 500/2021, de 9 de Julho; nº 660/2021, de 29 de Julho; e nº 798/2021, de 21 de Outubro), e que deverão acrescer ao prazo de prescrição do presente procedimento.
Concluímos pela improcedência da invocada prescrição do procedimento contraordenacional.
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2.–DA NULIDADE DA PROVA - CORREIO ELECTRÓNICO - APREENDIDO PELA ADC E NULIDADE DO DESPACHO DO MINISTÉRIO PÚBLICO QUE ORDENOU AS BUSCAS
Sob as conclusões I a XVI, sustentam os recorrentes que é inadmissível a apreensão/utilização de correspondência electrónica no âmbito de processos contraordenacionais; e ainda que fosse admissível, advogam que tal apreensão sempre dependeria de despacho do juiz de instrução.
Ancoram a sua tese no conceito de correspondência para efeitos constitucionais (art. 34º/4 da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP) que foi perfilhado pelo Tribunal Constitucional (TC) em acórdão recente proferido em 30/8/2021, em consonância com o parecer que referem (de Rui Pereira), segundo o qual aquele conceito se aplica às mensagens lidas e não lidas, independentemente do endereço de correio electrónico ser pessoal ou laboral.
Insurgem-se, assim, contra o entendimento do tribunal a quo de que o conceito de correspondência apenas abarca as mensagens de correio electrónico não lidas/não abertas e que as mensagens de correio electrónico lidas/abertas, por corresponderem a escritos/documentos, são admitidas em processo contraordenacional e não dependem de despacho do juiz de instrução.
Neste conspecto, invocam os recorrentes a inconstitucionalidade dos art.s 18º/1 c) e 20º do RJC e do art. 42º do RGCO por violação dos art.s 34º/4, 32º/2,4 e 8, 18º e 26º/1 todos da CRP, quando interpretados no sentido de permitir a busca a correspondência electrónica (aberta ou fechada) em processos contraordenacionais.
Partindo do pressuposto que é aplicável ao caso o art. 17º da Lei nº 19/2009, de 15/9 (Lei do Cibercrime), os recorrentes concluem que o correio electrónico apreendido no âmbito dos presentes autos constitui prova proibida e por conseguinte, prova nula.
O Ministério Público e AdC pugnaram pela improcedência do recurso nesta parte.
Vejamos.
A nulidade arguida convoca-nos, desde logo, para a análise do art. 34º da CRP, com a epígrafe «inviolabilidade do domicílio e da correspondência», que estabelece: 1.-O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis. 2.-A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei. 3.-Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei. 4.-É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal. (sublinhado nosso)
De tal norma, densificadora do direito da reserva da intimidade da vida privada consagrado no art. 26º/1 da CRP, extraímos claramente que o acesso à correspondência é constitucionalmente tutelado e que a ingerência na correspondência apenas é admissível em matéria de processo criminal.
Como se afirma no acórdão do TC nº 464/2019, «…o art. 34º da Constituição tem por propósito consagrar e proteger o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, ou seja, prima facie, a liberdade de manter a esfera de privacidade e sigilo, livre de interferência e ingerência estadual, quer no que respeita ao domicílio, quer (…) quanto à comunicação. É, aliás, entendimento doutrinal sedimentado que o âmbito de protecção da norma constitucional abrange todos os meios de comunicação individual e privada, e toda a espécie de correspondência entre as pessoas, em suporte físico ou electrónico, incluindo não apenas o conteúdo da correspondência, mas também o tráfego como tal (…)».
Sublinhe-se que é diversa a natureza do ilícito de mera ordenação social, que não se confunde com o ilícito criminal.
A questão que se suscita e os recorrentes discutem prende-se com o conceito de correspondência.
Não existe consenso ao nível da doutrina e jurisprudência relativamente à questão de saber se tal conceito abarca apenas as mensagens de correio electrónico não lidas ou também as mensagens lidas.
A distinção releva para efeitos da aplicação do art. 17º da Lei do Cibercrime, que remete para o regime de apreensão de correspondência previsto no CPP (art. 179º).
Diversamente dos ora recorrentes, o Tribunal a quo entendeu que o correio electrónico lido/aberto não se enquadra na noção de correspondência/meio de comunicação, tratando-se de um “mero documento”, apartado da protecção do sigilo que é conferida à correspondência pela Lei Fundamental.
Para tanto, apela à definição de correio electrónico constante do art. 2º/1 b) da Lei nº 46/2012, de 29 de Agosto, ou seja, “é correio electrónico” “qualquer mensagem textual, vocal, sonora ou gráfica enviada através de uma rede pública de comunicações que possa ser armazenada na rede ou no equipamento terminal do destinatário até que este a recolha” – cf. linhas 2328 a 2331 da sentença recorrida.
Concluindo, assim, aquele Tribunal que “a mensagem transmitida já não é mais considerada “correio electrónico”, no sentido de comunicação, passando antes a ser um “mero” documento. E sendo um documento, o mesmo deixa de merecer a tutela de sigilo consagrada no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, podendo a AdC, reunidos os demais requisitos, apreender esses documentos”.
Seguindo a mesma linha de pensamento, pronunciou-se este Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão proferido pela 3ª Secção Criminal em 4/3/2020 no âmbito do apenso D do presente processo nº 71/18.3YUSTR (acórdão citado na sentença recorrida, linha 2406 a 2421), em sede de recurso de medida da autoridade administrativa, sobre idêntica questão atinente à (in)validade da prova obtida mediante busca efectuada à ali visada e apreensão de correio electrónico. Considerou-se em tal aresto que a partir do momento em que a mensagem de correio electrónico é recolhida pelo seu destinatário, deixou de ser correio electrónico, passando a ser informação em arquivo (correio electrónico aberto e lido), concluindo que no caso em apreciação naquele apenso D, em que a AdC apreendeu informação em arquivo na sequência de buscas, não estava em causa a apreensão de «correspondência» (comunicação em trânsito).
O mesmo acórdão procede à subsunção da situação em análise na previsão do art. 18º/1 c) do RJC, sustentando que este preceito garante o respeito pelo princípio da reserva de lei necessário a este procedimento da AdC (apreensão de ficheiros de correio electrónico em diligência de buscas), concluindo que não se coloca um problema de proibição de prova e que as mensagens visualizadas e apreendidas pela AdC não gozam da tutela constitucional conferida pelo art. 34º/4 da CRP.
Nas palavras de Pedro Verdelho (vide revista do CEJ, pág. 165 e “Apreensão de Correio Electrónico em Processo Penal”, Revista do Ministério Público, Ano 25.º, nº 100, outubro-dezembro, 2004, pp. 161 – 164), citadas naquele acórdão, «é pacificamente aceite que a correspondência aberta deixa de estar abrangida pela protecção constitucional de sigilo de correspondência».
Perfilhamos o entendimento sustentado no aludido acórdão, coincidente com a tese defendida na sentença recorrida, no sentido de que a apreensão de mensagens enviadas por email, já lidas, porque se trata de documentos, não está sujeita à tutela prevista no art. 34º/4 da CRP, sendo ainda certo que também não podem considerar-se mensagens privadas na acepção desta norma.
Como refere o Ministério Público na resposta ao recurso, a norma do art. 34º da CRP, decalcada do art. 8º/1 da CEDH, “não construiu o apontado círculo garantístico (da privacidade individual) em torno da privacidade empresarial”, além de que tal norma não tem como referente o direito da concorrência, em cujo âmbito “as empresas não gozam do tipo e nível de protecção garantido pelo art. 34º da CRP, bem se podendo afirmar que no presente contexto os seus direitos são incompatíveis (v. art. 12º/2 da CRP a contrario) com a tutela reservada ao indivíduo pelo art. 34º da CRP”.
Assim, no caso dos autos a apreensão das mensagens de correio electrónico encontra suporte no disposto no art. 18º/1 c) do RJC.
Dispõe este preceito que:
“No exercício de poderes sancionatórios, a Autoridade da Concorrência, através dos seus órgãos ou funcionários, pode, designadamente: proceder, nas instalações, terrenos ou meios de transporte de empresas ou de associações de empresas, à busca, exame, recolha e apreensão de extratos da escrita e demais documentação, independentemente do seu suporte, sempre que tais diligências se mostrem necessárias à obtenção de prova.” (sublinhado nosso)
A propósito do teor dos arts 18º/1 c) e 20º/1 do RJC, pode ler-se na sentença recorrida (linhas 2096 a 2121) que: Tendo em conta que, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, somos forçados a concluir que a AdC, verificados que estejam os demais requisitos legais, pode apreender documentos, de toda a natureza, estejam eles vertidos em suportes físicos ou estejam em suportes digitais. Esta interpretação da lei é totalmente pacífica. Todavia, o RJC nada disciplina directamente quanto a correio electrónico e muito menos realiza qualquer tipo de distinção entre correio lido/aberto ou não lido/não aberto. Ora, pelos motivos que infra serão aflorados, sob pena de inconstitucionalidade, apenas se considerarmos que o correio electrónico lido/aberto não se enquadra na noção de correspondência/meio de comunicação, sendo apenas um “mero” documento, apartado da protecção de sigilo que é conferida à correspondência pela Lei Fundamental, é que a prova em causa não estará ferida de nulidade. Na verdade, decorre, desde logo, do n.º 1 do artigo 42.º do RGCO que “não é permitida a prisão preventiva, a intromissão na correspondência ou nos meios de telecomunicação nem a utilização de provas que impliquem a violação do segredo profissional”, sendo certo que “as provas que colidam com a reserva da vida privada (…) só serão admissíveis mediante o consentimento de quem de direito”(n.º 2 do mesmo artigo 42.º do RGCO). Consideramos, contudo, que a questão sob análise não encontra resposta neste preceito. Na verdade, aquilo que o n.º 1 do artigo 42.º do RGCO se limita a reconhecer é o que já decorre da própria CRP, porquanto nesta Lei Fundamental é erguida a garantia de que ingerências dos órgãos públicos na correspondência apenas são permitidas em sede do direito penal (afastando, por isso, o direito contra-ordenacional), conforme iremos analisar mais detalhadamente. Assim, facilmente chegamos à conclusão de que o que importa apurar é se correio electrónico aberto/lido pode ou não ser considerado correspondência e isso, repetimos, não nos é elucidado através deste preceito do RGCO.
Tal como também foi entendido no acórdão proferido em 4/3/2020 no apenso D, não vislumbramos fundamento para a aplicação ao caso de qualquer regime subsidiário (cf. art. 13º, 59º/2 e 83º do RJC), porquanto não se nos afigura existir lacuna no regime jurídico da concorrência, já que o regime aplicável às práticas restritivas previstas no art. 9º se encontra expressamente regulado no mencionado art. 18º do RJC.
Por outra banda, subscrevemos o juízo do Tribunal a quo no sentido de que deve ser excluída a aplicação ao caso da Lei 109/2009 (Lei do Cibercrime), cujo objecto e âmbito de aplicação é bem distinto do da Lei da Concorrência. Aquela lei apenas se aplica aos processos crime, como flui do seu art. 1º, além de que não existe qualquer remissão para esse diploma, quer no RJC, quer no CPP (ex vi art. 41º/1 do RGCO). No sentido da inaplicabilidade da Lei do Cibercrime no domínio do direito contraordenacional da concorrência, vide o acórdão desta Secção PICRS proferido, em 21/12/2020, no apenso D do processo nº 18/19.0YUSTR, assim como o supra citado acórdão proferido pela 3ª Secção Criminal deste TRL em 4/3/2020 (processo nº 71/18.3YUSTR-D.L2).
Neste conspecto e ao contrário do que advogam as recorrentes, não tem pertinência para o caso vertente o acórdão do TC nº 687/2021, de 30/8/2021 (publicado no DR nº 185, 1ª série de 22/9/2021), que, em sede de fiscalização preventiva, se pronunciou pela inconstitucionalidade das normas constantes do seu artigo 5º do Decreto nº 167/XIV da Assembleia da República, na parte que altera o art. 17º da Lei nº 109/2009 (Lei do Cibercrime). Na verdade, as dificuldades técnicas e dogmáticas apontadas pelo TC, quanto à distinção, no âmbito das mensagens de correio electrónico, entre correio «aberto» e «fechado», reportam-se evidentemente ao objecto daquela decisão, ou seja, à Lei do Cibercrime, cuja alteração ao art. 17º estava em apreciação. Quer dizer, face à inaplicabilidade de tal diploma ao caso dos autos, são muito escassos os contributos desse aresto, que cingindo-se ao processo penal (e não se pronunciando sobre o processo contraordenacional) concluiu pela inconstitucionalidade das normas em apreciação no acórdão (alteração ao art. 17º da Lei do Cibercrime).
Do exposto é forçoso concluir que não está em causa prova proibida, em virtude de a prova apreendida nos autos pela AdC assentar nas disposições conjugadas dos art.s 18º/1 c) e 20º/1 e 2 do RJC, improcedendo, pois, a alegada nulidade.
De igual forma, não ocorre a invocada inconstitucionalidade destas normas, assim como do art. 42º do RGCO (cf. pontos X. e XV. das conclusões do recurso), tendo em conta o entendimento acima explanado quanto à inaplicabilidade ao caso do RGCO (art. 42º/2) e do CPP (art. 126º/1) e o entendimento adoptado de que a apreensão de mensagens enviadas por email, já lidas, porque se trata de documentos, não está sujeita à tutela prevista no art. 34º/4 da CRP, não se afigurando que a tese perfilhada seja susceptível de violar qualquer outra norma ou princípio constitucional.
Os recorrentes arguem ainda a nulidade do despacho do Ministério Público que autorizou as diligências de busca e apreensão, invocando uma alegada reserva de lei ao juiz de instrução (pontos XVII a XXVI).
No que concerne à questão da competência da autoridade judiciária (Ministério Público ou juiz de instrução) para autorizar as buscas e apreensão de correspondência nas instalações da recorrente sociedade (ponto XXVI das conclusões do recurso), rege o disposto nos art.s 18º/2, 20º/1 e 21º todos do RJC. E de tais disposições normativas extrai-se indubitavelmente que compete ao Ministério Público ordenar e autorizar as buscas e não ao juiz de instrução criminal, porquanto não estão em causa buscas domiciliárias (neste sentido, vide Lei da Concorrência Anotada, Carlos Botelho Moniz (coord.), Almedina, 2016, pág. 197/198).
Como refere o Ministério Público na sua resposta ao recurso, “através do regime dos artigos 18º a 21º da LC o legislador repartiu pelo Ministério Público e pelo juiz a competência para autorizar e validar a prática de certos atos da AdC - busca, exame, recolha, apreensão, selagem -, tendo deixado a cargo do juiz os actos mais sensíveis como as buscas no domicílio, em escritório de advogado e consultório médico, as apreensões em escritório de advogado, consultório médico e nos bancos ou outras instituições de crédito. Esta repartição não obedeceu a um modelo garantístico constitucional, o qual, ao contrário do processo penal não existe para o processo contraordenacional (v. art. 32º, nº 4 da CRP), mas a uma opção do legislador no quadro da sua livre margem de conformação”.
Assim, as únicas situações em que é necessária a intervenção do juiz de instrução são as previstas nos arts 19º/1 e 7 e 20º/6 do RJC, ou seja, nos casos de buscas domiciliárias e em escritórios de advogados, consultórios médicos e instituições de crédito (v.g. bancos).
Nos demais casos, compete ao Ministério Público autorizar as diligências, designadamente as buscas e apreensões (art. 21º do RJC).
Na sua resposta ao recurso, sobre este ponto a AdC frisa que «Essa eventual decisão de autorização da busca e apreensão de correio eletrónico lido concedida por uma autoridade judiciária orientada pelo “princípio da legalidade” nos termos do n.º 1 do artigo 219.º da CRP parametriza e baliza a atuação da AdC, definindo limites que esta não pode ultrapassar sob pena de atuar fora do âmbito de competências que lhe foi delimitado. Por outro lado, essa autorização e o despacho de fundamentação que a acompanha são suscetíveis de serem escrutinados pela empresa visada, objeto da diligência, no exercício dos seus direitos de defesa, não sendo isentos de sindicância judicial».
Por conseguinte, não estando em causa, no caso dos autos, qualquer das situações que impõem a intervenção do juiz de instrução, a autoridade competente é o Ministério Público, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao concluir que não foi cometida qualquer nulidade.
No que tange à inconstitucionalidade dos arts 17º da Lei do Cibercrime e art. 179º do CPP, invocada pelos recorrentes, não lhes assiste razão, pelas razões expostas que afastam a aplicação ao caso do regime processual penal contido naquelas normas.
Pelo exposto, improcede este segmento recursório, quer quanto à questão da validade da prova, quer quanto à competência da autoridade judiciária.
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3.–DOS ERROS, INSUFICIÊNCIAS E CONTRADIÇÕES DA MATÉRIA DE FACTO
Sob a conclusão XLI do capítulo II da motivação recursória alegam os recorrentes que “a decisão recorrida se encontra viciada por erros, insuficiências e contradições insanáveis no que concerne à fundamentação de facto acolhida na decisão, tomando como provados factos cujo alcance não é compatível entre si/ou com a factualidade dada como não provada”.
Concluem que tais vícios, subsumíveis no art. 410º/2 do CPP, devem determinar o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 75º/1 do RGCO, relativamente à totalidade do objecto do processo ou, caso assim não se entenda, às questões identificadas pelas recorrentes (cf. conclusão LXXX).
Como infra se constatará, sob as vestes de «contradições», «erros» ou «insuficiências», os recorrentes, no essencial, pretendem pôr em crise a matéria de facto dada como provada, não se conformando com essa factualidade. Contudo, importa sublinhar que a esta instância de recurso está vedado reapreciar a decisão de facto, limitando-se a conhecer da matéria de direito (art. 75º do RGCO ex vi art. 83º do RJC, em conjugação com o art. 89º deste mesmo diploma), sem prejuízo da apreciação dos vícios a que alude o art. 410º/2 do CPP (ex vi art. 83º do RJC e art. 74º/4 do RGCO).
O Ministério Público e a Autoridade da Concorrência pugnaram pela improcedência deste segmento do recurso.
Cumpre apreciar.
Estabelece o artigo 410º/2 do Código de Processo Penal que:
“Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c)-erro notório na apreciação da prova”.
Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, por conseguinte, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos.
Pese embora não sejam indicadas as concretas alíneas do art. 410º do CPP, da análise dos vícios invocados pelos recorrentes decorre que os vícios que pretendem arguir correspondem àqueles que estão previstos nas alíneas a) e b) daquele preceito.
Nas palavras do Juiz Conselheiro Henriques Gaspar, a fundamentação «fornece os meios para confrontação do acto de julgar com os respectivos pressupostos, permitindo a construção da base do escrutínio. E se nenhum poder da democracia está isento de escrutínio, o escrutínio externo do juiz no acto de julgar não pode ser efectuado senão pela análise racional, lógica, mas inteira, dos fundamentos da decisão».
Como escrevem Sima Santos e Leal Henriques (in Código de Processo Penal Anotado, 2000, Editora Rei dos Livros, vol II, pág. 739), «existe contradição insanável quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados».
A este propósito, decidiu o acórdão do STJ no Proc. Nº 3453/08, de 19/11/2008 – 3ª Secção (citado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/12/2016, P. nº 121/16.8T8CDN.C1, publicado in www.dgsi.pt): «(…) VI-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito. VII-A contradição e a não conciliabilidade têm, pois, de se referir aos factos, entre si ou enquanto fundamentos, mas não a uma qualquer disfunção ou distonia que se situe unicamente no plano da argumentação ou da compreensão adjuvante ou adjacente dos factos. É, pois, incontestável que a contradição - da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão – a que alude a alínea b) do nº 2 do citado art. 410º do CPP terá de ser insanável.
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Analisemos, então, cada uma das questões suscitadas.
a)-Âmbito geográfico do mercado relevante (conclusão XLII)
Alegam os recorrentes, em síntese, que “não só o juízo a realizar é de direito e não de facto, como há contradição evidente ao considerar, simultaneamente, que o âmbito geográfico do mercado relevante é nacional (Linhas 3496-3497 da sentença); e que daquele âmbito se excluem“(…) de Lisboa (incluindo Amadora e Sintra, até 2017), Porto, Madeira, até 2013 com excepção também de Coimbra e desde 2014, também com excepção das ilhas do Faial e do Pico, por serem áreas abastecidas mediante vendas directas da Recorrente Super Bock]”, (Linhas 3405-3414) onde a Recorrente SBB desenvolve a sua atividade com recurso a abastecimento direto, portanto, sem a intervenção de distribuidores independentes”;
A factualidade em causa está vertida designadamente nos factos provados nº 21, 47 e 71 da sentença recorrida.
Como se colhe da motivação recursória, os recorrentes invocam, antes de mais, a natureza jurídica do juízo de caracterização geográfica dos mercados relevantes.
Ora, como os recorrentes reconhecem (cf. arts 144 e 148 das alegações de recurso), a apreciação jurídica de acordo com um conjunto de critérios relativos à definição de mercado relevante, inclusivé para efeitos do direito europeu da concorrência, tem de partir do elenco factual provado. No caso dos autos, os factos atinentes a esta matéria mostram-se descritos de modo claro e objectivo nos referidos factos provados nºs 21, 47 e 71, sem prejuízo do enquadramento jurídico a que o tribunal a quo procedeu em sede própria (cf. fundamentação de direito da sentença, ponto D), linhas 12060 a 12188), pelo que não colhe a argumentação apresentada pelos recorrentes.
Sem prescindir e à cautela, os recorrentes invocam uma contradição insanável entre o pretenso facto provado e outros factos apurados, indicando a matéria vertida no facto 21, considerando que “não pode deixar de ser contraditório que a decisão recorrida haja considerado o mercado em vista como um mercado de âmbito nacional e, ao mesmo tempo, contemple uma variedade de exceções, mais ainda quando considerada a grandeza que se lhe associam várias dessas excepções.”
Tal pretensão carece de fundamento, porquanto é lógico, compreensível e isento de contradição afirmar que os mercados dos produtos em apreço têm dimensão ou âmbito nacional e ressalvar algumas zonas do país que são abastecidas mediante vendas directas da Super Bock. Os dois factos não estão em oposição, sendo perfeitamente conciliáveis entre si.
b)-Funções atribuídas à fixação de preços (conclusão XLIII a XLV)
Alegam, em síntese, os recorrentes que “afirma-se na decisão recorrida, simultaneamente, que objetivo da fixação de preços mínimos não se esgota na função de (a) estabelecimento de um patamar até ao qual a Recorrente SBB faria a reposição do desconto em sell out; servindo também como (b) mecanismo de fixação propriamente dita do preço mínimo de revenda; e que o abandono generalizado da aplicação de descontos em sell out em 2015 eliminou o sentido da prática de fixação de preços mínimos (Linhas 9695-9699 da sentença); Por outro lado, o Tribunal afirma uma relação de dependência entre a aplicação de descontos em sell out e a prática de fixação de preços mínimos – em termos tais que uma não subsistiria sem a outra –, o mesmo Tribunal opta, ao mesmo tempo, por concluir também pela relevância dos descontos em sell in na fixação de preços mínimos, Ou seja, o Tribunal recorrido afirma que, na ausência de sell out, deixa de fazer sentido a referência a preços mínimos, mas depois, associa o sell in à ideia de fixação preços mínimos, sem explicar como”.
Não assiste razão aos recorrentes.
Com efeito, não se afigura existir contradição entre os factos ou entre estes e a motivação da decisão da matéria de facto.
Argumenta o Ministério Público na sua resposta que: “A sentença explica que a 1ª mensagem do colaborador da SB foi dada sem efeito devido a mudança na política de descontos a praticar pela SB junto dos distribuidores, dado que a partir de Fev/2015 o desconto passou maioritariamente (de forma não exclusiva ou integral) a incidir sobre sell in. Mais explica que essa mudança de política não implicou uma alteração da prática de imposição/fixação de preços por parte da SB (§§ 9693 a 9700). O TCRS acrescentou, por isso, que tal mudança não invalidou: «- que a Recorrente impusesse como continuou a impõr preços mínimos aos distribuidores, como claramente foi asseverado pelos meios de prova que já oportunamente referimos; - que continuassem a existir, como continuaram, descontos sobre sell out quer nos produtos em barril, quer também nos produtos engarrafados a pedido do distribuidor, sempre que as condições de mercado o exigissem, como decorreu também da prova produzida e já indicada;- que continuassem a ser fixadas margens de distribuição, com o intuito que também já evidenciámos» (v. §§ 9699 a 9705). 34.-Este raciocínio da sentença nada tem de contraditório e explica a sem razão de uma outra contradição apontada pelos recorrentes, relativa ao modo como eram fixados os preços (XLIV e XLV). A este respeito importa enfatizar que a sentença apurou os factos provados 101. a 105 com base em um grande número de documentos. Um desses documentos (Unicer 2557 de 18/02/2014) respeita à ata de uma reunião (v. § 6737) a partir da qual a sentença explica que os descontos máximos a passar pelos distribuidores ao mercado convivem e estão limitados, afinal, pelos preços mínimos a praticar por estes no mercado (v. §§ 6744 a 6748). 35.-Nos §§ 7043 a 7046 a sentença rebateu a tese negatória dos visados apresentada a partir do doc. Unicer 2355, de 12/02/2008 (v. § 7035 e ss). 36.-No § 10556 e ss (p. 481) a sentença esclareceu que a prova carreada na fase administrativa não foi abalada na fase judicial e a seguir fez o exercício de rebater quer o parecer técnico junto pelos visados (§10572 e ss), quer as mensagens de correio eletrónico que os mesmos alegaram suportar a tese contrária à da AdC (v. § 10827 e ss). 37.-Nos §§ 10890 a 10896 a sentença rebate um concreto documento Unicer 3767, de julho de 2014, e explica que este documento demonstrou o oposto da pretensão dos visados, i é, os descontos sobre sell out eram feitos seguindo uma política e uma prática de preços mínimos a praticar pelos distribuidores junto dos clientes destes. 38.-Também aqui não ocorre qualquer contradição. De resto, não é correto que os visados pretendam comparar documentos que respeitam a momentos diferentes da prática infracional, produzidos em contextos que não eram coincidentes entre si. Foi também isso que a esforçada sentença demonstrou, ou seja, e de forma mais prosaica, que os visados estavam a comparar “laranjas com maçãs” e que, ainda assim, nesse exercício, o TCRS constatou uma prática que não deu liberdade aos distribuidores de implementar a sua própria política de preços juntos dos seus clientes”.
Concordamos inteiramente com a posição defendida pelo Ministério Público.
Na verdade, da leitura atenta da sentença recorrida, quer da factualidade dela constante (v.g. factos provados nºs 73 a 83 e 90 a 113), quer da respectiva motivação (v.g. pág. 369 a 374 da sentença), tal como salienta a AdC na sua resposta, resulta que coexistiam duas formas de fixação de preços, por um lado, a fixação/imposição directa dos preços de revenda pela recorrente Super Bock aos seus distribuidores e por outro, a fixação desses mesmos preços de revenda também por meios indirectos, ainda que a partir de Fevereiro de 2015 a aplicação dos preços sell out tenha começado a ser mais pontual nos produtos engarrafados.
Neste conspecto, atentemos, por se nos afigurar um dos mais relevantes, no seguinte segmento da extensa e detalhada motivação dos factos, constante de fls. 193/194 da sentença: “Ao contrário, ao que assistimos nesta sede são benefícios dados aos distribuidores, como forma de lhes assegurar uma determinada margem ao seu negócio, que estipulam um patamar em função do preço a praticar pelo distribuidor ao seu cliente, benefícios esses que eram dados como um “modelo de negócio” como lhe chamou a testemunha JM, ou sejam eram constantes, reiterados. Apesar destas últimas asserções se enquadrarem de forma mais apropriada na fixação indirecta de preços, o certo é que ambos os comportamentos acabam por estar conexionados, um servindo o outro. De forma regular, no tempo e no modo, a Recorrente determinava aos distribuidores que praticassem determinado preço mínimo no mercado e acabava por se assegurar que esses preços mínimos eram, de facto, praticados (nem que fosse em termos médios), através, designadamente, da política de descontos que praticava, em que os benefícios económicos que dava aos distribuidores e que lhes permitiam assegurar a subsistência do negócio (foi a própria testemunha JM indicada pelos Recorrentes que afirmou que os descontos sobre sell out “faziam a diferença e permitiam ao distribuidor assegurar a sua margem”), estavam vinculados precisamente ao preço mínimo que aquela própria mandava praticar. O seguimento dos preços mínimos indicados pela Recorrente por parte dos distribuidores era precisamente o objectivo daquela, conforme facilmente se extrai do teor do depoimento da testemunha DT, que relatou impressivamente ao tribunal que várias vezes chegou a ouvir de vários colaboradores da Recorrente: “Ou fazes o que queremos, ou vais ter uma morte lenta”. Tal implica também aqui a obrigatoriedade que existia no cumprimento das determinações da Recorrente. Acresce que, mesmo depois de deixar de fazer sentido falar em “preços mínimos” nos produtos engarrafados/enlatados, ou seja, após Fevereiro de 2015, quando a Recorrente abandonou parcialmente a política de descontos sobre “sell out”, nos moldes acima já mencionados, a testemunhaDT relatou em tribunal que ainda assim a Recorrente continuou a impor os preços que deviam ser praticados pelos distribuidores, informando-os da mesma forma com uma peridicidade mensal. Nesse momento, começaram os dissídios com a Recorrente, ao ponto da Recorrente ter denunciado o contrato que vigorava (fls. 391 – vol. 1). Para além disso, mesmo depois de 2015, continuou a Recorrente, em sede das mensagens de correio electrónico a aludir a preços mínimos em produtos engarrafados, o que denuncia que os preços mínimos não eram nem nunca foram apenas descontos máximos ou a aludir ao PVR (preço de venda ao retalho a praticar pelo distribuidor).” - linhas 5333 a 5364.
Por conseguinte, os factos apurados sobre o ponto em análise não estão em contradição e a sua motivação pelo tribunal a quo revela-se clara, lógica e coerente, não se divisando, pois, o vício apontado.
c)-Mecanismo de apuramento do desconto de extraciclo (conclusão XLVI a LI)
Sobre esta questão, alegam os recorrentes que “deteta-se uma nova contradição, em tudo relacionada com a precedente, entendendo o Tribunal em algumas passagens que o referencial de reposição correspondia ao preço mínimo de revenda fixado pela Recorrente Super Bock ao distribuidor (Linhas 3775-3778); e Noutras passagens aquele exercício já tomaria em vista o preço de revenda efetivamente praticado pelo distribuidor ao seu cliente (Linhas 3772-3775 da sentença); Ou seja, ao mesmo tempo, afirma-se que a reposição de descontos em sell out toma como referência (i) o preço mínimo de revenda fixado ao distribuidor ou (ii) o preço efetivo de revenda praticado pelo distribuidor ao seu cliente, não tendo a decisão recorrida logrado afirmar qual o critério efectivamente utilizado, referindo-lhes indistintamente como sendo uma e a mesma coisa, que não são; Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas:(i) o desconto extraciclo pode ser processado logo na fatura de venda ao distribuidor; e o desconto extraciclo toma como referência o preço praticado na revenda pelo distribuidor”.
Esta alegada contradição prende-se com a questão anterior, relativa às funções atribuídas à fixação de preços, que acima analisámos. De novo, não descortinamos aqui a existência de contradição alguma, na medida em que as duas realidades, correspondentes àquelas duas premissas, não se excluem ou contradizem.
Como assinala o Ministério Público na sua resposta, do facto provado nº 101 extraimos que “o sistema de descontos extraciclo concedido pela Super Bock aos distribuidores, quantificado em razão dos preços por estes praticados junto dos seus clientes, era compatibilizado com o sistema de fixação mensal de preços mínimos a praticar pelos mesmos distribuidores, preços mínimos estes que indicavam o limite até ao qual a Super Bock estava disposta a suportar os descontos passados aos clientes”.
Aquele facto 101 encontra-se, por seu turno, cabalmente motivado na sentença – cf. linhas 8246, 8315 e 8429 e seguintes.
Veja-se, a este propósito, o seguinte segmento da motivação (linhas 8322 a 8332): “De acordo com o mesmo grupo de testemunhas, até Fevereiro de 2015 (vide a própria impugnação dos Recorrentes e o teor do documento n.º 1 da impugnação [vide fls. 14745 – vol. 38)], esse desconto era concedido, esmagadoramente (ou por sistema) sobre “sell out”, ou seja, o desconto dado pela Recorrente aos distribuidores era calculado em função dos preços dos produtos vendidos (sell-out) por aqueles distribuidores, sendo depois emitida uma nota de crédito correspondente. Não vinha, por isso, reflectido na factura. Após Fevereiro de 2015, esses descontos sobre sell out continuaram a ser concedidos para os produtos vendidos em barril / pressão (nos termos que já acima explicitámos) e nos produtos engarrafados / enlatados, mas estes a pedido do distribuidor para fazer face a situações pontuais do mercado (dessa realidade nos deu conta, de forma mais profundada, a testemunha Alberto Simões)”.
Donde, não ocorre a invocada contradição.
d)-Relação entre a fixação de preços e a margem dos distribuidores (conclusão LII a LV)
Alegam os recorrentes que: -“Também quanto à relação a fixação de preços e a margem do distribuidor, assume-se simultaneamente que a realidade fixada seriam os preços de revenda – e mediante essa fixação iria a Recorrente Super Bock manipulando outros elementos, como fosse a aplicação dos descontos no preço de venda ao distribuidor e a sua (do distribuidor) margem de distribuição (Linhas 3690-3692 da sentença); mas também se afirma que, afinal, a realidade fixada seria já a própria margem do distribuidor – e mediante essa fixação iria a Recorrente Super Bock manipulando outros elementos, como fosse a determinação do preço a praticar na revenda e a aplicação dos descontos no preço de venda ao distribuidor (Linhas 5465-5469 da sentença). -Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas: (i) o sistema de remuneração dos distribuidores baseia-se nos preços de revenda; (ii) o sistema de remuneração dos distribuidores baseia-se nos descontos de Apoio Logístico e Apoio Comercial. - Também quanto à questão da aptidão dos descontos em sell in para a atribuição de margem/remuneração do distribuidor, o Tribunal ora confirma essa finalidade daquela categoria de descontos (Linhas 9695-9705 da sentença), ora adverte para a inaptidão do sell in para proporcionar uma injeção de margem aos distribuidores (Linhas 6450-6451 da sentença). -Contradição que se manifesta, enfim, na assunção simultânea das seguintes premissas: (i) os descontos em sell in são aptos à remuneração dos distribuidores; (ii) os descontos em sell in não são aptos à remuneração dos distribuidores”.
Também aqui não assiste razão aos recorrentes.
Prende-se este ponto com os anteriores (fixação de preços e descontos extraciclo), acima analisados, extraindo-se do facto provado nº 79 o modo de funcionamento do sistema de remuneração dos distribuidores, em conjugação com a factualidade vertida no facto nº 80.
Como já vimos, a fixação de preços tinha em conta os diversos factores de formação do preço, que por sua vez, tinham em consideração as margens do distribuidor, tudo tendo em vista garantir um nível mínimo de preços, estável e alinhado, em todo o mercado nacional (cf. v.g. factos provados nºs 79 e 113).
Parecem despiciendas maiores considerações para se concluir que não se divisa a apontada contradição.
e)-Reporte das vendas pelos distribuidores (conclusão LVI a LVIII)
Alegam os recorrentes, em síntese, que:
- “O Tribunal afirma, ao mesmo tempo, que a Recorrente Super Bock estabelece, junto dos distribuidores, o preço mínimo de revenda; e que a Recorrente Super Bock estabelece, junto dos clientes dos distribuidores, o preço efetivo de revenda; -O que induziu efeitos muito perversos na compreensão da questão do reporte da informação das vendas, enquanto pretensa técnica de controlo e monitorização, na medida em que, se fosse de admitir - que não é - que a Recorrente Super Bock fixava diretamente aos clientes do distribuidor o preço que este praticaria àquele cliente na revenda, então haveria que concluir-se pela inutilidade de um tal sistema de informação, por desnecessário: para quê recolher informação sobre aquilo que a própria Recorrente implementava e que, por isso mesmo, já conheceria. -Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas: a Recorrente Super Bock, por estabelecer, junto dos clientes dos distribuidores, o preço efetivo de revenda, tem imediato acesso a essa informação; a Recorrente Super Bock monitoriza os preços de revenda praticados pelos distribuidores aos seus clientes, mediante um sistema de reporte de informação(Linhas 5056-5062 da sentença)”.
Face à conexão entre este ponto e o anterior (fixação de preços e a margem dos distribuidores), dá-se aqui por reproduzido o acima explanado, acrescentando-se que é perfeitamente claro que, por um lado a Super Bock impunha a fixação de preços mínimos aos distribuidores e por outro, controlava esse mecanismo mediante a exigência do reporte da informação das vendas, nenhuma contradição se afigurando existir nesta matéria.
f)-(In)cumprimento pelos distribuidores das condições fixadas pela recorrente Super Bock e distribuidores mais e menos lucrativos (conclusão LIX a LXVI)
Alegam os recorrentes que:
- “O Tribunal refugia-se numa descrição obscura da questão, limitando-se a indicar que, generalizadamente, os preços de revenda supostamente fixados pela Recorrente Super Bock eram implementados pelos distribuidores (Linhas 3705-3708 da sentença), mas termina com a revelação da real e inquestionável inobservância dos mesmos preços de revenda – o tal desalinho, protagonizado por distribuidores e que inspiraria a reclamação dos demais. -Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas: (i) os distribuidores, quando insatisfeitos com as condições comerciais fixadas, não se distanciam delas, praticando preços distintos, limitando-se a reclamar; (ii) os distribuidores desalinhados incumprem os preços fixados. -Mas também por referência ao impacto associado àquela pontual inobservância das condições de venda fixadas pela Recorrente Super Bock, mormente para os próprios distribuidores “subversivos”, a sentença avança diferentes consequências, pronunciando-se indiferentemente ao incumprimento como causa de incremento dos resultados positivos daqueles distribuidores incumpridores, fruto de um aumento dos respetivos lucros (Linhas 3734-3738 da sentença) e como causa de prejuízos para os mesmos operadores revéis, originados na ausência de reposição – motivada nesse mesmo incumprimento –, porquanto, em teoria, à falta de comparticipação por via dos descontos, o negócio da distribuição não teria viabilidade (Linhas 3787-3788 da sentença). -Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas (i) os distribuidores incumpridores eram mais lucrativos; (ii) os distribuidores incumpridores eram menos lucrativos; -Ainda a este respeito, verifica-se igualmente contradição quanto aos requisitos de preenchimento do próprio conceito de fixação, havendo passagens dissonantes quanto sobre se a fixação dos preços mínimos exigia ou, em si mesma, que os distribuidores cumprissem com as condições que lhe eram transmitidas/impostas, aparecendo ora como irrelevante (Linhas 6575-6577 da sentença), ora como um elemento essencial (Linhas 3709-3711 da sentença). -Por outro lado, Tribunal recorrido afirma que a retaliação face ao incumprimento, não raras vezes, integrava um programa de corte relacional com o distribuidor subversivo (Linhas 5881-5885 e Linhas 7539-7547 da sentença), -Mas o que significaria que, implementada essa retaliação, estaria automaticamente excluído o potencial de fixação de preços, na exata medida em que os próprios mecanismos incorporados na retaliação contendem com a existência dos instrumentos de execução da imposição – se a Super Bock deixa de fornecer o distribuidor, já não lhe pode impor preços; -Do mesmo modo, é igualmente óbvio que, se como se afirma na decisão recorrida, a retaliação englobava também medidas de corte dos incentivos financeiros aos distribuidores, (Linhas 3722-3726 da sentença) me se tais incentivos correspondem ao instrumento de execução da fixação dos preços, haveria que concluir que a retaliação – e, como tal, o incumprimento/inobservância que a motiva – afasta, pelos seus próprios termos, qualquer infração – se a Recorrente Super Bock corta os descontos, já não pode fixar preços por via dos descontos; -Ou seja, a fixação de preços e retaliação, na aceção que deles feita pelo Tribunal, são conceitos que se excluem mutuamente!”
São infundadas as alegadas contradições.
A sentença deu como provados os factos nº 80 a 82 relativamente ao procedimento habitual de fixação e imposição de preços, não se descortinando contradição alguma neste acervo factual.
De igual forma, não se vê oposição entre os factos provados nº 84 e 85, relativos às formas de controlo e monitorização sobre os preços de revenda praticados pelos distribuidores, nem entre os factos nº 86 a 104, que descrevem as formas de retaliação da Super Bock em caso de incumprimento, assim como a fixação dos preços de revenda por meios indirectos.
Todo este elenco factual, por seu turno, se mostra adequada, coerente e profusamente explicado em sede de motivação da decisão de facto.
Carecem, pois, de fundamento as alegações dos recorrentes, designadamente de que “fixação de preços e retaliação são conceitos que se excluem”. Como frisa o Ministério Público e decorre da factualidade assente, “a retaliação era uma componente da política comercial e do modelo de negócio da empresa e um instrumento de obediência, sendo a privação de fornecimento dos descontos eram uma consequência para o incumprimento dos preços impostos aos distribuidores”.
Improcede o recurso também nesta parte.
g)-Propósitos subjacentes à fixação de preços e ao pass-througt (conclusão LXVIII a LXXIV)
Sustentam os recorrentes que: -“Fica sem se perceber se, no entendimento do Tribunal, a Recorrente Super Bock tinha em vista, com a prática de fixação de preços, o seu posicionamento na revenda em sentido da subida dos preços de revenda (Linhas 6035-6036, 7954-7958, 8665-8666 e 10336-10339da sentença) ou da descida dos preços de revenda (Linhas 5129-5131 e a Linhas 10091-10093 da sentença).; -Também no que concerne à apreciação em matéria de pass-through – leia-se: o impacto da política de preços observada pela Recorrente Super Bock, ora sobre o preço de revenda dos distribuidores, ora a jusante, na variação registada no preço praticado ao consumidor –, verifica-se também uma assinalável contradição entre os pressupostos de facto assumidos. - Na verdade, o Tribunal balança entre (i) a imprestabilidade do estudo económico por falta de desagregação entre “cumpridores” e “incumpridores” (Linhas 10791-10793 da sentença), em linha com o anterior indeferimento da prova pericial requerida pelos Recorrentes – e que visava também a análise do pass-through no segmento dos preços de revenda dos distribuidores; -Daí a contradição, representada na assunção simultânea das seguintes premissas: (i) é irrelevante a apreciação do pass-through no segmento dos preços de revenda dos distribuidores e, por isso, não é admitida uma perícia requerida pelos Recorrentes; (ii) os Recorrentes não lograram produzir prova da inexistência do pass-through no segmento dos preços de revenda dos distribuidores. -Acresce que é igualmente contraditório o posicionamento do Tribunal recorrido no que respeita ao significado do pass-through sobre os preços praticados aos consumidores, - Também ele assumido pelo Tribunal como indiferente ao objeto dos presentes autos – e também por isso rejeitou a prova pericial requerida pelos Recorrentes –, por outro foi tomada como questão dotada de relevância, (i) ora para apontar a existência de prejuízos para os consumidores (Linhas 12545-12548 da sentença); (ii) ora para apontar o caráter neutral da infração (Linhas 12889-12892 da sentença); (iii) ora para afirmar desconhecimento da questão, fosse no sentido da existência ou da inexistência de efeitos no mercado (Linhas 11072-11077, 11446-11448 e 13764-13766 da sentença)”;
É notória a discordância dos recorrentes quanto ao decidido pelo Tribunal a quo, estribando-se no conceito económico de pass-througt (passagem dos efeitos nocivos ao consumidor final), sem que logrem explicitar as pretensas contradições, que constituem pressuposto do invocado art. 410º/2 (alínea b) do CPP. Acresce que nas práticas anticoncorrenciais por objecto são inócuos os respectivos efeitos e que a questão releva não dos factos mas do seu enquadramento jurídico.
Quanto ao indeferimento da perícia requerida, é objecto de recurso autónomo, relegando-se a sua apreciação para a sede própria.
Concluímos, pois, pela improcedência do recurso nesta parte.
h)-Dolo, enquanto elemento subjectivo do tipo (conclusão LXXV a LXXX a LXXIX)
Sustentam os recorrentes que:
- “A sentença mostra-se claramente insuficiente e errada nos seus fundamentos. -Na verdade, a Linhas 10994-10997 da sentença constam apenas afirmações circulantes, que definem com o definido e em que se diz, simplesmente, que quem fixa preços fá-lo porque quer. -A linha de pensamento seguido faz coincidir a culpa com a prática do facto, pelo que qualquer facto ilícito, porque praticado, seria necessariamente doloso, por que querido, pela mesmíssima e simplíssima razão de ter sido praticado, esvaziando totalmente a apreciação do elemento subjetivo de qualquer interesse prático. -Do exposto resulta que a decisão recorrida não alicerçou a sua conclusão quanto elemento subjetivo em pressupostos de facto suficientes – ou, sequer, existentes –, havendo que consubstanciar em elementos externos ao mero facto praticado o nexo psicológico que o determinou e que constitui o elemento de desvalor de imputação da conduta ao agente”.
Neste ponto, os recorrentes invocam a insuficiência e o erro dos fundamentos da sentença. Embora não o refiram, certamente pretendem invocar o vício previsto na alínea a) do citado art. 410º/2 do CPP.
O vício da insuficiência da matéria de facto provada ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe quando o tribunal deixa de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa. Nas palavras de Sima Santos, trata-se de uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (Recursos em Processo Penal, 2007, p. 69, citado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/4/2013, P. nº 49/11.8GBMMN.E1, relatora Ana Brito, publicado em www.dgsi.pt).
Ora, da sentença recorrida consta a seguinte factualidade sobre o elemento subjectivo: factos provados nºs 113, 115, 120, 123, 124 e 147 a 151. Acresce que tais factos se mostram adequadamente fundamentados como consta das páginas 403 a 407 da sentença (linhas 11040 a 11161).
Flui do acervo factual enunciado a descrição precisa, concreta e completa do elemento subjectivo dolo, ou seja, a intenção e finalidade de praticar os factos, assim como a culpa e consciência da ilicitude (cf. factos provados 147 a 151).
Como afirma Augusto Silva Dias (ob. cit. pág. 127), «a culpa na contraordenação consiste num desvio do agente relativamente ao papel social que constitui o padrão do sector de actividade em que aquele opera», defendendo que «esta característica não só aproxima a culpa da ilicitude, no que tange ao critério de imputação, como torna a culpa contra-ordenacional menos individualizada ou mais objectivada do que a culpa penal».
Destarte, o referido elenco factual é suficiente e adequado à subsunção na norma contraordenacional em apreço, não padecendo a decisão da apontada insuficiência factual dos pressupostos do elemento subjectivo.
Pelo exposto, improcedem todos os erros, insuficiências e contradições da matéria de facto invocados.
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4.–DOS ERROS DE JULGAMENTO DE DIREITO
4.1.–QUESTÕES DA INEXISTÊNCIA DE ACORDO DE FIXAÇÃO DIRECTA E INDIRECTA DE PREÇOS DE REVENDA E QUALIFICAÇÃO DA INFRACÇÃO COMO RESTRIÇÃO DA CONCORRÊNCIA POR OBJECTO OU POR EFEITO
Insurgem-se os recorrentes contra a subsunção do caso dos autos no art. 9º da Lei nº 19/2012, de 8 de Maio, que aprovou o Novo Regime Jurídico da Concorrência (RJC) e art. 101º/1 a) do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), considerando que o tribunal a quo errou, quer ao qualificar o procedimento descrito na sentença como «acordo» para efeitos jusconcorrenciais, quer ao enquadrar a restrição vertical, por fixação de preços, como uma restrição por objecto, sem demonstrar o grau suficiente de nocividade da conduta/acordo em causa.
Alegam, em síntese, que:
- O tribunal a quo concluiu pela existência de um «acordo» com recurso a elementos meramente indiciários, afastando-se do entendimento da jurisprudência europeia que exige a demonstração de que os distribuidores, de facto, seguiram os preços mínimos recomendados, nos termos exigidos pelo TJUE e pelas «Orientações relativas às restrições verticais» - 2010/C130/01;
- A existência de um acordo exige que se demonstre que foi efectivamente aplicada na prática a política do fornecedor;
- Dos factos provados na sentença recorrida não pode retirar-se qualquer conclusão quanto à existência de uma fixação directa ou indirecta de preços;
- Para que a infracção se possa caracterizar como restrição por objecto implica a análise do grau suficiente de nocividade da conduta, o que implica o conhecimento do contexto económico subjacente às alegadas práticas anticoncorrenciais, o que não consta da sentença.
A Autoridade da Concorrência e o Ministério Público pugnaram pela improcedência deste segmento do recurso.
Cumpre apreciar.
Dispõe o art. 9º do RJC que: "São proibidos os acordos entre empresas, as práticas concertadas entre empresas e as decisões de associações de empresas que tenham por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional (...)".
Tal preceito converge substancialmente com o teor do n.° 1 do artigo 101.° do TFUE, que estabelece: "São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afetar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno (...)".
O bem jurídico protegido por estas disposições é a concorrência.
O princípio da concorrência constitui um dos objectivos prosseguidos pela União Económica e Monetária, incluindo a construção do mercado interno.
No âmbito do direito nacional, a defesa da concorrência é uma incumbência constitucional do Estado Português, enquanto corolário da iniciativa económica privada e liberdade de empresa (art. 61º da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP), a que acresce uma dimensão associada à tutela do direito de propriedade privada (art. 62º) e aos direitos económicos dos consumidores (art. 60º). Compete, pois, ao Estado “assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral” (art. 81º alínea e) da CRP).
O nº 1 do citado art. 9º do RJC descreve um conjunto de comportamentos, traduzidos em acordos e práticas concertadas de empresas e decisões de associações de empresas, que têm por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do território nacional, procedendo o nº 2 do mesmo preceito a uma enumeração meramente exemplificativa de condutas típicas.
Extrai-se do uso da conjunção «ou» constante do texto da norma o carácter alternativo da condição aí prevista, ou seja, um acordo deve ter por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência.
Por outra banda, tem sido entendido que a referida disposição normativa delimita tipos de mera actividade e de perigo e tipos de resultado e de dano, consoante as acções típicas tiverem por objecto a restrição da concorrência ou provocarem esse mesmo efeito sobre a concorrência (cf. Lei da Concorrência Anotada, Coord. Carlos Botelho Moniz, Almedina, 2016, pág. 85).
A norma em análise encerra, pois, dois conceitos distintos de infracção ou restrição da concorrência: por objecto e por efeito.
Atenta a motivação recursória, importa dilucidar tais conceitos.
A diferença entre infracção/restrição por objecto ou por efeito reside, no essencial, na própria natureza e objectivo da conduta; provando-se o objectivo anticoncorrencial, não há que verificar os seus efeitos na concorrência.
No fundo, está presente a ideia de que certas infracções da concorrência são evidentes a «olho nu». Quer dizer, há certo tipo de práticas restritivas concorrenciais que a experiência demonstra terem uma elevada probabilidade de prejudicarem a eficiência económica e os consumidores, tornando desnecessária a prova dos efeitos anticoncorrenciais, bastando para o efeito a possibilidade de terem algum impacto no mercado.
Consequentemente, é diverso o grau de prova exigido, sendo mais elevado no caso das restrições por efeito.
Como ensina a Profª Sofia Oliveira Pais (cf. parecer junto ao P. nº 322/17.8YUSTR.L1 desta Secção PICRS), a dicotomia entre restrição por objecto e restrição por efeito prende-se com as diferentes funções que cada uma desempenha. “A restrição por objecto procura indagar se o objectivo do acordo, a sua razão de ser, a sua intenção objectivamente determinada é restringir a concorrência. Ao passo que a restrição por efeito procura averiguar se o acordo de facto restringe a concorrência de forma actual ou potencial.
No primeiro caso, as autoridades da concorrência não precisam de demonstrar os efeitos anticoncorrenciais prováveis no mercado, pois presume-se que cláusulas restritivas que possuem um grau de nocividade suficiente em relação à concorrência produzem efeitos anticoncorrenciais. Já no segundo caso, não é necessário provar o objectivo anticoncorrencial.
Não há uma categoria fechada de restrições por objecto, cuja aplicação pressuponha uma investigação meramente formal do acordo. As autoridades concorrenciais terão sempre que proceder a uma análise do acordo no seu contexto económico-jurídico”.
Destarte, essencial é que dessa análise se possa concluir que as cláusulas revelam «um grau suficiente de nocividade em relação à concorrência», presumindo-se, então, a ocorrência de efeitos anticoncorrenciais no mercado.
Por outras palavras, importa provar-se que o acordo é susceptível de produzir efeitos negativos sobre a concorrência, isto é, que o mesmo é em concreto apto, tendo em conta o contexto jurídico e económico em que se insere, para restringir ou falsear a concorrência no mercado comum.
No mesmo sentido, pronuncia-se JV, no parecer junto a estes autos (e referido no art. 542 das alegações de recurso), ao afirmar que “Em suma, o artigo 101.º n.º 1 TFUE pode ser interpretado como contendo uma presunção legal implícita nos termos da qual determinadas categorias de acordos, tendo em conta os objetivos que prosseguem, comportam, em geral, um efeito restritivo da concorrência. Essa presunção não dispensa, pois, a adequada análise do objetivo concreto do acordo, que é indispensável à operabilidade de tal presunção. Nestas condições, a noção de restrição por objeto não implica qualquer tipo de presunção de ilegalidade.”
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem identificado como situações de acordos anticoncorrenciais pelo objecto, entre muitos outros, os acordos verticais (acordos entre empresas que actuam em etapas diferentes do processo económico de produção de bens/prestação de serviços) que fixam preços de revenda (vide Miguel Moura e Silva, Direito da Concorrência, AAFDL Editora, 2020 reimpressão, pág. 533 e seguintes).
A este propósito, escreveu-se na sentença sob recurso (pág. 435), citando um dos segmentos mais relevantes para a questão em apreço, que: “Em paralelo ao que sucede com o artigo 101.º do TFUE, também o n.º 1 do artigo 9.º da nossa lei nacional (RJC) prevê a punibilidade da infracção pelo objecto. Nesta conformidade, a lei permite, para que se afirme que existe um acordo restrito da concorrência, que o mesmo apenas apresente um objecto restritivo, dispensando-se de aferir e demonstrar sequer os efeitos restritivos do mesmo na concorrência. O Tribunal de Justiça tem acolhido este tipo de infracção por objecto, como decorre, por exemplo do acórdão proferido por esse Colendo Tribunal de 04.06.2009, no processo T-Mobile Netherlands BV e o.c. Raad van bestuur van de Nederlandse Mededingingsautoriteit. No mesmo sentido, vide também acórdãos “Consten and Grundig v. Comissão” (proferido pelo TJCE nos apensos 56 e 58/64, “Société Technique Minière v. Maschinenbau Ulm” (proferido pelo TJCE no processo 56/65), “sandoz v. Comissão (proferido pelo TJCE no processo C-277/87) e “Ferriere Nord v. Comissão” (proferido pelo TJCE no processo C-49/05 P). Com efeito, a aferição do carácter restritivo da concorrência dos acordos de empresa é feita em função ou do objecto dos acordos ou dos seus efeitos, tendo o acórdão de 17 de Julho de 1997, proferido pelo TJCE no processo C-219/95P, Ferriere Nord SpA v. Comissão, esclarecido que esses elementos de aferição devem sempre ser interpretados de forma alternativa. Também o próprio TPI, no âmbito do processo JFE Engineering Corp”, processos apensos T-67/00, T-68/00, T-71/00 e T-78/00, sustentou que a Comissão não está obrigada a demonstrar os efeitos que determinada conduta teve para a concorrência, para poder imputar a prática de uma infracção às regras da concorrência, bastando demonstrar que existiu um acordo ou prática concertada entre empresas cujo objecto é a restrição da concorrência. Ainda assim, os Recorrentes apelam à impossibilidade de poderem ser punidas infracções de perigo no âmbito do direito contra-ordenacional, considerando que tal “pressupõe uma desgraduação da relevância do bem jurídico a proteger, que não é compatível com o princípio da proporcionalidade”. Contudo, com o elevado respeito que temos pela posição perfilhada, consideramos que o entendimento versado não encontra acolhimento nem na Constituição, nem na lei. Julgamos que é totalmente pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência a admissibilidade de ilícitos de cariz contra-ordenacional de perigo. Na verdade, nas palavras de Paulo Pinto Albuquerque (in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direito do Homem, Universidade Católica Editora, 2011, pág 30), em função do bem jurídico protegido pela norma, “as contra-ordenações podem ser de dano ou perigo. (…) A contra-ordenação de dano é aquela em que se verifica uma lesão do bem jurídico protegido pela norma. A contra-ordenação de perigo é aquela em que o bem jurídico protegido pela norma é apenas colocado em perigo.” É o que sucede precisamente quando falamos das contra-ordenações por práticas restritas da concorrência por objecto em que “a ideia primacial subjacente a esta categoria do objecto restritivo da concorrência é a de que, intrinsecamente, certos elementos de acordos entre empresas, associados ao contexto em que se insiram esses acordos, apresentam um elevado potencial restritivo da concorrência que, em si mesmo, se traduz num especial desvalor jurídico (desencadeando a aplicação da norma geral de proibição e a verificação da correspondente infracção, independentemente da avaliação in concreto de efeitos dos acordos sobre o funcionamento de certos mercados. (…) “Fazer depender a proibição dos acordos, cujo objecto é organizar artificialmente o funcionamento do mercado, da prova de efeitos adversos para a concorrência – extremamente difíceis de apurar em toda a sua extensão -, não garantiria a tutela eficaz da concorrência efectiva, interesse colectivo, cuja afectação comporta múltiplas externalidades negativas, não apenas para os consumidores” (vide Luís D.S. Morais, in Os Conceitos de Objecto e Efeito Restritivos da Concorrência, Almedina, 2009, pág 29)– sublinhados nossos.
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A questão a decidir consiste em apurar se os factos provados configuram ou não a infracção prevista no art. 9º/1 do RGCO e art. 101º/1 do TFUE, o que implica analisar, desde logo, se estamos face a um acordo ou prática anticoncorrencial, na acepção daqueles preceitos legais.
Sublinhe-se que este Tribunal de recurso se limita a apreciar matéria de direito, estando-lhe vedado a reapreciação da matéria de facto (art. 75º/1 do RGCO).
Dito isto, atentemos no conceito de acordo firmado pelo Tribunal de Justiça e Tribunal Geral, segundo o qual «o conceito de acordo na acepção do art. [101º] se baseia na existência de uma concordância de vontades entre pelo menos duas partes cuja forma de manifestação não é importante, desde que constitua a expressão fiel das mesmas» - cf. acórdão TJ de 6/1/2004, C-2 e C3/01, Bayer c. Comissão, EU:C:2004:2, nº 97.
Para o efeito, segundo o Tribunal Geral, «basta que as empresas em causa tenham expressado a sua vontade comum de se comportarem no mercado de uma forma determinada» - cf. acórdão do TG de 26/10/2000, T-41/96, Bayer c. Comissão, EU:T:2004:242, nº 67.
Analisando estes arestos (também referidos na sentença recorrida) proferidos na sequência de decisão da Comissão (que condenou a farmacêutica Bayer pela alegada imposição de uma proibição de exportação na sua relação com os grossistas espanhóis de medicamentos), refere Miguel Moura e Silva (ob. cit. pág. 502) que “a decisão da Comissão se fundou numa linha jurisprudencial do TJ que atribui a natureza de acordo a certas práticas adoptadas de forma aparentemente unilateral por um produtor, desde que exista a aquiescência, pelo menos tácita, por parte dos distribuidores. Destaca-se neste contexto o acórdão AEG, pelo qual o TJ confirmou a decisão da Comissão segundo a qual esta empresa teria imposto aos seus distribuidores a obrigação de não revender os produtos contratuais abaixo do preço recomendado, com o objectivo de garantir aos distribuidores margens mais elevadas nos seus produtos. A tese da Comissão assentava na exclusão da rede de distribuidores daqueles que não aderissem à política de preços em questão. O TJ confirmou este entendimento da Comissão, nos seguintes termos: (…) Tal atitude por parte do fabricante não constitui um comportamento unilateral da empresa que, como alega a AEG, não estaria abrangido pela proibição do nº 1 do art. [101º] do Tratado. Pelo contrário, insere-se nas relações contratuais que a empresa mantém com os revendedores. Assim, no caso da aprovação de um distribuidor, o acordo tem por base a aceitação, expressa ou tácita, por parte dos contraentes, da política exigida pela AEG de exigir, entre outras condições, a exclusão da rede de distribuidores que, preenchendo os requisitos, não estejam dispostos a aderir a essa política”.
Nesta linha, o Tribunal a quo afirmou na sentença recorrida (pág. 450) que:
“Para que se possa considerar concluído por aceitação tácita um acordo, na acepção do artigo [101.º], n.º 1 do Tratado, é necessário que a manifestação de vontade de uma das partes contratantes, com um objectivo anticoncorrencial, constitua um convite à outra parte, quer seja expresso ou implícito, para a realização comum de tal objectivo, tanto mais que tal acordo não é à primeira vista do interesse da outra parte (…)” – vide o mesmo acórdão do TJ de 06.01.2004, C-2 e C3/01 P, Bayer v. Comissão. Evidentemente que um óbvio exemplo de acordo traduz-se na celebração de um contrato escrito. Contudo, como verificámos, o elemento essencial é que as partes tenham uma intenção conjunta (não sendo necessário para exprimir essa intenção assumi-la através de um contrato válido e vinculativo nos termos da lei nacional ou sequer através de um contrato formal). Na verdade, “acordos de cavalheiros” (vide acórdão do TJUE de 15 de Julho de 1970, ACF Chemiefarma NV (41/69), C.J. (1970) 661), meros entendimentos, acordos orais de onde deriva uma cooperação tácita entre duas empresas são considerados também como acordos (vide Whish, R. & Bailey, D., 2012, Competition Law, New York, Oxford University Press). Aliás, nem sequer se mostra necessário determinar a data exacta do acordo – vide acórdão do TGUE de 15 de Março de 2000, Cimenteries CBR (T-25/95), C.J. (2000) II-491 – nem sequer que existia uma pretensão de vinculação formal das partes ou que seja judiciável. A questão coloca-se, pois, fundamentalmente ao nível da prova de uma vontade comum acordada. “Nestas condições, não é pertinente analisar, contrariamente ao que defende a recorrente, se as empresas em causa se consideraram obrigadas - jurídica, factual ou moralmente - a adoptar o comportamento acordado” (vide acórdão do TGUE de 14 de Maio de 1998, Mayr-Melnhof Kartongesellschaft (T-347/94), C.J. (1998) II-1751). Apesar de teoricamente os acordos entre empresas serem distintos das práticas concertadas, muitas vezes, na prática, não é fácil proceder à exacta distinção entre as duas realidades, especialmente se estas apresentarem um carácter complexo e duradouro. Porque assim é, a jurisprudência comunitária aceita a possibilidade de qualificar uma prática como um acordo e prática concertada (vide, acórdão do TGUE de 20 de Abril de 1999, NV Limburgse Vinyl Maatschappij (T-305/94 etc.), acórdão do TJUE de 8 de Julho de 1999, Anic (C-49/92), acórdão do TGUE de 20 de Março de 2002, HFP (T-9/99)) Assim, tem igualmente relevo, para a análise que aqui se realiza, trazer à colação a noção de “prática concertada”. A prática concertada é “uma forma de coordenação entre empresas que, sem que se tenha chegado a concluir um acordo propriamente dito, substituiu conscientemente os riscos da concorrência por uma cooperação prática entre empresas” (vide acórdão do TJUE de 14 de Julho de 1972, ICI (48/69)). Contudo, para que exista uma proibição dessa prática, a mesma terá de ter por objecto (ou efeito) determinar “condições de concorrência que não correspondam às condições normais do mercado, tendo em conta a natureza dos produtos, a importância e número das empresas, bem como o tamanho e a natureza do mercado em causa” (vide acórdão do TJUE de 16 de Dezembro de 1975, Suiker Unie (40/73)).
O Tribunal de 1ª instância desenvolveu, assim, extensa argumentação para concluir pela existência de um verdadeiro “acordo de empresas”, face ao «comportamento reiterado no tempo, uma verdadeira aquiescência dos distribuidores à prática da Recorrente» (cf. pág. 461 da sentença recorrida).
Sublinhe-se que a noção de acordo jusconcorrencial que tem sido adoptada pela doutrina e jurisprudência é muito ampla, abrangendo todos os contratos, indepentemente da forma que revistam, sendo considerado acordo qualquer comportamento coordenado de empresas, sob qualquer forma jurídica, em que pelo menos uma se obriga a uma determinada prática ou em que se elimina a incerteza do comportamento da outra, seja ele expresso ou tácito, simétrico ou assimétrico (vide Lei da Concorrência Anotada, Carlos Botelho Moniz (coord.), Coimbra Almedina, 2016, pág 87).
Contra a existência de um «acordo» para efeitos jusconcorrenciais manifestam-se os recorrentes, entendendo que o Tribunal a quo não deu como provados factos que demonstrem que a pretensa política da recorrente foi aplicada pelos distribuidores; e que os factos provados nº 86 e 87 apenas são indício de uma aceitação tácita.
Por outro lado, os recorrentes defendem que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento no que diz respeito à (des)necessidade de demonstração pela AdC da nocividade do acordo para que se pudesse considerar existir uma restrição por objecto. Remetem, neste conspecto, para o parecer junto aos autos, de JV, onde se pode ler que “De forma a concluir que um acordo entre empresas encerra esse grau de nocividade, há que ter em conta o seu teor, os seus objetivos e contexto económico e jurídico em que se insere”.
São os seguintes os factos provados que importa considerar neste ponto para efeitos da sua qualificação jurídica (sendo o sublinhado nosso): 65.-Entre a Super Bock e a sua rede de distribuidores independentes (doravante designados “distribuidores”) existe uma relação comercial, no âmbito da qual estes adquirem àquela um conjunto variado de bebidas, incluindo cervejas, águas engarrafadas, sumos/refrigerantes, sidras e vinhos para, nomeadamente, revenderem ao retalho no canal HoReCa; 66.-As relações comerciais entre a Super Bock e os distribuidores desenvolvem-se com base em contratos de distribuição exclusiva para determinada área geográfica de vendas; 67.-Os distribuidores não têm nenhuma relação de grupo com a Super Bock e, nos termos e para os efeitos dos referidos contratos, são tomadores do risco comercial e financeiro associado à revenda dos produtos em causa e ao negócio de distribuição por si prosseguido; 68.-Estes contratos têm a duração de um ano, com prorrogações iguais e sucessivas, podendo, a qualquer momento, ser cessados por qualquer uma das partes;
69.-No âmbito destes contratos, a Super Bock e os distribuidores negoceiam objectivos de venda para estes distribuidores, para cada ano e para cada grupo de produtos, estando previsto nos contratos de distribuição que caso os mesmos não sejam atingidos, que a Recorrente poderá resolver o contrato de distribuição; 70.-Nos termos dos contratos celebrados, é acordada a atribuição aos distribuidores de um território exclusivo de vendas (tipicamente correspondente a um concelho ou conjunto de freguesias); 71.-Os distribuidores da Super Bock são em número não concretamente apurado, mas que rondará o número de 39, os quais se encontram repartidos geograficamente pelas zonas norte, centro e sul, especificadamente Minho, Trás-os-Montes, Beira Interior, Douro Litoral, Beira Litoral, Algarve, Estremadura e Alentejo + Estremadura Interior, excepto nas concretas áreas acima identificadas onde operam as vendas directas da Recorrente Super Bock; 72.-Às 8 áreas geográficas referidas acresce a área correspondente ao arquipélago da dos Açores, abastecido mediante cinco distribuidores, nos moldes acima mencionados (excepto, desde 2014, as ilhas do Faial e do Pico cujo abastecimento é feito mediante operações directas da Recorrente);
IV.4.2–Fixação e imposição directa dos preços de revenda: 73.-No decurso das relações comerciais estabelecidas entre os distribuidores e a Super Bock, esta tem vindo a fixar e a impor, de forma regular, generalizada (a toda a rede de distribuidores) e sem quaisquer alterações durante o período de, pelo menos, 15 de Maio de 2006 a 23 de Janeiro de 2017, as condições comerciais que aqueles têm obrigatoriamente de cumprir na revenda dos produtos que adquirem à Super Bock, designadamente, os preços que cobram aos seus clientes retalhistas, quer concretamente, quer em termos mínimos, ou em termos mínimos médios; 74.-A Super Bock arroga-se expressamente do direito a fixar tais preços de revenda dos produtos que comercializa, sem que, na prática, seja reconhecida aos distribuidores capacidade para auto-determinação nesta matéria; 75.-A referida prática é implementada pela Super Bock através dos seus colaboradores, internamente designados, consoante o âmbito das funções que ocupam, por Gestores de Rede, Gestores de Área ou Gestores de Mercado; 76.-Os Gestores de Mercado têm por função acompanhar o desenvolvimento do negócio dos distribuidores in loco, ou seja, são presença diária nas instalações dos distribuidores, chegando mesmo a acompanhá-los na visita aos respectivos clientes; 77.-Aos Gestores de Área ou de Rede, superiores hierárquicos daqueles, cabem outras funções específicas, ainda que muito vocacionadas para o contacto directo com os parceiros (incluindo, distribuidores) da Super Bock, alocados em função da área geográfica ou do canal de distribuição em causa; 78.-A maioria das vezes os colaboradores da Visada Super Bock impõem aqueles preços de revenda aos distribuidores de forma oral ou transmitem-nos por escrito, via mensagens de correio electrónico; 79.-Os preços de revenda impostos aos distribuidores são determinados pela Recorrente Super Bock de forma a garantir a manutenção de um nível mínimo de preços, estável e alinhado, em todo o mercado nacional; 80.-O procedimento habitual para a fixação e imposição dos preços de revenda aos distribuidores consiste no seguinte: com uma periodicidade mensal (regra geral), a Direcção de Vendas da Recorrente Super Bock aprova uma tabela de preços mínimos de revenda que depois é encaminhada pelos Gestores de Rede ou Gestores de Mercado da Visada Super Bock aos respectivos distribuidores, muitas vezes com a indicação de que a implementação dos preços é obrigatória, não podendo ser praticados preços inferiores ao mínimo fixado, sob pena do incumprimento ser sinalizado pelos colaboradores da Visada Super Bock responsáveis pela Coordenação e Controlo à Direcção de Vendas que tomará medidas em conformidade; 81.-Há ainda ocasiões em que a Super Bock, reagindo ao reposicionamento de preços pelos seus concorrentes, impõe de forma directa, generalizada e imediata, aos distribuidores novos preços mínimos ou fixos de revenda; 82.-Apesar de existirem casos pontuais em que tal não sucede, os preços de revenda fixados pela Recorrente Super Bock (quer nos moldes supra descritos, quer de forma indirecta, nos moldes que infra se evidenciará) são, generalizadamente, de facto, implementados pelos distribuidores; 83.-Constitui uma prática habitual e generalizada para os colaboradores da Super Bock solicitar expressa e directamente aos distribuidores (em conversa telefónica ou presencial) o respeito pelos preços de revenda indicados pela Super Bock;
IV.4.3–Controlo e monitorização: 84.-A Recorrente Super Bock mantém formas de controlo e monitorização sobre os preços de revenda praticados pelos distribuidores; 85.-O sistema de controlo e monitorização implementado pela Recorrente Super Bock assenta, essencialmente, na imposição aos distribuidores de uma obrigação de reporte de informação relativa à revenda, incluindo quantidade e valores, solicitando-lhes, por exemplo, que enviem periodicamente as facturas das suas vendas e no reporte de incumprimentos pela equipa de Gestores de Rede e Gestores de Mercado e pela equipa de Coordenação e Controlo à Direcção de Vendas;
IV.4.4– Formas de retaliação: 86.-A Recorrente Super Bock intimida os distribuidores com diversas formas de retaliação, como o corte de incentivos financeiros (e.g. descontos comerciais aplicáveis à compra dos produtos pelos distribuidores à Super Bock e reembolso de descontos praticados pelos distribuidores na revenda), de fornecimento e reposição de stocks, como forma de os obrigar a praticar os preços de revenda por si fixados; 87.-A Recorrente chega a cortar efectivamente aos distribuidores o fornecimento de produto e a comparticipação (reposição) dos preços de revenda em caso de incumprimento das condições de transacção aplicáveis à revenda por si fixadas;
IV.4.6–Fixação dos preços de revenda por meios indirectos: 90.-De acordo com a Cláusula 2, n.º 1, dos Contratos de Distribuição celebrados entre a Super Bock e os distribuidores, “[o]s Produtos serão vendidos pela UNICER ao distribuidor de harmonia com as tabelas de preços e condições gerais de venda da UNICER que se consideram, para todos os efeitos, elementos integrantes deste contrato”; 91.-Já o n.º 2 da mesma cláusula estipula que “A UNICER poderá alterar, a todo o tempo e por uma ou mais vezes, mediante comunicação dirigida ao DISTRIBUIDOR, as tabelas de preços e as condições gerais de venda referidas no número anterior”; 92.-Está igualmente previsto no n.º 3 que “No prazo de 30 dias a contar da comunicação referida no número anterior, poderá o DISTRIBUIDOR denunciar o contrato por simples comunicação dirigida à UNICER”; 93.-Na prática, porém, as condições de venda são as que se encontram nas facturas, condições essas que são previamente comunicadas aos distribuidores, nomeadamente por mensagens de correio electrónico enviadas por colaboradores da Recorrente Super Bock àqueles; 94.-Desde pelo menos 15 de Maio de 2006 e até pelo menos 23 de Janeiro de 2017, a Recorrente Super Bock fixa condições comerciais aos distribuidores, de forma regular e generalizada, garantindo-lhes margens de distribuição positivas, subordinadas ao cumprimento dos preços mínimos de revenda; 101.-A maioria dos descontos extra-ciclo, desde pelo menos, 15 de Maio de 2006 até Fevereiro de 2015, eram concedidos, como sistema, sobre sell out ( ), sendo o seu valor apurado tendo por base os preços praticados pelos distribuidores aos seus clientes do HoReCa, estabelecendo a Recorrente mensalmente os preços mínimos (ainda que, por vezes, em termos médios) a que os distribuidores poderiam vender, que também serviam de limite até ao qual a mesma Recorrente suportaria os descontos “passados aos clientes” dos distribuidores, mediante “reposições”; 102.-Essas reposições eram feitas pela Recorrente mediante notas de crédito; 103.-Após Fevereiro de 2015 e até, pelo menos, 23 de Janeiro de 2017, o sistema de descontos sobre sell out continuou a vigorar para produtos em barril /pressão, concedidos também tendo por base os preços mínimos previamente estabelecidos pela Recorrente, estes contudo, apurados de forma personalizada, em função dos pontos de venda específicos (clientes dos distribuidores), servindo aqueles preços mínimos também de limite até ao qual a mesma Recorrente suportaria os descontos “passados” a esses clientes dos distribuidores, mediante “reposições”; 104.-Sem esses descontos sobre sell out, a margem da distribuição seria, em muitos casos, negativa, o que forçava os distribuidores a cumprir os níveis de preços de revenda impostos pela Recorrente Super Bock;
Do elenco factual descrito retiramos os elementos essenciais do comportamento adoptado no âmbito dos contratos de distribuição exclusiva celebrados entre a Super Bock e os seus distribuidores, visando a revenda por estes, no canal Horeca, dos bens (um conjunto variado de bebidas, incluindo cervejas, águas, sumos, vinhos) adquiridos à Super Bock, cujo objectivo era garantir a manutenção de um nível mínimo de preços, estável e alinhado, em todo o mercado nacional.
A Super Bock (Direcção de Vendas) aprovava mensalmente uma tabela de preços mínimos de revenda, que encaminhava aos distribuidores; os colaboradores da Super Bock fixavam os preços de revenda aos distribuidores de forma oral ou por escrito (via mensagens de correio electrónico) e esses preços fixados eram implementados, generalizadamente, pelos distribuidores. Por seu turno, estes, no âmbito do sistema de controlo e monitorização estabelecido pela Super Bock, tinham a obrigação de reportar a esta empresa informação relativa à revenda (v.g. quantidades, valores), sujeitando-se às formas de retaliação definidas pela Super Bock, como o corte de incentivos financeiros (descontos comerciais na compra dos produtos pelos distribuidores e reembolso de descontos praticados pelos distribuidores na revenda) e de fornecimento e reposição de stocks.
Esta prática manteve-se durante o período, pelo menos, de 15 de Maio a 23 de Janeiro de 2017. Nesse período, a Super Bock fixava condições comerciais aos distribuidores de forma regular e generalizada, garantindo-lhe margens de distribuição positivas, subordinadas ao cumprimento dos preços mínimos de revenda, sistema que se manteve após Fevereiro de 2015 e até 23 de Janeiro de 2017 relativamente aos produtos em barril/pressão (cf. facto 103).
Analisando o acervo factual em apreço o Tribunal a quo teceu as seguintes considerações, que se transcrevem na parte mais significativa (pág. 462 da sentença): A fixação, directa e indirecta, dos preços mínimos implica (pelo menos esse era o objectivo) a coarctação da liberdade dos distribuidores em determinar efectivamente os preços a praticar (diminuindo-os, se assim entendessem), abaixo dos patamares estabelecidos, eliminando a concorrência pelo preço dos produtos, em prejuízo dos consumidores finais que deixavam de poder beneficiar de produtos a preços mais reduzidos. O prejuízo para os consumidores é especialmente grave no caso concreto, tendo em conta os mercados em causa e a preponderância que a Super Bock neles ocupa, bem como o facto da prática ter sido implementada por uma rede de distribuidores com cobertura da quase integralidade do território nacional. A restrição daquela liberdade determina, necessariamente, uma distorção no mercado, já que influencia a lei da oferta e da procura (porque é o factor preço que se apresenta como decisivo), eliminando (ou pretendendo eliminar) a incerteza do comportamento das empresas concorrentes. Com efeito, a fixação dos preços deve resultar apenas do livre jogo do mercado, muito embora o mesmo deva respeitar as normas que a esse respeito sejam aplicáveis, as quais se propõem a regular o funcionamento do mercado e não a introduzir-lhe distorções. O acordo entre empresas sob análise integra, por si, uma restrição sensível da concorrência, independentemente dos seus efeitos, os quais são à partida presumidos pelo legislador.
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Sobre a questão fulcral atinente ao objecto – anticoncorrencial ou não - das condutas a que se reportam os factos e à necessidade de apurar o seu contexto económico e jurídico, importa atender à jurisprudência produzida ao longo dos anos pelo TJUE, cujas decisões devemos seguir de perto em conformidade com os princípios do primado do direito europeu, da interpretação conforme e da cooperação leal (art. 4º/3 do TFUE).
Como refere João Alexandre Pateira Ferreira (tese de doutoramento «A abordagem mais económica ao Direito Europeu da Concorrência, Acordos entre empresas, restrições concorrenciais por objecto e a análise dos efeitos na aplicação do art. 101º/1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia», 2018, publicada na internet), a partir da década de 90 assistiu-se a uma mudança estrutural significativa que procurou afastar o Direito Europeu da Concorrência da aplicação formalista que o caracterizou nas suas décadas iniciais de implementação e consolidação, procurando os instrumentos de análise económica, para determinar os efeitos económicos das condutas e dos danos ou prejuízos para a concorrência e para os consumidores decorrentes de determinadas condutas empresariais, abandonando um conjunto de presunções baseadas num conceito de “workable competition” a que o Tribunal de Justiça recorria na sua década inicial.
Defende o referido autor que a dicotomia entre as infracções por objecto e por efeito merece uma renovada atenção à luz do processo de modernização do Direito Europeu da Concorrência assente numa abordagem mais económica, perspectivando os ganhos de bem-estar dos consumidores como o objectivo principal das regras da concorrência.
A apontada distinção entre objecto e efeito restritivo da concorrência está, assim, no centro dos principais debates dogmáticos no Direito Europeu da Concorrência.
Omitindo o Tratado a definição dos conceitos que se extraem do art. 101º/1 do TFUE, tem cabido à jurisprudência a sua concretização e aplicação das regras ao caso concreto.
A abordagem mais económica do direito da concorrência nesta matéria foi desencadeada pelo acórdão «Societé Technique Miniére» de 30/6/1966 (processo 56/65, ECLI:EU:C:1966:38), em que o TJ deixa claro que um acordo só pode ser considerado como uma restrição da concorrência se do mesmo resultar, no quadro real em que se insere, uma coordenação empresarial que seja apta a restringir a concorrência. De seguida, o impacto na concorrência (“as alterações na concorrência” a que se refere o Tribunal) deve ser aferido à luz do objeto do próprio acordo, ou de algumas das suas cláusulas, “tendo em conta o contexto económico no qual se integra”. Porém, se a análise das suas cláusulas não revelar um grau suficiente de perniciosidade em relação à concorrência, haverá então que examinar os efeitos do acordo e determinar se a concorrência foi de facto impedida, restringida ou falseada.
Tal entendimento veio a ser reforçado pelo TJ no acórdão «Cartes Bancaires» (de 11/9/2014, P. C-67/13P, ECLI:EU:C:2014:2204), sublinhando que “o critério jurídico essencial para determinar se uma coordenação entre empresas comporta tal restrição da concorrência ‘por objetivo’ reside na constatação de que essa coordenação apresenta, em sim mesma, um grau suficiente de nocividade para a concorrência.”
Em tal aresto pode ler-se, na parte que agora importa considerar, o seguinte: (…) 51-Assim, é pacífico que determinados comportamentos colusórios, como os que levam à fixação horizontal dos preços por cartéis, podem ser considerados de tal modo suscetíveis de terem efeitos negativos, em especial, sobre o preço, a quantidade ou a qualidade dos produtos e dos serviços que se pode considerar inútil, para efeitos de aplicação do artigo 81.-, n.° 1, CE, demonstrar que produzem efeitos concretos no mercado (v., neste sentido, designadamente, acórdão Clair, 123/83, EU:C:1985:33, n.° 22). Com efeito, a experiência mostra que esses comportamentos provocam reduções da produção e subidas de preços, conduzindo a uma má repartição dos recursos em prejuízo, especialmente, dos consumidores. 52-Se a análise de um tipo de coordenação entre empresas não apresentar um grau suficiente de nocividade para a concorrência, há que examinar, em contrapartida, os seus efeitos e, para que a mesma possa ser objeto da proibição, exigir que estejam reunidos os elementos que determinam que a concorrência foi de facto impedida, restringida ou falseada de forma sensível (v., acórdão Allianz Hungária Biztosító e o., EU:C:2013:160, n.° 34 e jurisprudência referida). 53- Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a fim de apreciar se um acordo entre empresas ou uma associação de empresas apresenta um grau suficiente de nocividade para ser considerado uma restrição da concorrência «por objetivo» na aceção do artigo 81.o, n.o 1, CE, deve atender se ao teor das suas disposições, aos objetivos que visa atingir, bem como ao contexto económico e jurídico em que o mesmo se insere. No âmbito da apreciação do referido contexto, há também que tomar em consideração a natureza dos bens ou dos serviços afetados e as condições reais do funcionamento e da estrutura do mercado ou dos mercados em causa (v., neste sentido, acórdão Allianz Hungária Biztosító e o, EU:C:2013:160, n.o 36 e jurisprudência referida). 54-Além disso, embora a intenção das partes não seja um elemento necessário para determinar o caráter restritivo de um acordo entre empresas, nada impede que as autoridades da concorrência ou os órgãos jurisdicionais nacionais e da União a tenham em conta (v. acórdão Allianz Hungária Biztosító e o., EU:C:2013:160, n.° 37 e jurisprudência referida).(…)”
No que tange à interpretação do art. 101º do TFUE, mais recentemente o Tribunal de Justiça, no caso Budapest (acórdão de 2 de abril de 2020, Budapest Bank e o., C 228/18, EU:C:2020:265), referiu o seguinte, reproduzindo-se aqui os segmentos mais relevantes do acórdão: (…) 33-Há que começar por recordar que, para ser abrangido pela proibição enunciada no artigo 101.o, n.o 1, TFUE, um acordo tem de ter «por objetivo ou efeito» impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça desde o Acórdão de 30 de junho de 1966, LTM (56/65, EU:C:1966:38), o caráter alternativo deste requisito, indicado pela conjunção «ou», conduz, em primeiro lugar, à necessidade de considerar o próprio objetivo do acordo (Acórdãos de 26 de novembro de 2015, Maxima Latvija, C 345/14, EU:C:2015:784, n.o 16, e de 20 de janeiro de 2016, Toshiba Corporation/Comissão, C 373/14 P, EU:C:2016:26, n.o 24). 34-Deste modo, a partir do momento em que o objetivo anticoncorrencial de um acordo esteja provado, não há que investigar os seus efeitos sobre a concorrência (Acórdãos de 26 de novembro de 2015, Maxima Latvija, C 345/14, EU:C:2015:784, n.° 17, e de 20 de janeiro de 2016, Toshiba Corporation/Comissão, C 373/14 P, EU:C:2016:26, n.° 25) . 35- Com efeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que determinados tipos de coordenação entre empresas revelam um grau suficiente de nocividade para a concorrência para que se possa considerar que não há que examinar os seus efeitos. Esta jurisprudência tem em conta o facto de determinadas formas de coordenação entre empresas poderem ser consideradas, pela sua própria natureza, prejudiciais ao normal funcionamento da concorrência (Acórdãos de 11 de setembro de 2014, MasterCard e o./Comissão, C 382/12 P, EU:C:2014:2201, n.os 184 e 185, e de 20 de janeiro de 2016, Toshiba Corporation/Comissão, C 373/14 P, EU:C:2016:26, n.° 26) .
36-Assim, é facto assente que se pode considerar que certos comportamentos colusórios, como os que levam à fixação horizontal dos preços por cartéis, são tão suscetíveis de terem efeitos negativos, em especial, sobre o preço, a quantidade ou a qualidade dos produtos e dos serviços, que se por considerar que é inútil, para efeitos da aplicação do artigo 101.°, n.° 1, TFUE, demonstrar que produzem efeitos concretos no mercado. Com efeito, a experiência mostra que esses comportamentos provocam reduções da produção e subidas de preços, conduzindo a uma má repartição dos recursos em prejuízo, especialmente, dos consumidores (Acórdãos de 11 de setembro de 2014, CB/Comissão, C 67/13 P, EU:C:2014:2204, n.° 51, e de 26 de novembro de 2015, Maxima Latvija, C 345/14, EU:C:2015:784, n.° 19) . 37- À luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça recordada nos n.os 35 e 36 do presente acórdão, o critério jurídico essencial para determinar se um acordo comporta uma restrição da concorrência «por objetivo» reside assim na constatação de que tal acordo apresenta, em si mesmo, um grau suficiente de nocividade para a concorrência para considerar que não é necessário apurar os respetivos efeitos (Acórdão de 26 de novembro de 2015, Maxima Latvija, C 345/14, EU:C:2015:784, n.° 20 e jurisprudência referida). 38-Se a análise de um tipo de coordenação entre empresas não apresentar um grau suficiente de nocividade para a concorrência, há que examinar, em contrapartida, os seus efeitos e, para a proibir, exigir que estejam reunidos os elementos que determinam que a concorrência foi de facto impedida, restringida ou falseada de forma sensível (Acórdão de 11 de setembro de 2014, CB/Comissão, C 67/13 P, EU:C:2014:2204, n.° 52 e jurisprudência referida). 39-Embora resulte assim da jurisprudência do Tribunal de Justiça mencionada nos n.os 33 a 38 do presente acórdão que, quando um acordo é qualificado de restrição da concorrência «por objetivo» ao abrigo do artigo 101.°, n.° 1, TFUE, não é necessário demonstrar, além disso, os efeitos deste acordo para considerar que este é proibido ao abrigo desta disposição, o Tribunal de Justiça, por outro lado, já constatou, a respeito de um único e mesmo comportamento, que este último tinha tanto por objetivo como por efeito restringir a concorrência (v. neste sentido, nomeadamente, Acórdãos de 1 de outubro de 1987, van Vlaamse Reisbureaus, 311/85, EU:C:1987:418, n.° 7; de 19 de abril de 1988, Erauw Jacquery, 27/87, EU:C:1988:183, n.os 14 e 15; de 27 de setembro de 1988, Ahlström Osakeyhtiö e o./Comissão, 89/85, 104/85, 114/85, 116/85, 117/85 e 125/85 a 129/85, EU:C:1988:447, n.° 13, e de 9 de julho de 2015, InnoLux/Comissão, C 231/14 P, EU:C:2015:451, n.° 72) . (…) 51- Para além das considerações expostas nos n.os 33 a 40 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça já declarou que, a fim de apreciar se um acordo entre empresas ou uma decisão de associação de empresas apresenta um grau suficiente de nocividade relativamente à concorrência para ser considerado uma restrição da concorrência «por objetivo», na aceção do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, deve atender se ao teor das suas disposições, aos objetivos que visa atingir, bem como ao contexto económico e jurídico em que se insere. No âmbito da apreciação do referido contexto, há também que tomar em consideração a natureza dos bens ou dos serviços afetados e as condições reais do funcionamento e da estrutura do mercado ou dos mercados em causa (Acórdão de 11 de setembro de 2014, CB/Comissão, C 67/13 P, EU:C:2014:2204, n.o 53 e jurisprudência referida). 54- Acresce que o conceito de restrição da concorrência «por objetivo» deve ser interpretado de forma restritiva. Com efeito, sob pena de dispensar a Comissão da obrigação de provar os efeitos concretos sobre o mercado de acordos em relação aos quais não foi feita prova de que são, pela sua própria natureza, prejudiciais ao correto funcionamento da concorrência, o conceito de restrição da concorrência «por objetivo» só pode ser aplicado a certos tipos de coordenação entre empresas que revelem um grau suficiente de nocividade relativamente à concorrência para que se possa considerar que não é necessário examinar os seus efeitos. A circunstância de os tipos de acordos mencionados no artigo 101.o, n.o 1, TFUE não formarem uma lista exaustiva de colusões proibidas não é, a este respeito, pertinente (v., neste sentido, Acórdão de 11 de setembro de 2014, CB/Comissão, C 67/13 P, EU:C:2014:2204, n.o 58 e jurisprudência referida). 55.- No caso de não se poder considerar que o acordo em causa tem um objetivo anticoncorrencial, haverá então que apreciar se se pode considerar que este é proibido devido às alterações à concorrência que constituem o seu efeito. Para este efeito, conforme o Tribunal de Justiça já repetiu reiteradamente, há que examinar a concorrência no âmbito real em que seria exercida se este acordo não tivesse existido para apreciar o impacto deste último nos parâmetros da concorrência, tais como, nomeadamente, o preço, a quantidade e a qualidade dos produtos ou dos serviços (v., neste sentido, Acórdão de 11 de setembro de 2014, MasterCard e o./Comissão, C 382/12 P, EU:C:2014:2201, n.os 161 e 164 e jurisprudência referida). (…) 76.- Com efeito, conforme salientou o advogado geral nos n.os 54 e 63 a 73 das suas conclusões, para justificar que um acordo seja qualificado de restrição «por objetivo» da concorrência, sem que seja necessário realizar uma análise dos seus efeitos, deve existir uma experiência suficientemente sólida e fiável para que se possa considerar que esse acordo é, pela sua própria natureza, prejudicial para o normal funcionamento da concorrência.
A análise da jurisprudência emanada do TJ permite-nos, portanto, encontrar como critério para determinação do objecto (ou efeito) restritivo de um determinado comportamento empresarial o «grau suficiente de nocividade para a concorrência», segundo o qual se o acordo apresenta em si mesmo esse grau de nocividade para a concorrência, não é necessário apurar os respectivos efeitos. Para tanto, há que considerar o contexto económico e jurídico específicos em que se insere a coordenação entre empresas (v.g. acordo ou prática restritiva).
Como vimos, o Tribunal recorrido entendeu que estamos perante um acordo restritivo da concorrência atento o seu objecto, considerando por isso dispensável a apreciação dos seus efeitos sobre o funcionamento dos mercados.
Os aludidos acórdãos proferidos pelo TJUE e demais jurisprudência conhecida não se debruçam sobre casos idênticos ao caso subjudice, nem a aplicação/interpretação normativa (v.g. art. 101º/1 a) do TFUE) que se impõe no caso vertente pode considerar-se clara, inequívoca e isenta de dúvida razoável.
Passemos, então, a analisar o pedido de reenvio prejudicial deduzido pelos recorrentes.
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5.–PEDIDO DE REENVIO PREJUDICIAL
Sob as conclusões 857 e seguintes, os recorrentes requerem que, ao abrigo do mecanismo de reenvio prejudicial previsto na alínea b) do n.º 3 do art. 19º do Tratado da União Europeia e do art. 267º do TFUE, se coloquem ao Tribunal de Justiça da União Europeia diversas questões, quer atinentes à apreensão de correspondência electrónica em processo de contra-ordenação, quer à questão da restrição por objecto, demonstração do grau suficiente de nocividade e acordo no âmbito da fixação vertical de preços mínimos.
O Ministério Público e a Autoridade da Concorrência (AdC) pugnaram pelo indeferimento do pedido de reenvio, tendo a AdC, à cautela, sugerido redacção alternativa à apresentada pelos recorrentes das questões a submeter eventualmente ao TJUE.
Vejamos.
Dispõe o artigo 267.º do TFUE que: “O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: a)-Sobre a interpretação dos Tratados; b)-Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível”.
O Tratado consagra, assim, um instrumento de cooperação judiciária pelo qual o juiz nacional e o juiz da União Europeia são chamados, no âmbito das competências próprias, a contribuir para uma decisão que assegure a interpretação e aplicação uniformes do Direito da União Europeia no conjunto dos Estados Membros, em obediência ao princípio da lealdade ou cooperação leal ínsito no art. 4º/3 do Tratado da União Europeia e ao princípio do primado do Direito da União sobre o Direito Nacional.
«Como ensina Fausto Quadros, foi a necessidade de assegurar a uniformidade na interpretação do Direito da União, evitando o risco de ruptura da unidade do ordenamento comunitário em consequência de interpretações divergentes das normas comunitárias por parte do Tribunais dos Estados-Membros, que levou o TJ a definir os efeitos dos acórdãos prejudiciais “ao abrigo do sistema do precedente, que caracteriza o sistema da common law”. Isto é, o acórdão prejudicial interpretativo obriga o juiz nacional que suscitou a questão, bem como todos os outros tribunais nacionais e demais tribunais dos restantes Estados-Membros quando se defrontarem com a mesma questão de direito». (vide Maria Rosa Oliveira Tching, “Juiz Nacional – um juiz cada vez mais europeu”, Julgar nº 14 - 2011, Coimbra Editora, pág. 146).
Por outro lado, a uniformidade na interpretação e aplicação do Direito da União é reforçada face à obrigação que se impõe ao juiz nacional de, em regra, suscitar a questão prejudicial.
Com efeito, decorre do § 3 do citado art. 267º que quando a questão de interpretação for suscitada perante tribunal nacional de cujas decisões não caiba recurso ordinário, o reenvio é obrigatório.
No Acórdão Cilfit (proferido em 6/10/1982, no processo nº 283/81) o TJ veio definir que a obrigação de suscitar, nestes casos, a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada nas seguintes situações: 1)-quando a questão não for necessária nem pertinente para a resolução do litígio concreto; 2)-quando o TJ já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar ou quando existir sobre a mesma jurisprudência consolidada do TJ; 3)-quando o juiz nacional não tiver dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de direito europeu, por o sentido da norma em questão ser claro e evidente.
Consagrou, assim, neste último caso a chamada “teoria do acto claro”, da qual decorre que o juiz nacional apenas fica dispensado de efectuar o reenvio caso não haja lugar a nenhuma dúvida razoável (como foi reafirmado em sucessivos acórdãos do TJ, nomeadamente no acórdão de 1/1/2015 no processo nº C-452/14).
No referido acórdão Cilfit o TJ definiu ainda os critérios que o juiz nacional tem de utilizar para testar a clareza e precisão da norma comunitária, a saber:
Estar convicto de que a mesma evidência se impõe aos órgãos jurisdicionais de outros Estados-membros e ao Tribunal de Justiça;
Comparar todas as versões linguísticas da disposição normativa a fim de bem interpretá-la;
Considerar que os conceitos jurídicos não têm necessariamente o mesmo conteúdo no Direito da União e nos diferentes direitos nacionais;
Considerar que cada disposição do Direito da União deve ser contextualizada e interpretada à luz do conjunto das suas disposições, das suas finalidades e do seu grau de evolução.
Seguindo estes critérios, apenas nos casos em que exista acórdão prejudicial anterior sobre a mesma matéria é que o juiz nacional escapará à obrigatoriedade do reenvio, garantindo-se dessa forma a eficácia interna do Direito Europeu.
No mesmo sentido vejam-se as Recomendações do TJUE à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais – cf. pontos 5 e 6 das Recomendações 2018/C 257/01 (in: Jornal Oficial da União Europeia C 257, de 20/7/2018).
Neste conspecto, escreveu-se no acórdão da Relação do Porto de 7/7/2016 (P. nº 2872/15.5T8PNF.P1), publicado no sítio da internet www.dgsi.pt que (…) “o Tribunal nacional apenas não está obrigado a proceder ao reenvio se a questão for tão óbvia que não deixe margem para qualquer dúvida interpretativa razoável quanto ao modo como deva ser resolvida (doutrina do acto claro)”. Concluindo que “a ausência do reenvio prejudicial pode frustrar a tutela jurisdicional efectiva dos direitos que para os particulares decorre do Direito Comunitário”.
No mesmo sentido pronunciou-se este Tribunal da Relação em acórdão desta Secção PICRS proferido em 6/4/2021 no âmbito do P. nº 322/17.8YUSTR.L1
Voltando ao caso dos autos, atentemos nas seguintes questões objecto do pedido de reenvio prejudicial:
Quanto à matéria da apreensão de correspondência em formato digital: a)-Se o disposto nos artºs 7º e 52º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que é admissível a realização de uma pesquisa de correspondência eletrónica, por termos ou palavras-chave, destinada à recolha e apreensão de prova, em processo de contraordenação?
Respondendo-se positivamente à questão colocada na alínea anterior,
b)-Se, de acordo com o disposto nos artºs. 7º., 8º., nº. 3, e 52º. do TFUE, e do artº. 16º nº. 2 do TFUE, deve a referida busca ser precedida de despacho em que expressamente se identifiquem os termos a utilizar na sua realização, como forma de limitar a atuação da autoridade pública responsável pela investigação? c)-Se, para efeitos do disposto no artº. 8º nº. 3 da CDFUE e do art. 16º nº. 2 do TFUE, poderá o Ministério Público ser considerado uma entidade dotada de autonomia e independência, atentas as competências que lhe são expressamente atribuídas pela legislação nacional em matéria contraordenacional?
Quanto à questão da restrição por objecto e demonstração do grau suficiente de nocividade do acordo: d)-A fixação vertical de preços mínimos é, per se, uma infração por objeto, que não implica uma análise prévia do grau suficiente de nocividade do acordo?
Quanto à questão do acordo no âmbito da fixação vertical de preços mínimos e)-A demonstração do elemento do tipo “acordo”, da infração por fixação (tácita) de preços mínimos aos distribuidores, implica a concreta demonstração de que os distribuidores seguiram, na prática, os preços fixados, designadamente, através de prova direta? f)-O (i.) envio de tabelas com indicação de preços mínimos e de margens de distribuição, (ii.) a solicitação de preços de venda pelos distribuidores, (iii.) a apresentação de queixas pelos distribuidores – quando consideravam que os preços de revenda que lhes eram impostos não eram competitivos ou quando verificavam que distribuidores concorrentes estavam desalinhados – (iv.) a existência de mecanismos de monitorização de preços (médios mínimos) e (v.) de medidas de retaliação (sem demonstração da sua concreta aplicação), são elementos suficientes para considerar que existiu uma infração por fixação (tácita) de preços mínimos aos distribuidores?
No que tange à primeira questão enunciada, atinente à correspondência electrónica, a mesma é regulada pelo direito nacional (como já vimos em sede de apreciação das nulidades), concretamente pelos artigos 18º a 21º do RJC, não se afigurando que esteja em causa a aplicação/interpretação de qualquer norma do Direito da União. Por conseguinte, não há lugar à aplicação do mecanismo do reenvio prejudicial previsto no art. 267º do TFUE.
A este propósito afirma Luísa Lourenço («O reenvio prejudicial para o TJUE e os pareceres consultivos do tribunal EFTA», Revista Julgar nº 35, 2018, Coimbra Editora, pág. 198) que: “Assim, no que toca à possibilidade de recorrer ao TJUE, o pedido de decisão prejudicial não pode, em caso algum, incidir sobre questões de direito interno, sobre as quais os órgãos nacionais detêm jurisdição exclusiva (ainda que se ponha a questão de uma norma de direito português que resulta da implementação de uma Diretiva, será sempre quanto à interpretação desta última que irá pronunciar-se o TJUE); o mesmo se aplica à validade de direito primário, uma vez que este sai da esfera de competência do TJUE”. (sublinhado nosso)
Noutro prisma refere a mesma autora que: “(…) Uma ressalva deve ser feita relativamente à aplicação da Carta de Direitos Fundamentais (“Carta”). Este instrumento, dotado de força jurídica de direito primário, é aplicável apenas quando a situação em apreço esteja dentro do âmbito de aplicação de direito da União. Com efeito, o artigo 51.º da Carta estabelece claramente que as disposições deste instrumento se dirigem às “instituições, órgãos e organismos de União, (...) bem como [a]os Estados-Membros, apenas quando apliquem direito da União.” O número 2 desta norma reitera, com efeito, que a Carta não estende nem modifica o âmbito de aplicação do direito da União, algo que é afirmado já no número 2 do artigo 6.º do TUE. Assim, quando se levantem questões relativas à violação de direitos fundamentais previstos neste instrumento, um pedido de decisão prejudicial será admissível apenas se a alegada violação for abrangida por outra norma de direito da União. Não basta, para tal, que o órgão jurisdicional de reenvio considere que o litígio no processo principal é abrangido pelo âmbito de aplicação de direito da União, na medida em que um dos direitos em questão seja reconhecido pela Carta; deve demonstrar-se, por outro, que há outro ato de direito da União para além da Carta que se aplica ao dito litígio (Ver, entre outros, o despacho no processo C-333/17, Caixa Económica Montepio Geral, EU:C:2017:810, parágrafos 12 a 19, especialmente parágrafo 18)”.
Transpondo tais considerações para o caso dos autos, constatamos que o objeto do litígio, no que concerne à questão da apreensão do correio/correspondência electrónica, não apresenta nenhum elemento de conexão com o ordenamento jurídico europeu, como resulta bem evidente do que se deixou explanado em sede de apreciação das nulidades.
Aliás, nas alegações de recurso os recorrentes limitam-se a invocar a violação dos “arts 7º e 52º do TFUE” quando certamente se pretendiam referir a esses preceitos da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE ou Carta). O referido art. 7º da Carta estabelece que “Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações”. Enquanto que o mencionado art. 52º estatui que “Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros”
Decorre claramente do preâmbulo e teor da Carta que a mesma reconhece os direitos, liberdades e princípios nela enunciados, respeitantes aos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais.
Do que vimos expondo, impõe-se concluir que não é admissível o recurso ao mecanismo do reenvio quando não se trata de aplicar/interpretar quaisquer normas do Direito da União, tal como sucede no caso dos autos relativamente à questão do correio electrónico apreendido nas instalações da recorrente pessoa colectiva (Super Bock), não estando, além do mais, em crise direitos humanos fundamentais, o que afastaria lapidarmente a aplicação da Carta in casu. Paralelamente, também não se vislumbra que esteja em causa a aplicação do invocado art. 16º do TFUE, referente à protecção de dados de carácter pessoal.
Em suma, carece de fundamento legal o pedido de reenvio quanto à matéria do correio electrónico.
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Já no que toca às demais questões acima enunciadas relativas à natureza da infracção imputada aos recorrentes (restrição da concorrência por objecto ou por efeito), questão da (in)existência do acordo anticoncorrencial no âmbito da fixação vertical de preços mínimos, assumem fundamental relevo para a decisão dos autos, prendendo-se directamente com as questões que foram objecto de análise ao longo da presente decisão, estreitamente relacionadas com a interpretação do art. 101º/1 do TFUE (fonte do art. 9º do nosso RJC), cuja aplicação, como vimos, está em causa no caso sub judice.
Pelas mesmas razões, afiguram-se necessárias e pertinentes as questões sugeridas, neste ponto, pela Autoridade da Concorrência na sua resposta ao recurso, as quais se passam a transcrever: a)-À luz da alínea a) do n.º 1 do artigo 101.º do TFUE, da alínea a) do artigo 4.º do Regulamento n.º 330/2010 e das Orientações da Comissão Europeia relativas às restrições verticais e da jurisprudência da União, presume-se que o acordo entre fornecedor e distribuidores, de fixação (vertical) de preços mínimos e de outras condições comerciais aplicáveis à revenda representa um grau suficiente de nocividade para a concorrência, sem prejuízo da análise de eventuais efeitos económicos positivos decorrentes da dita prática, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do TFUE? b)-É compatível com a alínea a) do n.º 1 do artigo 101.º do TFUE e com a jurisprudência da União Europeia, a decisão judicial que considera verificada a existência do elemento do tipo objetivo “acordo” entre fornecedor e distribuidores com base: i)-na fixação e imposição, pelo primeiro aos segundos, de forma regular, generalizada e sem quaisquer alterações durante o período da prática, das condições comerciais que aqueles têm que cumprir na revenda dos produtos que adquirem ao fornecedor, designadamente os preços que cobram aos seus clientes, principalmente em termos de preços mínimos ou de preços mínimos médios; ii)-na transmissão dos preços de revenda impostos de forma oral ou escrita (através de mensagens de correio eletrónico); iii)-na falta de capacidade dos distribuidores para a autodeterminação na fixação dos seus preços de revenda; iv)-na prática habitual e generalizada (em conversa telefónica ou presencial) de os colaboradores do fornecedor solicitarem aos distribuidores o respeito pelos preços indicados; v)-na cumprimento generalizado, pelos distribuidores, dos preços de revenda fixados pelo fornecedor (com exceção de dissídios pontuais) e na verificação de que o comportamento dos distribuidores no mercado correspondia, generalizadamente, aos termos delineados pelo fornecedor; vi)-na circunstância de, para não se encontrarem em situações de incumprimento, muitas vezes serem os próprios distribuidores a solicitar a indicação dos preços de revenda ao fornecedor; vii)-na verificação de que frequentemente os distribuidores se queixam dos preços a praticar ao fornecedor, ao invés de praticarem simplesmente outros preços; viii)-na fixação, pelo fornecedor, de margens de distribuição (reduzidas) e na assunção, pelos distribuidores, que essas margens correspondem ao nível de remuneração dos seus negócios; ix)-na constatação de que, pela imposição de margens diminutas, o fornecedor impunha um preço mínimo de revenda sob pena de as margens dos distribuidores serem negativas; x)-na política de descontos concedidos pelo fornecedor aos distribuidores com base no preço de revenda que praticassem efetivamente – sendo o preço mínimo previamente fixado pelo fornecedor o patamar das reposições que este fazia em sell out; xi)-na necessidade de os distribuidores – atentas, em muitos casos, a margem de distribuição negativa – cumprirem os níveis de preço de revenda impostos pelo fornecedor; a prática de preços de revenda inferiores só se verificava em situações muito pontuais e mediante pedido dos distribuidores ao fornecedor de um novo desconto em sell out; xii)-na fixação, pelo fornecedor, e observância, pelos distribuidores, de descontos máximos a aplicar aos respetivos clientes, conduzindo a um preço mínimo de revenda, sob pena de a margem de distribuição ser negativa; xiii)-na abordagem direta do fornecedor juntos dos clientes dos distribuidores e na fixação das condições de revenda posteriormente impostas a estes; xiv)-na intervenção do fornecedor, mediante iniciativa dos distribuidores, no sentido de ser aquele a decidir pela aplicação de determinado desconto comercial ou a renegociar as condições comerciais de revenda; e xv)-na solicitação pelos distribuidores de autorização, junto do fornecedor, para realização de certo negócio com determinadas condições a fim de assegurar a sua margem de distribuição?
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Pelo que se deixou exposto, afigura-se-nos essencial à decisão a proferir nos presentes autos a apreciação pelo TJUE das questões suscitadas ao abrigo do art. 267º do TFUE.
Às questões acima colocadas entende-se dever aditar-se, atenta a sua relevância para a aplicação do art. 101º/1 do TFUE, a seguinte questão: -Um acordo de fixação de preços mínimos de revenda, com as características apontadas e com abrangência em quase todo o território nacional, é susceptível de afectar o comércio entre os Estados Membros?
A decisão de reenvio determinará a suspensão da instância até à decisão a proferir pelo TJUE, em conformidade com o disposto nos arts. 269º/1 c), 272º/1 e 652º/1 g) do Código de Processo Civil, ficando por ora prejudicado o conhecimento das demais questões,, designadamente a qualificação jurídica dos comportamentos dos recorrentes à luz do ordenamento jus concorrencial, a determinação da medida da coima e questão da inconstitucionalidade do art. 69º do RJC, para além da apreciação do recurso interposto em 24/9/2020 do despacho proferido pelo Tribunal recorrido em 9/9/2020, que indeferiu a realização da perícia requerida pela arguida Super Bock (perícia cuja eventual necessidade dependerá da relevância para o caso dos efeitos dos comportamentos descritos na factualidade provada).
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V.– DECISÃO
Pelo exposto, acordam em:
a)-Nos termos do disposto no artigo 267° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, colocar ao Tribunal de Justiça da União Europeia as seguintes questões prejudiciais: 1.–A fixação vertical de preços mínimos é, per se, uma infracção por objeto, que não implica uma análise prévia do grau suficiente de nocividade do acordo? 2.–A demonstração do elemento do tipo “acordo”, da infracção por fixação (tácita) de preços mínimos aos distribuidores, implica a concreta demonstração de que os distribuidores seguiram, na prática, os preços fixados, designadamente, através de prova direta? 3.–O (i.) envio de tabelas com indicação de preços mínimos e de margens de distribuição, (ii.) a solicitação de preços de venda pelos distribuidores, (iii.) a apresentação de queixas pelos distribuidores – quando consideravam que os preços de revenda que lhes eram impostos não eram competitivos ou quando verificavam que distribuidores concorrentes estavam desalinhados – (iv.) a existência de mecanismos de monitorização de preços (médios mínimos) e (v.) de medidas de retaliação (sem demonstração da sua concreta aplicação), são elementos suficientes para considerar que existiu uma infração por fixação (tácita) de preços mínimos aos distribuidores? 4.–À luz da alínea a) do n.º 1 do artigo 101.º do TFUE, da alínea a) do artigo 4.º do Regulamento n.º 330/2010 e das Orientações da Comissão Europeia relativas às restrições verticais e da jurisprudência da União, presume-se que o acordo entre fornecedor e distribuidores, de fixação (vertical) de preços mínimos e de outras condições comerciais aplicáveis à revenda representa um grau suficiente de nocividade para a concorrência, sem prejuízo da análise de eventuais efeitos económicos positivos decorrentes da dita prática, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do TFUE? 5.–É compatível com a alínea a) do n.º 1 do artigo 101.º do TFUE e com a jurisprudência da União Europeia, a decisão judicial que considera verificada a existência do elemento do tipo objetivo “acordo” entre fornecedor e distribuidores com base: i)-na fixação e imposição, pelo primeiro aos segundos, de forma regular, generalizada e sem quaisquer alterações durante o período da prática, das condições comerciais que aqueles têm que cumprir na revenda dos produtos que adquirem ao fornecedor, designadamente os preços que cobram aos seus clientes, principalmente em termos de preços mínimos ou de preços mínimos médios; ii)-na transmissão dos preços de revenda impostos de forma oral ou escrita (através de mensagens de correio eletrónico); iii)-na falta de capacidade dos distribuidores para a autodeterminação na fixação dos seus preços de revenda; iv)-na prática habitual e generalizada (em conversa telefónica ou presencial) de os colaboradores do fornecedor solicitarem aos distribuidores o respeito pelos preços indicados; v)-no cumprimento generalizado, pelos distribuidores, dos preços de revenda fixados pelo fornecedor (com exceção de dissídios pontuais) e na verificação de que o comportamento dos distribuidores no mercado correspondia, generalizadamente, aos termos delineados pelo fornecedor; vi)-na circunstância de, para não se encontrarem em situações de incumprimento, muitas vezes serem os próprios distribuidores a solicitar a indicação dos preços de revenda ao fornecedor; vii)-na verificação de que frequentemente os distribuidores se queixam dos preços a praticar ao fornecedor, ao invés de praticarem simplesmente outros preços; viii)-na fixação, pelo fornecedor, de margens de distribuição (reduzidas) e na assunção, pelos distribuidores, que essas margens correspondem ao nível de remuneração dos seus negócios; ix)-na constatação de que, pela imposição de margens diminutas, o fornecedor impunha um preço mínimo de revenda sob pena de as margens dos distribuidores serem negativas; x)-na política de descontos concedidos pelo fornecedor aos distribuidores com base no preço de revenda que praticassem efetivamente – sendo o preço mínimo previamente fixado pelo fornecedor o patamar das reposições que este fazia em sell out; xi)-na necessidade de os distribuidores – atentas, em muitos casos, a margem de distribuição negativa – cumprirem os níveis de preço de revenda impostos pelo fornecedor; a prática de preços de revenda inferiores só se verificava em situações muito pontuais e mediante pedido dos distribuidores ao fornecedor de um novo desconto em sell out; xii)-na fixação, pelo fornecedor, e observância, pelos distribuidores, de descontos máximos a aplicar aos respetivos clientes, conduzindo a um preço mínimo de revenda, sob pena de a margem de distribuição ser negativa; xiii)-na abordagem direta do fornecedor juntos dos clientes dos distribuidores e na fixação das condições de revenda posteriormente impostas a estes; xiv)-na intervenção do fornecedor, mediante iniciativa dos distribuidores, no sentido de ser aquele a decidir pela aplicação de determinado desconto comercial ou a renegociar as condições comerciais de revenda; e xv)-na solicitação pelos distribuidores de autorização, junto do fornecedor, para realização de certo negócio com determinadas condições a fim de assegurar a sua margem de distribuição? 6.–Um acordo de fixação de preços mínimos de revenda, com as características apontadas e com abrangência em quase todo o território nacional, é susceptível de afectar o comércio entre os Estados Membros? b)-Nos termos do disposto nos artigos 269°/1 c), 272º/1 e 652°/1 g) do Código de Processo Civil, declarar a suspensão da instância até à resolução das questões prejudiciais suscitadas; c)-Solicitar a maior rapidez possível na resposta, por se tratar de processo de contra-ordenação com prazo de prescrição curto.
Notifique e remeta ao Tribunal de Justiça da União Europeia, com certidão do presente acórdão, da decisão final da Autoridade da Concorrência, da sentença recorrida, e das alegações de recurso e respostas (estas em suporte digital), procedendo ainda à identificação completa dos intervenientes.
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Lisboa, 24 de Fevereiro de 2022
Ana Mónica Mendonça Pavão- (Relatora) Maria da Luz Teles Menezes de Seabra - (Adjunta)
[1]No que se refere ao mercado de vinhos tranquilos, a informação disponibilizada inclui vinhos engarrafados e vinhos a pressão (fls. 3833 do Processo). [2]A Recorrente não comercializa um produto de sangria vendável à unidade, mas apenas um produto em barril designado “vini sangria” (tinta ou branca). Este produto é habitualmente utlizado pelo cliente para confeccionar a “sangria da casa” em conjunto com outros produtos que não têm necessariamente de ser comercializados pela Recorrente. Refira-se ainda que a Recorrente começou a comercializar o produto “vini sangria” tinta em 2010 e o produto “vini sangria” branca em 2014 (fls. 3833 do Processo). [3]A Visada comercializa actualmente apenas um produto de sidra, designado “Somersby”, cuja comercialização se iniciou no ano de 2011. O volume de negócios registado neste mercado no ano de 2007 corresponde à comercialização do produto de sidra designado “Decider” (fls. 3833 do Processo). [4]A informação disponibilizada para o mercado dos refrigerantes inclui colas, lima-limão, sumos de fruta com gás e sem gás, ginger ale, água tónica e guaraná. [5]A informação disponibilizada para o mercado dos vinhos ranquilos inclui vinhos engarrafados e vinhos a pressão.