JUNÇÃO DE DOCUMENTOS COM O RECURSO
INDEMNIZAÇÃO PELA PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
EQUIDADE
AGRAVAMENTO DOS DANOS
MONTANTE DIÁRIO DA INDEMNIZAÇÃO
QUESTÃO NOVA
Sumário


I) - A mera privação do uso de um veículo, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente relevante e susceptível de avaliação pecuniária e, como tal, indemnizável de forma autónoma, na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de usar, fruir e dispor do bem quando e como lhe aprouver.
II) - Tendo resultado provado que o veículo era utilizado pelo Autor nas suas deslocações diárias de casa para o trabalho e vice-versa e nas demais deslocações da sua vida privada, assim tendo demonstrado a existência de uma concreta utilização relevante do mesmo, tem o Autor direito a obter uma indemnização relacionada com a privação do uso do seu veículo automóvel, sem ter de fazer prova concreta de efectivos prejuízos.
III) - A determinação do quantum indemnizatório pela privação do uso, que não implica um qualquer prejuízo patrimonial concreto, deve ser fixada em termos casuísticos e com recurso a critérios de equidade, de harmonia com o preceituado no artº. 566º, n.º 3 do Código Civil.
IV) - O pedido de indemnização pela privação do uso de veículo danificado deduzido algum tempo depois do sinistro, não é suficiente para se considerar que tal actuação constitui um facto culposo que concorre para o agravamento dos danos traduzidos nos custos decorrentes da privação do uso. É que, a considerar-se, sem mais, que o pedido de indemnização deduzido algum tempo depois do acidente constitui facto culposo do lesado, estaríamos a introduzir uma presunção de culpa que a lei não admite.
V) - O recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, em termos gerais, apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal “ad quem” com questões novas. Os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis.
VI) - Não tendo a Ré invocado determinada questão na fase dos articulados, nem antes do encerramento da discussão da causa, trazendo tal questão apenas à discussão na motivação/conclusões do recurso, sem ter sido submetida, previamente, à apreciação do Tribunal de 1ª instância, reveste a mesma a natureza de questão nova que, não sendo de conhecimento oficioso, não cabe ao tribunal de recurso conhecer.

Texto Integral


Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

R. F. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra X Seguros, S.A., actualmente designada X Seguros, Compañia de Seguros Y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:

a) a quantia de € 1.732,21 acrescida de IVA, para a reparação do veículo UO;
b) a quantia de € 4.650,00 a título de compensação pela privação do uso e fruição do veículo UO desde a data do acidente até à entrada da presente acção;
c) a quantia que vier a ser fixada posteriormente para compensação da privação do uso e fruição desde a data de entrada da acção até efectivo e integral pagamento da indemnização para reparação do veículo UO;
d) juros de mora sobre cada um dos pedidos, desde a data do acidente até efectivo e integral pagamento;
e) custas de parte.

Para tanto, alega, em síntese, que no dia 8/09/2019, pelas 20H45, ocorreu um acidente de viação no entroncamento da Rua ... com a Rua ..., na freguesia de ..., concelho de Fafe, no qual foram intervenientes os veículos automóveis com as matrículas UO, propriedade do A. e por ele conduzido, e FV, conduzido pelo seu proprietário J. F., estando este veículo seguro na Ré.
Após descrever o acidente, que consistiu no embate entre os dois veículos, alega que o mesmo ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do veículo FV, por não ter realizado devidamente a manobra de execução da curva à esquerda (atento o seu sentido de marcha) e ter precipitado o FV contra a frente do UO que se encontrava parado no entroncamento na Rua .... Por outro lado, se fosse sua intenção mudar de direcção, deixando de circular pela Rua ... e iniciar a circulação na Rua ..., não abrandou a marcha ao aproximar-se do entroncamento, não sinalizou a mudança de direcção e não executou a manobra encostado à berma do seu lado direito por forma a não embater no veículo UO.
Acrescenta que, em consequência do acidente, sofreu os danos patrimoniais que descrimina na petição inicial – relativos ao custo da reparação do veículo UO orçamentada em € 1.732,21 conforme peritagem realizada pela Ré, e à privação do uso e fruição do mesmo desde a data do acidente até à da propositura da acção, que quantifica em € 4.650,00 atentos os dias já decorridos (160) e o valor diário de aluguer de uma viatura de idênticas características (€ 58,13), com a equidade necessária - e cujo ressarcimento peticiona naquele articulado.
Refere que o veículo UO não está reparado, dado o Autor não ter capacidade financeira para efectuar a reparação pelos seus próprios meios, nem para adquirir outro veículo. O Autor utilizava o UO nas suas deslocações diárias de casa para o trabalho e vice-versa e nas demais deslocações da sua vida privada, vendo-se obrigado a depender de familiares e amigos e a utilizar transportes públicos para se deslocar.
Não estando o veículo UO ainda reparado, os danos decorrentes da privação do uso e fruição continuaram a suceder, pelo que relega para momento posterior a liquidação dos demais danos que, entretanto, venha a suportar.

A Ré contestou, impugnando os factos alegados pelo Autor relacionados com a dinâmica do acidente e o dano de privação do uso do veículo que ele alega ter sofrido, dando uma versão distinta do modo como ocorreu o acidente, da qual resulta que a culpa na ocorrência do mesmo decorreu da condução do veículo levada a cabo pelo Autor.
Mais alega que procedeu à avaliação dos danos do veículo UO, ainda que a título condicional, tendo sido detectados danos no valor de € 1.732,21 e que o montante peticionado a título do alegado dano de privação do uso é excessivo, além de que não estão demonstrados factos que revelem a sua existência.
Refere, ainda, que não tendo sido o condutor do veículo seguro o responsável pelo embate, não pode ser assacada à Ré qualquer responsabilidade, não se verificando, por isso, qualquer nexo de causalidade entre a conduta do condutor do veículo seguro e os danos produzidos no veículo UO.
Conclui, pugnando pela improcedência da acção, com a sua absolvição de todos os pedidos.
Foi proferido despacho saneador, no qual se fixou o valor da causa, se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova, que não sofreram reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
Após, em 6/01/2021, foi proferida sentença que julgou a presente acção procedente e condenou a Ré no pagamento à Autora:

a) Da quantia de € 1.732,21 acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
b) Da quantia de € 4.000,00 e de € 25,00 por dia, contados desde 1-7-2020 até integral pagamento da quantia referida em a), montantes acrescidos de juros de mora à taxa legal calculados sobre os mesmos desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento.
Absolveu a Ré do demais peticionado.

Na mesma data da notificação da sentença às partes (em 7/01/2021), foi apresentado um “Requerimento de Transacção” (refª. 37646752), subscrito pelos mandatários de ambas as partes, nos seguintes termos:

1.º
O Autor reduz o pedido para o valor de € 4.000,00 (quatro mil euros), que a Ré aceita pagar.
2.º
A Ré procederá ao pagamento da referida quantia, por meio de transferência bancária para o IBAN do Autor PT50 …………….. 1, contra recibo a enviar para o escritório da Ilustre Mandatário do Autor, no prazo de 30 dias, a contar da sentença homologatória da presente transação.
3.º
Com o recebimento de tal quantia, o Autor considera-se integralmente ressarcido de todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais advenientes do sinistro em apreço nos autos, nada mais tendo a exigir da ora Ré, seja a que título for.
4.º
As custas eventualmente em dívida a juízo serão suportadas em partes iguais, prescindindo-se de custas de parte.
5.º
Mais requerem a V. Exa se digne homologar a presente transação nos precisos termos em que é exarada, obstando assim o prosseguimento dos autos.

Em 10/01/2021 foi proferida sentença homologatória da mencionada transacção, na qual foi ordenado o cumprimento do disposto no artº. 291º, n. 3 do CPC relativamente ao Autor (refª. 171272806).
Notificado o Autor nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 291º, nº. 3 do CPC, veio este, por requerimento de 13/01/2021, declarar que não ratificava o acto praticado pelo seu mandatário (refª. 10987274).

Em 28/01/2021, a Ré apresentou um requerimento (refª. 37872139), manifestando a sua surpresa com o conteúdo do requerimento do Autor, alegando que, após a audiência de julgamento, foi celebrada uma transacção entre o Autor e a Ré, nos termos da qual aquele reduziu o pedido formulado para a quantia de € 4.000,00, quantia essa que a Ré aceitou liquidar, tendo em 13/01/2021, em cumprimento do acordado, procedido à transferência de € 4.000,00 para a conta bancária do Autor, juntando aos autos documento comprovativo do pagamento daquela quantia.
Refere, ainda, que apesar de não ter ratificado a transacção e de a Ré ter informado o Autor, na pessoa do seu mandatário, de que pretendia interpor recurso da decisão proferida nos autos, o Autor não devolveu aquela quantia à Ré, o que demonstra que o Autor actua em manifesta litigância de má fé.
Conclui, pedindo a condenação do Autor como litigante de má fé, no pagamento de uma indemnização à Ré num montante que se afigurar razoável e em multa, cujo montante deverá ser fixado pelo Tribunal.

O Autor veio responder em 3/02/2021 (refª. 37985390), pugnando pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má fé, alegando, para tanto, que a Ré, depois de notificada da sentença proferida em 6/01/2021, juntou aos autos o requerimento de transacção, sem previamente auscultar o A. e o seu mandatário sobre se consideravam a prolação daquela sentença uma alteração das circunstâncias sobre as quais as partes fundaram a negociação, mais se apressando a proceder à transferência bancária da quantia de € 4.000,00 apesar de, nos termos da transacção que juntou aos autos, ter 30 dias para o fazer, manifestando, ainda, a sua intenção de restituir à Ré a quantia “que esta injustificadamente lhe transferiu”, o que não fez até àquela data devido à doença de que padece e à situação pandémica que “desaconselha e até desautoriza deslocações necessárias”. Requereu, por fim, que fosse dada sem efeito a sentença homologatória proferida em 11/01/2021 (refª. 37917658).
Em 9/02/2021 veio a Ré dar conhecimento ao Tribunal do facto de o Autor não ter procedido à devolução da quantia em causa, requerendo que o mesmo fosse notificado para juntar aos autos comprovativo da sua situação de doença (refª. 37985390).

Em 17/03/2021 foi proferida decisão a considerar a transacção realizada e homologada ineficaz relativamente ao Autor, determinando a prossecução dos presentes autos e a notificação daquele para informar sobre “se procedeu já à devolução do montante de € 4.000,00 que lhe foi transferido pela Ré em face do acordo homologado nestes autos, comprovando a mesma em caso de resposta positiva, e justificando a sua não realização no caso contrário” (refª. 172279660).

Por requerimento apresentado em 19/03/2021 (refª. 38328797), veio o Autor alegar que, tendo em atenção os fundamentos que emergem da sentença proferida em 6/01/2021 e face à posição assumida pela Ré no recurso que interpôs daquela sentença, em que não coloca em causa a sua responsabilidade civil e a obrigação de ressarcir o A. pelos prejuízos que sofreu, reconhecendo-lhe um crédito no valor de € 4.000,00, e sem prejuízo da decisão que vier a recair sobre o aludido recurso, não procedeu à devolução da quantia transferida pela Ré e considera que a sentença proferida é exequível, conferindo-lhe, desde já, o direito a exigir da Ré, pelo menos, aquele montante, pelo que o mesmo será tomado em consideração para efeito de acerto de contas entre as partes.
A Ré, por requerimento de 7/04/2021 (refª. 38477357), veio insurgir-se contra esta posição assumida pelo Autor, alegando que, em sede de recurso, não reconheceu ao Autor qualquer direito a ser indemnizado pela alegada privação do uso, e muito menos no montante de € 2.267,79 (correspondente ao valor de € 4.000,00 subtraído do montante necessário à reparação do veículo UO), como aquele pretende fazer crer, mas apenas lhe reconheceu um crédito no montante de € 1.732,21, correspondente ao valor necessário à reparação do aludido veículo, sendo que a devolução de tal montante já lhe vem sendo peticionada desde a data em que o Autor apresentou o requerimento no qual declarou não ratificar a transacção celebrada pelo seu mandatário, em momento muito anterior às alegações de recurso apresentadas pela Ré (em 11/02/2021), conforme requerimento da Ré datado de 28/01/2021.

Na verdade, inconformada com a sentença proferida em 6/01/2021, a Ré dela interpôs recurso em 11/02/2021, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:
1.º
Nos termos do disposto nos artigos 627.º, 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 637.º, n.º 1 e 2, 638.º e 639.º do CPC, vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida a fls.___, no âmbito do processo supra identificado, a qual julgou parcialmente procedente a ação judicial proposta pelo Autor R. F., condenando, em consequência, a Ré, ora Recorrente, em parte dos pedidos formulados nos autos, com a qual a Ré, agora Recorrente, salvo o devido respeito, não se poderá conformar.
2.º
Com efeito, a ora Recorrente não se conforma com a sentença ora recorrida, nos termos da qual foi condenada a pagar ao ora Recorrido o valor de € 1.732,21, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento; e o valor de € 4.000,00 e de € 25,00 por dia, contados desde 01/07/2020, até integral pagamento da quantia referente à reparação, montantes acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento.
3.º
Assim, sem estar em causa a configuração do acidente de viação ou a distribuição da culpa, a ora Recorrente vem insurgir-se contra os montantes indemnizatórios arbitrados na douta sentença recorrida a título de indemnização pela privação do uso do veículo UO, uma vez que, entende que, tais montantes afiguram-se manifestamente desajustados, por excessivos, atenta a factualidade julgada provada nos autos e, bem assim, os critérios jurisprudenciais atualmente seguidos pela nossa jurisprudência, encontrando-se, nessa medida, incorretamente interpretadas e/ou aplicadas as normas legais previstas nos artigos 483.º, 562.º, 563.º, 566.º, n.º 3 e 570.º, n.º 1 do CC.
4.º
Com efeito, a ora Recorrente foi condenada na douta sentença ora recorrida a pagar ao Autor o valor de € 4.000,00, como indemnização pela privação do uso do veículo UO desde a data do acidente (08/09/2019) até à data de entrada da presente ação (01/07/2020), ou seja, pelo período de 297 dias, acrescido do montante diário de € 25,00, desde a data da propositura da ação (01/07/2020) até à data da reparação do referido veículo.
5.º
Ora, não obstantes as diversas teses em torno do tema da privação do uso, no entendimento da ora Recorrente, e na esteira de grande parte da jurisprudência dos Tribunais Superiores, a privação do uso de um veículo não basta, só por si, para fundar uma obrigação de indemnizar, incumbindo ao lesado uma obrigação de efetiva prova da existência de prejuízos de ordem patrimonial ou não patrimonial decorrentes da não utilização do bem.
6.º
Sendo certo que, da matéria considerada como provada nos presentes autos e supra transcrita, não resultou, de forma clara e inequívoca, que o ora Recorrido tenha sofrido danos decorrentes da privação do uso do veículo UO e em que medida.
7.º
Efetivamente, da matéria de facto considerada como provada apenas resultou que o Autor, ora Recorrido, na sequência da privação do uso do veículo UO, alterou a sua dinâmica familiar e sofreu incómodos nessa sequência. O que significa que o ora Recorrido não logrou provar ter sofrido ou vir a sofrer qualquer dano resultante da impossibilidade de utilizar o veículo UO.
8.º
Ora, como pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 04/07/2013, “a privação do uso de um veículo automóvel não é suficiente para nela fundar a obrigação de indemnizar, a não serem alegados e provados danos emergentes e (ou) lucros cessantes por aquela causados”, disponível em www.dgsi.pt.
9.º
Repita-se que, da parte do ora Recorrido, não houve qualquer alegação, e muito menos prova, de que, de facto, a privação do uso do veículo UO provocava na sua esfera jurídica um dano emergente ou um lucro cessante, conforme, de resto, facilmente se constata da matéria considerada como provada nos presentes autos e supra transcrita.
10.º
Neste sentido, e face a tudo o que antecede, entende a ora Recorrente que nenhuma indemnização deverá ser arbitrada ao ora Recorrido a título de privação do uso do veículo UO, porquanto o mesmo não logrou provar a existência de prejuízos verificados na sua esfera jurídica em consequência da privação do uso do referido veículo, devendo, assim, a douta sentença ser revogada, e em consequência, a Ré, ora Recorrente, ser absolvida do pagamento da indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo a título de privação do uso do veículo, sob pena de violação do disposto nos artigos 483.º, 562.º e 563.º todos do CC.
11.º
Não obstante, considerando-se não ser necessária a prova dos danos concretos causados pela privação do uso do veículo em causa, sempre se dirá que importa ter em atenção que não basta que tenha existido uma imobilização forçada do veículo para que a Seguradora responsável seja, pura e simplesmente, condenada no pagamento das quantias indiscriminadamente peticionadas pelos lesados. Sendo necessário verificar, em cada caso concreto, se tais lesados contribuíram, ou não, para o agravamento do dano, nomeadamente protelando no tempo a privação alegadamente causadora do mesmo.
12.º
Nesse sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 16/04/2013 e proferido no âmbito do processo: 7002/08.7TBVNG, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/03/2010.
13.º
De facto, para efeito de atribuição de indemnização pela privação do uso, até poderemos admitir que exista jurisprudência que entenda que não será de exigir a prova de danos efetivos e concretos (situação vantajosa frustrada/teoria da diferença), mas a verdade é que a ressarcibilidade também não pode ser apreciada e resolvida em abstrato, aferida pela mera impossibilidade objetiva de utilização da coisa (independentemente de que a utilização tenha ou não lugar durante o período de privação), emergindo como critério de atribuição do direito à indemnização a demonstração no processo que, não fora a privação, o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito.
14.º
Pelo que, o protelamento da instauração da ação indemnizatória que importe agravamento dos custos por privação do uso, para além dum período de tempo razoável, face às regras da boa fé, em termos de se considerar “culposa” a inércia do lesado, justifica uma repartição do dano global, com a inerente redução do respetivo montante indemnizatório, fundada no concurso de facto do lesado para o agravamento do dano.
15.º
Assim, e conforme já supra se referiu, de outra forma não se poderá concluir que não de que houve, da parte do ora Recorrido, um agravamento dos agora alegados danos, ao permanecer inerte perante a discordância face a uma decisão já tomada pela Seguradora e por si conhecida. Inércia essa, que conduziu, com o devido respeito, sem qualquer margem para dúvida, ao protelamento da sua alegada situação danosa.
16.º
Circunstância que foi ignorada pelo Tribunal a quo.

17.º
Com o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo não tinha razões, nem de facto, nem de direito, para condenar a ora Recorrente ao pagamento de uma indemnização pela privação do uso do veículo UO nos termos em que o fez. Sendo certo que, se o valor de € 4.000,00 já se afigura manifestamente excessivo, perante aquela que foi a prova produzida e a matéria considerada como provada nos presentes autos, o valor de € 25,00 diários, desde a data da propositura da ação até ao pagamento integral do valor da reparação, é, com o devido respeito, totalmente descabido de sentido.
18.º
Ora, não podemos de forma alguma olvidar, que a atribuição da indemnização pela privação do uso deve ser calculada mediante a ponderação da reconstituição que existiria se não se tivesse verificado o evento, nos termos do artigo 562.º do CC e com recurso à equidade, nos termos do artigo 566.º n.º 3.
19.º
De facto, o n.º 3, do artigo 566.º do CC, confere ao tribunal a faculdade de recorrer à equidade quando não for possível, face, mormente à imprecisão dos elementos de cálculo a atender, fixar o valor exato dos danos. No entanto, a fixação da quantia diária referente ao dano de privação do uso, deve atender aos padrões comuns da jurisprudência nacional.
20.º
Sendo certo que, o valor de € 4.000,00 e o montante diário de € 25,00, além de não estarem em conformidade com as decisões proferidas em casos semelhantes, também não estão em conformidade entre si, sendo incompreensível em que medida é que o douto Tribunal a quo considerou que a privação do uso do veículo em momento anterior à propositura da ação representava para o ora Recorrido um prejuízo de € 13,47 diários e, posteriormente à propositura da ação, representava para o Recorrido um prejuízo de cerca de € 25,00 diários.
21.º
Efetivamente, no entendimento da ora Recorrente, o douto Tribunal a quo limitou-se a condenar a ora Recorrente, sem mais, em valores discricionários e manifestamente exagerados e injustos perante a matéria de facto considerada como provada nos autos e perante os valores fixados pela jurisprudência nacional em casos idênticos.
22.º
De que são exemplos os seguintes Acórdãos (nos quais o valor diário pela privação do uso de um veículo raramente ascende os € 10,00 diários):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/07/2018, no âmbito do processo n.º 3.664/15.T8VFX.L1-6;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/12/2019, no âmbito do processo n.º 3088/19.7YRLSB-2;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/10/2018, no âmbito do processo n.º 4031/15.8T8MTS.P1;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/05/2019, no âmbito do processo n.º 43/18.8T8TBU.C1;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 26/10/2017 (Relator desembargador José Cravo);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11/07/2017 (Relatora Desembargadora Maria dos Anjos S. Melo Nogueira);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, 21/09/2017 (Relatora Desembargadora Helena Melo;
23.º
Posto isto, no entender da Recorrente, o montante arbitrado encontra-se fora das margens definidas pela Jurisprudência proferida pelos Tribunais Superiores, desrespeitando o padrão referencial que vem sendo seguido pela jurisprudência nacional. Sendo certo que, considerando a factualidade descrita, e salvo melhor e douta opinião em contrário, não estamos perante danos que justifiquem a atribuição de um valor diário indemnizatório de € 25,00 ou mesmo de € 13,47.
24.º
Nestes termos, e pelas razões expostas, não pode a ora Recorrente concordar com o valor arbitrado, salvo o devido respeito, com a douta sentença proferida, na medida em que a interpreta e aplica de forma incorreta e/ou imprecisa, as normas legais constantes dos artigos 562.º, 563.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil, devendo ser substituído por um montante indemnizatório diário a título de privação do uso nunca superior a € 7,50.
25.º
Sendo certo que, o valor de uma eventual condenação a título de indemnização pela privação do uso do veículo, sempre deverá ser apurado com a consideração de que, a título de reparação do veículo UO, a ora Recorrente foi condenada a pagar o montante total de € 1.732,21. Pelo que, o valor a fixar a título de uma eventual indemnização pelo uso do veículo UO não deverá ultrapassar em muito o valor da sua reparação, sob pena de termos uma decisão totalmente desequilibrada e desproporcional, como a que foi proferida pelo douto Tribunal a quo, que condenou, por um lado, a ora Recorrente ao pagamento do valor de € 1.732,21, a título de reparação do veículo UO, e, por outro lado, ao pagamento de aproximadamente € 10.000,00 a título de privação do uso do veículo UO.
26.º
Ademais, e caso se mantenha a condenação da ora Recorrente no valor de € 25,00 diários a título de privação, o que não se admite e apenas por mera cautela de patrocínio se acautela, sempre se dirá que tal valor deverá ser contabilizado a partir da data da notificação da sentença e nunca da data da propositura da ação, em conformidade com o supra exposto.
27.º
Por último, sem prescindir do supra exposto, importa acrescentar ainda o seguinte, a ora Recorrente e o ora Recorrido, em momento anterior à prolação da sentença ora recorrida, chegaram a um entendimento sobre o objeto do presente litígio e celebraram uma transação nos termos da qual o Autor, aqui Recorrido, aceitava reduzir o pedido ao montante de € 4.000,00, valor que a Recorrente aceitava pagar, tendo a ora Recorrente, nessa sequência transferido, em 13/01/2021, para a conta bancária da titularidade do Autor, aqui Recorrido, o valor de € 4.000,00, conforme comprovativo de pagamento que, de acordo com o disposto nos artigos 651.º, n.º 1 e 425.º do CPC, ora se junta sob documento n.º 1, dando-se o seu teor por integralmente reproduzido para todos os legais e devidos efeitos.
28.º
De facto, tendo em conta que a Recorrente realizou o pagamento da quantia referida na data de13/01/2021, estamos inequivocamente perante factos supervenientes, ocorridos depois da produção de prova e da própria sentença de que ora se recorre, pelo que, desde já se requer que seja admitida a junção do referido documento ao presente recurso, verificados que estão os pressupostos exigidos pelo artigo 651.º, n.º 1 do CPC.
29.º
O ora Recorrido recebeu o valor em causa, transferido pela ora Recorrente por referência à transação, pese embora não tenha ratificado a mesma, e, até ao presente momento, mesmo depois de ter sido informado de que a ora Recorrente pretendia interpor recurso da sentença proferida e após várias insistências, não procedeu à devolução do valor de € 4.000,00.
30.º
Assim, e em caso de manutenção da condenação da ora Recorrente em qualquer valor diário a título de privação do uso do veículo UO até efetivo e integral pagamento do valor correspondente à reparação do mesmo, a ora Recorrente desde já requer a esta Veneranda Relação que considere a data de 13/01/2021 (data em que a ora Recorrente procedeu ao pagamento ao ora Recorrido do valor de € 4.000,00) como a data em que a ora Recorrente procedeu ao efetivo e integral pagamento do valor da reparação do veículo UO, porquanto, ascendendo a reparação do referido veículo ao valor de € 1.732,21, o montante de € 4.000,00 transferido pela ora Recorrente para o ora Recorrido permite a reparação do mesmo, devendo considerar-se que, nessa data, cessou qualquer dano decorrente da alegada privação do uso do veículo UO na esfera jurídica do ora Recorrido.


31.º
Nesta medida, e por qualquer dos identificados fundamentos, deverá ser dado provimento ao presente recurso, sendo revogada a douta sentença recorrida, ou, caso assim não se entenda, ser substituída nos moldes supra expostos, sob pena de, a manter-se a decisão proferida, manter-se uma decisão na qual se encontram incorretamente interpretadas e/ou aplicadas as normas legais previstas nos artigos 483.º, 562.º, 563.º, 566.º, n.º 3 e 570.º, n.º 1 do CC.
Termina entendendo que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida.

O A. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida

O recurso foi admitido por despacho de 29/04/2021 (refª. 172910134), no qual o Mº Juiz “a quo” se pronunciou sobre o pedido de devolução da quantia transferida formulado pela Ré, referindo o seguinte [transcrição parcial]:
«Da consulta dos autos, mais concretamente das suas alegações de recurso e do último requerimento por si apresentado, resulta efetivamente que a Ré apenas se reconhece como devedora da quantia de € 1.732,21 (valor necessário à reparação do veículo) ao Autor.
Assim, e face à ineficácia da transação firmada por não ratificação da mesma pelo Autor, torna-se certo que a retenção da quantia que lhe foi transferida no âmbito de tal transação, em montante que exceda os mencionados € 1.732,21, é agora injustificada – o que, podendo ser questão que estivesse anteriormente em dúvida, não o pode ser após o último requerimento da Ré, tornando absolutamente claro o montante em que se considera efetivamente devedora do Autor.
Nestes termos, e sob cominação de eventual condenação em multa por litigância de má fé, deverá o Autor proceder à restituição dos montantes por si recebidos que excedam tal quantia de € 1.732,21, no prazo de 10 dias, devendo comprová-la devidamente nos autos. (…)».

O Autor interpôs recurso deste despacho, o qual foi admitido como sendo de apelação, com subida em separado e efeito suspensivo, tendo em 2/12/2021 sido proferida decisão por este Tribunal da Relação que julgou procedente a apelação, declarando nulo o despacho recorrido por excesso de pronúncia, nos termos do artº. 615º, nº. 1, al. d) aplicável “ex vi” do artº. 613º, nº. 3 do CPC.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pela Ré, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

I) – Questão prévia:

- Da admissibilidade da junção de documentos com as alegações de recurso;
II) – Da indemnização pela privação do uso do veículo do Autor;
III) – Do pagamento do valor correspondente à reparação do veículo do Autor.


Na sentença recorrida foram considerados provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos [transcrição]:

1) No dia 08 de setembro de 2019, pelas 20:45 horas, ocorreu um acidente entre os veículos automóveis com as matrículas UO e FV, no entroncamento da Rua ... com a Rua ..., na freguesia de ..., concelho de Fafe.
2) Momentos antes do acidente o Autor conduzia o seu veículo UO pela Rua ..., a uma velocidade de cerca de 30 km/h, com o sentido à Rua ....
3) Ao chegar à Rua ... o condutor do UO parou o seu veículo.
4) O veículo UO estava parado na via de circulação designada Rua ..., no lado direito da via pública, atento o seu sentido de marcha.
5) Por sua vez, o condutor do FV, J. F., conduzia o veículo pela via de circulação designada Rua ..., no sentido Silvares – Arnozela.
6) O condutor do FV conduzia o veículo pela via de circulação da direita, atento o seu sentido de marcha, à velocidade de cerca de 50 km/h.
7) Antes do entroncamento da Rua ... com a Rua ..., a via publica configura uma curva à esquerda, considerando o sentido de marcha do FV.
8) O condutor do FV quando circulava pela Rua ..., antes do entroncamento com a Rua ... não executou a trajetória pela sua faixa de rodagem e não realizou a curva à esquerda.
9) O condutor do FV projetou o veículo em frente, saindo da Rua ... e entrando na Rua ....
10) E ao iniciar a circulação na Rua ... o condutor do FV precipitou o veículo contra a frente do UO.
11) Embatendo o FV na parte frontal do UO.
12) O condutor do FV não sinalizou que pretendia mudar de direção à direita e sair da circulação pela Rua ....
13) Nem abrandou a marcha ao aproximar-se do entroncamento.
14) Também não realizou a manobra de mudança de direção por forma a entrar na via de circulação da direita encostado à berma do seu lado direito, atento o sentido de marcha, sem embater no veículo UO.
15) O condutor do FV, após embater no UO, fez manobra de marcha atrás e ausentou-se do local do acidente.
16) Onde regressou cerca de 10 minutos depois.
17) Não obstante, não forneceu qualquer dado ao Autor e perante a constatação da presença da autoridade policial voltou a ausentar-se do local sem que tenha regressado novamente.
18) O Autor provinha da casa dum amigo sita na Rua ....
19) O veículo UO, como consequência direta e necessária do embate do FV, ficou danificado na parte frontal, nomeadamente para-choques, chapa matrícula, cobertura, suporte lateral, grelhas laterais do para-choques, grelha ventiladora, resguardo inferior do para-choques, farol xeno com pisca, radiador e matrícula.
20) O valor para reparação do UO é € 1.732,21.
21) O veículo UO não está reparado.
22) O Autor não tem capacidade financeira para efetuar a reparação pelos seus próprios meios.
23) O Autor exerce profissionalmente a atividade de operador de calçado.
24) O Autor utilizava o UO nas suas deslocações diárias de casa para o trabalho e vice-versa e nas demais deslocações da sua vida privada.
25) O Autor também não tem capacidade financeira para adquirir outro veículo.
26) O Autor vê-se obrigado a viver de favores de familiares e amigos e a utilizar transportes públicos para se deslocar.
27) O Autor é casado e tem dois filhos menores de si dependentes.
28) A impossibilidade de utilizar o UO obrigou o Autor a alterar por completo a dinâmica familiar e a depender de terceiros.
29) O que lhe causa transtorno e incómodos.
30) O aluguer de um veículo com as características do UO custa diariamente cerca de € 58,13.
31) A Responsabilidade civil perante terceiros pela circulação do veículo FV, à data do sinistro estava transferida para a Ré, através de contrato de seguro válido e eficaz, titulado pela apólice n.º ……..80.

Por outro lado, na sentença recorrida foram considerados não provados os seguintes factos [transcrição]:

a) Existia um sinal STOP no entroncamento entre as ruas Rua ... com a Rua ..., no lado direito da via de circulação daquela primeira rua, impondo a paragem a quem circulava pela mesma.
b) O veículo UO, conduzido pelo Autor, provinha dum arruamento destinado exclusivamente à circulação de moradores, não residindo o Autor em tal arruamento.
c) O condutor do veículo UO não parou no entroncamento referido em 1).
d) E invadiu a Rua ..., sem ceder passagem aos veículos que aí circulavam, intercetando a linha de marcha do veículo FV.
e) O condutor do veículo FV encontrava-se no momento referido em 1) embriagado.

*
Apreciando e decidindo.

I) – Questão prévia:

- Da admissibilidade da junção de documentos com as alegações de recurso:

Como questão prévia à apreciação do presente recurso, e porque tem a ver directamente com uma parte da matéria alegada pela Ré/recorrente, importa tomar posição quanto à junção, com as alegações de recurso, do documento comprovativo da transferência efectuada pela Ré em 13/01/2021, para a conta bancária do Autor, no valor de € 4.000,00, tendo a recorrente justificado tal junção com o facto de em momento posterior ao encerramento da discussão da causa, mas anterior à prolação da sentença ora recorrida, as partes terem chegado a acordo sobre o objecto do presente litígio e celebrado uma transacção nos termos da qual o Autor, aqui recorrido, aceitava reduzir o pedido para o montante de € 4.000,00, valor que a Ré/recorrente aceitava pagar, tendo nessa sequência realizado a supra mencionada transferência bancária, conforme comprovado pelo aludido documento, alegando, ainda, que tendo em conta que a recorrente efectuou o pagamento da quantia referida em 13/01/2021, estamos perante factos supervenientes, ocorridos depois da produção de prova e da prolação da própria sentença recorrida, verificando-se, assim, os pressupostos exigidos pelo artº. 651º, n.º 1 do CPC para que seja admitida a junção do referido documento.
Como é sabido, a junção de documentos na instância de recurso obedece, clara e compreensivelmente, a regras particulares restritivas.
Com efeito, nos termos do disposto no artº. 651º, nº. 1 do NCPC, as partes apenas podem apresentar documentos com as alegações nas situações excepcionais a que se refere o artº. 425º do mesmo diploma, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
Por sua vez, o artº. 425° do NCPC refere que: "Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento."
Da articulação lógica destas normas resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (i) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso (valendo aqui a remissão do artº. 651º, nº. 1 para o artº. 425º); (ii) ter o julgamento da 1ª instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí (até ao julgamento em 1ª instância) se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.
Neste sentido se pronunciou o acórdão da Relação de Guimarães de 22/01/2015 (proc. nº. 561/12.1TBAMR-A, disponível em www.dgsi.pt): “Já depois do encerramento da audiência, no caso de recurso, a apresentação de documentos, sendo permitida desde que juntos com as alegações, lícita/admissível é tão só desde que se verifique uma de duas situações, a saber: a) Quando a sua apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, quer por impossibilidade objetiva (inexistência do documento em momento anterior), quer subjetiva (v.g. ignorância sobre a sua existência); b) Quando a sua junção se tenha tornado necessária devido ao julgamento na 1ª instância - v.g. quando a decisão proferida não era de todo expectável, tendo-se ancorado em regra de direito cuja aplicação ou interpretação as partes, justificadamente, não contavam.”
Quanto à primeira situação, a impossibilidade de junção do documento refere-se ou a uma superveniência objectiva (quando o documento é historicamente posterior ao encerramento da discussão da causa) ou a uma superveniência subjectiva (em que o documento só é conhecido após o encerramento da discussão da causa), relevando aqui apenas razões atendíveis, no sentido de serem razões aptas a demonstrar a impossibilidade do apresentante, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento (cfr. acórdão da RC de 18/11/2014, proc. nº. 628/13.9TBGRD, disponível em www.dgsi.pt).
No que concerne à situação referida em segundo lugar, é necessário que a decisão da 1.ª instância venha, pela primeira vez, criar uma necessidade de junção do documento, por se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou por ter resultado da aplicação ou interpretação de regra de direito com que as partes, razoavelmente, não contavam (cfr. acórdão do STJ de 26/09/2012, proc. nº. 174/08.2TTVFX, disponível em www.dgsi.pt.).
Quanto a esta situação, explica António Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., 2016, pág. 203 e 204) que a admissibilidade da junção de documentos em sede de recurso, justifica-se designadamente quando a parte/recorrente tenha sido surpreendida com o julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos documentos já constantes do processo.
No caso dos presentes autos, a Ré/recorrente requer a junção do supra mencionado documento para comprovar a transferência bancária que efectuou em 13/01/2021 para a conta do A., no valor de € 4.000,00, na sequência da transacção celebrada entre as partes em momento posterior ao encerramento da discussão da causa (que ocorreu em 15/12/2020), mas anterior à prolação da sentença objecto do presente recurso (em 6/01/2021), tendo sido junta aos autos por requerimento apresentado pela Ré em 7/01/2021 e homologada por sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância em 10/01/2021.
Porém, tal documento comprovativo da realização da aludida transferência bancária já havia sido junto aos autos pela Ré com o seu requerimento de 28/01/2021, após ter sido notificada do requerimento apresentado pelo A. em 13/01/2021, no qual este declarava que não ratificava a transacção subscrita pelo seu mandatário.
Notificado o A. do teor do aludido requerimento da Ré e do documento comprovativo da mencionada transferência bancária, este veio responder em 3/02/2021 nos termos supra referidos, não tendo impugnado tal documento.
Por outro lado, compulsado o processo electrónico disponível na plataforma Citius, constatamos que a Ré juntou aos autos o “Requerimento de Transacção” às 17H02 do dia 7/09/2021, depois de notificada (nessa mesma data, via Citius) da sentença ora em recurso, tendo efectuado a mencionada transferência bancária para a conta do A. em 13/01/2021, após ter sido notificada em 11/01/2021 (via Citius) da sentença homologatória da transacção proferida nessa mesma data.
Estando em causa factos supervenientes ocorridos depois de encerrada a discussão da causa e de proferida a própria sentença objecto do presente recurso, o Tribunal de 1ª instância, nos despachos que proferiu em 17/03/2021 e 29/04/2021 acima referidos, não ordenou o desentranhamento de tal documento, podendo até inferir-se do teor dos mesmos, nomeadamente do despacho de 29/04/2021, que tal documento foi admitido pelo Tribunal de 1ª instância.
Apesar da Ré/recorrente ter alegado e comprovado nos autos a impossibilidade da junção de tal documento antes do encerramento da discussão em 1ª instância, uma vez que o mesmo diz respeito a factos supervenientes ocorridos em momento processual posterior, e não obstante estarem verificados os pressupostos exigidos pelo artº. 651º, nº. 1 do NCPC, entendemos que a junção do referido documento em sede recurso se revela manifestamente inútil, havendo aqui uma duplicação de actos processuais, uma vez que o mesmo já consta dos presentes autos desde 28/01/2021, por nessa data ter sido junto igualmente pela Ré.
Assim, tendo sido exercido o contraditório em relação ao mencionado documento em momento processual anterior, não sendo o mesmo impugnado pelo Autor, nem mandado desentranhar pelo Tribunal de 1ª instância, e porque estamos perante uma duplicação de actos processuais, não sendo permitido pelo artº. 130º do NCPC a prática no processo de actos inúteis, determina-se o desentranhamento do documento apresentado pela Ré com as alegações de recurso.
*
II) – Da indemnização pela privação do uso do veículo do Autor:

A Ré, ora recorrente, sem colocar em causa a configuração do acidente de viação e a sua responsabilidade de ressarcir o A. pelos prejuízos que sofreu, tal como decidido em 1ª instância, vem insurgir-se contra a sentença recorrida na parte em que atribuiu ao A. uma indemnização pelo dano de privação do uso do veículo UO, sustentando que não lhe deverá ser arbitrada qualquer indemnização a esse título, porquanto o A. não logrou provar a existência de prejuízos verificados na sua esfera jurídica em consequência da privação do uso do referido veículo, defendendo a tese de que “a privação do uso de um veículo não basta, só por si, para fundar uma obrigação de indemnizar, incumbindo ao lesado uma obrigação de efectiva prova da existência de prejuízos de ordem patrimonial ou não patrimonial decorrentes da não utilização do bem”.
Sustenta, ainda, a recorrente que, caso se considere não ser necessária a prova dos danos concretos causados pela privação do uso do veículo, não basta que tenha existido uma imobilização forçada do veículo para que a Seguradora responsável seja, pura e simplesmente, condenada no pagamento das quantias indiscriminadamente peticionadas pelos lesados, sendo necessário verificar, em cada caso concreto, se tais lesados contribuíram, ou não, para o agravamento do dano, nomeadamente protelando no tempo a privação alegadamente causadora do mesmo, tendo havido da parte do A./recorrido um agravamento dos alegados danos, ao permanecer inerte perante a discordância face a uma decisão já tomada pela Ré e por si conhecida, considerando excessivo o valor da indemnização arbitrado pelo Tribunal “a quo” pela privação do uso do veículo.
O Tribunal “a quo” fixou a título de indemnização pela privação do uso do veículo, a quantia de € 4.000,00 até à data da propositura da acção (1/07/2020) e de € 25,00 diários contados desde 1/07/2020 até integral pagamento da quantia de € 1.732,21 arbitrada para a reparação do veículo, acrescidos de juros de mora à taxa legal calculados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.
Entendeu, pois, aquele Tribunal que o dano decorrente da privação do uso do veículo constitui dano patrimonial autónomo susceptível de indemnização, porquanto o proprietário do veículo danificado viu-se privado de um bem que faz parte do seu património.
No que se refere à indemnização do dano por privação do uso do veículo, a questão tem sido sobejamente debatida na nossa jurisprudência que, à semelhança do que acontece na doutrina, também se mostra dividida.
Percorrendo a jurisprudência encontramos, essencialmente, três correntes distintas.
Para uns, a simples privação do uso constitui, por si só, um dano patrimonial indemnizável já que representa, para o seu proprietário, a perda de uma utilidade que é a de usar a coisa quando e como lhe aprouver (cfr. acórdãos do STJ de 5/07/2018, proc. nº. 176/13.7T2AVR, relator António Abrantes Geraldes, da RL de 11/12/2019, proc. nº. 3088/19.7YRLSB, relator Carlos Castelo Branco, da RG de 17/10/2019, proc. nº. 9/16.2T8MNC, relatora Maria dos Anjos Nogueira e de 21/06/2018, proc. nº. 3274/16.1T8VNF, relator António Figueiredo de Almeida e no qual intervieram a ora relatora e a 1ª adjunta, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Com efeito, o artº. 1305º do Código Civil reconhece ao proprietário o direito de gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, direito que só conhece os limites e as restrições legalmente impostos. E no que se refere aos veículos automóveis, como nos dá conta o acórdão do STJ de 29/11/2005 (in CJ-Ac. do STJ, Ano XIII – Tomo III, pág. 151), enquanto uns caracterizam este dano, de impossibilidade de dispor do veículo, como não patrimonial, outros defendem que ela consubstancia um dano patrimonial (cfr. acórdãos do STJ de 28/09/2011, proc. nº. 2511/07.8TACSC, da RP de 17/03/2011, proc. nº. 530/09.9TBPVZ e da RG de 11/11/2009, proc. nº. 8860/06.5TBBRG, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
A outra corrente defende que a privação do uso de uma coisa por parte do seu proprietário, que um terceiro cause, somente será ressarcível se aquele cumprir com o ónus da prova do dano concreto e efectivo que decorreu da privação. Para estes a mera privação do uso não é indemnizável, tendo de se fazer prova da existência de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem (cfr. acórdãos do STJ de 30/10/2008, proc. nº. 08B2662, relator Bettencourt de Faria e de 15/11/2011, proc. nº. 6472/06.2TBSTB, relator Moreira Alves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Existe, ainda, uma corrente intermédia que defende que a simples privação do uso do bem não basta para justificar a indemnização, sendo também essencial que se prove a frustração de um propósito real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, não se exigindo a prova de danos efectivos e concretos (cfr. acórdãos do STJ de 6/05/2008, proc. nº. 08A1389, relator Sebastião Póvoas, da RP de 8/10/2008, proc. nº. 4031/15.8T8MTS, relator Jorge Seabra e da RC de 8/04/2014, proc. nº. 1091/12.7TJCBR, relator Fonte Ramos, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
A nível doutrinário, as posições também são divergentes.
Uma parte da doutrina defende a ressarcibilidade da simples privação do uso, independentemente do uso efectivo que é dado ao bem. Esta posição é mais favorável para o lesado atribuindo à privação do uso uma indemnização autónoma, independentemente de ser feita prova de que o veículo é efectivamente usado de forma habitual (cfr. António Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, Vol. I - Indemnização do Dano de Privação do Uso, 2ª edição, 2005, Almedina, págs. 27 e segtes; Luís Manuel Teles Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 2ª edição, vol. I, Almedina, Coimbra, pág. 316 e 317 e nota (657) e Júlio Gomes, RDE, Ano 12, 1986, pág. 169 e segtes).
A outra parte da doutrina recusa a indemnização pela mera privação do uso, exigindo para tanto a prova de um propósito concreto de utilização efectiva do bem (uso regular do bem a nível pessoal ou familiar/profissional), a partir do qual será de presumir (por presunção natural) a existência de danos concretos, merecedores de ressarcimento (cfr. Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. I, pág. 568-596 e Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, 2015, pág. 64).

Temos pois que, actualmente, aceite a ressarcibilidade do dano da privação do uso (enquanto dano autónomo), se debatem no essencial, duas posições:

1) - a que exige a alegação e prova, pelo lesado, das utilidades/vantagens concretas extraídas do bem de cujo uso se viu privado; e
2) - a que aceita que a privação do uso de um bem constitui sem mais uma desvantagem susceptível de avaliação pecuniária, consubstanciando, só por si, um dano patrimonial.
Mas, em ambas as posições, está em causa a mera privação, independente da verificação de concretos danos (danos emergentes ou lucros cessantes); e, só nas hipóteses em que da privação do uso não ocorrem danos concretos para o lesado, é que surge a necessidade de ressarcir o dano decorrente da mera privação como um dano autónomo.
Nesta última hipótese, a simples privação do uso de um bem constitui, por si só, um dano patrimonial indemnizável pois representa, para o seu proprietário, a perda de uma utilidade que é a de fruir a coisa que lhe pertence e de a utilizar quando e como lhe aprouver.
A supressão dessa faculdade, impedindo o proprietário de extrair do bem todas as suas utilidades, constitui, juridicamente, um dano autónomo com expressão pecuniária e que é passível de reparação, quando o proprietário de um bem danificado se viu privado do uso desse bem que faz parte do seu património.
Ou seja, se alguém que se vê privado de usar, fruir e dispor de um bem de que é proprietário sofre um dano imediato por efeito dessa mera privação, ainda que não tenha tido qualquer dispêndio de natureza patrimonial causada pela privação do uso, ou tenha deixado de auferir qualquer rendimento: o mero facto de não pode usar o bem de que é proprietário é um dano juridicamente relevante e susceptível de avaliação pecuniária e, como tal, indemnizável de forma autónoma.
No caso “sub judice”, e atenta a factualidade dada como provada, não se coloca sequer a questão da exigência de prova de um propósito concreto de utilização efectiva do veículo (uso regular do veículo a nível pessoal ou familiar/profissional) para que este dano seja ressarcível.
De facto, quanto à ressarcibilidade do dano da privação do uso em casos como o dos autos, em que o veículo era utilizado pelo A. nas suas deslocações diárias de casa para o trabalho e vice-versa e nas demais deslocações da sua vida privada (ponto 24 dos factos provados), vem a mesma sendo admitida sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo foi causa de despesas acrescidas, sendo certo que no caso concreto resultou ainda demonstrado que o A. vê-se obrigado a viver de favores de familiares e amigos e a utilizar transportes públicos para se deslocar (ponto 26 dos factos provados).
Assim, quando esteja em causa a privação do uso de um veículo danificado num acidente de viação, bastará apenas que resulte dos autos que o seu proprietário o usava habitualmente para que este possa exigir uma indemnização a esse título, sem ter de fazer prova concreta de efectivos prejuízos.
Entendemos, por isso, que no caso dos autos não pode deixar de se reconhecer ao A. o direito a obter uma indemnização relacionada com a privação do uso do seu veículo automóvel, que usava habitualmente nas suas deslocações diárias, assim tendo demonstrado a existência de uma concreta utilização relevante da coisa.
Conforme se alcança das alegações de recurso e respectivas conclusões, a Ré/recorrente começa por colocar em causa a decisão recorrida por alegadamente da mesma não resultar, de forma clara e inequívoca, que o A./recorrido tenha sofrido danos decorrentes da privação do uso do veículo e em que medida, defendendo que incumbia ao lesado a obrigação de efectiva prova da existência de prejuízos de ordem patrimonial ou não patrimonial decorrentes da não utilização do veículo.
Em face do acima exposto, entendemos que esta posição carece de fundamento atenta a tese do direito à indemnização e o critério utilizado pelo Tribunal “a quo” na atribuição da compensação monetária pela privação do uso do veículo, que tem sustentação no entendimento que maioritariamente vem sendo seguido na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, e que aqui também perfilhamos, pelas razões já atrás explanadas.
Uma vez assente ter o A. direito a receber uma indemnização decorrente da privação do uso do veículo, importa agora proceder à quantificação dessa indemnização. E não sendo possível determinar o valor exacto dos danos face aos factos provados (reconhecendo-se as dificuldades de prova que existem em matéria de quantificação da indemnização por equivalente), o tribunal terá de recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, n.º 3 do Código Civil, figura que tem na responsabilidade civil um campo de eleição, uma vez que se está recorrentemente perante a indisponibilidade de elementos objectivos ou face à impossibilidade duma determinação exacta dos danos (cfr. acórdãos da RL de 12/07/2018, proc. nº. 3664/15.T8VFX, relator Manuel Rodrigues, da RC de 6/02/2018, proc. nº. 189/16.7T8CDN, relator Falcão de Magalhães, da RP de 8/10/2008, proc. nº. 4031/15.8T8MTS, relator Jorge Seabra, da RG de 7/11/2019, proc. nº. 15/18.2T8AMR, relatora Rosália Cunha e de 30/01/2020, proc. nº. 500/18.6T8MDL, relatora Raquel Batista Tavares, aqui 1ª adjunta, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Neste caso, trata-se de encontrar a solução mais equilibrada, tendo em conta os interesses em causa, no contexto da prova disponível, de encontrar um valor que, de modo significativo, compense o A. da privação de uso do seu veículo, durante todo o período em que essa privação se verificou (neste caso, desde a data do acidente até ao pagamento da indemnização para reparação do veículo) e que, ao mesmo tempo, não produza o seu enriquecimento injustificado à custa da Ré.

O Tribunal recorrido considerou que a limitação do direito de propriedade do A., que engloba a possibilidade de uso e fruição do veículo UO, susceptível de ser ressarcida, resulta “in casu” do comprovado em face da factualidade provada em 23) a 29). E continua referindo que:

«Dada a ausência de valores concretamente apurados no tocante ao valor dos danos diários pela privação, tal ressarcimento deverá ser feito segundo as regras da equidade (artigos 4.º, alínea a) e 566.º, n.º 3 do Código Civil).
Considerando, pois, a privação do uso do veículo que a propriedade deste normalmente propiciaria, considerando as suas comprovadas caraterísticas, e tendo como referência o valor de aluguer de veículo de características semelhantes, que de resto se encontra provado em 30), deduzido das componentes de tal preço de aluguer que se traduzem no lucro das empresas que se dedicam ao mesmo (que não poderá integrar como é manifesto o valor da indemnização aqui a fixar, sob pena dum ilícito lucro do Autor), julgamos adequada a fixação do montante diário, não de € 29,06 peticionado, mas sim de € 25,00 diários, desde o acidente a 8-9-2019 até ao pagamento da indemnização para reparação do veículo. Assim, dos € 4.650,00 peticionados a tal título à data da interposição da ação são devidos apenas e 4.000,00, sendo devidos € 25,00 por cada dia adicional até à disponibilização integral do montante necessário para a reparação do veículo. Frisando-se que inexiste qualquer culpa do Autor na ocorrência destes danos, contrariamente ao referido pela Ré Seguradora, estando provado que o mesmo não dispõe de meios para proceder à reparação da viatura sem o pagamento – legalmente devido – da indemnização em que a Ré vai aqui condenada.
A esta quantia acrescem juros de mora à taxa legal, desde a data da presente sentença até efetivo e integral pagamento, porquanto a mesma se mostra atualizada – por força da primeira parte do art. 805º, n.º 3 do Código Civil, na senda do AUJ 4/2002 de 9-5-2002 – neste sentido vide também o Ac. da Relação de Lisboa, Proc. 889/11.8 TBSSB.L1-6, disponível em www.dgsi.pt.»
A Ré, ora recorrente, discorda do montante arbitrado pelo Tribunal “a quo” a este título, alegando que não basta que tenha existido uma imobilização forçada do veículo para ser responsabilizada pelo ressarcimento daquele dano de privação do uso, sendo necessário verificar se o lesado contribuiu (ou não) para o agravamento do dano, nomeadamente protelando no tempo a privação alegadamente causadora do mesmo.
Entende a recorrente que o A./recorrido contribuiu, em certa medida, para o agravamento dos danos que advieram da paralisação do veículo, pois apenas intentou a presente acção de indemnização contra a Seguradora praticamente 1 ano depois do acidente, mesmo perante a comunicação da Ré de não assunção da responsabilidade por si conhecida, tendo tal inércia do A. conduzido a um agravamento dos custos da paralisação, havendo que situar o seu comportamento no âmbito do artº. 570º, n.º 1 do Código Civil.
Ora, contrariamente ao defendido pela recorrente, à luz da teoria da causalidade adequada, os danos posteriores que se verificarem eventualmente até à resolução do litígio (com o pagamento da indemnização relativa à perda total ou ao custo da reparação) não deixam de ter como causa adequada o facto/evento determinante do acidente, pelo que, há que ter em conta que é ao lesante (ou à sua Seguradora aqui recorrente) que compete repará-los o mais depressa possível, de modo a que estes se não agravem, sem prejuízo de poder alegar e provar que a demora, com a maior extensão temporal daquele período, se ficou a dever à recusa (injustificada) do lesado em aceitar o veículo de substituição disponibilizado, a indemnização em dinheiro oferecida ou a reparação proposta - o que, manifestamente, não se verifica no caso em apreço - pelo que não pode a Ré/recorrente, por via do presente recurso, vir valer-se do facto da acção só ter sido proposta decorridos mais de 297 dias, ou seja, cerca de 10 meses depois do acidente, para daí retirar um benefício para si, quando é ela própria que, atempadamente, não procedeu à reparação do dano, quando declinou a sua responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do acidente, na carta que enviou ao A. datada de 10/10/2019 (cfr. doc. 4 da petição inicial).
Acresce referir que, contrariamente ao defendido pela recorrente, não se pode considerar, tendo em conta exclusiva e isoladamente tal dilação até à propositura da presente acção, que o A. tenha contribuído para o agravamento dos danos da privação do uso, à luz do citado artº. 570º, nº. 1 do Código Civil, tanto mais que resultou provado que o A. não tem capacidade financeira para efectuar a reparação do veículo UO pelos seus próprios meios, nem para adquirir outro veículo (pontos 22 e 25 dos factos provados).
Sobre esta questão, importa ter presente o que se decidiu no acórdão do STJ de 28/11/2013 (proc. nº. 161/09.3TBGDM, relator Salazar Casanova, disponível em www.dgsi.pt), no qual se defendeu que o pedido de indemnização pela privação do uso de veículo danificado deduzido algum tempo depois do sinistro, não é suficiente para se considerar que tal actuação constitui um facto culposo que concorre para o agravamento dos danos traduzidos nos custos decorrentes da privação do uso.
“É que, a considerar-se, sem mais, que o pedido de indemnização deduzido algum tempo depois do sinistro constitui facto culposo do lesado, estaríamos a introduzir uma presunção de culpa que a lei não admite.”
Além disso, o acórdão do STJ de 6/05/2008 (proc. nº. 08A1279, relator Urbano Dias, disponível em www.dgsi.pt), tendo igualmente por base que a simples privação do uso de veículo constitui uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica dele privado, considerou que dificilmente se poderá, na maior parte dos casos, encontrar o valor exacto de tal prejuízo, daí que se deva falar antes de atribuição de uma compensação, que deverá ser determinada por juízos de equidade e tendo em conta as circunstâncias concretas do caso, por referência ao que se dispõe no n.º 3 do artº. 566º do Código Civil.
Podemos, pois, concluir, tal como fez o Tribunal “a quo” na sentença recorrida, que inexiste qualquer culpa do Autor na ocorrência (e agravamento) do dano da privação do uso, contrariamente ao referido pela Ré Seguradora, estando provado que o mesmo não dispõe de meios para proceder à reparação da viatura UO sem o pagamento pela Ré da indemnização que lhe é legalmente devida.
Por outro lado, a recorrente pretende apontar a existência de um erro de cálculo quanto ao valor da indemnização pela privação do uso fixado pelo Tribunal “a quo”, alegando que da sentença resulta a condenação da Ré a pagar ao A. a quantia de € 4.000,00, como indemnização pela privação do uso do veículo desde a data do acidente (8/09/2019) até à data da propositura da acção (1/07/2020), ou seja, pelo período de 297 dias, acrescido do montante diário de € 25,00, a título de privação do uso do veículo, desde a data da propositura da acção (1/07/2020) até ao pagamento da reparação do veículo UO, tendo aquele Tribunal, nesse seguimento, considerado que o A. tinha um prejuízo diário no valor de € 13,47, pela impossibilidade de utilizar o veículo UO, desde a data do acidente até à data da propositura da acção (€ 4.000,00 : 297 dias = € 13,47).
Mais alega a recorrente ser incompreensível que o Tribunal “a quo” considere que a privação do uso do veículo, em momento anterior à propositura da acção, representava para o ora recorrido um prejuízo de € 13,47 diários e, posteriormente à propositura da acção, representava um prejuízo de € 25,00 diários.
Todavia, a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, ante o peticionado pelo A. no seu articulado inicial, mostra-se correcta. Com efeito, na petição inicial, o Autor, ao invés de alegar terem decorrido 297 dias entre a data do acidente e a data da propositura da acção, alegou terem decorrido 160 dias e calculou o valor de € 29,06 peticionado para esse período, totalizando a quantia de € 4.650,00 (€ 4.650,00 : 160 dias = € 29,06/dia), pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe essa quantia (€ 4 650,00), a título de compensação pela privação do uso e fruição do UO desde a data do acidente até à data da propositura da acção.
O Tribunal “a quo”, ao condenar a Ré naquele pedido, fê-lo com redução do valor diário para a quantia de € 25,00, e calculou o valor final tendo em conta os mesmos 160 dias que o A. alegou e peticionou no seu articulado, corrigindo o valor de € 4.650,00 para € 4.000,00 (€ 25,00 x 160 dias = € 4.000,00), sendo certo que, de acordo com o disposto no artº. 609º, nº. 1 do NCPC, o tribunal não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do peticionado.
Assim, em bom rigor, a situação de que a recorrente pretende tirar proveito não tem qualquer correspondência com a realidade, sendo certo que aquela condenação está em conformidade com o que havia sido pedido pelo A. na sua petição inicial.
Atenta a realidade que consta dos autos e a fixação do valor de € 25,00 diários pela privação do uso do veículo, que constitui a condenação efectiva e sem margem para dúvidas nos termos acima referidos, sempre o valor reportado aos 297 dias que mediaram entre a data do acidente e a data da propositura da acção, corresponderia à quantia de € 7.425,00. No entanto, porque o Tribunal está vinculado ao pedido formulado pelo A. na petição inicial nos termos do citado artº. 609º, nº. 1 do NCPC, teremos de concluir que o Tribunal “a quo” não condenou no valor diário de € 13,47, como pretende fazer crer a recorrente, mas sim no valor de € 25,00 diários (€ 4.000,00 : 160 dias = € 25,00) pelo dano de privação do uso do veículo UO.
A recorrente procura sustentar a sua tese, na pretensão de diminuir o valor da indemnização pela privação do uso do veículo, citando diversos acórdãos dos Tribunais Superiores, designadamente desta Relação e das Relações de Lisboa, Porto e Coimbra, dos quais alegadamente resultam valores inferiores àquele que foi fixado nestes autos pelo Tribunal de 1ª instância.
Ora, contrariamente ao pretendido pela recorrente, aqueles arestos não se debruçam sobre casos idênticos ao dos presentes autos, nem se mostram assentes os mesmos factos, pelo que, em nosso entender, não constituem um padrão para aferição do valor indemnizatório.
Pretende, ainda, a recorrente que, caso se mantenha a sua condenação no valor de € 25,00 diários a título de privação do uso do veículo, tal valor deverá ser contabilizado a partir da data da notificação da sentença e não da data da propositura da acção, tendo em atenção que a ora recorrente foi condenada a pagar ao A. o montante total de € 1.732,21 para reparação do veículo UO, não devendo o valor a fixar a título de indemnização pela privação do uso do veículo ultrapassar em muito o valor da sua reparação, sob pena de termos uma decisão totalmente desequilibrada e desproporcional.
Em face da discordância manifestada pela recorrente quanto ao valor diário indemnizatório e o período de tempo que deve ser contabilizado no ressarcimento do dano de privação do uso do veículo, importa, pois, apurar até quando deve ser arbitrada uma indemnização pela privação do uso e se deve ter-se por adequado e equitativo o valor diário de € 25,00 arbitrado pelo Tribunal “a quo”.
Conforme decorre dos factos provados, o acidente ocorreu em 8/09/2019 e o A. encontra-se privado do uso do seu veículo desde a data do acidente, pois o veículo UO não está reparado, não tendo o A. capacidade financeira para efectuar a reparação pelos seus próprios meios, nem para adquirir outro veículo.
Provado se mostra, ainda, que o aluguer de um veículo com as características do UO custa diariamente cerca de € 58,13.
Relativamente ao valor diário da indemnização correspondente ao dano pela privação do uso do veículo, Tribunal “a quo” fundamenta o valor atribuído tendo por base as regras de equidade. Para o efeito considerou as características do veículo, as utilidades que o mesmo normalmente propiciaria e tendo como referência o valor do aluguer de veículo de características semelhantes, que de resto se encontra provado em 30), deduzido das componentes de tal preço de aluguer que se traduzem no lucro das empresas que se dedicam àquela actividade (que não poderá integrar o valor da indemnização aqui a fixar, sob pena dum lucro ilícito por parte do Autor), entendendo adequado atribuir o quantitativo diário de € 25,00, desde a data do acidente (8/09/2019) até ao pagamento da indemnização para reparação do veículo.
Todavia, tendo em consideração os factores levados em conta pelo Tribunal “a quo” e ainda o que decorre da factualidade provada, mas também atendendo aos padrões seguidos em decisões jurisprudenciais recentes, afigura-se-nos que o valor diário da indemnização pela privação do uso do veículo deverá ser ligeiramente inferior ao fixado por aquele Tribunal. De facto, estando em causa a fixação de uma indemnização com recurso a um critério de equidade, a mesma deverá enquadrar-se dentro dos padrões definidos pela jurisprudência para casos idênticos.
A título meramente exemplificativo, citamos aqui o acórdão desta Relação de 09/04/2019 (proc. nº. 673/17.5T8PTL, relator Paulo Reis, disponível em www.dgsi.), que julgou mostrar-se conforme à equidade fixar a indemnização devida no montante de € 20,00 por dia, relativamente à privação do uso de um veículo ligeiro de passageiros marca Peugeot, modelo 5008 1.6 HDI Business Line, que o autor utilizava nas suas deslocações para o trabalho; neste acórdão são ainda citados os acórdãos do STJ de 28/04/2009 (relator Cons. Mário Cruz, proferido na Revista n.º 789/04.8TBCTX - 1ª Secção, com o sumário disponível em www.stj.pt), onde foi considerado que durante 2 meses e 4 dias, o autor e o seu agregado familiar esteve privado de viatura própria nas deslocações pessoais diárias e de fins-de-semana, tendo necessitado de se socorrer de transportes públicos ou de usar um veículo cedido gratuitamente por um familiar, sofrendo, para além de incómodos, uma situação de desconforto ou desgosto, e que o custo do aluguer de um veículo com as características do sinistrado ascenderia a quantia não inferior a € 25,00/dia; de 10/05/2011 (relator Cons. João Camilo, proferido na Revista n.º 1253/07.9TBVFR - 6ª Secção, com o sumário disponível em www.stj.pt), em que se considerou que devendo o valor dessa privação ser calculado de acordo com a equidade, cumpria ver, além do mais, as importâncias que para este efeito têm sido fixadas no STJ, que orçam os € 25 diários para veículos automóveis e de 16/06/2009 (relator Cons. Silva Salazar, proferido na Revista n.º 146/09.0YFLSB - 6.ª Secção, com o sumário disponível em www.stj.pt), em que se provou que o veículo do autor, devido a acidente ocorrido em 08/02/2005, ficou impossibilitado de circular, sendo que o autor o utilizava nas suas deslocações diárias, e que o aluguer diário de um veículo de idêntica classe custa cerca de € 24,00 por dia, considerando-se como suficiente para compensar a privação do uso de veículo automóvel uma quantia média diária de € 15,00.
Importa, ainda, fazer referência ao acórdão desta Relação de 17/12/2020 (proferido no proc. nº. 374/18.7T8PVL, relatado também pela ora Relatora e subscrito pelas aqui Adjuntas, disponível em www.dgsi.pt), no qual foi considerado “justo, proporcional e adequado, no caso “sub judice”, à luz das regras da boa prudência, de uma criteriosa ponderação das realidades da vida e do bom senso prático, fixar o montante diário em € 20,00 a título de indemnização pela privação do uso do veículo do Autor”, tratando-se também de um veículo ligeiro de passageiros.
E foi esse também o valor fixado no acórdão da RG de 26/11/2020 (proc. n.º 1804/17.0T8BRG, relatado pela aqui 1ª Adjunta e subscrito também pela aqui 2ª Adjunta, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, neste enquadramento, atenta a factualidade provada, donde ressalta a utilização pessoal e familiar que era efectuada do veículo, o período de tempo em que o A. tem estado privado do uso do mesmo, a sua falta de capacidade financeira para proceder à reparação do veículo pelos seus próprios meios e bem assim, para adquirir outro veículo, a dependência de terceiros e o uso de transportes públicos para as deslocações, a alteração da sua vida pessoal e familiar, os transtornos e incómodos sofridos, apelando a critérios de equidade e ponderando os valores usuais na nossa jurisprudência, tendo ainda em atenção que a atribuição da indemnização pela privação do uso é calculada mediante a ponderação da reconstituição que existiria se não se tivesse verificado o evento, nos termos do artº. 562º do Código Civil e com recurso à equidade, nos termos do artº. 566º, n.º 3 do mesmo Código, afigura-se-nos equilibrado, adequado e enquadrado dentro dos padrões definidos pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, fixar o montante diário em € 20,00 a título de indemnização pela privação do uso do veículo do Autor.
Tendo o A. peticionado, no seu articulado inicial, uma indemnização pela privação do uso do veículo UO apenas durante o período de 160 dias, e estando o Tribunal vinculado ao pedido formulado pelo Autor (artº. 609º, nº. 1 do NCPC), a alteração do valor diário para € 20,00 conduz-nos ao montante total de € 3.200,00 (€ 20,00 x 160 dias), devido por essa privação entre a data do acidente (8/09/2019) e a data da propositura da acção (1/07/2020), sendo, ainda, devido o valor diário de € 20,00 a título de dano pela privação do uso do veículo, desde a data da propositura da acção (1/07/2020) até integral pagamento do valor correspondente ao custo de reparação do mesmo, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal nos termos definidos na sentença recorrida.
O que vem, pois, a traduzir-se na procedência parcial do recurso interposto pela Ré, neste segmento.
*
II) – Do pagamento do valor correspondente à reparação do veículo do Autor:

A recorrente suscita, ainda, a questão do pagamento do valor correspondente à reparação do veículo, aludindo a um pretenso entendimento entre as partes sobre o objecto do litígio, em momento anterior à prolação da sentença ora em recurso, assim como à celebração de uma transacção nos termos da qual o A., aqui recorrido, aceitava reduzir o pedido para o montante de € 4.000,00, valor que a recorrente aceitava pagar, tendo esta, em cumprimento da transacção celebrada e homologada por sentença, transferido em 13/01/2021, para a conta bancária do Autor, o valor de € 4.000,00, conforme documento comprovativo do pagamento junto aos autos.
Tendo o A. recebido aquele valor em 13/01/2021, transferido pela ora recorrente por referência à transacção que o mesmo não quis ratificar, e não tendo procedido à devolução do mesmo, pretende a Ré/recorrente, em caso de manutenção da sua condenação em qualquer valor diário a título de privação do uso do veículo UO até efectivo e integral pagamento do valor correspondente à sua reparação, que este Tribunal da Relação considere a data de 13/01/2021 (data em que procedeu ao pagamento ao A. do valor de € 4.000,00) como a data em que a Ré procedeu ao efectivo e integral pagamento do valor da reparação daquele veículo, porquanto, ascendendo a reparação da referida viatura ao valor de € 1.732,21, o montante de € 4.000,00 transferido para o A., permite a reparação do mesmo, devendo considerar-se que, nessa data, cessou qualquer dano decorrente da alegada privação do uso do veículo UO na esfera jurídica do Autor.
Contudo, esta questão suscitada pela Ré no presente recurso apenas o foi nesta sede, pelo que estamos inequivocamente perante uma questão nova, que não foi colocada perante o Tribunal de 1ª instância e que este, por esse motivo, não apreciou, nem sobre a mesma se debruçou na decisão recorrida.
Dito de outro modo, a aqui recorrente alegou novos factos e suscitou indevidamente perante este Tribunal da Relação uma questão nova, não submetida à apreciação do Tribunal de 1ª instância, porquanto a mesma tem a ver com factos supervenientes, ocorridos depois de encerrada a discussão da causa e de proferida a sentença objecto do presente recurso, sendo que este Tribunal apenas pode debruçar-se sobre a sentença proferida nos autos em 6/01/2021 e não sobre qualquer outra situação ou facto que ela não contempla.
Assim, tratando-se de uma questão nova, que só agora foi trazida à discussão, não tendo sido objecto de discussão na fase dos articulados, nem antes do encerramento da discussão da causa, nem sido apreciada na 1ª instância, está este tribunal de recurso impedido de a conhecer agora, pois como é sabido, os recursos não servem para discutir questões novas, mas para reapreciar questões já apreciadas (cfr. acórdãos da RG de 8/11/2018, proc. nº. 212/16.5T8PTL e da RL de 14/02/2013, proc. nº. 9778/11.5TBOER-A, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Como é sabido, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais (artº. 627º do NCPC), através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá‑las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal “ad quem” com questões novas, salvo quanto às questões de conhecimento oficioso, o que não é o caso (cfr. acórdão do STJ de 17/11/2016, proc. nº. 861/13.3TTVIS, disponível em www.dgsi.pt).
Conforme é referido por António Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., 2016, Almedina, pág. 97 e 98), o recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, em termos gerais, apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal “ad quem” com questões novas. Os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis (neste sentido, vejam-se também os acórdãos do STJ de 7/07/2016, proc. nº. 156/12.0TTCSC e de 17/11/2016 acima referido, disponíveis em www.dgsi.pt).
Seguindo a terminologia proposta por Miguel Teixeira de Sousa (in Estudos sobre o Processo Civil, 2ª ed., pág. 395), não pode deixar de se ter presente que tradicionalmente seguimos, em sede de recurso, no âmbito do processo civil, um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.
Para se concluir no sentido de que os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que antes não foram submetidas ao contraditório e decididas pelo Tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso (neste sentido, cfr. também José Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III – Tomo 1, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 8).
Com efeito, em sede recursória, o que se põe em causa e se pretende alterar é o teor da decisão recorrida e os fundamentos desta. A sua reapreciação e julgamento terão de ser feitos no seio do mesmo quadro fáctico e condicionalismo do qual emergiu a sentença proferida e posta em crise.
Na sequência do que atrás se referiu e é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação (neste sentido, cfr. também acórdãos do STJ de 7/07/2016, proc. nº. 156/12.0TTCSC, de 14/5/2015, proc. nº. 2428/09.1TTLSB e de 24/2/2015, proc. nº. 1866/11.4TTPRT, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Os tribunais superiores apenas devem ser confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios.
Assim sendo e em conclusão, constituindo a matéria suscitada pela recorrente na motivação/conclusões do presente recurso, inquestionavelmente, questão nova, nos termos acima caracterizados, não poderá ser apreciada por este tribunal superior.
A única excepção a esta regra são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes. Não sendo uma questão ou situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal da Relação apreciar uma questão nova, por não fazer parte do objecto do processo, já que o seu conhecimento, enquanto instância de recurso, se circunscreve à apreciação de questões que já tenham sido colocadas na 1ª instância.
A questão de considerar-se a data de 13/01/2021 (em que a Ré transferiu o valor de € 4.000,00 para a conta do Autor) como sendo a data em que a Ré procedeu ao efectivo e integral pagamento do valor da reparação do veículo UO (uma vez que a reparação da referida viatura ascende ao valor de € 1.732,21 e o montante de € 4.000,00 transferido para o A. permite a reparação do mesmo), cessando, nessa data, qualquer dano decorrente da privação do uso do veículo UO na esfera jurídica do Autor, ora suscitada pela Ré em sede de recurso, não é de conhecimento oficioso, pelo que não poderá ser conhecida por este tribunal superior, podendo, quando muito, ser apreciada em sede de execução de sentença ou de posterior liquidação da decisão proferida pela 1ª instância.
Por tudo o que se deixou exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, improcede, nesta parte, o recurso interposto pela Ré.
*
SUMÁRIO:

I) - A mera privação do uso de um veículo, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente relevante e susceptível de avaliação pecuniária e, como tal, indemnizável de forma autónoma, na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de usar, fruir e dispor do bem quando e como lhe aprouver.
II) - Tendo resultado provado que o veículo era utilizado pelo Autor nas suas deslocações diárias de casa para o trabalho e vice-versa e nas demais deslocações da sua vida privada, assim tendo demonstrado a existência de uma concreta utilização relevante do mesmo, tem o Autor direito a obter uma indemnização relacionada com a privação do uso do seu veículo automóvel, sem ter de fazer prova concreta de efectivos prejuízos.
III) - A determinação do quantum indemnizatório pela privação do uso, que não implica um qualquer prejuízo patrimonial concreto, deve ser fixada em termos casuísticos e com recurso a critérios de equidade, de harmonia com o preceituado no artº. 566º, n.º 3 do Código Civil.
IV) - O pedido de indemnização pela privação do uso de veículo danificado deduzido algum tempo depois do sinistro, não é suficiente para se considerar que tal actuação constitui um facto culposo que concorre para o agravamento dos danos traduzidos nos custos decorrentes da privação do uso. É que, a considerar-se, sem mais, que o pedido de indemnização deduzido algum tempo depois do acidente constitui facto culposo do lesado, estaríamos a introduzir uma presunção de culpa que a lei não admite.
V) - O recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, em termos gerais, apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal “ad quem” com questões novas. Os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis.
VI) - Não tendo a Ré invocado determinada questão na fase dos articulados, nem antes do encerramento da discussão da causa, trazendo tal questão apenas à discussão na motivação/conclusões do recurso, sem ter sido submetida, previamente, à apreciação do Tribunal de 1ª instância, reveste a mesma a natureza de questão nova que, não sendo de conhecimento oficioso, não cabe ao tribunal de recurso conhecer.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Ré X Seguros, S.A., actualmente designada X Seguros, Compañia de Seguros Y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal e, em consequência, revogam parcialmente a sentença recorrida, condenando a Ré Seguradora a pagar ao Autor:

a) a quantia de € 3.200,00 (três mil e duzentos euros), a título de indemnização pela privação do uso do veículo UO, entre a data do acidente e a data da propositura da acção, acrescida de juros de mora à taxa legal nos termos definidos na sentença recorrida;
b) o valor diário de € 20,00 (vinte euros) a título de indemnização pela privação do uso do referido veículo, desde 1/07/2020 até integral pagamento do valor correspondente ao custo de reparação do mesmo, acrescido de juros de mora à taxa legal nos termos definidos na sentença recorrida.
No mais, decide-se manter a sentença recorrida.

Custas a cargo de ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento e sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido ao Autor.
Notifique.
Guimarães, 7 de Abril de 2022
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)