INVENTÁRIO
BENS DA COMUNHÃO
BEM PRÓPRIO
BENFEITORIA
Sumário


Tendo sido construída uma habitação, de raiz, com bens da comunhão, em terreno que é um bem próprio de um dos ex-cônjuges, deve o valor daquela ser relacionado como benfeitoria pertencente ao património comum, sem que seja abatido o valor de uma construção em ruínas, pré-existente e que foi demolida para se proceder à construção da nova habitação.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

H. P. requereu, no Cartório Notarial de …, inventário para partilha por divórcio contra V. M., seu ex-cônjuge, com quem foi casada no regime de bens de comunhão de adquiridos, tendo o requerido sido nomeado cabeça de casal.
A requerente deduziu reclamação à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal e após vários requerimentos de resposta e contra-resposta, bem como produção de prova, foi proferido despacho, a 30/09/2020, que decidiu as questões suscitadas quanto à relação de bens.
O cabeça de casal apresentou nova relação de bens, tendo a requerente solicitado esclarecimento sobre o valor da benfeitoria, que veio a ser objeto de despacho proferido a 12/10/2020, que mandou relacionar a benfeitoria pelo valor de € 112.800,00, relativo ao valor da avaliação subtraído do valor da construção pré-existente (€ 138.800,00 – 26.000,00).
Teve lugar a conferência de interessados, com acordo parcial de adjudicação de verbas pelos interessados e, relativamente a uma das verbas, foi apresentada proposta em carta fechada pelo requerido, que foi aceite.
Foi elaborado mapa informativo da partilha, tendo o requerido e cabeça de casal procedido ao pagamento à requerente das tornas devidas.
Foi elaborado o mapa de partilha que não sofreu qualquer reclamação, tendo o mesmo sido homologado por decisão judicial, com adjudicação aos interessados dos bens, nos termos aí definidos.

A requerente interpôs recurso do despacho de decisão do incidente de reclamação à relação de bens de 30/09/2020, do despacho proferido a 12/10/2020 e da sentença homologatória da partilha, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

I) A Requerente não se conforma com a decisão interlocutória, proferida em 30/09/2020 no incidente de reclamação à relação de bens, no que concerne à seguinte matéria: ..."Crédito do património comum referente a benfeitorias realizadas no urbano sito na rua da ..., freguesia de ... e ..., ...: A reclamante diretamente assume a posição de que é um direito de crédito referente a benfeitorias realizadas num terreno próprio pelo que não teceremos quaisquer considerações e divergências doutrinais existentes sobre tal questão aceitando-se nos termos apresentados ou seja como simples benfeitoria inserida em bem próprio do cabeça de casal. Ambas as partes reconheceram, nomeadamente em sede produção de prova testemunhal, que a casa de morada de família foi edificada durante a constância do casamento, embora ainda não esteja atualmente concluída, e isto independentemente da contribuição a nível de trabalho que foi nesses testemunhos invocada. Assim, e nessa qualidade de benfeitoria foi realizada uma perícia ao imóvel, da qual as partes foram notificadas, tendo solicitado esclarecimentos, os quais foram prestados pelo perito. Nada mais foi requerido pelas partes pelo que, e dado que apenas foi reclamado o valor das benfeitorias, deverá ser relacionado o valor indicado pelo perito, mantido no esclarecimento posterior, constituindo a forma pela qual, o ex-cônjuge devedor terá que compensar o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa da comunhão, gerando o reclamado crédito do património comum sobre o cônjuge proprietário, a ser compensado agora no momento da partilha."
II) Do mesmo modo, a Requerente não se conforma com a decisão proferida em 12/10/2020, que incidiu sobre o requerimento apresentado nos autos em 07/10/2020, com o seguinte teor: :
"...Na sequência do seu requerimento indica-se que o valor a ser relacionado é o indicado pelo perito, por nada mais ter isso invocado e provado, após os seus esclarecimentos, ou seja:
Considera-se o valor da avaliação da benfeitoria 138.800,000 retirando o valor de 26.000,00, perfazendo o valor total da benfeitoria atual de € 112.800,00, sendo que o crédito a favor da reclamante será metade deste valor total..."
III) Em Novembro de 2009, na constância do casamento entre a Requerente e o Requerido, os pais deste doaram-lhe o prédio urbano sito na rua da ..., s/n, da união de freguesias de ... e ..., artigo matricial n.º … da união de freguesias de ... e ..., registado na Conservatória do Registo Predial de ... sob a descrição n.º ../1992110 da referida freguesia, assim, de acordo com a alínea b) do n.º1 do artigo 1722º do Código Civil, o bem doado consiste em bem próprio do Requerido.
IV) Posteriormente mas ainda no decorrer o casamento, a Requerente e o Requerido construíram uma habitação no referido prédio urbano.
V) Acontece que, à data da doação, o prédio urbano em causa se encontrava em ruínas e a Requerente e o Requerido demoliram a construção pré existente e construíram uma habitação de raiz, totalmente nova, sem aproveitamento das ruínas da construção pré-existente.
VI) No decorrer do casamento, a Requerente e o Requerido conciliaram esforços a fim de construírem a habitação totalmente nova, sem aproveitamento das ruínas da antiga construção, pelo que, a construção da nova habitação resultou do produto do trabalho de ambos.
VII) De acordo com o entendimento da maioria da Jurisprudência, embora existam divergências, no caso em apreço estamos perante benfeitorias realizadas no prédio da exclusiva propriedade do Requerido/Cabeça de Casal e a Requerente pretendia que lhe fossem pagas metade das benfeitorias realizadas no referido prédio.
VIII) No que respeita aos concretos pontos de facto incorretamente julgados, a construção pré-existente no prédio doado foi demolida, pelo que, a Requerente entende, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, que a demolição da construção pré-existente à data da doação devia ser considerada como facto provado e em consequência a habitação construída de raiz (benfeitoria, correspondente a todas as despesas e encargos com a edificação da habitação) considerada um bem comum, não sendo retirado do valor de construção atual no montante de 138 000,00€ o valor da construção pré existente na importância de 26 000,00€.
IX) Na constância do casamento, a Requerente e o Requerido conciliaram esforços a fim de construírem a habitação totalmente nova, sem aproveitamento das ruínas da antiga construção, pelo que a construção da nova habitação resultou do produto do trabalho de ambos e constitui um bem comum.
X) No que concerne aos concretos meios probatórios constantes do processo que impunham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, o Requerido admite e confessa na resposta à reclamação de bens apresentada em 21/01/2019, no ponto IV, que "IV) Em relação ao crédito do património comum sobre o interessado/cabeça de casal: Embora a epígrafe nesta parte da reclamação não seja muito clara, parece que a reclamante pretende que lhe sejam pagas metade das benfeitorias executadas num imóvel que pertence apenas ao cabeça de casal. Sendo assim, o cabeça de casal aceita que no imóvel em causa foram feitas benfeitorias, as quais consistiram na demolição de uma casa já existente, identificada no ortofotomapa extraído do Google Earth, referente ao ano de 2010 e na construção da casa identificada no ortofotomapa extraído do Google Earth referente ao ano de 2013 (Docs. nº 13 e 14)."
XI) Acresce que, resulta do relatório pericial na sua página n.º6, o seguinte"...a benfeitoria a avaliar, uma moradia unifamiliar, está implantada sobre a área onde existia a anterior edificação..." e que a "...caderneta predial está desatualizada e refere a edificação anterior, entretanto demolida...".
XII) Pelo exposto, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, resulta provado que a habitação em questão foi construída totalmente de novo, sem aproveitamento das ruínas da antiga construção, com o produto do trabalho e esforço de ambos os cônjuges que contribuíram em conjunto para todas as despesas da edificação do imóvel.
XIII) A decisão que no entender da Requerente deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, face à prova produzida, resultante da confissão do Requerido/Cabeça de casal em sede de resposta à reclamação de bens e do relatório pericial, salvo o devido respeito por douto entendimento diverso, que deve ser considerada provada a demolição da construção pré-existente, e considerado provado que a benfeitoria no valor de 138 800,00€ pertence na sua totalidade ao património comum, por ter sido construída com o esforço e os rendimentos provenientes do trabalho dos cônjuges na constância do casamento.
XIV) Assim, não deve ser retirado ao valor da avaliação da benfeitoria no montante de 138 800,00€ o valor da avaliação da construção pré existente no prédio urbano no montante de 26 000,00€.
XV) Em consequência, o Requerido deve compensar o património comum pelo enriquecimento do seu património próprio no valor de 69 400,00€, correspondente ao valor de metade da benfeitoria efetuada ao prédio urbano no decorrer do matrimónio.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO que Vs.Exas. melhor suprirão, requer a Vs.Exas. concedam provimento ao recurso interposto e em consequência seja decidido alterar as decisões proferidas sobre a matéria de facto conforme se especifica bem como as decisões interlocutórias e em consequência ser alterado o montante da compensação a efetuar pelo Recorrido ao património comum pelo enriquecimento no seu património próprio.
Decidindo deste modo, Vs.Exas. farão como sempre inteira justiça.

O requerido contra alegou, pugnando pela inadmissibilidade do recurso e pela extemporaneidade da impugnação da decisão do incidente de reclamação.
Conhecendo das questões suscitadas pelo recorrido, o recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com o valor pelo qual foi relacionada a benfeitoria, designadamente, se ao valor da avaliação deve ser deduzido o valor da construção pré-existente.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Sobre a verba relativa a benfeitorias foi decidido no despacho que conheceu da reclamação de bens, o seguinte:

“Crédito do património comum referente a benfeitorias realizadas no urbano sito na rua da ..., freguesia de ... e ..., ...: A reclamante diretamente assume a posição de que é um direito de crédito referente a benfeitorias realizadas num terreno próprio pelo que não teceremos quaisquer considerações e divergências doutrinais existentes sobre tal questão aceitando-se nos termos apresentados ou seja como simples benfeitoria inserida em bem próprio do cabeça de casal. Ambas as partes reconheceram, nomeadamente em sede produção de prova testemunhal, que a casa de morada de família foi edificada durante a constância do casamento, embora ainda não esteja atualmente concluída, e isto independentemente da contribuição a nível de trabalho que foi nesses testemunhos invocada.
Assim, e nessa qualidade de benfeitoria foi realizada uma perícia ao imóvel, da qual as partes foram notificadas, tendo solicitado esclarecimentos, os quais foram prestados pelo perito.
Nada mais foi requerido pelas partes pelo que, e dado que apenas foi reclamado o valor das benfeitorias, deverá ser relacionado o valor indicado pelo perito, mantido no esclarecimento posterior, constituindo a forma pela qual, o ex-cônjuge devedor terá que compensar o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa da comunhão, gerando o reclamado crédito do património comum sobre o cônjuge proprietário, a ser compensado agora no momento da partilha”.
Face ao pedido de esclarecimentos suscitado pela requerente, uma vez que do despacho em causa não consta o valor final a relacionar como benfeitoria, remetendo-se para o relatório de peritagem, onde estão indicados os valores da construção atual e o valor da construção pré-existente, foi proferido novo despacho, do seguinte teor:
“Na sequência do seu requerimento indica-se que o valor a ser relacionado é o indicado pelo perito, por nada mais ter sido invocado e provado, após os seus esclarecimentos, ou seja: Considera-se o valor da avaliação da benfeitoria 138.800,000 retirando o valor de 26.000,00, perfazendo o valor total da benfeitoria atual de € 112.800,00, sendo que o crédito a favor da reclamante será metade deste valor total”.

Entende a apelante que, uma vez que a construção pré-existente foi inteiramente demolida, o seu valor não deve ser abatido ao valor da construção atual.
E tem razão a apelante.
A requerente apresentou reclamação à relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, uma vez que este não tinha aí incluído a casa de morada de família, casa essa que foi construída num prédio doado ao requerido por seus pais e, como tal, bem próprio do cabeça de casal. Alegou, na altura, que o ex-casal decidiu construir aí uma habitação de raiz, eliminando o que restava de um edifício em ruínas e que, ao longo dos anos, uniram esforços para a construção da habitação que atualmente se encontra implantada no referido prédio. Requereu perícia para se avaliar o custo da referida habitação.
O requerido aceitou que no imóvel em causa foram feitas benfeitorias, “as quais consistiram na demolição de uma casa já existente e na construção de uma nova casa”.
O perito procedeu à peritagem e avaliou a construção existente em € 138.800,00 e o custo da construção pré-existente, em € 26.000,00, salientando, no entanto que, para a avaliação desta última, não dispôs de quaisquer elementos para além dos constantes na inscrição matricial, uma vez que não existe qualquer vestígio da mesma atualmente.
Ambas as partes discordaram dos valores obtidos e no despacho que decidiu as reclamações apresentadas, após a produção de prova pericial, documental e testemunhal, para o que aqui nos interessa, a Sra. Notária, quanto à verba de benfeitorias, mandou relacionar o “valor indicado pelo perito”, tendo, posteriormente, esclarecido que: “Considera-se o valor da avaliação da benfeitoria 138.800,000 retirando o valor de 26.000,00, perfazendo o valor total da benfeitoria atual de € 112.800,00”.

Vejamos.

Tendo-se provado que a moradia em questão foi construída em terreno próprio do requerido, no âmbito da constância do casamento, estando os ex-cônjuges casados em regime de comunhão de adquiridos, a mesma integra o património comum a partilhar no inventário decorrente do divórcio. Como estavam casados no regime supletivo de comunhão de adquiridos, a comunhão integra, segundo o artigo 1724º do CC: a) O produto do trabalho dos cônjuges; b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei. A moradia integra a previsão destas alíneas, pois, foi construída na vigência do casamento.
Benfeitoria é toda a despesa feita para conservar ou melhorar a coisa – artigo 216.º, n.º 1 do Código Civil – pelo que a construção da moradia em terreno pertencente ao requerido integra benfeitoria que aumentou o valor da coisa e que integra os bens comuns.

No caso presente, uma vez que o prédio urbano onde foi construída a habitação, é bem próprio do requerido, este terá de compensar o património comum pelo enriquecimento obtido no património próprio à custa da comunhão, uma vez que a casa de morada da família foi construída em conjugação de esforços de ambos os ex-cônjuges.
Ora, uma vez que a habitação foi construída de raiz, sem aproveitamento de qualquer construção pré-existente, que foi demolida, para o efeito, o seu valor deve ser considerado como benfeitoria, pertencente, na sua totalidade, ao património comum e sem abatimento de qualquer valor.
Poder-se-ia até dizer que a demolição da construção pré-existente se traduziu num custo para o património comum que deveria, não ser abatido, mas sim somado ao valor da construção nova.
Ambas as partes estão de acordo em como não foi efetuado qualquer aproveitamento da construção pré-existente, tendo esta sido integralmente demolida, pelo que o benefício para a comunhão é o valor da construção nova, implantada em bem próprio do requerido, que vê o seu imóvel beneficiado no montante correspondente. A despesa feita com a construção da casa, melhorou o valor do prédio no montante correspondente àquela e, por isso mesmo, é este valor que deve ser considerado como benfeitoria.
Esta benfeitoria, no valor de € 138.800,00 pertence, na sua totalidade, ao património comum, sem que lhe seja abatido o valor da construção pré-existente, que foi integralmente demolida antes de se iniciar a construção nova.
Assim, o valor da verba n.º 9 da Relação de Bens – crédito do património comum sobre o cabeça de casal, relativo às benfeitorias efetuadas pelo casal no prédio propriedade daquele - terá que ser corrigido para €138.800,00, assim procedendo a apelação.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se os despachos recorridos quanto à fixação do valor da verba n.º 9 da relação de bens, substituindo-se por decisão que fixa o valor total das benfeitorias a considerar na verba n.º 9 da relação de bens em €138.800,00, com a consequente anulação de todo o processado posterior, incluindo a sentença homologatória da partilha.
Custas pelo apelado.

***
Guimarães, 7 de abril de 2022

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira