CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
PESSOA COLECTIVA
PESSOA SINGULAR
PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Sumário


I – A aquisição do estatuto de arguido num processo não é algo inócuo, nem aporta apenas vantagens para quem assume tal qualidade.
II – A constituição de alguém como arguido tem de obedecer à lei pelo que é obrigatória nas situações legalmente previstas (artigos 57.º a 59.º do Código de Processo Penal), mas não deverá ocorrer fora de tais situações.
III – A constituição como arguida de uma pessoa coletiva não implica necessariamente que a pessoa singular, que nela exerce funções de presidente do conselho de administração, seja também constituída arguida.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No processo de inquérito que, com o nº 138/18.8GAPTB, corre termos pelo DIAP-Secção de Ponte da Barca, foi decidido pelo Ministério Público constituir arguido R. J., por si e em representação da sociedade anónima X – Rede Elétrica …, SA e, bem assim, interrogá-lo na qualidade de arguido e sujeitá-lo à prestação de TIR.
Durante o interrogatório o arguido R. J. invocou, além do mais, a irregularidade da sua constituição como arguido, requerendo que os autos fossem presentes ao Mmo Juiz de Instrução Criminal “por estar em causa a defesa de direitos e liberdades e garantias”.
Tendo também - e ainda que cautelarmente - apresentado reclamação hierárquica foi a mesma indeferida, posto o que veio o juiz de instrução criminal a proferir a decisão recorrida que é do seguinte teor (transcrição):
A 08.01.2021 (fls. 132 e ss.) vieram os arguidos R. J. e X – Rede Eléctrica …, S.A., requerer a declaração de irregularidade da sua constituição como arguidos e que sejam tais actos invalidados, por preterição dos requisitos legalmente previstos.
Entendem que tal decisão deverá ser proferida pelo Juiz de Instrução, mas cautelarmente, atendendo a alguma jurisprudência que pugna pelo entendimento de que a competência para tal acto cabe à Magistrada do Ministério Público titular do processo, peticionaram que o requerimento fosse presente, também, à mesma.
Alegaram, para tanto e em síntese, que não foi deduzida acusação, nem requerida a abertura de instrução contra os arguidos, não houve lugar à detenção de qualquer um deles, não foi levantado auto de notícia contra os mesmos, mas sim contra desconhecidos, e não existem factos concretos, no auto de notícia, que permitam concluir pela prática de um crime de incêndio florestal.
A Digna Magistrada do Ministério Público apreciou tal requerimento (vide fls. 342 e ss.), sufragando o entendimento de que a competência para apreciação da questão suscitada é do Ministério Público (citando jurisprudência dos tribunais superiores a este respeito); que não existe qualquer irregularidade na constituição de arguidos, atento o disposto nos arts. 57º em conjugação com o 58º do CPP; que a ser acolhido o entendimento dos arguidos, qualquer inquérito que corresse contra desconhecidos não poderia culminar com uma acusação contra um suspeito; que grande parte dos inquéritos iniciam-se contra desconhecidos e no desenrolar dos mesmos são identificados os suspeitos e constituídos arguidos; e que no caso concreto, apurou-se a identidade dos suspeitos, motivo pelo qual se procedeu à constituição dos arguidos, que aliás, era obrigatória, porquanto os mesmos foram convocados para interrogatório de arguido, conforme art. 58º, nº 1, alínea a) do CPP.
Referiu, ainda, que é o art. 274º do Código Penal que dita os elementos objectivos e subjectivos do tipo de incêndio florestal, e não o D.L. nº 124/2006 de 28/06; e que ainda não foi deduzida acusação ou requerida a abertura de instrução, porquanto ainda estamos na fase de inquérito, ou seja, numa fase de recolha de prova.
Concluiu, indeferindo a requerida declaração e irregularidade e mantendo as constituições de arguidos.

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Na sequência de tal despacho, os arguidos reclamaram hierarquicamente para o superior hierárquico da Digna Magistrada do MP, não tendo a reclamação obtido provimento, conforme se afere do despacho de fls. 224 e seguintes.
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Simultaneamente apresentaram o requerimento de fls. 201 e seguintes, dirigido ao juiz de instrução, requerendo a mesma declaração e irregularidade da constituição de arguidos, com os mesmos fundamentos supra mencionados.
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Cumpre apreciar e decidir.

O juiz de instrução tem competência para a instrução, decidir quanto à pronúncia e m“(…) exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código” (artigo 17º do Código de Processo Penal).
O conjunto de competências do juiz de instrução estão elencadas nos artigos 268º e 269º do CPP, mas nesses mesmos preceitos estão contempladas outras situações de competência não especificadas ao estatuir, “Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução” e “ (…) quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução”, respectivamente. Como exemplos de outras intervenções do juiz de instrução, para além das referidas nos citados preceitos podemos, entre outras, encontrar a suspensão provisória do processo (artigo 281º), a admissão do assistente (artigo 64º) e as declarações para memória futura (artigo 271º).
A questão da competência para apreciar nulidades cometidas na fase de inquérito é controversa na doutrina e na jurisprudência. Não desconhecemos a jurisprudência citada pela Digna Magistrada do Ministério Público.
No sentido de que a competência é do Ministério Público podem consultar-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26/02/2014, Proc. 9585/11.5TDPRT.P1; de 15/2/2012, Proc. 36/09.6TAVNH.P1 e de 2/11/2015, Proc. 0541293, acórdão da Relação de Guimarães de 20/09/2010, Proc. 89/09.7GCGMR.G1; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/05/2011, Proc. 1566/08.2TACSC.L1.5.
Em sentido oposto de que a competência é do juiz de instrução podem consultar-se, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.02.1996, CJ, XXI, I, 51; do Tribunal da Relação do Porto de 30.05.2001, CJ, XXVI, III, 241; do Tribunal da Relação de Évora de 02.07.1996, CJ, XXI, IV, 296 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-09-2008, Proc. 1640/06.0TAAVR-C.C1.
No caso em apreço está em causa o acto de constituição de dois arguidos. O que está em causa é, pois, aferir da eventual lesão grave dos direitos de defesa dos mesmos, na sua dimensão constitucional e processual. Não se trata aqui de uma simples invalidade decorrente da tramitação do processo na sua fase preliminar conduzida e dominada pelo Ministério Público mas, antes, a apreciação da eventual violação do direito de defesa.
Ora, esta dimensão, enquanto núcleo essencial do processo criminal, só pode ser apreciada por um órgão jurisdicional independente e imparcial, no caso o juiz de instrução.
Posto isto, da leitura dos artigos 272.º, nº 1 e 58.º, nº 1, al. a), do CPP resulta a obrigatoriedade de no inquérito se interrogar como arguido pessoa contra a qual haja fundada suspeita da prática de um crime.

Dispõe o art. 58º do CPP, que “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:

a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal;
b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coação ou de garantia patrimonial, ressalvado o disposto nos n.os 3 a 5 do artigo 192.º;
c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º; ou
d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada. (…).”

A qualidade de arguido goza de um estatuto especial, designadamente um conjunto de deveres e direitos, que são explicados à pessoa constituída arguida, no acto da sua constituição formal.
No caso concreto está em causa a investigação da prática de um crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art. 274º do Código Penal (concordando com o enquadramento legal dado pelo Ministério Público, pois é este o preceito legal que rege esta matéria e não o D.L. citado pelos arguidos).
É certo que os autos se iniciaram com a notícia do crime a 22.08.2018, praticado por “desconhecidos” – vide auto de notícia de fls. 4. No entanto, da informação apurada junto dos bombeiros, “na origem do incêndio poderá estar uma descarga por parte de um poste de alta tensão da X” (leia-se fls. 4-verso).
Assim sendo, chegamos à conclusão de que, apesar de no auto de notícia constarem suspeitos “desconhecidos”, houve lugar a fundada suspeita sobre a arguida, pessoa colectiva, da prática de um crime de incêndio florestal negligente (vide, ainda, fotografias juntas aos autos que indiciam falta de limpeza das árvores que rodeiam os cabos de alta tensão).
Ora, de acordo com o art. 11º, nº 7 do Código Penal, a responsabilidade individual das pessoas colectivas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes, nem depende da responsabilização estes.
Nessa medida, tendo-se apurado a identidade da suspeita do crime e sendo esta uma pessoa colectiva, nenhuma irregularidade existe na constituição de ambos os arguidos, considerando que de acordo com a certidão do registo comercial junta aos autos, o arguido pessoa singular, é o presidente do conselho de administração da empresa arguida.
Inexiste qualquer violação das garantias de defesa dos arguidos, uma vez que com a assumpção da qualidade de arguidos, foram-lhes lidos os respectivos direitos (o que resulta dos auto de constituição e arguidos juntos ao processo de inquérito), foram assistidos por mandatário e têm a possibilidade de, durante o inquérito, oferecer provas e requererem as diligências que se afigurarem como necessárias.
Termos em que, indefiro o requerido.
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Inconformado, com a decisão, dela interpôs recurso o arguido R. J., que concluiu assim (transcrição):

1.Vem o presente recurso interposto do Despacho do Tribunal de Instrução Criminal de Ponte da Barca, datado de 06.06.2021, com referência n.º 46995684 (“Despacho Recorrido”), julgou improcedente a invalidade da constituição do Recorrente como arguido, da comunicação de factos imputados e respetivo interrogatório na qualidade de arguido.
2.O Despacho Recorrido, ao julgar improcedente a irregularidade da constituição do Recorrente como arguido, interpretou e aplicou incorretamente o disposto nos artigos 57.º e 58.º do CPP.
3.Com efeito:
(i)a constituição de arguido é um ato vinculado, que acarreta a compressão de direitos e a sujeição a deveres, que apenas pode ser realizado nas situações expressamente previstas na lei nos artigos 57.º e 58.º do CPP;
(ii)o Recorrente não se enquadra em qualquer das situações previstas nos artigos 57.º e 58.º do CPP;
(iii)em particular, e ao contrário do que resulta do Despacho Recorrido, o conceito de fundadas suspeitas, previsto no artigo 58.º n.º 1 alínea a) do CPP, não se mostra preenchido relativamente ao presidente do conselho de administração de uma pessoa coletiva com a mera existência de suspeita sobre uma pessoa coletiva;
(iv)o conceito de fundadas suspeitas exige que existam suspeitas, com base em algum elemento probatório, da concreta e individual participação de um indivíduo nos factos relevantes.
4.A constituição como arguido acarreta a sujeição a termo de identidade e residência, nos termos do artigo 196.º CPP, implica um catálogo de deveres, nomeadamente: (i) o dever de permanecer à disposição da autoridade competente sempre que a lei o obrigar ou para tal for notificado; e (ii) o dever de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado.
5.Assim, a constituição como arguido, fora dos casos previstos na lei, acarreta a violação dos artigos 2.º, 20.º, 26.º n.º 1, 30.º, n.º 3, 32.º, n.ºs 1 e 2 e 44.º da CRP.
6.Com efeito, sem base nem fundamento legal, são comprimidos:
(i)o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, na medida em que o arguido fica obrigado a prestar ao Estado informações sobre o seu paradeiro;
(ii)o direito à reserva da intimidade da vida privada e a liberdade de deslocação, na medida em que o arguido fica obrigado a prestar ao Estado informações sobre o seu paradeiro e sobre a sua vida privada e familiar;
(iii)o princípio da presunção de inocência e o seu direito à honra, dado que é, pelo processo, exclusivamente pelo processo, criada a imagem pública da suspeita da prática de um crime imputável ao arguido, que não tem reflexo no objeto do processo.
7.Assim, interpretando e aplicando corretamente o disposto no artigo 58.º n.º 1 alínea a) do CPP, terá de entender-se que, apenas nas situações em que existem factos suspeitos diretamente imputáveis a pessoa que exerce funções de Presidente do Conselho de Administração de uma empresa (por terem sido concretamente praticados por essa pessoa ou por deverem ter sido praticados concretamente por essa pessoa e não o terem sido), é que poderá considerar-se que existem suspeitas fundadas sobre essa pessoa a título pessoal, pelo que não havendo nos autos qualquer facto concretamente imputável ao Recorrente e não se verificando qualquer das outras situações previstas nos artigos 57.º e 58.º do CPP, não existem motivos para constituir o Recorrente como arguido.
8.O Despacho Recorrido deve, pois, ser revogado e substituído por outro que declare a irregularidade da constituição do Recorrente como arguido, nos termos previstos no artigo 123.º n.º 1 e 118.º n.º 2 do CPP, o que se requer.
9.O Despacho Recorrido, ao julgar improcedente a irregularidade do interrogatório do arguido, sem que lhe tivessem sido comunicados os factos imputados, interpretou e aplicou incorretamente o disposto nos artigos 61.º n.º 1 alínea c) e 141.º n.º 4 alíneas d) e e), por remissão do disposto no artigo 144.º n.º 1 do CPP.
10.Com efeito:
(i)ao Arguido não foram, em momento algum do processo, comunicados os concretos factos e a sua concreta prova que indiciariam ou fariam suspeitar da prática dos crimes pelo Arguido, nem o Tribunal a quo os mencionou;
(ii)o Arguido foi ouvido enquanto tal sem que essa comunicação tenha ocorrido, não bastando a leitura de direitos e a presença de advogado para assegurar o direito de defesa do arguido.
11.A realização do interrogatório do arguido sem que lhe tenham sido comunicados os factos que lhe são imputados e a prova na qual se baseiam acarreta a violação dos artigos 20.º e 32.º, n.º 1 da CRP, dado que o direito de defesa apenas pode ser exercido com o conhecimento daquilo que lhe é imputado.
12.Interpretando e aplicando corretamente o disposto nos artigos 61.º n.º 1 alínea c) e 141.º n.º 4 alíneas d) e e), por remissão do disposto no artigo 144.º n.º 1 do CPP, terá de entender-se que ao arguido devem comunicar-se os concretos factos que lhe são imputados e a prova subjacente aos mesmos, para que o mesmo possa defender-se convenientemente, pelo que, tendo o seu interrogatório ocorrido sem que lhe tivessem sido comunicados os factos imputados ilegal e causando a violação dos seus direitos, nos termos supra expostos, o mesmo é irregular, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 118.º n.º 2 e 123.º n.º 1 do CPP.
13.O Despacho Recorrido deve, pois, ser revogado e substituído por outro que declare a irregularidade da falta de comunicação ao arguido dos factos que lhe são imputados e do correspondente interrogatório enquanto tal, o que se requer.

Nestes termos e nos melhores de Direito, requer a V. Exa., ao abrigo do disposto nos artigos 97.º, n.º 5 e 123.º, n.º 1 do CPP, se digne (i) revogar o Despacho Recorrido; (ii) considerar procedente o requerimento do Recorrente, de 08.01.2021, e, consequentemente (iii) declarar a irregularidade da constituição do Recorrente como arguido, por manifesta falta de verificação de pressupostos, sendo consequentemente invalidados os atos subsequentes ou, pelo menos, (iv) declarar a irregularidade da comunicação dos factos imputados ao arguido e do correspondente interrogatório complementar, por incumprimento dos requisitos legais.
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Recebido o recurso a ele respondeu o Ministério Público pugnando pela confirmação do despacho recorrido e assim concluindo a sua resposta (transcrição):

Atento tudo o que se deixou exposto é nosso entendimento que o despacho recorrido, ao abrigo da decisão do Ministério Público de constituir o recorrente como arguido, por si e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, não violou qualquer disposição legal, princípio jurídico ou mesmo os seus direitos, liberdade e garantias, sendo a situação posta em crise nada mais do que uma decorrência legal, por força dos elementos probatórios até ao momento coligidos nos autos.
Assim, deve o recurso apresentado pelo arguido R. J. ser declarado improcedente, por infundado, mantendo-se integralmente o despacho recorrido e a seu estatuto pessoal de arguido.
TERMOS EM QUE, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, mantendo o despacho recorrido, farão V. Exas. JUSTIÇA.
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Remetidos os autos a este tribunal, o Ministério Público emitiu parecer, manifestando, além do mais o entendimento de que deverá o presente recurso do arguido ser julgado improcedente porquanto se verifica uma nulidade insanável decorrente da falta de competência do M.mo JIC para conhecer de uma por si arguida irregularidade processual consistente na sua ilegal constituição como arguido na fase de inquérito – art.º 119, al. e) do CPPenal, pois que a sindicação de tal não se encontra compreendida no previsto nos artigos 17, 268 e 269 do CPPenal, sendo até consabido que a constituição de arguido no inquérito tem como finalidade a atribuição a este de direitos de defesa, jamais o contrário.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP), tendo o arguido apresentado resposta ao Parecer do Ministério Público.
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Após os vistos, foram os autos à conferência.
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II.
Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que são as conclusões de recurso que delimitam o âmbito da apreciação a fazer, - sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - e que, analisando-as, se impõe aferir se a decisão recorrida padece de irregularidade quer no respeitante à constituição do recorrente como arguido, por ausência dos pressupostos legais, quer quanto ao interrogatório por falta da comunicação dos factos imputados.
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Apreciação do recurso.

Questão Prévia.

O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação entende que o presente recurso do arguido deverá ser julgado improcedente, por se verificar uma nulidade insanável decorrente da falta de competência do Meritíssimo JIC para conhecer da arguida irregularidade processual. Sustenta a sua posição com doutrina e jurisprudência.
Também o despacho recorrido tratou a questão, identificando as posições conflituantes – com sustentação jurisprudencial relativamente a cada uma delas – e concluindo pela assunção de competência para decidir das concretas irregularidades invocadas. A forma como o faz e as razões aduzidas – que nos dispensamos de repetir – não merecem reparo, razão pela qual desde já se adianta que se entende que não foi cometida a invocada nulidade insanável. No entanto, o tratamento da questão de fundo permitirá deixar mais explícita a razão pela qual se entende que sendo o juiz de instrução criminal o “juiz das liberdades”, a ele lhe compete decidir questões que contendam, mesmo que reflexamente, com a liberdade e dignidade penal, como as que são trazidas no presente recurso

Contrariamente ao que ocorria com o Código de Processo Penal de 1929 (na redação do DL 185/72 de 31.05), não existe hoje uma definição de arguido semelhante à do artigo 251º do CPP/29: “É arguido aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter perpetrado uma infração cuja existência esteja suficientemente comprovada”.
Não obstante a ausência de definição, a partir de 1987 o arguido assume a qualificação de sujeito processual (livro I – parte primeira – “Dos sujeitos do processo” – Tit. III – do arguido e do seu defensor – artigo 57º e ss) a par com outros: o defensor, o assistente, as partes civis, o Ministério Público e o juiz ou o tribunal.
Assim, diferente do arguido, o suspeito não é um sujeito processual, sendo definido (artigo 1º, alínea e) do CPP) como sendo toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar. Não sendo sujeito processual não lhe são reconhecidos direitos ou deveres, contrariamente ao que ocorre com o arguido (artigo 60º e 61 do CPP).
A passagem de suspeito a arguido, isto é, a constituição de arguido pode operar ope legis, ou mediante comunicação por parte da autoridade judiciária ou de órgão de polícia criminal.

Do artigo 57º, nº 1 do CPP decorrem as situações em que é legalmente obrigatória a constituição de arguido (contra quem for deduzida acusação ou contra quem for requerida instrução); dos artigos 58º e 59º decorre a obrigatoriedade de comunicar a constituição de arguido, logo que:
- a pessoa contra quem corre inquérito preste declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal (artigo 58º, nº 1 alínea a));
- for aplicada uma medida de coação ou garantia patrimonial (artigo 58º, nº 1, alínea b));
- um suspeito for detido (artigo 58º, nº 1, alínea c));
- for levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e o auto for comunicado a essa pessoa (artigo 58º, nº 1, alínea d));
- sempre que, durante a inquirição da pessoa que não é arguido, surja fundada suspeita de crime por ele cometido (artigo 59º, nº 1).
- a pedido do suspeito sempre que estiverem a ser efetuadas diligências destinadas a comprovar a imputação que pessoalmente o afetem (artigo 59º, nº 2).

Ao estatuto de arguido está associada uma característica de irreversibilidade uma vez que se mantém durante todo o processo (artigo 57º, nº 2 do CPP).
Do artigo 61º resulta uma enumeração (não exaustiva) de direitos – cfr G. Marques da Silva in Curso de Processo Penal I, 275 e ss (de presença, de audiência, de silêncio, de defesa, de intervenção, de informação, de recurso) e deveres (de comparência, de verdade a propósito da identidade, de sujeição a diligência de prova e medidas de coação e garantia patrimonial), todos eles sempre interpretáveis à luz do princípio da presunção da inocência.
O que se deixa até aqui escrito permite concluir que o estatuto de arguido não é algo inócuo no processo penal.
É um marco importante no processo e para quem o assume. Dele decorrem vantagens e desvantagens e não tendo que estar, necessariamente, ligado à prática de um crime (imagine-se a decisão de arquivamento seguida de abertura de instrução que acabe em não pronúncia), o certo é que perante a sociedade a constituição de alguém como arguido tem uma conotação negativa. Não há como negá-lo.
Portanto, a constituição de alguém como arguido terá de obedecer à lei, isto é, terá de ocorrer numa das situações previstas na lei, mas não deverá ocorrer fora de tais situações. É que se todas as pessoas têm direito a serem constituídas como arguidas, também têm direito, quando não são suspeitas da prática de qualquer crime, ou quando contra elas não corra qualquer processo, a não o serem.
Como é dito no acórdão do RE de 04/04/2017 proferido no processo 232/13.1GAFZZ.E1, que se transcreve por resumir bem a problemática em apreço: “I. Face à nova redação do nº 1 quer do artigo 58º quer do artigo 272º, ambos do CPP, introduzida pela lei 48/2007 de 29.08, a obrigatoriedade de constituição e interrogatório como arguido num inquérito, ficou restringida na sua abrangência aos casos em que ela verdadeiramente se justificava, ou seja, àqueles em que haja suspeita fundada de que a pessoa contra quem este corre praticou o(s) ilícito(s) criminais sob investigação.
II. A ratio da lei é a de evitar a constituição e o interrogatório como arguido nos casos de queixa manifestamente infundada em que o Ministério Público desde logo vislumbra a possibilidade de arquivar o inquérito e vem a arquivá-lo.
III. Impõe-se, por isso, uma interpretação atualizada e restritiva da jurisprudência fixada no AUJ nº 1/2006 no sentido de que “a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre e em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal”.
A justificação vem no corpo do acórdão quando é dito que, na sequência da redação introduzida pela Lei 59/98 de 25.08 aos artigos 272, nº 1, e 58º, nº 1 “não tardaram em fazer-se ouvir vozes contra a imposição generalizada, indiscriminada, da obrigatoriedade de interrogatório (como arguido) nos moldes estabelecidos e que, no limite, conduzia a resultados perversos”. Uma dessas vozes é citada no mesmo Acórdão: “é irrealista considerar, em geral, que tal qualidade é vantajosa no plano jurídico-processual. Com efeito para além de ser condição de aplicação de medidas restritivas ou privativas de direitos de natureza cautelar, o estatuto de arguido envolve, em regra, um efeito estigmatizante que não pode ser ignorado” (Cfr. Rui Pereira in o Domínio do Inquérito pelo Ministério Público, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Pag.125).

E continua o citado Acórdão: Certamente com o objectivo de contornar estas críticas, a Lei nº 48/2007 de 29/8 veio dar nova redacção ao nº 1 quer do art. 58º, quer do art. 272º, que assim passaram a ter a seguinte (sendo nosso o negrito, para realçar o segmento que lhes foi introduzido):
Art. 58º nº 1: “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal; (…)”
Art. 272º nº 1: “Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.”
Com estas alterações, manteve-se a obrigação de interrogatório no inquérito, mas restringiu-se a sua abrangência aos casos em que ela verdadeiramente se justificava, ou seja, àqueles em que haja suspeita fundada de que a pessoa contra quem este corre praticou o(s) ilícito(s) criminais sob investigação. Num e noutro caso, “A ratio da lei é (…) evitar a constituição e o interrogatório como arguido nos casos de queixa manifestamente infundada, em que o Ministério Público desde logo vislumbra a possibilidade de arquivar o inquérito e vem a arquivá-lo.”] Ou, dito de outra forma, “Conjugando o artigo 58, n.º 1, al. a), com o artigo 272, n.º 1, o juiz, o Ministério Público ou o órgão de polícia não têm de constituir arguida e interrogar como tal a pessoa determinada contra quem corre inquérito se não houver suspeita fundada da prática de crime; (…)”
Foram, pois, reforçados os cuidados que a constituição de arguido, dada a estigmatização social e a eventual limitação de direitos que envolve, requer; em decorrência, “os magistrados do MP em fase de inquérito devem, antes de mais, averiguar se estão ou não reunidos elementos probatórios suficientes que indiciem a prática pelo agente de um crime. Após efectuada tal análise – e apenas no caso de estarem reunidos os elementos probatórios atrás referidos – é que poderão passar à fase seguinte, ou seja, à constituição de arguido e interrogatório do suspeito do crime.”

A questão que se põe é, então, a de saber se existem fundadas suspeitas da prática, pelo recorrente, de um crime, justificantes da constituição e de interrogatório na qualidade de arguido.

Os factos imputados são assim descritos:
“Factos ocorridos em 22/08/2018 em …, no parque Nacional …, no incêndio florestal que levou a que ardesse uma área de 1000m2 que terá sido provocado por uma descarga (arco voltaico) por parte de um poste de alta tensão da X.
No local compareceram uma patrulha do EPF do Destacamento Territorial de Arco de Valdevez que informaram a GNR local que iriam proceder ao levantamento de um auto de contraordenação (DL nº 124) à empresa X, pelo facto de as copas das árvores se encontrarem por baixo de uma linha de alta tensão, sem a respetiva limpeza obrigatória por lei”.
Ora, quer dos “factos” imputados, quer da qualificação jurídica a eles associada, onde há apenas a referência a um auto de contraordenação, quer da demais tramitação, não se compreende por que razão foi o recorrente, pessoa singular, constituído arguido. Na sua qualidade de presidente no conselho de administração da X assinou o auto da constituição de arguida da pessoa coletiva, mas o facto de a pessoa coletiva ter sido constituída arguida (bem ou mal, não está agora em análise) não implica, automaticamente, a constituição como arguido do legal representante, enquanto pessoa singular.
Do despacho recorrido retira-se que “de acordo com o artigo 11 do CP, a responsabilidade das pessoas coletivas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes, nem depende da responsabilização destes”. Mas, se é verdade que não exclui, também é verdade que não implica, necessariamente. Por outro lado, da decisão recorrida resulta ainda que não foram violadas quaisquer garantias de defesa dos arguidos, como se a constituição como arguido de alguém apenas lhe comportasse vantagens, o que não é verdade, como já atrás dissemos.
Ora, em toda a atuação ao Ministério Público é exigível o respeito por princípios fundamentais, garantidos constitucionalmente (o artigo 2º, nº 1 da lei da autorização legislativa para aprovação do CPP - lei nº 43/86 publicada no DR I, nº 222 de 26.09 - impunha a observação dos “ princípios constitucionais e as normas constantes de instrumentos internacionais relativos aos direitos da pessoa humana e ao processo penal a que Portugal se encontra vinculado.”), como sejam a dignidade da pessoa humana, da legalidade da ação penal, da lealdade, da presunção de inocência, da proporcionalidade ou da proibição de excesso, da liberdade e segurança, do bom nome e reputação.
A constituição injustificada de alguém como arguido até pelas limitações decorrentes dos deveres a observar por qualquer arguido - assumindo especial importância, por exemplo, a impossibilidade de mudar de residência por mais de 5 dias por força da imposição de TIR (artigo 196 nº 3 b) do CPP) - não é inócua, não aporta apenas vantagens e não pode deixar de observar os princípios constitucionais referidos.
E assim sendo, em face dos elementos constantes dos autos a constituição como arguido do recorrente é efetivamente irregular, porque injustificada como invoca, uma vez que nada há nos autos que a sustente, pelo que que tal constituição não pode, pelo menos por ora, ser mantida, impondo-se a revogação do despacho recorrido e, consequentemente, o interrogatório a que foi sujeito nessa qualidade.
Tanto basta para que o recurso tenha de ser julgado procedente.
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III. DECISÃO.

Em face do exposto, decidem os juízes desembargadores da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães julgar procedente o recurso interposto por R. J. e revogar o despacho recorrido, declarando sem efeito a sua constituição como arguido e o subsequente interrogatório nessa qualidade.
Sem custas.
Guimarães, 04 de abril de 2022

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho
Fernando Chaves