CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PERDÃO
OFENSAS RECÍPROCAS
Sumário

I - A retoma do namoro, assim como as atitudes de perdão e reconciliação promovidas pela vítima, ou quando “à posteriori” esta minimiza as agressões sofridas, nunca podem as mesmas concorrer a favor do arguido, como atenuante da sua conduta delitual e muito menos corresponsabilizar a vítima pelas violências sobre si exercidas.
II - Com efeito, a vítima de violência doméstica estando sujeita à elevada exposição do agressor, por regra, tem muito dificuldade em se distanciar ou cessar a relação, assim prolongando a sua sujeição ao agressor, que isso aproveita de forma dramática para aquela, por essa razão intervém a tutela legal.
III - Os ciclos de perdão e sucessivas reconciliações, assim como a constante sujeição da vítima, integram o iter (típico) do crime de violência doméstica.
IV - A reciprocidade das agressões como forma de desconsideração da tipicidade, só serão de atender quando no curso dos episódios não existe a polaridade agressor-vítima, subsistindo apenas dois agressores. Ficam fora do quadro de reciprocidade as reações pontuais quase humanamente compreensíveis por parte da vítima.

Texto Integral

Proc. 1052/20.2GBVNG.P1

X X X
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1 – Nos autos de processo comum singular que correu termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto foi o arguido AA condenado pela seguinte forma:
a) Condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b), e 4 do CP, na pena de um ano de prisão;
b) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de arma por dois anos – artigo 152.º, 4 do CP;
c) Condenar o arguido à frequência de ação de formação no âmbito da prevenção de violência doméstica, a indicar pela DGRSP;
d) Substituir a pena de prisão aplicada pela prestação de 360 horas de trabalho a favor da comunidade;
e) Condenar o arguido a pagar à ofendida BB, a título de indemnização atribuída, por danos não patrimoniais, a quantia de € 1000 (mil euros)”.
*
Não se conformando com a sentença o arguido veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES:
1 – Decorre da sentença que antecede e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos, que a acusação do MP foi julgada procedente e em conformidade, decidiu o Tribunal a quo condenar o arguido / recorrente
a) pela prática de um crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b), e 4 do CP, na pena de um ano de prisão;
b) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de arma por dois anos – artigo 152.º, 4 do CP;
c) Condenar o arguido à frequência de ação de formação no âmbito da prevenção de violência doméstica, a indicar pela DGRSP;
d) Substituir a pena de prisão aplicada pela prestação de 360 horas de trabalho a favor da comunidade;
e) Condenar o arguido a pagar à ofendida BB, a título de indemnização arbitrada oficiosamente, por danos não patrimoniais, a quantia de € 1000,00 (mil euros).

2 - Entende o arguido que a apreciação feita pelo tribunal recorrido está incorreta, pelo que o presente recurso terá por objeto os seguintes pontos:
a) Da incorreta qualificação jurídico-penal dos factos;
b) Da violação do princípio do in dubio pro reu
c) Da indemnização arbitrada oficiosamente;
d) Da reciprocidade no crime de violência doméstica.

3. A) A respeito da incorreta qualificação jurídico-penal dos factos, sempre se dirá o seguinte: O crime de violência doméstica é um crime complexo, que não se confunde com o crime de ofensa à integridade física, injúrias, ameaças ou outro, contra as pessoas indicadas no artigo152.º do Código Penal.
4. O bem jurídico protegido através da punição do crime de violência doméstica é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e que pode ser afetado por uma multiplicidade de comportamentos, nomeadamente os que afetem a dignidade pessoal. – Neste sentido, vide Américo Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo I, pág. 332.
5. Entende o arguido que os factos dados como provados, praticados pelo mesmo, apesar de graves, não assumiram objetivamente, contornos violentos que possam ser subsumidos no crime pelo qual veio acusado e foi condenado pelo tribunal recorrido. Na verdade, não foram perpetrados pelo arguido maus-tratos físicos ou psíquicos, mas ainda que assim não se entenda, estes não revelam crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar a vítima, como procurará demonstrar ao longo do presente recurso.

6. Antes de mais, importa não olvidar que todos os factos praticados pelo arguido, reportam-se a alturas em que o mesmo e a assistente, se encontravam zangados um com o outro, enquanto namorados. Desta feita, salvo melhor opinião, os factos enquadrar-se-iam melhor na chamada “zanga”, “briga” ou “arrufo” de namorados do que no crime de violência doméstica. Aliás, mal seria do sistema judicial se todas as zangas de namorados, que, não raras vezes abrangem violência – sobretudo psicológica, terminassem em tribunal ao abrigo de uma previsão legal cada vez mais abrangente do crime de violência doméstica.

7. O ordenamento jurídico português não define expressamente o conceito de namoro, daí que não seja despiciendo analisar o entendimento doutrinal e jurisprudencial sobre a matéria, tanto mais que “na ausência de coabitação exige-se algum detalhe fáctico que possa comprovar a existência de uma relação afetiva, estável, análoga à dos cônjuges”. Neste sentido, vide douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2012.

8. O conceito de namoro tem sido entendido pela jurisprudência como sendo uma relação amorosa estável e com atos de intimidade em que as partes são capazes de construir um projeto em comum, desenvolvendo um ambiente idêntico ao de uma família. (sublinhado nosso). Dito de outro modo, a relação amorosa tem de ser estável e constituir o desenvolvimento de um projeto de vida em comum da vida do casal, exigindo-se uma relação próxima do ambiente familiar com sentimentos de afetividade, respeito, confiança, conhecimento mútuo, atos de intimidade, partilha de vida em comum e cooperação mútua, o que, no presente caso e à data dos factos, não existia tendo por base a prova carreada nos autos.

9. Acresce que, na esteira do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30 de setembro de 2015, seria necessário “caracterizar o namoro com elementos fáticos sólidos e indesmentíveis, já que a relação análoga à dos cônjuges implica um conjunto de deveres típicos da relação conjugal”, o que na verdade não aconteceu. A este respeito, o Professor André Lamas Leite, sustenta que tem de haver “uma proximidade existencial efetiva”, sublinha este autor, que “ter-se-á de provar que há uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada uma deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro(a).” ­- Revista Julgar, n.º 12 Especial, “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, pág. 52.

10. Ora, em lado algum da acusação ou da sentença se diz ou, por qualquer modo se expressa uma daquelas realidades “relação amorosa estável”, com um “projeto de vida em comum”. O único elemento caracterizador que existe na sentença do Tribunal a quo, diz respeito à duração deste relacionamento (período compreendido entre o mês de maio de 2017 e meados do mês de novembro de 2020), mas na fundamentação da sentença a única referência é uma “relação de namoro”, relação essa que nunca é caraterizada de outro modo ou de modo mais intenso.

11. Salvo melhor opinião, uma “tão só” relação de namoro não implica ainda uma relação de vida, de partilha e de cooperação entre duas pessoas, pelo que sem algo mais que a caracterize e a aproxime de uma situação de comunhão de vida, não pode preencher a qualidade exigida pelo tipo legal. – Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de janeiro de 2014. O mesmo Acórdão refere que “em abstrato, o namoro é uma fase de relacionamento amoroso para conhecer o outro, e não um fim em si, de comunhão de vida, que é própria do casamento ou da união de facto. É uma fase transitória que com frequência acaba no rompimento amoroso, por as expectativas de um ou ambos os namorados não serem aquelas que esperavam”.

12. Tenhamos presente que, a punição das condutas descritas no artigo 152.º do Código Penal, visa salvaguardar a pessoa humana na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade e pretende prevenir consequências gravosas que possam surgir para a saúde física e psíquica e para o desenvolvimento normal e correto da personalidade do indivíduo.

13. Deste modo, os atos praticados terão necessariamente de ser capazes de atingir precisamente a saúde física e psíquica do indivíduo de forma a afetar e marcar de forma indelével o desenvolvimento harmonioso do sujeito ofendido, pelo que terão de se revestir de reiteração e gravidade suficientes para o efeito, o que não aconteceu no caso em apreço. No caso sub judice, as situações provadas que constam da sentença recorrida não têm um padrão de frequência nem intensidade desvaliosa, para se poderem enquadrar num modelo de comportamento que se inscreva na previsão do tipo legal de violência doméstica.

14. Por outro lado, é necessário, ainda, que o comportamento do agressor demonstre uma especial crueldade, insensibilidade, uma atitude de vingança desnecessária e desmesurada ou ainda uma vontade de subjugar a vítima aos seus desejos / caprichos, tornando-a dependente de si. Mais, exige-se que os atos praticados pelo agente, se traduzam na humilhação da vítima ou numa especial desconsideração pela mesma. – Neste sentido, vide entre outros o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/06/2017, douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/02/2012, douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15/10/2012 e douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/01/2013, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt

15. Com o devido respeito por opinião contrária, entendemos que os factos dados como provados não são passíveis de integrarem a prática de um crime de violência doméstica, uma vez que a conduta do arguido não consubstancia uma manifestação de posição de domínio, de força, uma humilhação ou uma especial desconsideração pela mesma. Nem o comportamento do arguido denota especial crueldade, insensibilidade ou uma vontade de subjugar a ofendida e de a afetar a sua saúde física e mental, pelo que não poderão os factos dados como provados integrar o ilícito de violência doméstica. Aqui chegados, ao ler a sentença na sua totalidade, concluímos que inexiste na factualidade provada quaisquer factos que descrevam o relacionamento entre o arguido e a assistente. Sabemos apenas que o relacionamento amoroso de ambos foi atribulado e intermitente, ou seja, sabemos que em diversas ocasiões os mesmos, terminaram e depois voltavam a reatar. Sabemos ainda, que discutiam muito um com o outro, como a própria assistente o refere e todas as testemunhas o confirmam.

16. Salvo o devido respeito, entendemos que não existe na factualidade dada como provada, matéria que nos permita concluir que o arguido e a ofendida mantinham uma relação afetiva estável, de partilha e de cooperação entre duas pessoas, nos termos preconizados pela nossa doutrina e jurisprudência. Bem pelo contrário, o que resulta provado de forma inequívoca, é que a relação amorosa do arguido e da assistente era “tóxica”. Aliás, foi assim caracterizada pela testemunha CC, amiga da vítima, que no seu depoimento foi clara ao referir que os dois tinham maus comportamentos, ou seja, que tanto um como o outro tinham comportamentos que não deviam ter (insultos e tentativas de controlar o outro mútuas).

17. Mais se provou que ambos discutiam muitas vezes, que se insultavam e controlavam mutuamente e que o relacionamento de ambos era instável e intermitente, conforme pontos 35 e 36 da factualidade tida como provada. A este propósito, a própria ofendida disse expressamente que se separaram e reataram várias vezes, o que denota instabilidade, incerteza e inconstância desta relação. A relação amorosa destes dois jovens, que ainda se estavam a conhecer, era, por conseguinte, intermitente e inconstante.

18. A questão que se coloca é se uma relação que apresenta estas características (instabilidade, inconstância, intermitência), pode ser considerada uma relação de namoro para efeitos do crime de violência doméstica? Entendemos que não. Como bem refere o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2012, com a Revisão de 2007, deixou de ser necessária a coabitação e, consequentemente, de se exigir a ideia de comunhão de cama e habitação, mas não pode deixar de se exigir, no tipo objetivo, um carácter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação. (sublinhado nosso)

19. Como já o referimos anteriormente, o relacionamento amoroso do arguido e da assistente, nada teve de estável. Pelo contrário, foi um relacionamento marcado por discussões constantes, insultos recíprocos e atitudes que evidenciam o que a própria sentença refere, “uma personalidade ciumenta e possessiva” de ambos e que os levou inúmeras vezes a acabar e reatar a relação amorosa.

20. Acresce que, nada se apurou que permita concluir que o arguido e assistente, tinham à data dos factos um projeto de vida em comum, com sentimentos de afetividade, convivência, confiança, conhecimento mútuo, atos de intimidade, partilha da vida em comum e cooperação mútua.

21. Na verdade, não se provou que entre ambos tenham criado, “uma relação de confiança baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada uma deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro(a).” - Neste sentido, vide André Lamas Leite, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, Revista Julgar, n.º 12 Especial, 2010, ASJP, pág. 52.

22. Não se provou ainda, que ambos, imbuídos de um especial dever relacional, estivessem na altura, vinculados reciprocamente pelos deveres conjugais (respeito, fidelidade, cooperação, coabitação e assistência), plasmados no artigo 1672.º do Código Civil. Pois, só assim essa relação se pode equiparar ou considerar-se análoga à dos cônjuges. – Neste sentido, vide douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/09/2014, in www.dgsi.pt.

23. Ademais, não faz sentido (face ao princípio da subsidiariedade e ultima ratio), que seja o direito penal a proteger especificamente uma relação de namoro, quando o direito civil não o faz, a não ser numa fase adiantada desse relacionamento e apenas em vista da proteção da promessa de casamento (artigo 1591.º a 1595.º do Código Civil). - Neste sentido, vide douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/01/2014, in www.dgsi.pt.

24. Deste modo, salvo o devido respeito entendemos que a relação amorosa existente entre o arguido e a assistente, à data dos factos, não constitui uma verdadeira “relação de namoro” e nessa medida, os factos não se podem subsumir no artigo 152.º, n.º 1, b), e 4 do Código Penal, como o tribunal recorrido o fez.

25. O Tribunal a quo, devia valorar jurídico-penalmente os factos provados, considerando que, os mesmos não permitem concluir pela verificação dos elementos do tipo objetivo do ilícito do artigo 152.º do Código Penal, podendo, eventualmente, subsumir-se nas previsões incriminadoras dos artigos 181.º (crime de injúria) e no artigo 153.º (crime de ameaça) ambos do Código Penal, o que não se verificou.

26. Assim, e sem mais delongas no que respeita ao crime imputado de violência doméstica, p.e.p pelo artigo 152.º, nº 1 alínea b) do Código Penal, o mesmo não deveria proceder uma vez que os seus pressupostos legais não se encontram preenchidos. Nessa medida, deverá o arguido ser absolvido do crime de violência doméstica que foi condenado, o que desde já se requerer a V. Exas.

27. B) A respeito da violação do princípio do in dubio pro reu, sempre se dirá o seguinte: a assistente referiu no decurso da audiência de julgamento que nunca acreditou que o arguido fosse capaz de concretizar as ameaças que alegadamente lhe dirigiu. Fê-lo de forma verdadeira, genuína e espontânea, demonstrando assim que não tem, nem nunca teve receio do arguido. Aliás, o arguido e a assistente estão na presente data numa relação de namoro, vivendo cada um na sua casa.

28. Para melhor compreensão passamos a transcrever o que a assistente BB, disse no tribunal no dia 09-09-2021, tendo as suas declarações ficado gravadas em sistema integrado de gravação digital, com início às 14:32:48 e fim às 15:05:30 de 00:00:01 a 00:32:42. A parte transcrita diz respeito ao período da gravação compreendido entre o minuto 29:56 e 31:35.

Advogada do arguido: Em relação às vossas discussões, quando elas existiam, os insultos eram recíprocos?
Assistente: Nunca ao mesmo nível. Não posso dizer que não tenham existido. Não me lembro das palavras usadas.
Advogada do arguido: Mas chegaram a insultar-se?
Assistente: Sim, e com ameaças.
Advogada do arguido: Não falei em ameaças. Falei em insultos. Alguma vez insultou o AA, nessas discussões?
Assistente: É provável.
Advogada do arguido: É provável ou aconteceu?
Assistente: Sim, acredito que sim.
Advogada do arguido: E ameaçar? Ele alguma vez a ameaçou?
Assistente: Sim.
Advogada do arguido: E acreditou, verdadeiramente, que ele concretizasse a ameaça?
Assistente: Ameaçou, mas nunca quis acreditar que ele fosse capaz de concretizar as ameaças que fazia.
Advogada do arguido: Nunca acreditou nisso?
Assistente: Nunca quis acreditar.
Meritíssima Juiz: Oh, D. BB, querer podemos querer muitas coisas. A Sra. está num tribunal, está bem? E tem que… as pessoas têm que assumir. Apresentou uma queixa, está aqui. Há determinados factos e a Sra. ou acreditou ou não acreditou, ou teve medo ou não teve. Está bem?
Assistente: Então, sou obrigada a dizer que não acreditei.
Meritíssima Juiz: Não é obrigada. A Sra. tem que responder com verdade, pronto.
Assistente: Estou a responder e não posso dizer que não quis acreditar. Então tenho que dizer que não acreditei. Eu nunca acreditei mesmo que o AA era capaz de me furar toda ou de me deixar numa cadeira de rodas, como ele disse que faria. Nunca acreditei que ele faria isso.
Meritíssima Juiz: Quando é que retomou o namoro com ele?
Assistente: Perto dos meus anos.
Meritíssima Juiz: Quando é que a Sra. faz anos?
Assistente: 27 de maio. Deve ter sido em inícios de maio.
Meritíssima Juiz: Então os Senhores estão juntos. Apesar da medida de afastamento dos locais onde a Sra. se encontra os Senhores estão juntos.
Assistente: Sim. (…)”

29. A ofendida não se sentiu amedrontada, como ela própria referiu no decurso do julgamento. Deste modo, não se compreende que tenham sido dados como provados os pontos 12, 13 e 16. Prova disto mesmo é que na presente data a ofendida mantém um relacionamento amoroso com o arguido, conforme resulta do ponto 34 dos factos tidos como provados.

30. Ainda a este propósito, importa ter presente que apenas resultou provado que o arguido por “diversas vezes” enviou mensagens escritas de teor insultuoso e ameaçador à ofendida e que numa ocasião, mais precisamente, numa passagem de ano, o arguido foi atrás da assistente e insultou a mesma.

31. Sucede que, não se provou a frequência dessas injúrias e ameaças. Entendeu o tribunal que as mesmas foram reiteradas e prolongaram-se no tempo, todavia, não se provou a intensidade dessa repetição (sendo que a ausência de prova a este respeito teria de beneficiar o arguido, à luz do princípio in dubio pro reo, o que não aconteceu no caso em apreço). Deste modo, devem ser retiradas todas as legais consequências o que desde já se requer.

32. C) A respeito da indemnização arbitrada oficiosamente sempre se dirá que: Como referimos anteriormente, o Tribunal a quo, condenou o arguido a pagar à ofendida BB, a título de indemnização arbitrada oficiosamente, por danos não patrimoniais, a quantia de € 1000,00 (mil euros).

33. Entendemos que tendo por base o vertido no ponto A) deste recurso, o arguido não devia ter sido condenado pelo crime de violência doméstica e nessa medida, inexiste fundamento legal para o Tribunal proceder ao arbitramento provisório de indemnização. No entanto, por mera cautela de patrocínio sempre se dirá o seguinte: refere a douta sentença que: “Ora, face à factualidade provada, não existem danos patrimoniais a indemnizar, sendo que, quanto aos não patrimoniais, provou-se a prática de um crime por parte do arguido, e que com o mesmo este atingiu a ofendida na sua dignidade, afetando-a na sua psíque.”

34. Esta conclusão vertida na sentença, está em total contradição com a factualidade não provada da mesma, mormente com o ponto i). Com efeito, entendeu e bem o tribunal recorrido, que não se provou que a assistente, por medo evite andar na rua sozinha, que a mesma não se consiga concentrar, que tenha complexos com a sua aparência e que tenha dificuldade em adormecer.

35. Destarte, salvo o devido respeito, entendemos que face à prova produzida, a conduta do arguido (que pode eventualmente configurar crimes de injúria e ameaça) não representa um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica. E não provocou, por outro lado, danos na saúde psíquica da vítima, pelo que deviam ter sido retiradas todas as legais consequências.

36. Ademais a circunstância de o arguido e a assistente não coabitarem (não sendo, por si só, impeditiva da verificação da prática de maus-tratos psíquicos) reduz o impacto da conduta em causa (que seria, naturalmente, maior se agente e vítima convivessem diariamente na mesma habitação, o que não sucedeu.)

37. Assim sendo, se não há danos, não existe obrigação de indemnizar a ofendida. Assim sendo, não devia ter sido atribuída à mesma qualquer quantia pecuniária para ressarcimento de danos não patrimoniais.

38. Mas ainda que assim, não se entenda, o próprio “quantum” indemnizatório fixado na sentença, parece-nos claramente exagerado, tendo em consideração o princípio da equidade, tanto mais que o arguido é estudante (frequenta o 1º ano da Universidade no curso de Gestão), não dispondo de rendimentos próprios, nem de património.

Sem prescindir e por mera cautela,

39. D) A respeito da reciprocidade no crime de violência doméstica: Entendendo V. Exas. que o crime de violência doméstica se verifica no caso em apreço, então sempre se dirá o seguinte:

40. Na sequência do que vem sendo explanado, parece resultar que na génese do crime de violência doméstica existirá desde logo uma vítima e um agressor, tendo este último uma posição de evidente dominação / controlo / prevalência sobre a vítima. Assim, a vítima tem uma maior vulnerabilidade.

41. Salvo o devido respeito, no caso sub judice, não temos uma “vítima” e um “agressor”, porquanto não existe uma relação de domínio, controlo ou de prevalência do agressor sobre a vítima, não existe uma relação de subordinação ou de subjugação da vítima em relação ao agressor, desde logo porque como bem refere a sentença há reciprocidade de agressões verbais e mais, ambos se controlavam mutuamente.

42. Com efeito, a ofendida reconheceu nas suas declarações que também controlava o arguido, que lhe enviava diversas mensagens no intuito de saber onde o mesmo se encontrava, com quem e a fazer o quê. Declarações essas que foram aliás confirmadas por grande parte das testemunhas ouvidas no julgamento.

43. Isto posto, o tribunal recorrido dá como provado no ponto 36 da fundamentação de facto da sentença que antecede o seguinte: “A ofendida chegou, no decurso de discussões, a apelidar o arguido de “estúpido” e “burro”. Aliás, a própria ofendida disse expressamente que se separaram e reataram várias vezes e que quando tinham discussões se insultavam mutuamente. Referindo que apelidava o arguido de “estúpido e otário”, sendo que esta versão foi confirmada pelas declarações do arguido, bem como, pelo depoimento das testemunhas CC, DD, EE, FF e GG.

44. Deste modo, se estamos perante atos agressivos recíprocos, na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade, o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória não é afetado, não traduzindo essas ações tratamento desumano e degradante. – Neste sentido, vide douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/05/2018. Assim, tendo por base os fundamentos invocados entendemos que o arguido deve ser absolvido, o que desde já se requer a V. Exas.
Termos em que, julgando o presente recurso procedente, nos termos em que se defende, Vossas Excelências, Excelentíssimos Senhores Desembargadores, farão a habitual e sã Justiça.
*
O Digno Procurador Adjunto apresentou contra-motivação, sumariando da seguinte forma: O arguido/recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, que considera incorretamente julgada, porque o tribunal “a quo” terá apreciado e valorado mal a prova produzida em audiência de julgamento e, desse modo, feita uma errada qualificação jurídica dos factos provados.
Salvo melhor opinião, afigura-se-nos não assistir qualquer razão ao recorrente, pelos motivos que passaremos a expor.
Da matéria de facto apurada, que por razões de economia processual se dá aqui como integralmente reproduzida, resulta que efetivamente o arguido praticou o crime por que foi condenado.
É nosso entendimento que não colhem, pois, os argumentos do arguido/recorrente, de que a prova produzida em julgamento impõe decisão diversa daquela a que chegou o tribunal “a quo” ou de que o tribunal fez errada interpretação e valoração da prova produzida em julgamento, pelo contrário, entende-se que a matéria de facto dada como provada é a necessária e suficiente para que se considerem preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime pelo qual o arguido foi acusado e condenado.
A convicção do Tribunal relativamente aos factos provados e não provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida em audiência, testemunhal e na prova documental constante dos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, do Código de Processo Penal, que impõe uma apreciação de acordo com critérios lógicos e objetivos
De salientar, que na motivação da sentença ora recorrida é feita uma analise aprofundada e conjugada da prova produzida e se elaboram cuidadosamente os motivos que estiveram na base da formação daquela convicção, os quais se encontram devidamente explicitados, de forma individualizada, aliás, houve o cuidado de analisar criticamente, um por um os diversos depoimentos prestados, explicitando-se os motivos pelos quais mereceram, ou não mereceram, credibilidade, permitindo acompanhar todo o processo lógico decisório subjacente à fixação dos factos provados.
Ou seja, da leitura da motivação da sentença recorrida, resulta que a convicção do Tribunal “a quo”, quanto a toda a factualidade provada e não provada encontra-se devida, clara e exaustivamente fundamentada, alicerçando-se no conjunto da prova produzida em audiência, sabiamente concatenada com as regras da experiencia comum e de harmonia com o principio da livre apreciação da prova, consagrado no ar. 127º, do Código de Processo Penal.
Entende o arguido que os factos dados como provados, praticados pelo mesmo, apesar de graves, não assumiram objetivamente, contornos violentos que possam ser subsumidos no crime pelo qual veio acusado e foi condenado pelo tribunal recorrido.
O arguido foi condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 4, do Código Penal.
Dispõe o artigo 152º do Código Penal, o seguinte:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (…);
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Este tipo legal de crime encontra-se inserido no capítulo III, do título I da parte especial do Código Penal, o qual se intitula “dos crimes contra a integridade física”, contudo, a sua ratio é a proteção da pessoa individual e da sua dignidade, sendo o bem jurídico protegido pela incriminação a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra.

Preceituava o art. 152º, nº 1, do Código Penal, sob a epigrafe “maus tratos”, na redação anterior à Lei nº 59/2007, de 04.09, que “quem tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação (…) pessoa menor (…) e lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente (…) é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo art. 144º”.
Por seu turno, decorria do nº 2, do mesmo preceito legal, que “a mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges maus-tratos físicos ou psíquicos”.
Ora, do confronto dos referidos preceitos legais não se constata que tenha ocorrido, com as alterações introduzidas pela Lei nº 59/2007, na sua essência, uma alteração significativa dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime em apreço.
Este tipo legal de crime, introduzido pela primeira vez no nosso ordenamento jurídico na versão originária do Código Penal de 1982, responde à necessidade que já então se fazia sentir de punir penalmente os casos mais chocantes de maus tratos em crianças, incapazes, cônjuge e equiparado, bem como trabalhadores, sendo que a partir da reforma introduzida pela Lei nº 59/2007, os maus tratos infligidos a cônjuge ou ex-cônjuge ou a qualquer outra pessoa mencionada nas alíneas contidas no atual art. 152º, nº 1, do Código Penal, beneficia de uma norma especifica que se reporta à denominada “violência doméstica”.

Tem sido entendimento aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência que as condutas previstas e punidas por este artigo configuram maus tratos físicos, como ofensas corporais simples e maus tratos psíquicos, como humilhações, provocações, molestações, ameaças, ou qualquer tipo de conduta suscetível de ferir a dignidade humana, todavia, e à semelhança do que acontecia no regime pretérito, o que releva é a existência de maus tratos físicos e/ou psíquicos, exista ou não reiteração, o que afasta, desde logo a mera ofensa à integridade física.
De facto, o conceito de maus tratos abarca não apenas aquelas situações em que a conduta do agente se pauta pela reiteração, em determinado período de tempo, ainda que não assuma um carácter de habitualidade, mas também aquelas outras situações, já então consideradas como integradoras da prática deste tipo de crime, que embora consubstanciadas num comportamento singular, revistam uma gravidade intrínseca suficiente para ser enquadrada na figura dos maus tratos, designadamente, e a título de exemplo, o referido grau de violência, agressividade, crueldade ou insensibilidade, que poderá ser objeto da qualificação prevista no art. 145º do Código Penal, e, ainda, no caso deste tipo de crime, atenta a especial relação existente entre o agressor e a vitima.
Assim, o ponto fundamental, neste tipo de crime, é, por conseguinte, a de que os factos apreciados à luz da intimidade e da repercussão que eles possam ter na vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal. Deste modo, pode concluir-se, que a maior gravidade do ilícito reside na circunstância de os maus-tratos ao cônjuge traduzirem uma marca visível de sinal contrário aos deveres específicos, legalmente descritos, de forma igualitária, para ambos os cônjuges (cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 6 de outubro de 2004, in CJ, Tomo I, pág. 212).

Ora, no caso dos presentes autos, face à factualidade provada, não existem dúvidas de que a conduta desenvolvida pelo arguido preenche a factualidade típica da violência doméstica, quer quanto aos elementos objetivos, quer subjetivos.
Conforme pode ler-se nos fundamentos de Direito da sentença recorrida:
“As injúrias e ameaças tidas como provadas foram reiteradas e prolongaram-se no tempo, sendo suscetíveis de afetar a dignidade e bem-estar psíquico da ofendida.
De facto, pese embora também se tenha provado que a ofendida chegou a insultar o arguido e que também tinha uma personalidade ciumenta e possessiva, tal não atinge dimensão suficiente para concluir que os insultos, ameaças e perseguição eram recíprocos.
Retendo a idade do arguido e ofendida, jovens, a relação de namoro, bem como os inúmeros insultos proferidos pelo arguido, o ter-se dado como provado que a ofendida também chegou a insultar o ofendido apelidando-o de estúpido e burro, não afasta a atuação do arguido que manifestamente e repetidamente atinge a ofendida na sua dignidade, e que a ameaça por várias vezes, numa atitude bastante afastada do comportamento normal e de respeito, e suscetível de causar receio, pressão e, logo, de afetar a ofendida na sua liberdade de determinação, como se logrou provar, pela sua intensidade.”
Mais se provou que, ao praticar os factos descritos, o arguido “previu e quis atuar do modo descrito, insultando e ameaçando a ofendida, com o que a pretendeu afetar, como afetou, pelo que atuou com dolo direto, assim preenchendo o tipo legal de crime do artigo 152.º, 1, b) do CP.”

Não colhe, pois, o alegado pelo arguido, ora recorrente, de que houve reciprocidade e que esta importaria o não preenchimento dos elementos objectivo e subjetivo do crime de violência doméstica.

Pois que, ficou claramente demonstrada uma superioridade de um dos intervenientes relativamente ao outro, no caso, do arguido em relação à ofendida, uma vez que os atos desta não assumem igual ou idêntica gravidade, àqueles praticados pelo arguido, que revelam uma total desproporcionalidade em relação àquela que foi a atuação da ofendida.
Entende também o arguido ora recorrente, que importa não esquecer que todos os factos praticados pelo arguido, reportam-se a alturas em que o mesmo e a ofendida, se encontravam zangados um com o outro, enquanto namorados, pelo que os factos enquadrar-se-iam melhor na chamada “zanga”, “briga” ou “arrufo” de namorados do que no crime de violência doméstica. É que o ordenamento jurídico português não define expressamente o conceito de namoro, daí que não seja despiciendo analisar o entendimento doutrinal e jurisprudencial sobre a matéria, de que na ausência de coabitação, exige-se algum detalhe fáctico que possa comprovar a existência de uma relação afetiva, estável, análoga à dos cônjuges. Neste sentido, cita excertos de Acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra e do Porto.
Assim, importa apurar se a matéria de facto provada preenche a previsão típica da alínea b) do n° 1 do artigo 152° do Código Penal, ou seja, se o arguido e a ofendida mantinham ou tinham mantido "uma relação de namoro ou uma relação análoga a dos cônjuges, ainda que sem coabitação".
E, no caso, tendo em conta a factualidade provada, apurou-se que o arguido e a ofendida tinham um relacionamento amoroso que perdurou durante cerca de três anos, apesar de instável, pautado por ruturas e reconciliações.
Conforme pode ler-se no Acórdão do TRP de 08.03.2017, in www.dgsi.pt, “A letra da lei, ao englobar no tipo objetivo a existência de uma mera relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, aponta claramente no sentido de não exigir para o preenchimento do tipo a exclusividade da relação ou até a necessidade de uma habitação comum.
Concomitantemente, importa considerar a natureza do bem jurídico tutelado pelo tipo de crime – a integridade física e moral, no quadro de uma relação afetiva, de proximidade existencial e interdependência emocional -, justificando um quadro legal penal de proteção aos membros dessa relação, emergente da sua especial fragilidade resultante da exposição e entrega pessoal recíproca, que é característica desse tipo de relacionamento.
No caso dos autos, os factos provados revelam, claramente, a existência de uma relação amorosa duradoura, que motiva e explica a atuação provada do arguido e potencia o efeito desta, na fragilização da posição da vítima, que em resultado dessa atuação se sentisse desvalorizada, nomeadamente quanto à sua aparência, e triste, visando causar-lhe sentimentos de insegurança, ofendendo-a na sua dignidade pessoal e atemorizando-a, coartando-a na sua liberdade de atuação, não aceitando o termo da relação, o que levou à denuncia, pela ofendida do comportamento do arguido e que deu origem ao presente processo.
Entendemos, pois, que o sujeito passivo do tipo objetivo de ilícito, ao ser uma pessoa envolvida num relacionamento amoroso duradouro encontra-se no âmbito de previsão da norma penal, no contexto de uma "relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação", pelo que dúvidas não há de que pode ser vítima de um crime de violência doméstica (artigo 152º, nº 1. al. b), do Código Penal) uma pessoa envolvida num relacionamento amoroso duradouro com o agente do crime, mesmo sem coabitação, bastando a existência de uma relação afetiva, de proximidade existencial e interdependência emocional, como resulta da factualidade provada na sentença ora recorrida.
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Da violação do princípio in dubio pro reu
No caso, por todo o exposto a atenta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não restaram quaisquer dúvidas ao Tribunal “a quo”, que o arguido praticou os factos pelos quais foi acusado, pelo que nunca seria de aplicar ao caso concreto o principio in dúbio pro réu.
O princípio in dubio pro reo não é mais que uma regra de decisão.
Assim, produzida e valorada a prova, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
No caso, por todo o exposto a atenta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não restaram quaisquer dúvidas ao Tribunal “a quo”, que o arguido praticou os factos que foram dados como provados na sentença ora em crise, pelo que, nunca seria de aplicar ao caso concreto o principio in dúbio pro réu.
Aqui chegados, cumpre agora dizer que “a intervenção do Tribunal de recurso em sede de avaliação da decisão proferida sobre matéria de facto, não visa a reapreciação sistemática e global da prova produzida em audiência, mas antes a deteção e a correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto,” – Acórdão da Relação de Lisboa de 23.11.2010.
É esse o corolário lógico do princípio da livre apreciação da prova, relevando elementos que apenas podem ser percecionados, apreendidos e valorados por quem os presencia, elementos esses que não ficam gravados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como o tribunal “a quo” formou a sua convicção, referimo-nos, desde logo, à ausência da oralidade, particularmente, da imediação. Restando pois ao Tribunal de recurso, apreciar se a valoração dos depoimentos foi feita de acordo com as regras da lógica e da experiência.
No caso, resulta claramente da matéria de facto dada como provada, a verificação dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime de violência doméstica.
Por todo o exposto e de acordo com o que já acima se expôs, não restaram quaisquer dúvidas ao tribunal, em face da prova produzida, que o arguido praticou os factos de que vinha acusado e dados como provados, integradores do tipo de crime de violência doméstica.
Nestes termos e nos demais de direito e por tudo o supra expendido, negando provimento ao recurso V. Excelências farão Justiça.
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Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando, no essencial, pela improcedência do recurso.
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
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O recorrente, para além do mais, pretende não só a absolvição do demandado, como subsidiariamente a redução da indemnização, porém, à luz do dispostos no art.400 nº2 do CPP, não só o valor da condenação civil é inferior à alçada do Tribunal, como o valor da sucumbência é inferior a metade dessa alçada, por isso, a decisão de 1ª instância (quer sobre a admissibilidade da instância cível, quer sobre o mérito da mesma), nesta parte é irrecorrível, excepto, em caso da decisão penal final, influir na condenação cível, motivo porque, a pretensão quanto à matéria cível, por ser irrecorrível, não será apreciada.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto pela arguição de:
- violação do “in dúbio pro reo, associada a erro na apreciação da matéria de facto.
- matéria de Direito, impugnando a relação de namoro, assim como a verificação dos pressupostos do crime de violência doméstica, invocando a existência um ambiente de agressões verbais reciprocas.
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Do enquadramento dos factos.
Da sentença recorrida constam como factos provados os seguintes:

O Ministério Público acusou, tendo sido pronunciado para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular,
AA, solteiro, estudante, nascido em .../.../1997, na freguesia ..., concelho do Porto, filho de HH e de FF, residente na Rua ..., ..., ..., ... Porto ,
Imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b) e n.º 2 do C.P, incorrendo também na pena acessória de na pena acessória de proibição de contactos com a vítima, de proibição de uso e porte de armas e da obrigação de frequentar programas específicos de prevenção da violência doméstica, nos termos do art.º 152.º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal.
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O arguido apresentou contestação escrita, na qual ofereceu o merecimento dos autos, e arrolou testemunhas.
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Procedeu-se a julgamento com inteira observância do formalismo legal, conforme consta da respectiva acta.
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Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.
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II FUNDAMENTAÇÃO A) FACTOS PROVADOS.
Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados, com relevo para a apreciação da causa:
1. O arguido AA namorou com a ofendida II no período compreendido entre o mês de maio de 2017 e meados do mês de novembro de 2020;
2. O arguido revela instabilidade emocional e psicológica;
3. Em outubro de 2018 o arguido começou a demonstrar muitos ciúmes da ofendida e a tentar controlar a sua atividade e passou a apelidá-la, com frequência não apurada, mas seguramente por pelo menos dez vezes, no decurso de discussões ou quando se encontravam zangados um com o outro[1], de “gorda, vaca, puta, oferecida, sheila”;
4. Na noite da passagem de ano de 2017 para 2018 o arguido perseguiu e abordou a ofendida quando ela aí se encontrava com a amiga CC na Av.ª ..., na cidade do Porto;
5. Em frente à CC o arguido disse à ofendida: “És uma gorda. Achas que eu queria alguma coisa com uma gorda como tu?”;
6. Em datas não concretamente apuradas, mas cerca do final do ano de 2019, nas ocasiões em que se encontravam zangados um com o outro, o arguido efetuava vários telefonemas para a ofendida e remetia-lhe mensagens dizendo: “és uma porca, uma puta, uma gorda;
7. Num dia não concretamente apurado, durante a relação amorosa entre ambos, em frente à sua residência, situada na Rua ..., em ..., na cidade do Porto, para evitar que ela abandonasse o local, o arguido agarrou a ofendida pelo braço;
8. Não obstante, em meados do mês de novembro de 2020 a ofendida terminou a relação amorosa entre ambos;
9. Entre o dia 1 e o dia 16 de dezembro de 2020 o arguido remeteu à ofendida as seguintes mensagens:
“- “Vais levar na boca”,
- “Vais levar gorda”,
- “Vou mandar as tuas fotos nuas a fumar praiana a tua mãe”, - “Vou te arrebentar td dos”,
- “Tas grd comigo”,
- “Uma Sheila do crl”, - “Uma rodada”,
- “Q ngm te queira”,
- “Senão bela merda q levam”,
- “Diz me a verdade oh puta do crl”,
- “N te vou dar descanso adenorar o q demora”, - “Cou aparecer em td lado”,
- “E mentes é na cara”,
- “Fdp de Sheila do crl diz a puta da vdd”, - “Q nojo crl”,
- “Vou arrebentar vox a tds”, - “Vou furar esses fpds”,
- “Vai gozar com o crl”,
- “E depois o q fiz estes meses e cm fui ctg e agr és a merda de pessoa q és”,
- “Juro te aqui q vais falar”,
- “Oh puta n sabes o q te vai acontecer”,
- “Mentimes na cara”,
- “N vais dizer mentirosa d crl? N te faço nd a ti”,
- “N querias aceitar já se viu o pq”,
- “Saíste Mt d tarde foste Pinar mais com outros”
- “Q mojo”,
- “Tas a gozar cmy”,
- “Q nojo ter te conhecido”,
- “E nnc mais te quero ver à frente msm metes me nojo”,
- “Oh puta n sabes o q te vai acontecer”,
- “Mentimes na cara”,
- “Finges d santa pra quem quiseres n me atiras mais areia pros olhos”,
- “Mas apartir d hoje meteste com a pessoa errada”,
- “Tira prints pro detetive da CIA”,
- “Vao te adiantar mt quando deres um passo em falso”,
- “Vou tar em td lado”,
- “(…) és uma santa fingida”,
- “So me vais enervar mais”,
- “E tira mais prints q vais come-los tds otaria”,
- “(…) mas qnd é pra ir sair curtir e dar a cona a ser uma vadia do crl bloqueia em td lad9”,
- “Vai te adiantar mt”,
- “Agr q n tenho nd a perder é q vais ver o inferno”,
- “Mentirosa do crl”,
- “Q tiveste com gajos q eu sei”, - “Mentirosa”,
- “Uma puta do crl q anda sempre a sair e fumar é a ir spotzinhos”,
- “E anda a comer outros”,
- “Vais passar pior q eu”,
- “Vais pagar tanto q nem imaginas”,
- “Juro por tudo”,
- “Vou ser o. Teu pesadelo mentirosa, n tens noÇao msm”,
- “E vou furar os teus “amigos já hj”,
- “Se eu me matar vais t arrepender?”,
- “Vou tentar uma ultima vez”,
- “Tu és uma merda q vai curtir a passagem de ano e a pessoa q teve smp la qnd tiveste doente e mal vai acabar assim”,
- ““Odeio t tanto”,
- “Vais ficar cm eu”,
- “Nnc mais vais ter pz”,
- “Vais te arrepender pra smp”,
- “N vais ter cabeça pra estudar cm eu”,
- “Vais acabar igual”,
- “Pela minha saúde atende uma vez”,
- “Eu sou algum monte de merda?”,
- “Mentirosa a prestar declarações às 8 da noite obla”,
- “Tas a brincar com a puta da minha cara”,
- “Tas a brincar com a puta da minha cara”,
- “Bloqueias me em td lado q nojo”,
- “Vais pagar td q me fizeste”,
- “Qnd te apanhar quero ver se consegues bloquear farsa do crl mentirosa”,
- “Terceira passagem d ano q cagas em mim ingrata”,
- “Já saíste? Preciso de falar ctg pessoalmente”.

10. Após tal data, o arguido disse à ofendida que iria divulgar fotografias suas sem roupa que ele possui;
11. Quando, no dia 31 de dezembro de 2020, a ofendida se encontrava no posto da GNR ..., situado em ..., em Vila Nova de Gaia, a denunciar o envio das referidas mensagens, o arguido tentou contactá-la várias vezes através de chamadas de voz, que não foram por ela atendidas;
12. Após o atrás referido, a arguida ficou com medo do arguido, temendo que este atentasse contra a sua integridade física ou mesmo vida;
13. A reiteração dos insultos e ameaças supra referidos afetaram-na, direta e necessariamente, na sua honra e consideração e amedrontaram-na, fazendo com que se sentisse desvalorizada e triste e causou-lhe sentimentos de insegurança, ofendendo-a na sua dignidade pessoal;
14. Ao praticar os factos descritos, o arguido agiu com a intenção alcançada de maltratar psicologicamente a ofendida, apesar de conhecer os especiais deveres de respeito que tinha para com ela devido ao facto de ter sido sua namorada;
15. O mesmo sabia que, ao agir como descrito, a atingiria na integridade psicológica, molestando-a na saúde, o que efetivamente veio a suceder, afetando-lhe a tranquilidade e o sentimento de segurança, resultado que representou e quis;
16. As expressões acima indicadas foram idóneas a causar na ofendida, tal como causaram e como o arguido pretendeu, medo e inquietação e a limitarem a sua liberdade de determinação;
17. Agiu sempre livre, voluntária e conscientemente e embora soubesse que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibiu de os concretizar.
18.O arguido reside com a mãe e a irmã, em casa da mãe;
19.O arguido frequenta o primeiro ano do curso de gestão de empresas, na Universidade ...;
20.O arguido não exerce qualquer profissão remunerada;
21.O arguido encontra-se a frequentar consultas de psiquiatria e psicologia clínica, a seu pedido;
22.À data dos factos do presente processo, o arguido e a ofendida viviam junto das respectivas progenitoras e ocasionalmente pernoitavam juntos em ambas as casas;
23. AA é filho único, sendo que os pais se separaram pouco tempo depois do seu nascimento;
24. A mãe estabeleceu outros relacionamentos afetivos, daí resultando a irmã uterina que atualmente conta com 21 anos de idade;
25. Atualmente o arguido beneficia de apoio da progenitora, embora num passado recente tivessem ocorridos conflitos com progenitora, o que motivou que os avós paternos tivessem assumido a guarda do arguido;
26.O arguido passava junto dos avós paternos os fins-de-semana e férias previstos no regime de visitas do progenitor, já que este assumia postura de ausência;
27.O arguido apresenta um percurso escolar regular até ao 9º ano de escolaridade, altura em que registou a primeira retenção.
28. Uma vez no 10º ano de escolaridade, o arguido passou a registar retenções sucessivas, referindo desadaptação aos conteúdos programáticos nos diferentes cursos em que foi sendo integrado, por via de indefinição pessoal por área vocacional, referindo ter experimentado diferentes cursos principalmente na área das artes visuais e design gráfico;
29. Por iniciativa dos avós paternos, viria a matricular-se no Externato ..., onde concluiu o 12ª ano de escolaridade, candidatando-se após ao ensino superior;
30. O arguido assinala que por volta dos 13/14 anos de idade ocorreram os primeiros contactos com produtos estupefacientes, em contexto de grupo de pares, sendo um hábito que manteve durante algum tempo, o que não acontece atualmente;
31. Por força da instabilidade comportamental que o foi caracterizando e por iniciativa da família o arguido foi alvo avaliação psicológica e subsequente acompanhamento durante algum tempo, até que, por iniciativa própria, abandonou tal acompanhamento, que entretanto retomou;
32.Atualmente dedica-se sobretudo à corrida, o que faz na companhia do pai da sua irmã;
33. O arguido chegou a trabalhar ocasionalmente na T... e em empresas de eventos, o que deixou por altura do início da situação de pandemia;
34. O arguido e a ofendida reataram a relação de namoro no mês de Maio do corrente ano;

Mais se provou que:
35.A ofendida e arguido terminaram por várias vezes o relacionamento e voltaram a reatar, no período indicado em 1);
36.A ofendida chegou, no decurso de discussões, a apelidar o arguido de “estúpido” e “burro”.
37.O arguido já foi condenado no âmbito do processo 1117/16.5PJPRT, do J2 local criminal do Porto, por sentença transitada em julgado em 15-9-2017, pela prática em 24-9-2016, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 120 dias de multa;
*
B) FACTOS NÃO PROVADOS.
Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente que:
a) O arguido foi consumidor de produtos estupefacientes, pelo menos, até ao início do ano de 2020, ingere bebidas alcoólicas em quantidade superior à que o seu corpo consegue suportar;
b) O referido em 3) ocorria diariamente;
c) A partir da data referida em 3) o arguido passou a pesquisar-lhe o telemóvel sem a sua autorização e a proibi-la de estar com as amigas;
d) Aquando do referido em 5) o arguido pontapeou a ofendida nas pernas, de forma afazê-la cair;
e) Desde a data referida em 5) a ofendida tentou colocar termo à relação entre ambos por várias vezes;
f) Aquando do referido em 6) o arguido perseguia diariamente a ofendida e mandou-lhe mensagens a dizer: “vou-te apanhar. Vou-te furar toda. Vou-te partir toda. Apanho-te e desfaço-te. Vou-te meter numa cadeira de rodas”;
g) Aquando do referido em 7) o arguido agarrou a ofendida com força, provocando-lhe dores;
h) Num dia não concretamente apurado situado entre o dia 1 e o dia 29 de dezembro de 2020 o arguido contactou a ofendida telefonicamente e disse-lhe ter estado perto de casa dela, causando-lhe muito medo;
i) Em data não concretamente apurada, situada após o términus da relação entre ambos, o arguido divulgou nas redes socias fotografias da ofendida sem roupa;
j) Atualmente, por medo, a ofendida evita andar sozinha na rua, não se consegue concentrar, tem complexos com a sua aparência e tem dificuldade em adormecer;
k) Atuando como descrito o arguido sabia que atingia a ofendida na sua integridade física e corpo;
l) O arguido quis, como conseguiu, publicar através da internet fotografias da ofendida, sem roupa;

[aos demais factos não se faz referência por conclusivos, instrumentais, ou contendo apenas matéria de direito].
C) MOTIVAÇÃO.
A decisão acerca da matéria de facto fundou-se no conjunto da prova produzida e analisada em audiência de julgamento, interpretada conjugada e criticamente, mais concretamente:
- à declaração de inscrição na faculdade, para prova do fato que atesta, bem como à declaração de frequência de consultas de psicologia, para a respetiva prova;
- a ofendida BB, nascida a .../.../1998, refere que já namorou com o arguido desde Maio de 2017 a finais de 2020. Refere que no início corria tudo bem, mas que discutiam muito. Que acha que no início da relação ele consumia estupefacientes, mas nunca viu…Diz que presencialmente nunca a ameaçou ou insultou, mas por telemóvel sim. Refere que apresentou queixa porque queria acabar e ele insistia…Acaba por confirmar a situação relativa à passagem de ano, e refere que ele andou a noite toda atrás dela, mas que não a agrediu.
Confirma que a costumava chamar “puta, gorda, rodada, oferecida, Sheila”, quando discutiam.
Que se separaram e reataram várias vezes. Que tiveram discussões em que se insultaram mutuamente, confirmando que por vezes o apelidava de estúpido e otário.
Que numa situação ele pôs-lhe as mãos no braço para ela não ir embora e ela arrancou no carro, mas não a magoou ou agarrou com força.
Refere que o arguido não vasculhava as suas coisas, e controlava-a com perguntas a saber onde estava, mas ela também lhe fazia o mesmo a ele.
Confrontada com o teor das mensagens de fls. 48 e ss., refere que foram enviadas por ele a si, através de whatsapp e mensagens de telefone. Que não sabe as datas em que ela enviou as mensagens, porque ia tirando prints.
Que ele chegou a publicar um vídeo seu, nua, na sua story do instagram, mas não sabe quem podia ver, porque ele disse que era só para ela, não o referindo de modo espontâneo, nem conseguindo confirmar como, quando ou concretizar os termos em que o arguido o terá feito, pelo que se deu por não provado, na ausência de outra prova quanto à divulgação, embora se tenha atendido ao seu depoimento na parte em que refere que ele ameaçava divulgar conteúdo de fotos suas, o que o próprio acaba por confirmar.
Confirma que continuam a namorar desde Maio e estão juntos frequentemente. Atentas as suas declarações, e em conjugação com os demais depoimentos, efetivamente confirma-se que os insultos ocorriam quando se encontravam zangados, e que quando efetuou queixa o fez por receio do arguido, sendo que a frequência da intimidação e mensagens a afetaram, sendo certo que na atualidade tal receio já não se verifica, pelo que nessa parte se deu como não provado.
Pese embora tenha deposto de modo hesitante, talvez porque se encontra numa relação com o arguido, não obstante as medidas de coação impostas, o certo é que foi confirmando a relação com o arguido, os insultos, as mensagens contendo ameaças e o receio que a motivou a apresentar queixa, o que fez “a contra-gosto”, mas denotando que falava do que se recordava com convicção e de modo frontal, assim contribuindo para dar como provados os factos tidos como tal.
- a testemunha JJ, nascida a .../.../1998, amiga da ofendida, diz que era da mesma turma dela na faculdade, e reporta-se principalmente a Outubro e Novembro de 2019, em que a BB estava com medo, porque ele mandava mensagens a dizer que estava à espera dela à porta do local onde estavam. Que viu mensagens com ameaças de que ela ia atrás dela. Que quando a conheceu ela não saía muito. Nunca viu fotos na internet.
Depondo de modo espontâneo e escorreito, em conjugação com o depoimento da ofendida, que saí reforçado deste modo, contribuiu para a prova dos factos relativos aos insultos e mensagens, bem como que aquelas deixavam a ofendida com medo.
- a testemunha CC, nascida a .../.../1998, amiga da ofendida, refere que a relação dos dois era “tóxica”, e os dois tinham maus comportamentos. Que quando estavam zangados ele ligava-lhe, e à mãe dela.
Refere-se a um episodio em que foram a um concerto a Espinho e no regresso eles discutiram e ele ia a dizer, para a ofendida, no caminho, no carro “puta, porca, badalhoca, cona aberta”.
Que numa passagem de ano, de 2017 para 2018, eles estavam chateados e ela saíu consigo, sendo que ele acabou por ir atrás delas e chateado começou a dizer “O que estás a fazer? Vieste ter com os gajos? Cona aberta”. Durante o percurso, ele seguia atrás delas, sempre a insultar.
Que mandava mensagens que queria falar com ela…
Nunca viu vídeo da ofendida nua.
Não sabe se ele a impedia de estar com amigos. Diz que ele lhe deu um pontapé no joelho.
Viu várias mensagens dele a insultá-la. Que eles se insultavam mutuamente e ela lhe chamava a ele “estúpido, otário, burro”.
Que ela também é possessiva e controladora relativamente a ele.
Com o seu depoimento espontâneo, contribuiu para prova da situação relativa à passagem de ano, bem como da frequência dos insultos, e ainda para dar como provado que a ofendida também chegou a insultar o arguido, e também era ciumenta.
- a testemunha DD, nascida a .../.../1970, mãe da ofendida, refere que nunca presenciou nada, mas chegou a receber mensagens do AA em casa.
Que eles se zangavam e reatavam várias vezes, e quando a relação entrava em descontrolo, ela lhe pedia ajuda.
Que ele efetuava chamadas constantes e era insistente.
Que no dia em que a ofendida fez queixa, ele andava sempre a insistir para reatar, por mensagens e chegou-lhe a ligar a si, sendo que atendeu e ele acalmou, mas depois voltou às mensagens, por isso fizeram queixa.
Que a ofendida lhe contou que se tem encontrado com o AA. Que ele parou com as mensagens.
Ao depor de forma natural, não obstante ser mãe da ofendida, contribuiu para reforçar a prova dos factos, dado que confirma que o arguido era controlador, que quando zangados efetuava telefonemas insistentes, e que enviava várias mensagens, bem como que a filha estava com receio, tanto que lhe pediu ajuda e foram fazer queixa.
- a testemunha EE, nascida a .../.../1998, amiga da ofendida, diz que eles começaram a namorar em 2017, mas não costumava sair com eles.
Refere que havia uma “pressão psicológica constante” da parte dele, na época de exames, com centenas de chamadas. Pensa que em alturas que estavam chateados, e embora de número provado, quando ela atendia, era ele.
Que em janeiro de 2021, uma vez ele mandou uma mensagem a dar a entender que estaria em baixo à espera dela e ela ficou com medo, mas não sabe se estava ou não.
Das mensagens, lembra-se de ler “puta. Vou-vos foder a todos”, quando ela não atendia.
Que ela deixou de sair tanto e passou a ter problemas de sono. Não sabe se reataram, porque agora vive em Lisboa. Confirma que eles reatavam e começavam várias vezes.
À semelhança das outras amigas da ofendida, contribuiu para reforço da prova resultante do depoimento da ofendida, quanto aos insultos, e envio de mensagens.
- a testemunha FF, mãe do arguido, refere conhecer a BB e que eles namoram há uns 4 anos.
Que assistiu a discussões em que eles mostram muitos ciúmes um do outro. Que ela lhe ligava a si a perguntar por ele e muitas vezes estava à porta de casa à espera dele chegar.
Que nunca viu mensagens, mas que eles se insultavam, ele chamou-a de burra e ela a ele, também a ouviu a insultar…
Que este sábado a BB dormiu em sua casa, com o arguido.
Que o arguido está a ser seguido em psiquiatria, por dificuldade de concentração, perda de memória….
Que ele pratica desporto com o seu companheiro, ao fim-de-semana.
Depôs de forma espontânea, sendo que, no entanto, pouco sabia de concreto, tendo contribuído para prova de que ambos discutiam muito e que se chegaram a insultar mutuamente.
- a testemunha GG, companheiro da mãe do arguido, refere que chegou a assistir a discussões entre eles, em que ela tocou à campainha de sua casa às 6:30 e entrou disparada a insultá-lo por ele ter sido e chegado pouco antes.
Que eles estão novamente juntos, desde o verão. Que nota muitos ciúmes, de parte a parte.
Contribuiu, à semelhança da testemunha anterior, para prova dos mesmos factos.
- em declarações, o arguido acaba por confirmar, confrontado com as mensagens dos autos, que não se recorda bem, mas são o tipo de mensagens que pode ter mandado.
Confirma que chegaram a haver discussões, embora não diariamente, e que se irritava. Que nunca a proibiu de estar com amigas ou vasculhou as suas coisas. Que no último natal já estavam bem, até tendo trocado prendas. Que nunca lhe deu pontapé ou agrediu. Que terminavam e reatavam várias vezes, mas os dois.
Confirma que a insultava por mensagens, confirmando o teor das dos autos. Refere estar arrependido e que anda no psicólogo, para ter ajuda.
Confirma que ela também o insultava mas gostam um do outro e têm planos para o futuro. Que nunca fez publicação nas redes sociais de fotografias dela nua.
Pese embora a sua posição processual, confessa parte dos factos, revelando noção de que a sua atitude não foi correta, sendo que, quanto às agressões, a ofendida também não as confirmou, pelo que se deram por não provadas.
- quanto aos factos não provados, sobre os mesmos não foi produzida prova ou foi produzida prova em contrário, conforme supra analisado.
- atendeu-se ainda ao teor do c.r.c. do arguido.

D) DO DIREITO.
1. Quanto ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b) e n.º 2 do C.P..
Dispõe o artigo 152.º do C.P., na redacção da Lei 59/2007, de 4.9, que:
«1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais
a) ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) (…)
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2- No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) difundir através da internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento,
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos».
O bem jurídico protegido neste tipo legal de crime é um bem jurídico complexo, abrangendo a proteção da saúde da pessoa, no seu todo, ou seja abrangendo a saúde física, mas também a saúde psíquica e mental, a dignidade da pessoa humana, em toda a sua plenitude – neste sentido, cfr. Acórdão da Relação do Porto de 10-7-2013 (cfr. www.dgsi.pt, processo 413/11.2GBAMT.P1].
Trata-se de um crime de mera actividade, em que basta o dolo relativamente ao perigo de atingir a dignidade psíquica e/ou física da vítima.
Integra o elemento objetivo do tipo legal o infligir (no sentido de fazer alguém suportar algo, de impor) de maus tratos físicos, que se reconduzem a ofensas à integridade física, bem como maus tratos psíquicos, estes mais abrangentes, abarcando uma panóplia de situações, como humilhações, provocações, ameaças e outras situações suscetíveis de se enquadrar numa atuação que ofenda a dignidade do atingido, e a sua saúde psíquica.
É, portanto, também um crime necessariamente doloso, em que se exige o dolo em qualquer uma das suas vertentes previstas no artigo 14.º do CP.
No caso dos autos, resultou provado que o arguido por diversas vezes dirigiu insultos à ofendida, que lhe enviava mensagens de teor ameaçador, insultuoso que, em si mesmas, são susceptíveis de afetar a dignidade e auto-estima da ofendida. Acresce que as mensagens enviadas são inúmeras e também se provou terem sido vários os telefonemas insistentes, bem como que, pelo menos uma vez, numa passagem de ano, o arguido perseguiu a ofendida, ao ir ter com esta e seguir sempre atrás dela, tendo-a insultado.
Todos estes comportamentos conjugados, demonstram uma personalidade algo obsessiva, que com facilidade utiliza a agressão verbal e ameaça com vista à manutenção da relação.
As injúrias e ameaças tidas como provadas foram reiteradas e prolongaram-se no tempo, sendo suscetíveis de afetar a dignidade e bem-estar psíquico da ofendida.
De facto, pese embora também se tenha provado que a ofendida chegou a insultar o arguido e que também tinha uma personalidade ciumenta e possessiva, tal não atinge dimensão suficiente para concluir que os insultos, ameaças e perseguição eram recíprocos. Retendo a idade do arguido e ofendida, jovens, a relação de namoro, bem como os inúmeros insultos proferidos pelo arguido, o ter-se dado como provado que a ofendida também chegou a insultar o ofendido apelidando-o de estúpido e burro, não afasta a atuação do arguido que manifestamente e repetidamente atinge a ofendida na sua dignidade, e que a ameaça por várias vezes, numa atitude bastante afastada do comportamento normal e de respeito, e suscetível de causar receio, pressão e, logo, de afetar a ofendida na sua liberdade de determinação, como se logrou provar, pela sua intensidade.
O arguido previu e quis atuar do modo descrito, insultando e ameaçando a ofendida, com o que a pretendeu afetar, como afetou, pelo que atuou com dolo direto, assim preenchendo o tipo legal de crime do artigo 152.º, 1, b) do CP.
Quanto à agravante do n.º 2, b) do CPP, não resultou preenchida, dado que não se provou que o arguido tivesse publicado fotografias/vídeos da ofendida nas redes sociais.
Inexiste qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que o arguido é imputável pelo crime pelo qual vem acusado, embora sem a agravante do nº 2, b) do CP.
* E. A PENA.
i) DA ESCOLHA E MEDIDA DA PENA.
O crime de violência doméstica imputado ao arguido é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
De acordo com o artigo 47.º, n.º 1 do CP, a multa é fixada entre 10 e 360 dias. Estipula o artigo 70.º do C.P. (que se mantém inalterado com a entrada em vigor da
Lei n.º 59/2007 de 4.09) que, quando “ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
A aplicação de penas e de medidas de segurança assume uma finalidade de protecção dos bens jurídicos (prevenção geral positiva) e de reintegração do agente na sociedade (prevenção especial) – artigo 40.º do C.P..
A finalidade de protecção de bens jurídicos visa tutelar as expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, decorrendo do princípio da necessidade da pena, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa – neste sentido, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Cfr. em Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, reimpressão, pág. 227).
No que concerne ao crime de violência doméstica, são particularmente elevadas as exigência de prevenção geral, atentos os sentimentos de insegurança que geram na população e as consequências que da sua prática muitas vezes advêm.

Considerando o disposto no artigo 71.º, n.º 1 do C.P., a medida concreta da pena determina-se em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção.
A culpa fornece o limite máximo da pena que ao caso cabe aplicar, sendo que, até esse limite, e dentro da moldura penal abstracta, são as necessidades de prevenção geral que determinarão, face ao caso concreto, um limite mínimo de prevenção a observar, sendo que a prevenção especial de ressocialização deve ser tomada em consideração para determinar a medida concreta da pena.
De acordo com o que dispõe o artigo 71.º, n.º 2 do C.P., “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”, nomeadamente, as circunstâncias elencadas no n.º2 do referido normativo.
Assim, há que reter, quanto ao crime de violência doméstica, que: - o arguido atuou com dolo direto;
- a ilicitude do arguido não é particularmente elevada, dado que pese embora o número de atuações (insultos e ameaças), as mesmas foram proferidas essencialmente através de meios escritos, em discussões, e não se provaram atuações de agressão física;
- a culpa é mediana, atendendo a que se provou que ambos discutiam entre si e que a ofendida também chegou a insultar o arguido;
- releva em seu favor o facto de se encontrar familiarmente inserido, de se encontrar a estudar e ter solicitado ajuda no âmbito de psiquiatria, bem como o facto de ter confessado parte dos factos e se mostrar arrependido, sendo certo que também não é alheio ao Tribunal que arguido e ofendida reataram o relacionamento e que desde Maio do corrente ano estão novamente juntos.
Assim, afigura-se adequado fixar a pena em um ano de prisão. *
ii) DA SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO APLICADA

Ponderando a factualidade assente, designadamente a ausência de antecedentes criminais do arguido por crime que atinja bem jurídico idêntico e sua integração social, retira-se uma diminuída necessidade de prevenção especial, pelo que se entende que satisfaz as necessidades de prevenção, quer especial, quer geral, a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, num total de 360 horas de trabalho, a prestar de acordo com plano a elaborar para o efeito.
Assim, decido substituir a pena de prisão aplicada pela prestação de 360 horas de trabalho a favor da comunidade, nos termos do artigo 58.º do CPP.
*
iii) DA PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONTACTOS E DE USO E PORTE DE ARMA, BEM COMO DE OBRIGAÇÃO DE FREQUÊNCIA DE PROGRAMAS ESPECÍFICOS DE PREVENÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA– ARTIGO 152.º, N.º 4 DO CP.
Conforme supra elencado, os números 4 e 5 do artigo 152.º do CP, preveem a aplicação de penas acessórias, pelo período de seis meses a cinco anos.
Resulta dos factos provados que arguido e ofendida reataram a relação de namoro em Maio do corrente ano, sendo que ambos manifestam o propósito de continuarem juntos, embora se encontrem a residir na casa dos respetivos pais.
O arguido confessou parte dos factos e manifesta-se arrependido, pelo que não se afigura necessário, no caso dos autos, que se aplique a medida de proibição de contactos.
Já quanto à proibição de uso e porte de armas, retendo que o arguido já foi condenado pela prática de crime de detenção de arma proibida, bem como o teor dos factos em apreço, considera-se adequado aplicar a pena acessória de proibição de uso e porte de armas pelo período de dois anos, a fim de salvaguardar a segurança da ofendida.
Também quanto à frequência de programas de prevenção de violência doméstica, atenta a idade do arguido, os factos praticados, e que se prolongaram no tempo, tratando-se de relação de namoro, entende-se adequado e necessário à salvaguarda das exigências de prevenção especial, designadamente, que o arguido frequente programa a determinar pela DGRSP, relativo à prevenção de violência doméstica.
*
F. DA INDEMNIZAÇÃO AO ABRIGO DO ARTIGO 82.º-A DO CPP. A ofendida não efetuou pedido de indemnização civil.
Ora, cumpre reter que dispõe o artigo 483.º do Código Civil, que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.
Ora, os danos distinguem-se em danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo que, conforme ensina Mário Júlio de Almeida Costa (cfr. Direito das obrigações, Almedina, 7ª. Edição, Coimbra, 1998, pág. 515) “os primeiros, porque incidem sobre interesses de natureza material ou económica, reflectem-se no património do lesado, ao contrário dos últimos, que se reportam a valores de ordem espiritual, ideal ou moral.”
Quanto aos danos patrimoniais, há que reter que o artigo 562.º do C.C. estipula que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Por outro lado, a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não for possível – cfr. art. 566º, n.º1, do Cód. Civil.
No que concerne aos danos não patrimoniais, decorre do art. 496º, n.º1, do Cód. Civil, que os mesmos são susceptíveis de ressarcimento, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
São relevantes apenas os danos que, de acordo com um critério objectivo, revestem importância para o bem-estar do lesado. Os sentimentos e desgostos decorrentes de uma sensibilidade anómala, os simples incómodos ou contrariedades não são ressarcíveis – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Cód. Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., p. 499 e ss.; Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 7ª ed., p. 514 e ss..
O montante indemnizatório deve ser fixado de acordo com a equidade, tendo-se em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesado e outras circunstâncias concretas relevantes – cfr. art. 496º, n.º3, e 494º, do mencionado código.
Nos termos do artigo 494.º do C.C., deve atender-se ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, e às demais circunstâncias do caso, nomeadamente à gravidade do dano, sob o critério da equidade envolvente da justa medida das coisas.
Ora, face à factualidade provada, não existem danos patrimoniais a indemnizar, sendo que, quanto aos não patrimoniais, provou-se a prática de um crime por parte do arguido, e que com o mesmo este atingiu a ofendida na sua dignidade, afetando-a na sua psíque.
Retendo, pois, que a conduta do arguido se prolongou no tempo, mas se reconduz a insultos e ameaças essencialmente escritos, sendo que arguido e ofendida se encontram atualmente juntos, não se tendo provados outras sequelas para a ofendida, entende-se adequado fixar a compensação a atribuir em € 1000,00.
III. DECISÃO Face ao exposto, decide-se:”
*
Cumpre apreciar.
Apreciando o recurso interposto pelo arguido, sendo a impugnação centrada na decisão da matéria de facto, associado a parâmetros de dúvida que pretende ver instalados na convicção do Tribunal a que se associam inevitavelmente a demarcação do conceito de erro de interpretação da prova.
Não basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação. O recurso com esses fundamentos apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância [cfr. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999].
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» [cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt]
O Tribunal de recurso, apreciando os fundamentos da impugnação da matéria de facto e os meios de prova indicados nos termos do art.412º nº3 do CPP (quando conste do objecto de recurso), deve aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
Em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal “a quo” se estribou nestes pressupostos, como já se enfatizou, o Tribunal “ad quem” não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1ª Instância se fundou fora da razoabilidade, em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
O recorrente centra a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto, defendendo que o Tribunal “A Quo” não julgou correctamente os pontos 12, 13 e 16 dos factos provados, devendo essa matéria constar dos factos não provados, sustentando que o arguido não deverá ser condenado pelo crime de violência doméstica.
Analisando as discordâncias concretas da recorrente face aos parâmetros da decisão agora impugnada, este Tribunal depois de ouvir a prova produzida, concretamente as declarações do arguido, as declarações da assistente, e os depoimentos das testemunhas desde logo, cumpre referir que o juízo probatório do Tribunal “A Quo” quanto ao comportamento do arguido e sua conduta objectiva, no que concerne às acções que concretamente dirigiu contra a assistente, não merece reparo, porquanto plenamente sustentado na prova produzida.
A acção do arguido, por diversas vezes, foi manifestamente contundente sobre a assistente. Concretamente, desde Outubro de 2018 que a injuriou e lhe fez desconsiderações pesadas, conduta que havia replicado anteriormente, na passagem de ano de 2017/2018; tornou a delinquir no final de 2019 com o mesmo peso. Acresce que, pouco tempo após haverem terminado o namoro em 2020, concretamente entre 1 e 16 de Dezembro, o arguido enviou várias dezenas de mensagens contundentes com uma carga ofensiva de largo espectro, semeada de várias ameaças, repetindo insistentes interpelações a 31/12/2020, com numerosos telefonemas. Todo este cenário de confronto, é inquestionavelmente suscetível e idóneo para causar receios, constrangimentos e angustias na vítima, tal como se apurou, e se o Tribunal “A Quo” notou alguma contenção nas declarações da assistente (percepção, aliás partilhada pelo Tribunal de recurso, depois de ouvir das declarações da mesma), a essa atitude não será alheio o facto da assistente e o arguido haverem entretanto reatado o relacionamento de namoro, o qual persistia coevo à realização das sessões de audiência de julgamento. Pois, só com insistência das instâncias, a assistente acabou por relatar e pormenorizar os insultos e as ameaças, concretizando estas, assim como o receio sentido (em particular como resulta aos 17 minutos das suas declarações), as quais aliás foram evidenciadas pela prova testemunhal ouvida por este Tribunal de recurso, designadamente dos depoimentos das testemunhas JJ (a qual elucidou o contexto de receio da assistente que presenciou), assim como da mãe da assistente, DD, a qual também esclareceu de forma credível sobre o estado receoso da sua filha.
Deste modo, o Tribunal de recurso ouvidas as declarações referenciadas e os depoimentos das testemunhas em causa, verifica que o Tribunal “A Quo” analisou corretamente esses meios de prova, realçando e inferindo os aspectos em que fundou a sua convicção, de forma apropriada de acordo com a lógica e as regras da experiência. Concorda-se com o juízo de prova que foi realizado pelo Tribunal a quo, não existindo qualquer erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum, que imponham alteração de convicção, devendo deste modo improceder a impugnação movida à decisão a matéria de facto.
*
O recorrente centra a sua impugnação num invocado ambiente de dúvida que no espírito do Tribunal “A Quo” não existiu, nem neste Tribunal da Relação.
Não pode, por isso, operar o princípio “in dúbio pro reu”, dado que nos parâmetros de convencimento probatório do Tribunal não se vislumbra qualquer panorama de dúvida que fragilizasse a decisão da matéria de facto, de modo que não pode operar este princípio, assim improcedendo nesta parte as conclusões.
*
Quanto ao restante objecto de recurso, primeiramente, antes de se analisar o mérito sobre o perfil dos factos provados, cabe estabelecer as fronteiras típicas do crime que fora imputado ao arguido em sede de acusação, pois só assim se poderá interpretar a importância jurídica dos factos provados. Depois, caberá saber se a análise que o Tribunal “A Quo” procedeu sobre a tipicidade do art.152º do CP, foi certeira.
O recorrente ao empolar a discussão sobre o conceito e a verificação da relação de namoro, pretendendo colocar em causa a existência da relação de namoro, no essencial e principalmente visa questionar a opção do legislador ao punir a violência no decurso do relacionamento de namoro, como ressalta do ponto 23 das suas conclusões, e essa será a expressão mais relevante da impugnação pretendida pelo recorrente (a qual por isso não poderia nunca proceder). Com efeito, nas conclusões fomenta-se uma discussão sobre o conceito social que, nos seus aspectos nucleares será quase estéril, dado que esse conceito quase que coincide pacificamente com o conceito normativo. Como é consabido, a relação de namoro tem muito menos densidade que a união de facto e conjugal, apenas representando um compromisso afetivo entre duas pessoas, que implica uma relação de intimidade, com alguma duração, sem que se integre nesse conceito necessariamente uma qualquer fase vestibular de uma outra relação de maior grau, e muito menos envolve conceitos de coabitação. Não obstante, a relação de namoro situa-se no epicentro da tutela deste delito, porquanto propicia a proximidade física entre agressor e vítima, assim como a partilha dos vários aspectos da intimidade que, gerando elevada exposição da vítima, motiva a possibilidade do agressor atuar sob a mesma com muitas formas de agressão.
Para além do Tribunal “A Quo” haver dado como provado a relação de namoro entre arguido e a assistente, como ficou manifesto pela prova produzida, para além da mesma ser duradoura “entre o mês de maio de 2017 e meados do mês de novembro de 2020”, não obstante a terem interrompido a Novembro de 2020, vieram a retoma-la como se provou no ponto 22 dos factos provados que “À data dos factos do presente processo, o arguido e a ofendida viviam junto das respectivas progenitoras e ocasionalmente pernoitavam juntos em ambas as casas”, sendo que na sua vivência sucederam sentimentos de ciúmes, tudo um contexto típico de uma relação de namoro.
O recorrente procura preencher o conceito de namoro com elementos que, diversamente, caracterizam outro tipo de relacionamento com mais densidade, concretamente as uniões de facto ou conjugais, sobretudo quando sustenta: “desenvolvimento de um projeto de vida em comum da vida do casal” ou uma “uma relação próxima do ambiente familiar com sentimentos de afetividade, respeito, confiança, conhecimento mútuo, atos de intimidade, partilha de vida em comum e cooperação mútua”, mas estas vivências não são a relação de namoro.
De entre a jurisprudência que o recorrente cita, a que mais se aproxima do conceito de namoro, resulta do ponto 11 das suas conclusões, cujo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de janeiro de 2014 refere “em abstrato, o namoro é uma fase de relacionamento amoroso para conhecer o outro, e não um fim em si, de comunhão de vida, que é própria do casamento ou da união de facto. É uma fase transitória que com frequência acaba no rompimento amoroso, por as expectativas de um ou ambos os namorados não serem aquelas que esperavam”). A relação de namoro implica um mínimo de estabilidade medida num certo período, que envolva intimidade e partilha de afectividades, e essa relação encontra-se claramente apurada.
De referir que a confusão de conceitos que constam das conclusões de recurso deve ser desfeita sem mais delongas, pois a relação de namoro não implica qualquer comunhão de vida, mas tão só uma comunhão de intimidade. Nem tão pouco, a circunstância de existirem ruturas provisórias, seguidas de retomas do relacionamento como resultam dos pontos 34 e 35 dos factos provados, constituem elementos que descaracterizam essa relação de namoro, tanto mais, que alguma intermitência pode integrar a normalidade de inúmeros relacionamentos de namoro.
Deve assim, manifestamente improceder as conclusões do recorrente a este propósito.
*
Quanto aos restantes pressupostos do crime de violência doméstica, contrariamente ao que se possa supor, o quadro normativo que deriva do tipo especial de violência doméstica, emerge entre sujeitos que estão ligados por especiais deveres de respeito (imanente à relação de namoro), os quais assentam numa relação de proximidade, de conhecimento mútuo e por isso de elevada exposição. É necessário sublinhar que o conteúdo dos deveres recíprocos elevam e substanciam o estatuto da dignidade de um perante o outro, nessa relação.
O Ac.RelP de 28.09.2011, veio sintetizar “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.

O reforço da tutela prevista no art.152º do CP surge porque o agressor pode vitimizar a ofendida de forma dramática. Para o cometimento do crime não é necessário que ocorra o drama das múltiplas e continuadas agressões, o legislador quis antecipar a tutela. Com efeito, quando uma única agressão ultrapassa os limites ao respeito devido à namorada, companheira ou ex-companheira, que nunca deviam ter sido ultrapassados, subsiste o perigo de se iniciar irremediavelmente um ciclo de violência (composto pelo seguinte iter: a agressão, pedido de perdão pelo agressor; o perdão concedido; nova agressão e assim sucessivamente) que tendencialmente se agravará. Portanto, basta uma agressão que atinja os referidos limites (não exigindo o tipo uma especial gravidade desta agressão tal como vem sendo sustentado por diversos acórdãos), para consumar o crime previsto no art.152º do CP, e é aqui se surpreende na previsão legal um tipo de perigo, tutelando o perigo abstracto na reiteração de futuras agressões, que poderão vir a seguir àquela “única” agressão. O perigo é abstracto porque na formulação legal não se tipifica o perigo concreto. Depois, a única agressão que tem a virtualidade de fechar a tipicidade deste crime de perigo (nesta componente de agressão única), é aquela que em potência se renovará em futuras agressões, acompanhada, claro está, do dolo de domínio e de subjugação, associada à intenção de lesar a dignidade. Esta potencialidade reside nas agressões desrespeitosas, que diminuam a ofendida e a coloquem numa posição de sujeição perante futuras agressões. Com efeito, existem agressões, como um soco na face ou uma violenta chapada (a face identifica-se com os parâmetros da personalidade do individuo), que não sendo muito relevantes em termos de gravidade objectiva nos termos do art.143º do CP, significam, no entanto, no seio da comunhão conjugal o que nunca poderia ter acontecido, ou seja, a sujeição da namorada/companheira ao medo, que a imobiliza perante futuras agressões, o que o agressor sabe, aproveitando para, a partir daí, impor a sua vontade, no seio dessa comunhão, exercendo então a tirania do mais forte, passando a desferir chapadas quando se quiser impor. É o perigo dessa tirania que o tipo de perigo do art.152º na “única agressão” visa tutelar e esconjurar, sem necessidade de esperar pela consumação do intenso e continuado sofrimento que decorre da reiteração. O legislador perante uma única agressão perigosa, quis antecipar a tutela, punindo logo o agressor como crime de violência doméstica.
É que, ultrapassados os importantes limites do respeito pela dignidade da vítima no seio da comunhão conjugal, iniciado este grau de agressões está “aberta a porta” para a sucessão dos ciclos de violência que caracterizam a violência doméstica.
Subsumir as agressões com a potencialidade de iniciar ciclos de violência conjugal aos tipos previstos nos arts.143º, 153º, 181º do CP, contraria o regime especial previsto no art.152º do CP.
Com as agressões e os maus tratos psíquicos, os deveres ao serem frontalmente violados, “por regra”, ou melhor, em princípio, ferem a dignidade da namorada da companheira, assim se mostrando quase inerentemente atingidos, tornando os tipos legais das ofensas à integridade física ou de injúrias (cfr.art.143º e 181º) tutelares de agressões de escala menor ou residual (porque também desacompanhados de dolo de querer dominar e de atingir a dignidade), por isso inaplicáveis àqueles maus tratos.
A ontologia normativa de uma violenta bofetada, um soco ou uma cabeçada infligidos na face de uma mulher, altera-se por completo se essa mulher for a namorada, cônjuge (ou ex-cônjuge) ou companheira, pois, os planos da dignidade mostram-se reforçados e encimados pela relação de proximidade afectiva, pela comunhão de vida. No art.152º do CP não é tutelada a dignidade humana, mas sim da dignidade da mulher ou do homem, namorado, companheiro ou cônjuge.
No naipe gradativo de agressões, é claro que um simples empurrão ou uma palmada num braço ou a injúria com um nome de carga ofensiva moderada (embora criminosa); coacções ou ameaças de baixa densidade ou meramente isoladas; ou mesmo uma bofetada depois de uma provocação desnecessária, previamente dirigida pela vítima (bofetada que pode resultar de uma reacção mal medida do arguido) não integram o dolo de maus tratos físicos da violência doméstica (pois, embora dolosa, é de baixa densidade e a tipicidade desse dolo situa a agressão fora da violência doméstica, antes se integrando no art.143º do CP, não obstante a agressão na face). Daí que o recenseamento destas agressões constituindo delitos disponíveis pela vítima, porque semipúblicos, serão subsumíveis aos arts.143º, 153º, 154º 181º todos do CP, respectivamente, sem prejuízo pela agravação que deriva da especial censurabilidade cfr.arts.145º nº1 alínea a) e 132º nº2 do CP. É que, sendo a carga de indignidade das agressões, um resultado desvalioso, situa-se na ilicitude e não na culpa (aqui se discordando que os maus tratos implicam uma culpa especialmente censurável). A culpa até poderá ser especialmente censurável, mas o tipo não o exige, bastando o dolo de domínio e de lesar a dignidade. Ou seja, certa agressão física a uma companheira pode não ter a carga de indignidade típica do crime de violência doméstica (precisamente porque o desvalor do resultado não é acentuado), mas ser especialmente censurável, e, por isso, integrar o art.145º nº1 alínea a) do CP.
No entanto, pode ocorrer que, sucessivas desconsiderações, pressões psicológicas (sem que integrem injúrias, coacções ou ameaças) e atitudes que não preencham, sequer, a tipicidade de algum dos delitos previstos nos arts.143º, 153, 154º ou 181 do CP, no seu conjunto constituam maus tratos degradantes e desumanos, assim aviltando a dignidade da companheira, o suficiente para subsumir o art.152º. Tudo isto para significar que a realidade do crime de violência doméstica é inteiramente distinta daquela que é tutelada pelos citados tipos legais “atomísticos”.
A questão é sensível porque alguma jurisprudência reclama para o patamar típico do crime de violência doméstica uma maior carga de indignidade no patamar da ilicitude concreta, densificando-a para além da literalidade típica (e até a contrariando, quando exige um padrão de frequência) assim direccionando a subsunção de agressões, ameaças e injúrias (que atinge a dignidade da companheira ou companheiro) para os tipos previstos nos arts.143º, 153º, 181º do CP (que deveriam, a nosso ver, ser classificadas de violência doméstica, mas que por força dessas especiais interpretações, vem a ser subsumidas para crimes de ofensas à integridade física, injúrias), desqualificando estes comportamentos. Concretamente, pretende ler-se e substanciar a violação da dignidade em contextos e situações como a subjugação ou dominação da vítima, associados a padrões de frequência.
Este tipo de densificações, alteram a tipicidade dos delitos, sendo muito questionáveis dado que, facilmente, ferem o princípio da legalidade. Com efeito, podem bem existir maus tratos físicos e psíquicos típicos do art.152º do CP, sem o ambiente de subjugação ou dominação (não obstante ser esse o dolo do agente), e como se sabe a lei dispensa expressamente o padrão de frequência. Ou seja, o agente tem o dolo de domínio, mas o crime consuma-se mesmo que não exista essa situação concreta de subjugação.
Assente que está o recorte exegético do art.152º do CP, interessa agora aferir, em face da matéria de facto provada.
Desde já devem asseverar-se que, face aos pressupostos acima desenhados é por demais evidente que a conduta ilícita desenvolvida pelo arguido nos diversos episódios e momentos ao longo do namoro, tem clara aptidão para subsumir os pressupostos do crime de violência doméstica, apurando-se que repetidamente dirige uma soma de desconsiderações e vexames à ofendida não só nos nomes que lhe dirigiu, mas sobretudo pelas humilhações e ameaças que lhe dirigia que a intranquilizaram e vexaram, a qual ficou constrangida e receosa. O arguido nas agressões que cometeu, atingiu a vítima de forma múltipla e insistente. É exuberante a forma como o arguido com dolo tratou com crueldade e desumanidade a assistente, visando subjugá-la.
O tipo objectivo do crime previsto no artigo 152.º, do Código Penal pode ser preenchido por diversas variantes de condutas: violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal, sendo certo que o novo elenco legal de violência doméstica é exemplificativo, concretizando o conceito legal de maus-tratos, mas não o esgotando.
Concordante com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas integradoras do tipo-de-ilícito não são individualmente consideradas, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre as vítimas do crime.
Sobre a alegada reciprocidade e retoma de namoro. Cabe referir que, não obstante a intenção e dolo de humilhação que se verifica de forma manifesta na conduta do arguido agressor, o género humano é naturalmente defensivo e em certa medida reativo, por isso, no âmbito das discussões incrementadas pelo arguido agressor, são manifestações, pelo menos, humanamente esperadas (embora ilícitas), as reações apuradas da assistente, quando retorquiu nomes injuriosos, sem que isso desqualifique de forma alguma a conduta delitual do arguido, como integrante da violência doméstica. A reacção da vítima, desde que desprovida do dolo agressor e da intensidade do mesmo, nunca poderá desqualificar a imputação pelo crime de violência doméstica.
A reciprocidade é revelante quando no âmbito de uma discussão e agressões, deixa de se reconhecer quem é o verdadeiro agressor, e ambos o são reciprocamente, realidade que nada tem que ver com o que se apura nos autos.
A reciprocidade das agressões como forma de desconsideração da tipicidade, só serão de atender quando no curso dos episódios se desfaz a polaridade agressor-vítima, e assim a intenção de domínio e de humilhação de um deles sobre o outro. Ora, apurou-se ser o arguido quem desenvolveu um repetido ambiente de violência verbal, dirigindo diversas injúrias, menorizações e ameaças. Com efeito, o conceito de reciprocidade, implica e exige (o que não se apurou nos autos) que o outro ex-cônjuge, no caso, namorada, igualmente seja agressivo, ou pelo menos muito reativo, e também cultor de um ambiente de violência doméstica, o que manifestamente não se apura nos autos. Não só, não existiu reciprocidade, como a exclusividade do ambiente de violência doméstica é da autoria do arguido. Embora se haja apurado que a assistente (admitido pela mesma) haja retorquido alguns nomes ao arguido, no ambiente de discussão, contudo, nos autos, não resultou qualquer elemento que permitisse sustentar a assistente como agressora. Antes pelo contrário, resulta da prova produzida que, como já se referiu, o ambiente de conflitualidade era exclusivamente provocado pelo arguido, vindo a criar vários episódios de discussão, com agressões verbais clara e inequivocamente desrespeitadores e ofensivos da ofendida. A este respeito o Tribunal “A Quo” sustentou acertadamente que “Todos estes comportamentos conjugados, demonstram uma personalidade algo obsessiva, que com facilidade utiliza a agressão verbal e ameaça com vista à manutenção da relação. As injúrias e ameaças tidas como provadas foram reiteradas e prolongaram-se no tempo, sendo suscetíveis de afetar a dignidade e bem-estar psíquico da ofendida.
De facto, pese embora também se tenha provado que a ofendida chegou a insultar o arguido e que também tinha uma personalidade ciumenta e possessiva, tal não atinge dimensão suficiente para concluir que os insultos, ameaças e perseguição eram recíprocos. Retendo a idade do arguido e ofendida, jovens, a relação de namoro, bem como os inúmeros insultos proferidos pelo arguido, o ter-se dado como provado que a ofendida também chegou a insultar o ofendido apelidando-o de estúpido e burro, não afasta a atuação do arguido que manifestamente e repetidamente atinge a ofendida na sua dignidade, e que a ameaça por várias vezes, numa atitude bastante afastada do comportamento normal e de respeito, e suscetível de causar receio, pressão e, logo, de afetar a ofendida na sua liberdade de determinação, como se logrou provar, pela sua intensidade.
De igual modo, acresce que a retoma do namoro, como sucede nos autos, assim como as atitudes de perdão e reconciliação promovidas pela vítima, ou quando “à posteriori” esta minimiza as agressões sofridas, nunca podem as mesmas concorrer a favor do arguido, como atenuante da sua conduta delitual, como, por vezes, se nota na discussão jurídica deste tema.
Com efeito, como acima se notou, a vítima de violência doméstica é aquela que, revelando grande exposição ao agressor, tem muita dificuldade para se distanciar e cessar com o relacionamento, assim prolongando a sua sujeição ao agressor que isso aproveita de forma dramática. Aliás, é pela crónica dificuldade da companheira, ou do cônjuge, que não se consegue distanciar ou cessar o relacionamento, que a tutela legal intervém. Os ciclos de perdão e sucessivas reconciliações integram o iter (típico) do crime de violência doméstica.

Como resulta dos fundamentos expostos, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão do Tribunal “A Quo”.

DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando a Douta sentença.

Custas do recurso pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UCs.
Notifique.

Sumário.
(violência doméstica, perdão e reconciliação, agressões reciprocas).
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Porto, 16 de Março 2022.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
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[1] Facto resultante do depoimento do próprio arguido, sendo certo que a frequência diária imputada não resultou provada.