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CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS - CONVENÇÃO DE HAIA
ASSINADA EM 25 DE OUTUBRO DE 1980
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Sumário
I. Não é aplicável a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, designadamente o disposto nos seus artigos 3.º, 5.º, alínea a), 8.º e 12.º, no caso em que a deslocação da criança ou jovem para país estrangeiro é promovida pelo progenitor guardião, com o qual passou a residir nesse país. II. Permanecendo a jovem em país estrangeiro há mais de 3 meses, tendo passado a ser acompanhada pelas autoridades competentes desse mesmo país e verbalizando que não pretende regressar a Portugal, perspectivando embora fazê-lo um dia com o progenitor guardião, inexiste fundamento para prolongar a competência do tribunal nacional da antiga área da residência da menor, que passa a ser incompetente para prosseguir com os autos de promoção e protecção que se encontravam pendentes. (Sumário da Relatora
Texto Integral
Processo: 1179/13.7TBGRD-F.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre Juízo Local Cível de Portalegre – Juiz 2
I. Relatório
Nos presentes autos de promoção e protecção atinentes a (…), filha de (…) e de (…), inconformada com a decisão proferida em 3 de Fevereiro de 2022 (referência n.º 31479344) que, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, 79.º e 11.º, todos da LPPCJP, declarou a incompetência internacional dos tribunais portugueses e determinou o arquivamento do processo, interpôs recurso a progenitora, tendo rematado as alegações apresentadas com as seguintes conclusões: I - Em finais de Setembro de 2021, em incumprimento de todas as determinações do Tribunal “a quo”, o progenitor transportou a menor (…) para a Holanda, por período de tempo que veio a revelar-se indefinido, à revelia de tudo e de todos, sem autorização, nem consentimento da progenitora, aqui recorrente, e/ou do Tribunal. II - No início da estadia da menor na Holanda, a mesma passou a habitar com o progenitor em local que pode considerar-se com condições precárias, destinado a albergar pessoas sem meios económicos, deixou também de frequentar a escola, deixou de conviver com outras pessoas e deixou de ser seguida por médicos com especialidade psiquiátrica. III - Mais recentemente, já após a conferência de pais que teve lugar no decurso em 17.11.2021, veio o Tribunal a quo a apurar que a menor deixou de estar acompanhada pelo progenitor, encontrando-se a residir numa Instituição, na Holanda. IV - Pese embora na última conferência de pais a menor tenha manifestado a intenção de permanecer na Instituição Holandesa, no ver da aqui recorrente a solução mais adequada passaria pela determinação do respetivo regresso a Portugal. Isto porque: - A menor não possui na Holanda, para além do progenitor – que deixou de ter a respetiva guarda e que tem revelado absoluta incompetência para o exercício das responsabilidades parentais –, qualquer outro familiar que possa acompanhá-la; - A menor encontra-se praticamente sozinha, num país que não é o seu, e cuja língua desconhece; - A menor necessita de continuar a ter acompanhamento psiquiátrico, desconhecendo-se se tal sucede na Holanda; - A menor necessita, com urgência, de regressar à escola e de retomar os estudos. - Pese embora os desentendimentos da menor com a progenitora no último par de anos, ultimamente têm sido retomados os contactos telefónicos e por mensagens escritas, e tem sido manifestada uma maior vontade da menor em regressar ao convívio com a progenitora e com o irmão … (isto pese embora a menor tenha, na última conferência de pais, afirmado vontade inversa, o que se atribui ao facto de, ao que a mesma afirmou, ter entretanto iniciado um namoro). - Para além da progenitora, a menor tem toda a sua restante família a residir em Portugal: irmão, avó materna, avó paterna e tia paterna, sendo esse núcleo familiar que poderá dar à menor as referências de que necessita para o seu desenvolvimento e para a preparar para a vida adulta. V - Atendendo a tudo o que resultou das conferências de pais, quer do dia 17.11.2021, quer do dia 02.02.2022, entende a ora recorrente que o Tribunal a quo deveria ter decidido pelo regresso da menor a Portugal, ainda que, numa fase inicial, com ingresso da menor numa Instituição que possa acolhê-la em regime de internamento, assim retomando as rotinas escolares e o acompanhamento médico-psiquiátrico. VI - Mais deveria o douto Tribunal a quo ter decidido, uma vez estando a menor em Portugal e com o auxílio de técnicos especializados, paulatinamente, que fossem retomados os contactos e as visitas com a restante Família da menor, no sentido de, futuramente, e quando se mostrem reunidas as condições para tal, poder ser a menor reintegrada, em definitivo, no ambiente familiar a que pertence – seja do lado materno, seja do lado paterno (mas neste caso, admitindo apenas a entrega da menor à tia ou à avó paterna, com exclusão do progenitor, cujos comportamentos tão nocivos para os filhos se têm revelado nos últimos anos). VII - Refere a douta sentença recorrida, para fundamentar a decisão que veio a proferir, que: (…) De notar que, nos presentes autos, por acordo de promoção e protecção datado de 10-07-2018, e devidamente homologado judicialmente, foi aplicada à jovem a medida de promoção e protecção de apoio junto do pai, com quem aquela já se encontrava a residir habitualmente, o significa que a guarda da jovem pertence ao referido progenitor. (…) VIII - O douto Tribunal a quo omitiu, em prejuízo dos superiores interesses da menor, o facto de, posteriormente àquele acordo de promoção e proteção, datado de 10.07.2018, a menor ter sido entregue aos cuidados da avó e tia paternas, que a tiveram a seu cargo durante largos meses, durante o ano de 2021. IX - Com base, quer o Relatório elaborado pela Associação “(…)”, datado de 30.04.2021, quer no Relatório elaborado pela Segurança Social de Tomar, datado de 10.03.2021, o Tribunal a quo, veio a entregar a menor (…) aos cuidados da tia e avó paternas, situação que se manteve inalterada até finais de Setembro de 2021 – vide ata da conferência de pais do dia 17.05.2021. X - Não poderá considerar-se que o dito acordo datado de 10.07.2018 vigorasse, em termos práticos, no momento em que, por sua auto recriação e com fundamentos altamente duvidosos, o progenitor transportou a menor para a Holanda, em finais de Setembro do ano transacto, para aí permanecer por período de tempo indefinido. XI - Também não aceita a recorrente o fundamento de que “a jovem se encontra a residir numa casa de acolhimento na Holanda, há mais de 3 meses, vindo a ser acompanhada pelas autoridades nacionais de protecção de menores daquele país, após ter sido retirada ao seu progenitor, atentas as fracas condições em que se encontravam ambos ali a residir desde que saíram de Portugal.” XII - Na verdade, se, até agora, passaram os ditos 3 meses, tal sucedeu porque o Tribunal a quo não atuou atempadamente, devendo o Tribunal ter determinado o regresso da menor ao nosso país logo que soube, em Outubro de 2021, pelo próprio progenitor, da deslocação para a Holanda e com regresso que o mesmo definiu, na altura, como sendo “para as férias do Natal” – vide requerimento do progenitor datado de 20.10.2021. XIII - Bem como poderia e deveria ter sido adotada tal decisão, quando o Tribunal a quo percebeu, pelo menos, em sede de conferência de pais do dia 17.11.2021, das condições em que a menor se encontrava a residir com o progenitor, e já anteriormente descritas. XIV - Ao invés de ter definido, logo naquele momento, data para o regresso da menor a Portugal, o douto Tribunal a quo permitiu que o progenitor lograsse o seu intento, permanecendo com a menor na Holanda, que sucede até hoje, com a diferença da mesma se encontrar agora institucionalizada – o que significa, aliás, que o progenitor deixou de ter a guarda da menor a partir do momento dessa institucionalização. XV - Pelo que a decisão de arquivamento dos autos quanto à menor … (bem como a consequente revogação do douto despacho de 20/01/2022, com a referência n.º 31442990 – o qual, ademais, foi objecto de recurso que corre termos nesse Venerando Tribunal da relação de Évora – e do douto despacho de 03/02/2022, com a referência n.º 31479344), deverá ser substituída por outra que: a) Declare que o progenitor não é detentor da guarda da menor desde o momento da institucionalização da mesma na Holanda; b) Determine o imediato regresso da menor a Portugal; c) Mantenha o presente processo de promoção e proteção em relação quer à menor (…), quer ao menor (…), bem como os despachos anteriormente proferidos, maxime porquanto está colocada em causa, para além do mais, e no que concerne à menor (…), a respetiva segurança, saúde e continuação da frequência e actividade escolar.
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Contra-alegaram o progenitor da menor e o MP, sustentando ambos a manutenção do decidido.
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Sendo os poderes de cognição deste Tribunal de Recurso delimitados pelos termos da decisão proferida e âmbito do recurso, definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente, a única questão que cumpre aqui apreciar é saber se os tribunais portugueses são incompetentes em razão da nacionalidade para o prosseguimento dos presentes autos de promoção e protecção de jovem em perigo.
* II. Fundamentação
À decisão interessam os seguintes factos, os quais resultam dos autos:
1. (…) nasceu em 24 de Fevereiro de 2007 e é filha de (…) e (…).
2. Por decisão homologatória de acordo de promoção e protecção proferida em 17 de Maio de 2020, transitada, foi aplicada a favor da jovem (…) a medida de promoção e protecção de apoio junto do pai, ao abrigo do disposto nos artigos 35.º, n.º 1, alínea a) e 39.º da Lei de Promoção e Protecção das Crianças e Jovens em Perigo, mediante as seguintes condições:
- A (…) ficará à guarda e cuidados do pai;
- O pai compromete-se a assegurar os cuidados básicos de que a jovem necessita, providenciando pela sua alimentação, vestuário e acompanhando o seu percurso escolar;
- O pai diligenciará de forma a garantir que a menor recebe os cuidados de saúde adequados à sua idade, deslocando-se com ela ao médico com a periodicidade necessária, cumprindo a terapêutica prescrita e respeitando as indicações médicas, promovendo o seu acompanhamento psicológico;
- Os menores [a … e o irmão …] passarão uma semana de férias com o progenitor não residente na companhia do irmão/da irmã, sendo o menor (…) a deslocar-se para casa da avó paterna na última semana de Julho e a menor (…) a deslocar-se para casa da progenitora na primeira semana de Agosto, em moldes a combinar entre ambos;
3. Por referência a Janeiro de 2021 o progenitor da (…), por motivos de saúde, deslocou-se aos Países Baixos, país onde já residira, deixando a menor aos cuidados da tia paterna (…), sendo esta coadjuvada pela avó.
4. Por requerimento junto aos autos pela progenitora a 13.08.2021, esta requereu, entre o mais, que «quanto à questão da guarda dos menores – que é paralela à questão das visitas – a manutenção das medidas de acompanhamento que se mostram já em vigor (isto é, as determinadas em Maio de 2020).
5. Devido ao comportamento da jovem (…) e à sua condição de saúde, a tia e avó paternas declararam a sua indisponibilidade para a manterem ao seu cuidado, do que deram conhecimento ao progenitor.
6. Por requerimento junto aos autos pelo progenitor em 16.08.2021, solicitou este informação sobre a possibilidade de a jovem … poder viajar dentro do espaço Schengen, nomeadamente até aos Países Baixos onde se encontrava temporariamente, sem ter que pedir / obter autorização do Tribunal e, na hipótese de se entender que seria necessária essa autorização, que o Tribunal o autorizasse a fazê-lo.
7. O Tribunal, na sequência de promoção do Ministério Público, determinou, conforme despacho proferido a 20.08.2021, que a (…) podia viajar até aos Países Baixos e não necessitava de autorização do Tribunal, pois a referida viagem da jovem até àquele país encontrava-se enquadrada num acto da vida corrente, sendo o progenitor quem detinha a guarda da mesma.
8. Posteriormente, e conforme declarações prestadas pelo progenitor na diligência realizada a 17.11.2021, foi dado conhecimento ao Tribunal que a menor se encontrava a residir com o progenitor nos Países Baixos, não pretendendo este que a menor retornasse então a Portugal.
9. Devido às precárias condições habitacionais do progenitor e da (…) nos Países Baixos e mediante intervenção das autoridades daquele país, a menor foi colocada numa casa de acolhimento, onde dispõe de acompanhamento médico, encontrando-se a aguardar colocação escolar, tendo por referência a data da sua audição (3 de Fevereiro).
10. A (…) verbaliza pretender continuar a residir nos Países Baixos e acompanhar o progenitor no seu regresso a Portugal quando este reunir condições para tal, recusando-se, como sempre fez na pendência do processo, a residir com a progenitora.
* De Direito Da (in)competência do Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da comarca de Portalegre
A progenitora, como resulta das transcritas conclusões, insurge-se contra a decisão proferida por alegadamente dar cobertura à, em seu entender ilícita, deslocação da filha para os Países Baixos, donde não poder considerar-se que esta ali tem a sua residência para efeitos de apuramento da competência internacional do tribunal onde se encontrava pendente o processo de promoção e protecção.
Afigura-se, contudo, o que se antecipa, que não tem razão.
Conforme com clareza aponta a D. Magistrada do MP nas doutas alegações produzidas, o progenitor, a cuja guarda a (…) havia sido confiada em Maio de 2020, podia, sem necessidade de prévia autorização do Tribunal, fixar a residência da filha num outro país, no qual permanecera como emigrante e ao qual entendeu regressar. Tal entendimento das coisas afasta a ilicitude da deslocação da menor, não sendo por isso invocável a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, designadamente o disposto nos seus artigos 3.º, 5.º, alínea a), 8.º e 12.º. Vejamos:
Nos termos do artigo 3.º da Convenção «[a]deslocação ouaretenção deumacriança éconsideradailícita quando:a)Tenhasidoefectivada em violação de um direito de custódia atribuídoaumapessoaouaumainstituiçãoouaqualqueroutroorganismo,individualouconjuntamente,pelaleidoEstadoondea criançatenhaasuaresidênciahabitualimediatamenteantesdasuatransferênciaoudasuaretenção;e b)Estedireitoestiveraserexercidodemaneiraefectiva,individualmenteouemconjunto,nomomentodatransferênciaoudaretenção,ouodevesseestarsetaisacontecimentosnãotivessemocorrido. Odireitodecustódiareferidonaalíneaa)podedesignadamenteresultarquerdeumaatribuiçãodeplenodireito,querdeumadecisãojudicialouadministrativa,querdeumacordovigentesegundoodireitodesteEstado».
Nos termos do disposto no artigo 5.º, alíneas a) e b), da Convenção
“a) O «direito de custódia» inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência; b)O«direitodevisita»compreendeodireitodelevarumacriança,porumperíodolimitadodetempo,paraumlugardiferentedaqueleondeelahabitualmentereside».
Dispondo para os casos de retirada ilícita, dispõe-se no artigo 8.º, primeira parte, do mesmo diploma que «[q]ualquerpessoa,instituiçãoouorganismoquejulguequeumacriançatenhasidodeslocadaouretirada em violação de um direito de custódia podeparticiparofactoàautoridadecentraldaresidênciahabitualdacriançaouàautoridadecentraldequalqueroutroEstadoContratante,paraquelhesejaprestadaassistênciaporformaaasseguraroregressodacriança», sendo que, nos termos do artigo 12.º, primeira parte, «[q]uando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.º etiverdecorridoumperíododemenosde1anoentreadatadadeslocaçãooudaretençãoindevidaseadatadoiníciodoprocessoperantea autoridadejudicialouadministrativadoEstadocontratanteondeacriançaseencontrar,aautoridaderespectivadeveráordenaroregressoimediatodacriança».
Resulta, porém, dos factos assentes que em Maio de 2020, por acordo de promoção e protecção devidamente homologado por sentença transitada, foi aplicada à jovem a medida de apoio junto do progenitor, ficando a (…) à sua guarda e cuidados (ficando o irmão … à guarda e aos cuidados da progenitora, ao abrigo de medida de promoção e protecção de apoio junto desta) e sendo estabelecido um regime de visitas à progenitora, aqui Recorrente.
De acordo com a Convenção de Haia, o direito de custódia inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência. Neste sentido, e de acordo com o disposto no artigo 3.º, para que uma deslocação seja considera ilícita necessário é, desde logo, que seja realizada em violação de um direito de custódia, pressuposto de aplicação dos acima transcritos artigos 8.º e 12.º da Convenção.
No caso em apreço, sendo o progenitor da (…) o seu guardião, a deslocação da jovem para os Países Baixos, onde aquele passou a residir, não assume, em nosso entender, carácter ilícito.
Antes de mais, a circunstância de, durante alguns meses, e a pedido do próprio progenitor, a jovem se ter mantido aos cuidados da tia paterna, a qual era coadjuvada pela avó da (…), não retirou ao Pai o estatuto de guardião, pois que a sentença antes proferida nenhuma alteração sofreu. Daí que aqueles familiares, tendo-se declarado entretanto indisponíveis para manterem a jovem aos seus cuidados na sequência dos comportamentos por esta assumidos, fizeram entrega da mesma ao Pai (recorde-se que então, tal como agora, a … recusava-se de forma determinada a residir com a Mãe).
Assim sendo, considerando que, conforme decidido pelo TRC no acórdão de 23-04-2013 (Proc. 1211/08.6TBAND-A.C1, in dgsi.pt), “o exercício das responsabilidades parentais pelo progenitor guardião comporta a faculdade deste decidir autonomamente, e sem necessidade de consenso condicionante com o outro progenitor (não guardião), a deslocação do menor para o estrangeiro, no quadro de uma decisão de emigrar”, jurisprudência que aqui acompanhamos, a ida da (…) para os Países Baixos não se assume como ilícita à luz da Convenção (nem do artigo 11.º do Regulamento(CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro).
Assim afastado este fundamento recursivo, importa agora determinar qual o Tribunal competente.
Resulta claro do artigo 2.º da Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo que o mesmo se aplica às crianças e jovens em perigo que residam ou se encontrem em território nacional (cfr. artigo 2.º), dispondo o artigo 79.º, n.º 4, que «se, após a aplicação de medida não cautelar, a criança ou o jovem mudar de residência por período superior a três meses, o processo é remetido à comissão de proteção ou ao tribunal da área da nova residência”.
No caso dos autos, encontrando-se a (…) a viver em país estrangeiro há mais de 3 meses, importa atentar nos instrumentos que vinculam internacionalmente o estado português, designadamente os antes citados Convenção de Haia e Regulamento(CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, uma vez que têm primazia sobre os critérios de conexão consagrados no artigo 62.º do Código de Processo Civil (cfr. artigo 59.º deste diploma).
Sob a epígrafe “Competência”, dispõe-se no artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, da Convenção que
“As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança” e
“Com ressalva do artigo 7.º, em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência”.
Acolhendo idêntico critério, o Regulamento(CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental – mas que, nos termos do seu Considerando v, abrange as medidas de protecção da criança, independentemente da eventual conexão com um processo matrimonial – sendo assim aplicável ao caso (cfr. artigo 1.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea d)), dispõe no seu artigo 8.º, n.º 1, que “ Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal”.
Não definindo embora a lei o que deve considerar-se residência habitual, atendendo a que as regras da competência, conforme se explicita no Considerando XII, “foram definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade”, vem sendo entendido que o conceito legal faz apelo a uma ideia de integração familiar e social da criança ou jovem, em conformidade com a jurisprudência do TJUE (assim, acórdãos do TRP de 27/1/2022, processo 392/21.8T8GDM-A.P1, e do TRG de 12/7/2016, processo 1691/15.3T8CHV-A.G1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Como se esclarece no acórdão do TRG de 21 de Maio de 2015, não se trata de um conceito de residência habitual com base na legislação nacional, mas de uma noção “autónoma” da legislação comunitária, tendo o legislador comunitário, norteado pelos apontados critérios do superior interesse da criança e da proximidade, deferido a competência nestas matérias ao tribunal do Estado-Membro no qual a criança ou o jovem se encontra integrado e mantém uma ligação, e que se encontrará, via de regra, em condições de mais rapidamente percepcionar a situação e tomar as medidas necessárias ao afastamento do perigo, no melhor interesse da criança ou jovem.
Volvendo novamente ao caso dos autos, resulta da factualidade acima elencada que a (…) se encontra a residir nos Países Baixos desde Setembro de 2021, estando a ser acompanhada pelas autoridades nacionais de protecção de menores daquele país – o seu novo país de residência – que diligenciaram pela sua colocação numa casa abrigo, providenciando-lhe o acompanhamento médico de que carece. É ainda o país onde reside o seu progenitor e é nele que pretende permanecer, continuando a recusar viver com a progenitora a qual, aliás, reconhece a ausência de condições para tal, tal como reconhece a falta de alternativas para eventuais medidas de apoio junto de outros familiares, defendendo a institucionalização da filha, mas antes em Portugal – o que esta recusa.
Resultando do exposto que a jovem reside nos Países Baixos desde há mais de três meses, é este o país onde se encontra integrada, pese embora as dificuldades que enfrentou e enfrenta. Sendo as autoridades daquele país as melhores colocadas para tomar as medidas que se mostrem necessárias em ordem à sua protecção, tal justifica a retirada da competência aos tribunais portugueses.
Inexistindo, pelo que vem de se dizer, fundamento para a extensão de competência do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, verifica-se a excepção da incompetência absoluta deste Tribunal para prosseguir com os presentes autos de protecção quanto à menor (…), o que implica o arquivamento dos autos[1]. Tal como foi decidido e aqui se confirma.
* III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
* Sumário: (…)
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Évora, 07 de Abril de 2022
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
Vítor Sequinho dos Santos
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[1] Sem prejuízo embora da eventual aplicação do artigo 12.º do Regulamento no que concerne às responsabilidades parentais, processo de diferente natureza.