EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
REPÚDIO DA HERANÇA
Sumário

I.- O princípio da estabilidade da instância a que alude o artigo 260.º do CPC estabelece que, citado o réu (ou o executado), a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, mas podendo sofrer as modificações previstas no artigo 262.º do mesmo diploma.
II.- Não obstante terem sido habilitados no lugar do de cujus para, no seu lugar, prosseguirem a execução na qualidade de executados, o posterior repúdio da herança tem como efeito a sua ilegitimidade para os termos da execução, uma vez que o repúdio retroage ao momento da abertura da sucessão (artigo 2062.º do Código Civil).
III.- Junto aos autos documento onde se demonstre o ato de repúdio, a instância executiva deve declarar-se extinta por inutilidade superveniente da lide quanto aos repudiantes (artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil).
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Proc.º 109/14.3T8SLV-B.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrentes: (…) e (…).

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No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Execução de Silves, no âmbito do processo de execução proposto por Banco (…), S.A., contra (…), Unipessoal, Lda. e (…), onde correu termos apenso de habilitação de herdeiros por óbito do executado (…), foram habilitados no seu lugar (…) e (…).
Após trânsito da sentença que julgou os herdeiros habilitados, vieram estes juntar escritura notarial onde ambos repudiaram a herança e requereram, com esse fundamento, a extinção da instância executiva por inutilidade superveniente da lide, tendo tal requerimento merecido a seguinte decisão:
Mais uma vez se esclarece a Requerente que a sentença de habilitação de herdeiros proferida nestes autos está devidamente transitada em julgado e, de resto, não é questionável por via de uma decisão do Ministério Público que se limita a autorizar a que, no futuro, se faça um repúdio de herança. Não é a autorização que releva; é o repúdio em si.
Mais: a sentença aqui proferida foi feita nos devidos termos legais. Ou a Requerente olvida que consta dos autos uma certidão de uma escritura pública de habilitação de herdeiros, datada de 29 de Junho de 2015, habilitando os ora Executados como os devidos herdeiros do Executado falecido?
E olvida também que nessa escritura interveio, nada mais, nada menos, do que o Ilustre Advogado, Dr. (…), que agora vem a este processo apresentar requerimentos a impugnar o teor do acto que o próprio patrocinou há mais de 5 anos atrás?
Para além de que o repúdio, em si, é posterior à sentença judicial, transitada em julgado já nessa data, que julgou habilitados os ora Executados?
Assim sendo, e por manifesta falta de fundamento legal e factual, indefere-se a pretensão dos Executados de “extinção da execução, sem mais”.
Custas do incidente pelos Executados, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC – artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e 7.º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais, conjugado com a tabela II anexa.
Notifique-se.
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Não se conformando com o decidido, (…) e (…) recorreram da decisão, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639º e 663.º/2, do Código de Processo Civil:
1- O primitivo executado (…) faleceu a 01/03/2015.
2- Deixando como únicos herdeiros os ora recorrentes.
3- Os recorrentes foram habilitados por sentença proferida a 09/11/2017 a ocupar na lide a posição processual do seu falecido pai e primitivo executado.
4- Sendo na altura menores os recorrentes aguardaram a competente autorização do Ministério público para proceder ao repúdio à herança e
5- Logo que a obtiveram, os recorrentes repudiaram a Herança, aberta por óbito (…), primitivo Executado, por escritura pública de 16/04/2018.
6- Nos termos do artigo 2062.º do Código Civil, “os efeitos do repúdio da herança retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia, salvo para efeitos de representação”.
7- E tendo os recorrentes procedido validamente ao repúdio da herança os seus efeitos retrotraem-se a 01/03/2015, data da abertura da sucessão, considerando-se os mesmos não chamados à herança.
8- O facto de ter tido lugar habilitação de herdeiros com sentença que julgou procedente a habilitação, nada impede que, posteriormente venham os ditos herdeiros repudiar a herança.
9- Ainda que os recorrentes tivessem aceite a herança, e nos termos do artigo 2071.º CC, a responsabilidade pelos encargos da herança – onde se incluem as dividas do falecido – não pode exceder o valor dos bens herdados.
10- Mas os recorrentes não aceitaram qualquer bem da herança, nem expressa nem tacitamente. Antes a repudiaram validamente.
11- E tendo repudiado a herança, já não a podem receber pois que o repúdio é irrevogável nos termos do artigo 2066.º do Código Civil.
12- Pelo que se verifica, quanto aos requerentes, uma inutilidade superveniente da lide.
13- Devendo a instância ser extinta somente quanto a estes.
Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que os Venerandos Desembargadores dessa Relação suprirão, deve o presente Recurso obter provimento e, em consequência, deve o despacho em crise ser revogado e substituído por outro que, considerando a inutilidade superveniente da lide em relação aos recorrentes, declare a extinção da instância somente quanto aos mesmos.
Desse modo, farão V/ Ex.ªs a costumada e lídima justiça que Vos rotula.

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Foram dispensados os vistos.

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A questão que importa decidir é a de saber se, o repúdio da herança, tem como efeito a inutilidade superveniente da lide em que os repudiantes haviam sido habilitados no lugar do de cujus.
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A matéria de facto a considerar é a que conta do relatório inicial e a seguinte:
1.- Os recorrentes juntaram documento do seguinte teor, ao requerimento onde solicitaram a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide
REPÚDIO DE HERANÇA
No dia dezasseis de Abril de dois mil e dezoito, no Cartório Notarial em Portimão, sito na Av. (…), Edifício "(…)", bloco A, rés-do-chão D, perante mim, (…), respectiva Notária, compareceu como outorgante:
(…), solteira, maior, natural da freguesia de (…), concelho de Ferreira do Alentejo, residente na Rua de (…), lote (…), sexto esquerdo, nesta cidade, titular do cartão de cidadão número (…), válido até 17/01/2028 emitido pela República Portuguesa, que intervém na qualidade de representante legal dos seus filhos menores, ambos naturais da freguesia e concelho de Portimão e consigo residentes:
a) …, contribuinte fiscal número (…); e
b) …, contribuinte fiscal número (…), devidamente autorizada para este acto por decisão proferida no processo de autorização número (…), que correu termos no Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca de Faro – Procuradoria do Juízo de Família e Menores de Portimão, conforme certidão que arquivo.
Verifiquei a identidade da outorgante pelo referido documento de identificação.
Pela outorgante, na qualidade em que intervém, foi dito:
Que, em nome dos seus representados, pela presente escritura, repudia à herança a que aqueles têm direito por óbito de seu pai, (…), falecido no dia um de março de dois mil e quinze, no estado de divorciado, na freguesia de (…), concelho de Castro Verde.”
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Conhecendo.
Alegam os recorrentes que, não obstante terem sido habilitados com decisão transitada em julgado para, no lugar de seu falecido pai, (…), prosseguirem os termos da execução proposta por Banco (…), S.A., na qualidade de executados, o posterior repúdio da herança tem como efeito a inutilidade superveniente da instância executiva, pelo que a mesma deve ser declarada extinta quanto aos recorrentes.
Por seu lado, o tribunal a quo entende que, uma vez transitada em julgado a sentença que habilitou os recorrentes, não pode tal decisão ser abalada por uma decisão do Ministério Público que se limita a autorizar, no futuro, se faça o repúdio da herança.
Não é a autorização que releva, mas sim o repúdio em si.
E, para além disso, o repúdio é posterior à sentença de habilitação, pelo que, inexistindo fundamento legal e factual, indeferiu a requerida extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
Quid iuris?
Não podemos concordar com a decisão do tribunal a quo.
O princípio da estabilidade da instância, previsto no artigo 260.º do CPC, estabelece que, citado o réu (ou o executado), a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei, ou seja, devem manter-se os seus elementos objetivos e subjetivos.
Contudo, como sabemos, a instância na vertente subjetiva (e na objetiva) pode sofrer modificações, a elas aludindo o artigo 262.º do CPC que, na alínea a), prevê a substituição das partes por sucessão.
Foi o que aconteceu na habilitação de herdeiros em causa nos autos, requerida pelo exequente e transitada em julgado.
Na tese do tribunal a quo, uma vez habilitados os herdeiros que ocuparam o lugar do falecido executado, não mais poderiam deixar esta qualidade nem que venham a repudiar a herança.
Com o devido respeito pela opinião contrária, o repúdio da herança tem efeitos jurídicos equivalentes ao falecimento da parte num processo, porque o artigo 2062.º do CC, relativo aos efeitos do repúdio da herança, estipula que retroagem ao momento da abertura da sucessão os efeitos do repúdio da herança, considerando-se não chamado o sucessível que a repudia.
Em face da escritura pública em que os recorrentes repudiaram a herança, tudo se passa como se nunca tivessem sido sucessores do de cujus, seu pai.
A solução a dar à questão estará no chamamento dos herdeiros seguintes na classe de sucessíveis, nos termos dos artigos 2032.º e 2133.º do CC, uma vez que os recorrentes não integram mais essa classe e com efeitos desde o dia do falecimento de seu pai.
O outro efeito que o ato de repúdio tem para o habilitado é a sua ilegitimidade para a causa, dado que esta situação processual lhe advinha através da qualidade de herdeiro; se perdeu esta qualidade, a legitimidade para a causa não integra mais a sua esfera jurídica.
Com efeito, a legitimidade afere-se pelo interesse direto em demandar e em contradizer, identificando-se tal interesse, pela utilidade derivada da procedência da ação (autor/exequente), e pelo prejuízo que dessa procedência advenha (réu/executado), prevendo a lei um critério formal na determinação da legitimidade: apura-se pela relação controvertida nos termos em que o autor a configura na petição (artigo 30.º do Código de Processo Civil).
Ora, se a legitimidade dos recorrentes para a ação executiva, na qualidade de executados, lhes advinha da sua condição de herdeiros e se deixaram de ter essa qualidade como efeito do repúdio da herança, com o prosseguimento da execução contra os recorrentes nunca poderia o exequente obter o pagamento dos seus créditos à custa do seu património.
Como se sabe, pelas dívidas da herança responde apenas a quota de cada herdeiro em proporção (artigo 2098.º do CC) e nenhum bem da herança integrou ou integrará o património dos recorrentes.
O mesmo é dizer que o prosseguimento da execução se tornou inútil; inútil supervenientemente porque no decurso da ação.
Contudo, caso verifique existirem bens na herança suficientes para a satisfação do seu crédito, sempre poderá o exequente sub-rogar-se no lugar dos repudiantes aceitando a herança em seu nome, como o permite o artigo 2067.º do Código Civil.
Mas não podem mais os recorrentes aceitar a herança após a haverem repudiado (artigo 2066.º do Código Civil).
Realçando a imperatividade deste instituto Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, 4ª Ed., 1989, pág. 430, ensina que “Quanto ao repúdio, a retroatividade significa apenas que o sucessível é riscado do mapa, e tudo se passa juridicamente como se nunca lá tivesse estado. (…) Dada esta retroatividade, a herança está sempre em condições de, juridicamente, se considerar adquirida desde a abertura da sucessão, pelo sucessível subsequente.”
É o caso dos autos.
Assim sendo, a conclusão a retirar é a de que a decisão recorrida deve ser revogada, sendo substituída por outra que declare a extinção da instância quanto aos recorrentes, por inutilidade superveniente da lide (artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil).
Com o que procede a apelação.
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Sumário:

(…)


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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação procedente e revoga a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que declare a extinção da instância executiva por inutilidade superveniente da lide, quanto aos recorrentes.

Custas a final pela parte vencida – artigos 527.º e 536.º do CPC.
Notifique.

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Évora, 07-04-2022

José Manuel Barata (relator)

Rui Machado e Moura

Emília Ramos Costa