I. As medidas de coação, designadamente, a de prisão preventiva, estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, não podendo ser revogadas ou substituídas por outras, sem que tenha havido alteração dos pressupostos de facto ou de direito que determinaram a sua aplicação. Isto é, enquanto tudo se mantenha igual também a decisão tendencialmente deverá permanecer imutável.
II. O princípio da adequação pressupõe, justamente, que a medida de coação se adeque às exigências cautelares de natureza processual que existam no caso concreto e ao longo da tramitação processual.
III. Nessa medida, mostra-se inconsequente a prestação complementar de declarações, se na mesma se apresenta uma versão inverosímil dos factos indiciados, não se podendo daí inferir uma qualquer postura de efetiva e séria colaboração com a justiça, tendente à descoberta da verdade material.
2.2. Decisão recorrida
Passamos a transcrever o despacho recorrido:
«Fls. 255 e segs.
O arguido CATE...… veio requerer a substituição da medida de coacção de prisão preventiva a que se encontra actualmente sujeito pela medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com sujeição a vigilância electrónica, para a qual adianta dar o seu consentimento.
Sustenta a sua posição com as circunstâncias de já ter vindo dar nos autos a sua versão dos factos (em sede de primeiro interrogatório remeteu-se ao silêncio), pretendendo, agora, colaborar com a justiça, o que apenas não fez anteriormente por impedimento da sua ilustre advogada, ainda, que assume os factos que relatou em sede de interrogatório complementar e que se encontra muito arrependido, por fim, que tem boa inserção familiar e laboral, sendo que a medida que preconiza se mostra suficiente em face das necessidades cautelares do caso concreto.
Pronunciando-se sobre o requerimento do arguido, veio o Ministério Público pugnar pelo seu indeferimento, sustentando a sua posição com os argumentos referidos no despacho de fls. 263-264, e cujo teor aqui se dá, brevitatis causa, por integralmente reproduzido. Em suma entende que nada de novo, com excepção da versão factual do arguido, foi carreado para os autos, sendo que esta se mostra “completamente risível, merecedora de total descrédito e reveladora de que ainda não atingiu nem se debruçou sobre a gravidade dos factos”, considerando por fim que se mantém ainda actual o perigo de continuação da actividade criminosa, em função da personalidade do arguido, pugnando pela manutenção da situação coativa do mesmo.
Cumpre decidir.
O arguido Cate…, na sequência de interrogatório judicial realizado em 30 de Setembro de 2021, foi sujeito à medida de coacção de obrigação de prisão preventiva.
No despacho inicial foi referido que se considerava existirem em relação ao arguido fortes indícios de factualidade descrita a fls. 189-190 (cuja descrição aqui se dá por integralmente reproduzida), que o constitui na prática de:
- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 22.º, 23.º, n.ºs 1 e 2, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), parte final, todos do Código Penal,
- Um crime de detenção de arma proibida, em concurso aparente, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal e 86.º, n.º 1, als. d) e e) da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
Foi também considerado indiciado que corre termos um inquérito crime, com o n.º (…) no DIAP – 1ª Secção do Seixal da Procuradoria da Comarca de Lisboa, onde se investigam factos relacionados com uma situação em que o ora arguido terá apontado uma caçadeira ao ofendido naquele processo exigindo-lhe a devolução imediata de um automóvel, alegando que tinha sido enganado num negócio que ambos terão efectuado.
Foi entendido, em face desta factualidade, existir perigo de continuação da actividade criminosa, em função, em síntese, da personalidade violenta do arguido, aceitando-se que o mesmo em liberdade pudesse praticar actos de idêntica natureza, nomeadamente, concretizar o que não conseguiu, ou seja, matar a vitima, ou mesmo voltar a utilizar a mesma violência contra terceiras pessoas.
Foi entendido existir perigo de perturbação do inquérito, porquanto, em síntese, se entendeu que o arguido se poderia aproveitar do conhecimento que tem de todas as testemunhas presenciais para condicionar testemunhas fulcrais do processo.
Foi entendido existir perigo de fuga em face da elevada moldura penal aplicável ao caso. Concluiu-se assim que a prisão preventiva era a única medida de coacção, além do TIR, que satisfazia as exigências de prevenção do caso em concreto. Vejamos agora se a situação é de manter.
Antes do mais – há que o frisar – tem sido entendimento de há longa data pacífico que a decisão que impõe a prisão preventiva, apesar de não ser definitiva, é intocável e imodificável enquanto não se verificar uma alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que a fundamentaram.
A este propósito, e a título meramente exemplificativo, vide os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30/3/2005 e 21/9/2005, números convencionais JTRP00038328 e JTRP00037857, bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/11/2007, proc. 2720/07-1, e ainda o do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/10/2008, proc. 117/08.3SHLSB-A.L2-5, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Como foi salientado pelo Tribunal da Relação de Lisboa no aresto, supra referido “O art. 212º CPP regula os casos de revogação ou de substituição da medida de coacção por outra menos gravosa e o art. 203º do mesmo diploma prevê a imposição de medida mais gravosa que a anterior. Mas em ambos os casos a lei pressupõe sempre que algo mudou entre a primeira e a segunda decisão, conforme vem sendo acentuado pela jurisprudência. Em caso algum pode o juiz, sem alteração dos dados de facto ou de direito, “repensar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogar a anterior decisão. É que, também aqui, proferida a decisão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao seu objecto - art. 666.º, nºs 1 e 3 do CPC.” (o sublinhado e o negrito são meus).
Foi igualmente dito pelo Tribunal da Relação de Évora no aresto, supra referido“(…) em relação à alteração das medidas de coacção, é comum referir-se que o art.212, do CPP traduz um afloramento do princípio de que as medidas de coacção estão sujeitas à condição "rebus sic stantibus", no sentido de que a primeira decisão é intocável e imodificável enquanto não sobrevierem motivos que legalmente justifiquem nova tomada de posição.”
E esses motivos sustentam-se, primeiramente, em factos. Tem que haver alteração da factualidade indiciada para que se possa alterar a decisão inicial que aplicou a medida de coacção. Doutra forma, temos apenas uma reapreciação do juízo conclusivo que foi feito pelo tribunal sobre esses factos noutra ocasião, e que não lhe é licito levar a cabo, sob pena de violação do caso julgado.
Citando Alberto dos Reis, se é perfeitamente compreensível que as decisões de um tribunal possam ser alteradas por outro tribunal que lhe seja hierarquicamente superior, é absolutamente intolerável que o mesmo tribunal dê o dito por não dito.
Ora desde logo, compulsado o requerimento do arguido, e excluindo a versão factual que veio agora apresentar, verifica-se que, conforme refere o Ministério Público, nada de novo foi produzido nos autos.
Com efeito, pressuposto da aplicação – ou manutenção - de qualquer medida de coacção, é a indiciação – ou forte indiciação em certos casos – da prática de factos tipificados pela lei como crime (“fumus comissi deliti”).
Sabido é também que a aplicação de medidas de coacção que não sejam o Termo de Identidade e Residência depende da verificação da existência de:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou,
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Circunstâncias estas conhecidas por “pericula libertatis”.
Analisemos então as necessidades cautelares do caso concreto.
A versão factual que o arguido trouxe aos autos mostra-se claramente inverosímil (é totalmente desconforme às regras de experiência comum que o mesmo tenha precisamente numa situação ocasional, tido consigo uma arma que “encontrou e pretendia entregar”), e que desconhecesse o modo de funcionamento de uma arma que empunhou contra outra pessoa, ou que, como alegou, não tenha querido disparar (sendo que efectivamente disparou) uma arma que nem sequer conhecia.
Ademais, e como resulta dos autos, e anteriormente se deu por fortemente indiciado, o arguido teve, pelo menos, cerca de 10 minutos para desistir do envolvimento com o ofendido (sendo de aceitar por conforme às regras do comum acontecer que aproveitasse essa hipótese para se afastar definitivamente do mesmo, e apresentar queixa às autoridades), mas ainda assim, persistiu na vontade de o confrontar, e voltou, disparando contra ele uma arma de fogo de que, entretanto, se muniu.
Sendo a versão factual do arguido desta forma totalmente de desconsiderar, nada foi carreado para os autos que faça concluir por uma atenuação das necessidades cautelares do caso concreto.
Mantém-se assim por fortemente indiciada toda a matéria factual descrita no despacho de fls. 188-192, com base nos elementos aí também descritos, uns e outros aqui dados por integralmente reproduzidos, por não existirem nos autos outros elementos que os infirmem.
Nos presentes autos investiga-se a prática de
- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 22.º, 23.º, n.ºs 1 e 2, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), parte final, todos do Código Penal, e,
- Um crime de detenção de arma proibida, em concurso aparente, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1 do Código Penal e 86.º, n.º 1, als. d) e e) da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
O arguido não tem antecedentes criminais e (segundo as suas declarações) antes de ser detido trabalhava como vendedor de produtos da RIM....
É relativamente jovem.
Todavia não se pode olvidar que, mediante as suas acções, o arguido demonstrou ter uma personalidade fria e violenta, capaz de, por motivos totalmente fúteis, tentar tirar a vida a um seu semelhante de forma viciosa, e de seguida colocar-se em fuga, não demonstrando a mínima contrição.
Ainda, não se coibiu de, sem qualquer justificação, possuir uma arma de fogo, com potencial letal de todos conhecido, e até usá-la contra outro ser humano.
Todos estes factos revelam por parte do arguido uma personalidade violenta, fria e calculista, pese embora impulsiva. Ele determinou-se a um fim – levar a melhor sobre a vítima - e agiu segundo essa determinação.
Não quis saber das consequências de usar um meio claramente perigoso, a arma de fogo de que se muniu, e após ter disparado contra a vítima (que nesse momento se encontrava em fuga), não lhe prestou o mínimo auxílio, colocou-se em fuga e apenas foi detido quatro dias depois, fora de flagrante delito, não sendo mais uma vez verosímil a explicação que agora veio adiantar, de que só não se entregou porque não tinha a possibilidade de assistência por parte da sua ilustre advogada.
Todas estas considerações levam-nos a concluir pela existência efectiva dos perigos enunciados em sede do despacho de fls. 188-192, sendo até de reforçar, nesta fase, o perigo de fuga.
Vejamos.
Existe perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa. De facto, como ficou supra explanado, o arguido é pessoa impulsiva, ainda assim, determinada e calculista, e já demonstrou que tendo-se determinado a algo, por ilegal que seja, não se deixa condicionar facilmente.
Acontece que actualmente e muito provavelmente, as suas relações sociais (designadamente com o ofendido, sua família e seus amigos) serão marcadas por uma muito acentuada tensão, entendendo-se como concretamente existente o perigo de continuação da actividade criminosa materializada em, pelo menos, actuação violenta sobre terceiros.
E decorrente deste perigo, existe o evidente perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Sem necessidade de recorrer ao alarme social, sempre se dirá que é evidente que a comissão de factos violentos por parte do arguido relativamente a outras pessoas – que como se referiu, não se descarta, em razão dos traços de personalidade já evidenciados – é indubitavelmente susceptível de consubstanciar perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
Mais clara é a existência do perigo de perturbação do decurso do inquérito e da instrução do processo, nomeadamente, o perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova. Com efeito, e como se referiu no inicial despacho, crê-se como muito provável que o arguido tente usar do conhecimento que tem relativamente a intervenientes processuais fulcrais no sentido de estes, quando inquiridos no âmbito do processo, não relatarem factos que, correspondendo à verdade, possam fazer piorar a sua situação jurídica.
Também se verifica com grande acuidade o perigo de fuga.
Como se sabe, este perigo não pode decorrer apenas na medida abstracta da pena, mas esta – e em especial as possibilidades de no caso concreto, face aos elementos presentes nos autos, vir a ser aplicada – não é de todo indiferente à existência deste perigo.
Com efeito, a este raciocínio terá que ser atribuído mais peso nos casos em que os elementos probatórios existentes nos autos são ainda algo incipientes (mal grado o juízo de forte indiciação que se pode fazer), e em que o arguido pode de alguma forma almejar uma absolvição, ao invés daqueles em que, face ao peso dos elementos probatórios nos autos, a condenação em pena de prisão efectiva se deva ter como certa com um grande grau de probabilidade (o que acontece no caso vertente).
Na realidade, e como doutamente se refere no acórdão da relação do Porto de 11-05-2011, proferido no processo número 867/09.7PRPRT-A.Pl, de que foi relator o Exmo. Desembargador Ricardo Silva, que "fugir não significa escapar de forma estável ou mesmo permanente. Há fugas e fugas! Mas a lei não distingue entre fugas longas e bem sucedidas e fugas breves e patéticas. Toda a fuga é um entrave à realização da justiça que importa evitar. Por outro lado, os pobres também alcançam o estrangeiro - às vezes bem longínquo - e nele se estabelecem, como demonstram as imemoriais e cíclicas correntes migratórias."
Aceita-se que o perigo de fuga deve ser avaliado em concreto, todavia, "tal não significa que o perigo tenha que se adensar até à iminência ou ao início de execução da fuga. Ou seja, não é necessário que haja indícios materiais de que a fuga está num horizonte factual próximo, para que se possa afirmar que há perigo de fuga. Um juízo sobre a existência de perigo de fuga, tem de basear-se na pessoa concreta que está em causa, com a sua personalidade e as circunstâncias conhecidas da sua vida e' daí partir, cotejando essa imagem com a experiência comum para se averiguar da probabilidade de se verificar uma fuga.
A experiência diz-nos que aqueles que estão dispostos a sofrer uma pena em nome dos princípios serão muito raros e que, existindo, se encontrarão esmagadoramente entre aqueles que não cometem crimes. Assim. a realidade é que a aproximação da ameaça de condenação ¬sobretudo de condenação em possível pena de prisão efectiva -. exerce uma pressão psicológica sobre o arguido que o incentiva a furtar-se à pena e entrevendo ele uma possibilidade de fuga, é normal que fuja. "(cfr. mesmo douto aresto).
Assim, a gravidade da pena não deve operar como único critério, de aplicação puramente mecânica, a ter em conta para ponderar o perigo de fuga, mas deve relacionar-se com outros dados referentes tanto às características pessoais do acusado, como as circunstâncias particulares que concorram no caso, nomeadamente o estado de saúde e antecedentes criminais, não comparência, fuga tentada ou consumada em momento anterior.
No caso, o arguido não tem antecedentes criminais e é cidadão nacional, com morada conhecida. Todavia, o seu núcleo social encontrar-se-á gravemente afectado, e muito provavelmente sabe, porque assistido por técnico do direito, que perante a comissão de factos como os que se encontram de forma fortíssima, indiciados nos autos, lhe será aplicada, segundo os critérios que têm sido usados pela nossa jurisprudência, uma pena de prisão efectiva de duração elevada. Por outro lado, demonstrou possuir uma personalidade calculista e ordenada, e já anteriormente se tentou subtrair à acção da justiça, embora de forma incipiente.
Ora perante os seus traços de personalidade, aliados ao conhecimento de que lhe irá ser aplicada pesada pena de prisão, crê-se como real o perigo de fuga.
Dir-se-á ainda que os perigos apontados não são susceptíveis de ser debelados por qualquer medida de coacção não privativa da liberdade nem tampouco pela obrigação de permanência na habitação ainda que sujeita a vigilância electrónica, pois como se sabe – e também o saberá o arguido – bastará colocar-se fora da área da sua residência para se tornar ilocalizável com recurso aos meios de controle implementados. E fora da sua residência, o arguido poderá praticar os actos que bem entender.
Em especial, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, ainda que acompanhada da vigilância electrónica, mostra-se inadequada, face ao seu modo de execução, para prevenir o intenso perigo de fuga, uma vez que numa situação de possível abandono do país, especialmente se bem orquestrado, as possibilidades de sucesso são consideráveis.
E, em face das mesmas condicionantes, igualmente se mostra ineficaz para debelar o intenso perigo de continuação da actividade criminosa e o perigo, também existente, de perturbação do inquérito.
Por outro lado, e como se acima referiu, é importante levar em conta também que as medidas de coacção a aplicar devem ser escolhidas tendo em conta a pena que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido.
Não remanescem quaisquer dúvidas que é forte a possibilidade, face aos elementos probatórios já presentes nos autos, de ao arguido ser aplicada uma pena de prisão efectiva após julgamento.
Todavia, e no que a este aspecto concerne, é de referir que a possibilidade suspensão da execução da pena de prisão é obrigatoriamente ponderada pelo tribunal de julgamento, sendo que a mesma se baseia directamente na capacidade que o arguido demonstrou, em julgamento, de se deixar influenciar pelas penas. Ou seja, como é sabido, a mesma depende de, além do preenchimento de certos pressupostos formais, uma formulação de um juízo por parte do tribunal de julgamento no sentido de que o arguido se deixará intimidar pela possibilidade de cumprimento da pena de prisão e, em face dessa ameaça, não virá a cometer mais crimes.
Destes considerandos decorre a conclusão de que é impossível ao juiz de instrução, quando decide sobre a medida de coacção a aplicar, fazer um juízo minimamente sustentado sobre a possibilidade de uma futura suspensão da execução da uma pena de prisão, a não ser que disponha de elementos que lhe permitam concluir, sem margem para dúvida, que o arguido tem uma personalidade receptiva ao efeito de prevenção especial positiva das penas.
O que não acontece no presente caso, em que o arguido, nos actos que praticou, demonstrou um total desrespeito pelo ordenamento jurídico em geral, pelo valor supremo da vida humana e ainda pelos efeitos traumatizantes que as suas condutas acabaram por produzir nas vítimas indirectas.
A fls. 257, verso, artigo 73, vem o arguido requerer sejam solicitadas e apreendidas as imagens do (…), quer interiores, quer exteriores.
Encontrando-se o processo em fase de inquérito, deverá tal requerimento probatório ser apreciado pelo Ministério Público, dele titular.
Pelo exposto, e atendendo ao disposto nos artigos 193º, 195º, 202º, número 1 als. a) e e) e 204º als. a) b) e c), todos do Código de Processo Penal, com referencia aos artigos acima referidos que tipificam os ilícitos penais ao arguido imputado, decide-se ser de indeferir a alteração de medida de coacção por si requerida.
Em consequência, aguardará os ulteriores termos processuais sujeito às seguintes medidas de coacção (já aplicadas):
a) Termo de Identidade e Residência, previsto no artigo 196º do Código de Processo Penal, já prestado;
b) Prisão preventiva, prevista no artigo 202º do mesmo diploma.
Notifique, tendo em atenção o disposto nos artigos 113º, número 10, e 114º, número 1, ambos do Código de Processo Penal.»
2.3. Conhecimento do mérito do recurso
A questão suscitada no recurso em apreciação é a da substituição da medida de coação de prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito por outra medida coativa menos gravosa, mormente, a de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.
Sustenta o arguido/recorrente que o despacho recorrido ao decidir pela manutenção da prisão preventiva, não valorou devidamente a ausência de antecedentes criminais, a inserção laboral, social e familiar do recorrente, o facto de não se ter furtado à justiça, quando o poderia ter feito, bem com a sua postura de colaboração com a justiça na descoberta da verdade material, tendo explicado a sua versão dos factos, no interrogatório complementar realizado – não o tendo feito ab initio por não estar devidamente assessorado pela sua advogada, por impedimento desta, o que demonstrou ser verdadeiro –, versão essa que, ao contrário do que foi entendido pelo tribunal a quo, é verosímil e tendo requerido novos meios de prova – designadamente, as filmagens do Bar RM, onde se terá iniciado a discussão e a inquirição de testemunhas –, que foram aproveitados na subsequente investigação.
Neste quadro, entende o recorrente, que, no despacho recorrido, ao decidir-se pela manutenção da prisão preventiva, não foram observados os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, o que o torna ilegal, por violação, entre outros, dos artigos 18º, n.º 2, 28º, n.º 2, 32º, n.º 2, da CRP e dos artigos 191º, n.º 1, 192º, n.º 2, 193º, 202º e 204º da CRP, os quais deviam ser interpretados no sentido de ser suficiente – face à postura e colaboração do recorrente, à ausência de antecedentes criminais, às necessidades cautelares do caso, que na ótica do recorrente, foram sobrevalorizadas no despacho recorrido –, a aplicação de outra medida de coação menos gravosa, mormente, a de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.
O Ministério Público manifesta o entendimento de que se mantêm inalterados os pressupostos que determinaram a aplicação ao recorrente da prisão preventiva, acolhendo os fundamentos aduzidos no despacho recorrido que indeferiu a requerida substituição da prisão preventiva por medida de coação menos gravosa, mantendo inalterado o estatuto coativo do arguido, ora recorrente.
Apreciando:
Sob a epígrafe “Revogação e substituição das medidas”, dispõe o artigo 212º do CPP:
«1. As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou
b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
2. (…).
3. Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos gravosa ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.
4. A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido (…).»
Como decorre da disposição legal acabada de citar, a substituição de uma medida de coação por outra menos gravosa só pode acontecer se, posteriormente à decisão que aplicou a primeira medida, tiverem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação ou se se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram que essa medida fosse aplicada.
Tal significa e, de acordo com o entendimento jurisprudencial reiteradamente afirmado, que as medidas de coação, designadamente, a de prisão preventiva, estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, ou seja, não podem ser revogadas ou substituídas por outras, sem que tenha havido alteração dos pressupostos de facto ou de direito que determinaram a sua aplicação[1].
Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque[2], do referido princípio resultam duas consequências práticas. A primeira traduz-se no seguinte: permanecendo inalterados os pressupostos da medida de coação e as exigências cautelares que a determinaram, ela não pode ser alterada. A segunda consiste nisto: se aquando do reexame dos pressupostos da medida de coação e, designadamente, da prisão preventiva, não se verificarem circunstâncias supervenientes que modifiquem as exigências cautelares ou alterem os pressupostos que determinaram a sua aplicação, basta a referência à persistência do condicionalismo que justificou a medida para fundamentar a decisão da sua manutenção.
Por conseguinte, no caso da prisão preventiva, devendo a decisão que a aplicou permanecer imutável “enquanto tudo se mantenha igual”, isto é, sempre que posteriormente não se verifiquem circunstâncias, quer de facto, quer de direito, que justifiquem a revogação ou a substituição de tal medida de coação, o despacho em que se proceda à reapreciação dessa medida tem apenas por objeto «a análise de circunstâncias supervenientes cuja ocorrência possa abalar a sustentabilidade dos pressupostos que conduziram à aplicação da medida de coação, alterando-os, e por esta via, levando à sua substituição ou revogação.»[3].
Trata-se de uma manifestação do princípio da adequação, no sentido que a medida de coação deve ser adequada às exigências cautelares de natureza processual que existam no caso concreto e ao longo da tramitação processual.
Aplicando estas considerações ao caso vertente, o que importa aquilatar é se, após o 1º interrogatório judicial, na sequência do qual foi aplicada ao arguido/recorrente a medida de coação de prisão preventiva, não sido interposto recurso dessa decisão, se sobreveio algum facto ou circunstância que implique a insubsistência dos pressupostos (de facto ou de direito) que determinaram a sua aplicação ou a diminuição das exigências cautelares que a justificaram.
No despacho recorrido, ao decidir manter a prisão preventiva, considerou o Sr. Juiz a quo permanecerem inalterados os pressupostos que determinaram a aplicação de tal medida coativa e que subsistindo os perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de fuga, nada foi carreado para os autos que faça concluir pela atenuação das necessidades cautelares do caso concreto.
E compulsados os autos, não poderemos deixar de concordar com a posição manifestada pelo tribunal a quo, no despacho recorrido.
Com efeito, a circunstância de o arguido ter prestado declarações, em interrogatório complementar, apresentando a sua versão dos factos, que como bem considerou o Sr. Juiz a quo, se mostra inverosímil [porque desconforme às regras da experiência comum e da normalidade da vida, tendo em conta o modo como o arguido atuou e as circunstância em que o fez, que resultam fortemente indiciados, afastando-se do local onde se envolveu em discussão com o ofendido, após ter verbalizado que lhe iria dar um tiro e regressando minutos depois, tendo ido buscar a espingarda caçadeira, empunhando-a e disparando – o que necessariamente pressupõe que premiu o gatilho – na direção do ofendido, fazendo-o na via pública, num local onde existia(m) estabelecimento(s) de diversão noturna, enquanto o ofendido fugia, sendo atingido, com os projeteis/chumbos deflagrados, na região dorsal, nádegas e coxas], em nada atenua as exigências cautelares que o caso reclama, antes pelo contrário, tendo em conta os factos praticados pelo arguido, que se mostram fortemente indiciados e as caraterísticas da sua personalidade nele refletidas, não exteriorizando o arguido qualquer juízo de autocrítica perante a sua conduta que resulta indiciada, subsistindo inalterados os perigo de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de fuga, em que se fundamentou a decisão que lhe aplicou a medida coativa de prisão preventiva.
Na decisão recorrida, que indeferiu a pretensão que o arguido, ora recorrente, formulou de substituição da prisão preventiva, pela obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, considerou-se que esta última medida de coação, não se revelava suficiente para prevenir os enunciados perigos julgados verificados, no despacho que aplicou a prisão preventiva, com os seguintes fundamentos:
«Dir-se-á ainda que os perigos apontados não são susceptíveis de ser debelados por qualquer medida de coacção não privativa da liberdade nem tampouco pela obrigação de permanência na habitação ainda que sujeita a vigilância electrónica, pois como se sabe – e também o saberá o arguido – bastará colocar-se fora da área da sua residência para se tornar ilocalizável com recurso aos meios de controle implementados. E fora da sua residência, o arguido poderá praticar os actos que bem entender.
Em especial, a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, ainda que acompanhada da vigilância electrónica, mostra-se inadequada, face ao seu modo de execução, para prevenir o intenso perigo de fuga, uma vez que numa situação de possível abandono do país, especialmente se bem orquestrado, as possibilidades de sucesso são consideráveis.
E, em face das mesmas condicionantes, igualmente se mostra ineficaz para debelar o intenso perigo de continuação da actividade criminosa e o perigo, também existente, de perturbação do inquérito.»
E compulsados os autos, não poderemos deixar de concordar com a posição manifestada pelo Mm.º Juiz a quo, no despacho recorrido, posto que, após a decisão que aplicou ao arguido a prisão preventiva, nenhum facto ou circunstância ocorreu suscetível de alterar os pressupostos que determinaram que ficasse sujeito a tal medida coativa, sendo que o facto de ter vindo a prestar declarações, em interrogatório complementar, atenta a versão dos factos que apresentou, que surge como inverosímil, pelas razões já referidas, não é reveladora de qualquer postura de colaboração com a justiça e tendente à descoberta da verdade material, subsistindo com igual premência os perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação do inquérito, tal como foram configurados pela decisão que aplicou a prisão preventiva ao arguido/recorrente e mantendo-se inalteradas as circunstâncias e válidos os fundamentos que levaram a decidir que a medida de obrigação de permanência na habitação não é suficiente para acautelar esses perigos.
O arguido/recorrente manifestando que, desde o início, quis colaborar com a justiça, na descoberta da verdade – argumentando ter justificado porque não prestou declarações em sede de 1º interrogatório judicial, vindo a prestá-las depois, em interrogatório complementar, que requereu, apresentando a sua versão dos factos e requerendo a realização de diligências probatórias que foram “aproveitadas” na subsequente investigação –, limita-se a pôr em causa a verificação ab inicio dos pressupostos da prisão preventiva, designadamente, a existência dos perigos que foram julgados verificados e alegando ser a prisão preventiva desproporcional, desnecessária e inadequada, defendendo que a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica seria suficiente e adequada a assegurar as exigências cautelares do processo.
Verifica-se, assim, que o arguido/recorrente, no requerimento de substituição da medida de prisão preventiva pela de obrigação de permanência na habitação que apresentou e que foi objeto de indeferimento pelo Tribunal a quo, pretendia discutir e a submeter à reapreciação do tribunal os factos e circunstâncias que fundamentaram a decisão inicial que lhe aplicou a medida coativa de prisão preventiva, no referente à verificação dos respetivos pressupostos, que já haviam sido anteriormente reconhecidos, o que não é admissível.
Deste modo, nada tendo sido trazido aos autos que consubstancie uma alteração das circunstâncias – de facto ou de direto – que levaram a concluir/decidir que a prisão preventiva é a única medida de coação que se mostra idónea a prevenir os perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação do inquérito, em que se alicerça a primitiva decisão que aplicou essa medida de coativa ao arguido/recorrente e que levou ao afastamento da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, por não se revelar adequada e suficiente a satisfazer as exigências cautelares do caso e a prevenir os apontados perigos, que subsistem tal como foram definidos naquela decisão, mantendo-se inalterados os pressupostos que justificaram a sua necessidade, adequação e proporcionalidade, bem andou o Sr. Juiz a quo, ao indeferir o requerido pelo arguido/recorrente, decidindo pela manutenção da medida coativa de prisão preventiva anteriormente aplicada.
A decisão recorrida não violou nem os princípios, nem quaisquer das normas constitucionais e legais invocadas pelo recorrente.
O recurso é, pois, improcedente.
3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido CATE… e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s (cfr. art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
Comunique de imediato ao tribunal recorrido a presente decisão.
Notifique.
Évora, 05 de abril de 2022
Fátima Bernardes (relatora)
Fernando Pina (1.º adjunto)
Gilberto da Cunha (presidente)
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[1] Neste sentido cfr., entre muitos outros, Ac.s desta Relação de Évora de 27/04/2021, proc. n.º 30/18.6PBPTM-I.E1, de 19/02/2019, proc. n.º 440/18.9JALRA-A.E1 e de 08/08/2018, proc. n.º 110/13.4 PEBRR-E.E1; Ac.s da RL de 02/02/2022, proc. n.º 2054/20.4T9PRT-C.L1-3 e de 12/09/2020, proc. n.º 2292/19.2PSLSB-A.L1-9; Ac. da RP de 17/06/2020, proc. n.º 251/18.1PAGDM.P1; Ac. da RG de 03/4/2017, proc. n.º 21/14.6GBBGC-A-G1 e Ac. da RC de 06/03/2013, proc. n.º 52/12.0GBNLS-F.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[2] In Comentário do Código de Processo Penal …, Universidade Católica Portuguesa, 3ª edição atualizada, 2009, pág. 550.
[3] Cfr. Ac. da RG de 03/04/2017, proferido no proc. 21/14.6GBBGC-A-G1, acessível in www.dgsi.pt.