CRIMES SEXUAIS
CONCURSO DE INFRACÇÕES
Sumário

I. O crime é um facto humano, sendo a infração criminal constituída por três elementos – o facto típico, a culpabilidade e a punibilidade. Não basta produzir pelo modo previsto na mesma ou em várias disposições legais o evento jurídico de cada uma, sendo também necessário que relativamente a cada crime concorrente se verifique vontade culpável. É indispensável que cada crime seja doloso ou culposo e, nessa medida, punível.
II. No caso de pluralidade de infrações, distingue-se entre o concurso legal, aparente ou impuro e o concurso efetivo, verdadeiro ou puro. No primeiro caso, verifica-se que a conduta do agente preenche formalmente vários tipos de crime, mas, por via de interpretação, conclui-se que o conteúdo dessa conduta é exclusiva e totalmente abrangido por um só dos tipos violados, pelo que os outros tipos devem recuar, não devendo ser aplicados.
III. Esses tipos de crime podem encontrar-se numa relação de especialidade [um dos tipos aplicáveis (tipo especial) incorpora os elementos essenciais de um tipo aplicável (tipo fundamental), acrescendo elementos suplementares ou especiais referentes ao facto ou ao próprio agente – situação em que deve ser aplicado o tipo especializado]; de consumpção [o preenchimento de um tipo legal (mais grave) inclui o preenchimento de outro tipo legal (menos grave) – situação em que, por regra, deve ser aplicado o tipo mais grave]; de subsidiariedade [certas normas só se aplicam subsidiariamente, ou seja, quando o facto não é punido por outra norma mais grave]; e de facto posterior não punível [os crimes que visam garantir ou aproveitar a impunidade de outros crimes não são punidos em concurso efetivo com o crime de fim lucrativo ou de apropriação, salvo se ocasionarem um novo dano ao ofendido ou se dirigirem contra um novo bem jurídico].
IV. No caso de concurso efetivo verdadeiro ou puro, entre os tipos legais preenchidos pela conduta do agente não se dá uma exclusão por via de qualquer das regras enunciadas, e as diversas normas aplicáveis surgem como concorrentes na aplicação concreta.
V. Este concurso pode ser ideal [quando mediante uma só ação se violam diferentes tipos (concurso ideal heterogéneo) ou se viola várias vezes o mesmo tipo (concurso ideal homogéneo)]; ou real [quando à pluralidade de crimes cometidos corresponde uma pluralidade de ações].

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora

I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 139/20.6GBTMR, do Juízo Central Criminal de Santarém [Juiz 3] da Comarca de Santarém, o Ministério Público acusou:
(i) Zeca, casado, pedreiro, (…),
pela prática, em autoria material e em concurso real, de
- cinquenta crimes de abuso sexual de criança, agravados, previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal [de que foi vítima Já…];
- um crime de abuso sexual de criança, agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1 e n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal [de que foi vítima Je…];
- um crime de abuso sexual de criança, agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal [de que foi vítima Je…];
- um crime de abuso sexual de criança, agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal [de que foi vítima Jo…];

(ii) Leca, divorciado, motorista (…),
pela prática, em autoria material e em concurso real, de
- duzentos e cinquenta crimes de violação, agravados, previstos e puníveis pelos artigos 164.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), n.º 7 e n.º 8, todos do Código Penal [de que foi vítima Já…];
- um crime de maus-tratos, previsto e punível pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal [de que foi vítima Já…];
- um crime de abuso sexual de criança, agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3, alínea b), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal [de que foi vítima Je…];

(iii) Meca, solteiro, (…),
pela prática, em autoria material e em concurso real, de
- treze crimes de abuso sexual de criança, agravados, previstos e puníveis pelos artigos 171.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3, alínea b), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal [de que foi vítima Já…];
- três crimes de abuso sexual de criança, agravados, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3, alínea b), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal [de que foi vítima Je…];

O Arguido Zeca apresentou contestação escrita onde nega a prática dos factos que lhe são imputados na acusação.
O Arguido Leca apresentou contestação escrita onde nega a prática dos factos que lhe são imputados na acusação.
O Arguido Meca apresentou contestação escrita onde oferece o merecimento dos autos.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Coletivo, por acórdão proferido em 24 de setembro de 2021 e depositado em 28 de setembro de 2021 foi, entre o mais, decidido:
«(…) julgar parcialmente procedente a acusação pública deduzida e, em consequência:
A) ARGUIDO ZECA, melhor identificado nos autos
1. Absolver o arguido da prática dos seguintes crimes:
1.1. Um crime de abuso sexual de criança agravado, p.e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, relativamente a Je…;
1.2. Um crime de abuso sexual de criança agravado, p.e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 177.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, relativamente a Je…;
1.3. Um crime de abuso sexual de criança agravado, p.e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, relativamente a Jo….
2. Condenar o arguido, pela prática, em autoria material, consumada e em concurso real, de 24 (vinte e quatro) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 3, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, relativamente a Já…, cada um deles na pena parcelar de 12 (doze) meses de prisão.
3. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de prisão de 5 (cinco) anos, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos, e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos;
4. Suspender a pena de prisão fixada por 5 (cinco) anos, sujeita:
4.1. Aos deveres de pagar à vítima, Já…, a quantia arbitrada a título de indemnização no prazo de 4 (quatro) meses a contar do trânsito em julgado da decisão, e entregar à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (escolhida pela sua intervenção no âmbito do Projeto CARE – Rede de apoio especializado a crianças e jovens vítimas de violência sexual) a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), devendo comprová-lo nos autos no prazo máximo de 6 (seis) meses a contar do trânsito em julgado da decisão;
4.2. A regime de prova, assente em plano social de recuperação a elaborar pelo Instituto de Reinserção Social, o qual, visando em particular a prevenção da reincidência, deve incluir o acompanhamento técnico do condenado que se mostre necessário, designadamente através da frequência de programas de reabilitação para agressores sexuais de crianças e jovens;
5. Condenar o arguido no pagamento à vítima Já… de uma indemnização arbitrada no valor de € 1.000,00 (mil euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a presente data e até efetivo e integral pagamento – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP.
6. Revogar a medida de coação de prisão preventiva – art. 212.º/, al. b) do CPP.
7. Determinar que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a termo e de identidade e residência até extinção da pena – art. 214.º/1, al. e) do CPP.
8. Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 (três) UCs – arts. 513.º/1 do CPP.

B) ARGUIDO LECA, melhor identificado nos autos
1. Condenar o arguido pela prática, em autoria material, consumada e em concurso real, dos seguintes crimes:
1.1. 10 (dez) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1, 2 e 177.º/1, al. a), do Código Penal, na pessoa de Já…, cada um deles na pena de prisão parcelar de 55 (cinquenta e cinco) meses;
1.2. 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1, 2 e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de Je…, cada um deles na pena de prisão parcelar de 50 (cinquenta) meses;
1.3. 120 (cento e vinte) crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal, na pessoa de Já…, cada um deles na pena de prisão parcelar de 60 (sessenta) meses;
1.4. 1 (um) crime de maus-tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A/1, al. a) do Código Penal, na pessoa de Já…, na pena de prisão parcelar de 22 (vinte e dois) meses;
1.5. Absolvendo-o do demais.
2. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de prisão efetiva de 10 (dez) anos, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos, e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos;
3. Condenar o arguido no pagamento à vítima Já… de uma indemnização arbitrada no valor de € 5.000,00 (mil euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a presente data e até efetivo e integral pagamento – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP;
4. Condenar o arguido no pagamento à vítima Je… de uma indemnização arbitrada no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a presente data e até efetivo e integral pagamento – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP;
5. Determinar que o arguido permaneça sujeito à medida de coação de prisão preventiva e a termo e de identidade e residência.
6. Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 (três) UCs – arts. 513.º/1 do CPP.

C) ARGUIDO MECA, melhor identificado nos autos
1. Condenar o arguido pela prática, em autoria material, consumada e em concurso real, dos seguintes crimes:
1.1. 23 (vinte e três) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1 e 2 e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de Já…, cada um deles na pena de prisão parcelar de 50 (cinquenta) meses;
1.2. 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1 e 3, al. a) e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de Je…, na pena de prisão de 12 (doze) meses;
1.3. 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1 e 2 e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de Je…, na pena de prisão de 50 (cinquenta) meses;
1.4. 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, na pessoa de Já…, na pena de prisão de 30 (trinta) meses.
1.5. Absolvendo-o do demais.
2. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de prisão efetiva de 7 (sete) anos, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos, e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos;
3. Condenar o arguido no pagamento à vítima Já… de uma indemnização arbitrada no valor de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a presente data e até efetivo e integral pagamento – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP;
4. Condenar o arguido no pagamento à vítima Je… de uma indemnização arbitrada no valor de € 800,00 (oitocentos euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a presente data e até efetivo e integral pagamento – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP;
5. Determinar que o arguido permaneça sujeito à medida de coação de prisão preventiva e a termo e de identidade e residência.
6. Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 (três) UCs – arts. 513.º/1 do CPP

Inconformado com tal decisão, o Arguido Leca dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
« 1.ª
O Arguido Leca recorre da decisão que deu como provada a prática, em autoria material, consumada e em concurso real, dos seguintes crimes:
v. 10 (dez) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1, 2 e 177.º/1, al. a), do Código Penal, na pessoa de Já…, cada um deles na pena de prisão parcelar de 55 (cinquenta e cinco) meses;
vi. 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1, 2 e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de Je…, cada um deles na pena de prisão parcelar de 50 (cinquenta) meses;
vii. 120 (cento e vinte) crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal, na pessoa de Já…nseca, cada um deles na pena de prisão parcelar de 60 (sessenta) meses;
viii. 1 (um) crime de maus-tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A/1, al. a) do Código Penal, na pessoa de Já…, na pena de prisão parcelar de 22 (vinte e dois) meses;
e o condenou:
e. em cúmulo jurídico, na pena única de prisão efetiva de 10 (dez) anos, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos;
f. na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, por um período de 5 (cinco) anos;
g. no pagamento à vítima Já… de uma indemnização arbitrada no valor de € 5.000,00 (mil euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP;
h. no pagamento à vítima Je… de uma indemnização arbitrada no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos – arts. 16.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09, 67.º-A e 82.º-A, do CPP.

2.ª
Recorre de matéria de facto e de direito.
3.ª
Entende o recorrente, que, não tendo praticado quaisquer crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal e que a prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento foi mal apreciada nessa matéria pelo que a condenação por esses crimes que não praticou é injusta.
Entende que há má aplicação do Direito no respeitante à qualificação dos factos como crimes plúrimos que, à luz da redação do artigo 32º. do Código Penal vigente à data da alegada ocorrência dos factos, deveria ter qualificado as alegadas condutas do recorrente num único crime continuado.
Entende ainda que face à factualidade dada como provada em juízo e ao Direito aplicável, a pena aplicada revela-se desproporcionada, antes se devendo aplicar uma pena próxima dos limites mínimos e, face às necessidades de prevenção, tanto geral como especial, e ao Princípio da Proporcionalidade que deve nortear as decisões punitivas, a pena a aplicar deve ser suspensa na sua execução.

Os Pontos da Matéria de Facto Impugnados
4.ª
O Tribunal a quo errou ao dar como provado que que o Recorrente praticou os factos nºs. 33 a 37, 51 e 52,
5.ª
O Tribunal considerou as declarações do recorrente apenas na parte em que lhe são prejudiciais. O que, como é bom de ver, revela falta de imparcialidade.
6.ª
Considerou, no entanto, que o recorrente revelou arrependimento e interiorização do mal que provocara na filha.
7.ª
Considerou também a parte em que o recorrente admitiu que, no dia em que o seu irmão To… o confrontou com os abusos sexuais relatados pela Já…, lhe desferiu duas bofetadas e chamou-a de mentirosa, refutando, contudo, que a tivesse agredido fisicamente de outra forma mais gravosa, bem assim os demais maus tratos imputados, ignorando que o recorrente negou veemente que tenha tido relações de cópula com a menor Já… ou que esta tenha manifestado oposição aos seus atos de índole sexual.
8.ª
Muito menos o tribunal a quo considerou a parte das declarações em que este afirma perentoriamente não ter usado da força, nem de qualquer forma de violência, aquando da prática dos atos que confessou.
O tribunal não considerou essa parte das declarações nem explicou porque não o fez dado que em todas as declarações, tanto em sede de primeiro interrogatório judicial como em sede de audiência final de discussão e julgamento, o arguido sempre manteve um discurso coerente, sincero e honesto.
De referir que, conforme é entendimento uniforme na Jurisprudência e na Doutrina, nas situações de abuso sexual de crianças e similares, por força das circunstâncias, a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, sendo regra geral apenas terem conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima e do alegado agressor.
9.ª
O tribunal a quo considerou, porém, que em matéria de “crimes sexuais” as declarações da vítima têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante; pelo que, não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta, como são os crimes sexuais.
Assim, com base nas declarações da vítima Já… e ainda com os depoimentos prestados pelas testemunhas To…, Mo… e pela assistente Zoz…, indicados na acusação pública, o Tribunal formou a sua convicção quanto à referida factualidade, ignorando a versão do recorrente.
10.ª
Os factos descritos nos pontos «51. e 52.» dos factos provados foram extraídos pelo tribunal a quo dos factos objetivos provados, os quais, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural,
Sendo que para a prova destes factos, o tribunal a quo afirma ter valorado as declarações que o recorrente prestou em sede de primeiro interrogatório de arguido e em audiência de julgamento, reconhecendo parte dos factos imputados e revelando ter consciência da ilicitude e punibilidade da sua conduta.
Verifica-se assim que a matéria constante dos factos objeto do presente recurso foi considerada provada tendo por base apenas as declarações do recorrente e da sua filha Já….
Ora, essas declarações são, no tocante à matéria em apreço, bastante contraditórias entre si.


11.ª
A testemunha Já… afirma que o recorrente praticou relações de cópula consigo, afirmando que o mesmo lhe batia, prendia as mãos e usava a sua supremacia física para a forçar.
Já o recorrente, pese embora ter assumido muitos outros factos, alguns dos quais nem sequer constavam na Acusação, nega terminantemente a versão da testemunha Já….
Ora, as declarações do recorrente, feitas de modo espontâneo e, assistido por Advogado, assumindo a prática de factos que sabia serem puníveis com penas pesadas, dos quais, dadas as circunstâncias de tempo, modo e lugar, não havia prova consistente contra si, mesmo assim, por um imperativo de consciência, e da culpa que o perturbava, o recorrente assumiu plenamente os factos.
Merecem por isso credibilidade as suas declarações. O modo emocionado e espontâneo é um sinal impossível de ignorar da autenticidade das suas palavras.
12.ª
Já a testemunha Já… apresentando-se serena e verbosa, mostrou-se uma boa contadora de histórias, talvez demasiado serena para quem relatava factos tão gravosos e do mais elevado grau intimidade.
Além disso, foram várias as testemunhas que expuseram a faceta fantasista e contadora de histórias que a testemunha Já… apresenta com grande facilidade no quotidiano.
Nesse sentido, foi relevante o testemunho da sua tia, que a criou desde os seis anos até à maioridade, e que ao tribunal a quo, nas suas declarações na audiência de discussão e julgamento, afirmou que a Já… aos 9 anos já dizia que tinha ido ao Brasil de comboio, ilustrando assim o caráter fantasioso que a testemunha Já… desde cedo patenteou.
Estes elementos seriam suficientes para os julgadores questionarem a autenticidade das declarações e averiguassem da sua veracidade e face à diferença de versões entre os depoimentos e tentasse aferir qual era mais próximo da verdade.
13.ª
Perante uma circunstância em que as declarações de duas pessoas, das duas únicas pessoas que podem testemunhar sobre os alegados factos, serem insanavelmente contraditórias, pode ser decisivo ao julgador recorrer a elementos objetivos, externos mas relacionados com a essência dos factos a fim de concluir qual dos declarantes fala a verdade.
E além da personalidade dos declarantes e do modo como prestaram as suas declarações, outros elementos conexos com os factos narrados podem corroborar ou infirmar as versões narradas.
Ora, a testemunha Já… descreve um cenário de violência praticada pelo recorrente contra si.
Violência física e sexual, praticada por um homem adulto contra uma criança de 6 a 8 anos.
Alegados atos esses ademais praticados sob a influência do álcool, como também resulta das declarações de ambos e é reconhecido no Acórdão recorrido.
14.ª
Ora, caso esse cenário de violência tivesse sucedido tal como a testemunha Já… relata, seguramente a sua tia, bem como outros adultos próximos da Já…, teriam notado sinais exteriores desses atos.
Ora sucede que a tia da testemunha Já…, a sra. Mo…, que assumiu a sua guarda após 6 anos e portanto cuidava dela à data dos alegados factos, a testemunha Já… não apresentou sinais de mazelas físicas, com exceção de uma vez que o recorrente assumiu e pela qual se penitenciou e que esteve relacionada com conversas com os irmãos do recorrente, cf. ponto nº40 dos factos provados.
Sobre as situações descritas nos factos provados nºs. 33 a 37, nenhuma testemunha relata se ter apercebido que a testemunha Já… tivesse apresentado quaisquer sinais.
Destaca-se as declarações da tia da Já…, a sra. Mo…, que mostrando-se muito atenta aos comportamentos da sobrinha, não vislumbrou quaisquer sinais de violência quando esta vinha do fim de semana com os pais.
15.ª
Assim, é indubitável que perante a prova produzida, segundo as regras da experiência comum, não poderia deixar de subsistir no espírito do julgador uma dúvida forte sobre qual dos dois está a falar verdade, o recorrente ou a testemunha Já…, na matéria discordante contida nos pontos números 33 a 37, 51 e 52 dos Factos Provados.
No tocante ao princípio da livre apreciação da prova, o mesmo não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» –, de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo – cf. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 202-203.
“A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e portanto imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.[[1]]
E sobre o Princípio In Dubio Pro Reo estatui a doutrina que “Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.”
Ora, verifica-se no caso concreto que, perante a prova produzida, é forçoso concluir que, segundo regras da experiência comum, não poderia deixar de subsistir no espírito do julgador uma forte dúvida sobre a verdade pelos factos narrados pela testemunha Já…, na parte em que é contraditória com as declarações do recorrente, que também viveu os referidos factos.
16.ª
Assim, a decisão recorrida desfavoreceu o recorrente quando deveria ter decidido em seu favor, violando o Princípio In Dúbio Pro Reo, consagrado art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP.

Do Crime Continuado
17.ª
Sem prescindir, de acordo com os factos provados, Já… nasceu em 2 de abril de 2009, a ocorrência de comportamentos de cariz sexual praticados pelo recorrente terá tido início quando Já… tinha 6 anos, artigo nº 29 dos Factos Provados, em 2005/2006, portanto.
18.ª
Terão continuado em 2007 até 2012, ou seja entre os 8 e 13 anos de Já…, cf. artigo 37. dos Factos Provados.
Ora, o nº 2 do artigo 30º do Código Penal determina que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Cremos que é o caso no tocante aos factos dados como provados nos artigos 29 a 38 dos Factos Provados.
19.ª
Pois é inelutável que está em causa o mesmo tipo de crime ou vários que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico.
20.ª
Também a atuação descrita traduz uma execução de forma homogénea, com a repetição de factos e modo de agir.
21.ª
Porventura, a parte que poderia excluir a aplicação à situação em análise seria a exigência da lei em que os factos se ocorram ”no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Ora, determinante para a ocorrência dos factos foi a situação de alcoolismo que o recorrente vivenciava à altura dos factos, situação essa que foi reconhecida pelo tribunal a quo e que o próprio relaciona com tão nefastas ocorrências.

22.ª
Neste quadro, de alcoolémia frequente, é de considerar que estamos perante uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa do recorrente.
Razão pela qual, os factos descritos nos artigos 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37 e 38 dos Factos Provados deveriam ter sido qualificados como único crime e não uma pluralidade de crimes.
23.ª
É certo que a redação atual do nº 3 do artigo 30º do Código Penal afasta do âmbito de aplicação do nº 2 do mesmo artigo os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.
No entanto, à data da ocorrência dos factos, parcialmente praticados nos anos de 2006 e 2007, vigorava a redação inicial do artigo 30º, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 1995-03-15, que não incluía a número 3.
24.ª
O n.º 3 que afastou a aplicação da qualificação de crimes continuados aos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais foi introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 2007-09-04, que entrou em vigor no dia 15 de setembro de 2007 e ainda assim excecionou a sua aplicação a crimes que se tratassem sobre a mesma vítima.
Pelo que apenas a partir da entrada em vigor da Lei n.º 40/2010, de 2010-09-03, em 4 de outubro de 2010, os factos imputados ao recorrente, alegadamente praticados contra Já…deixaram de ser considerados crime contínuo.
25.ª
Assim, os diversos crimes que foram considerados praticados pelo recorrente na pessoa de Já…, deve ser considerado apenas um crime continuado de abuso sexual de crianças, na pessoa de Já….
26.ª
Igualmente os diversos crimes que foram considerados praticados pelo recorrente na pessoa de Je…, têm de ser considerados um crime continuado, na pessoa de Je….

Sobre a medida da pena
Sem prescindir,
27.ª
O recorrente foi condenado em cúmulo jurídico a 10 anos de prisão.
28.ª
Ora, como o tribunal a quo reconhece, o recorrente contribuiu decisivamente para a descoberta da verdade, prestou declarações que o incriminaram, confirmando os indícios que lhe apontavam e até acrescentando mais factos que não lhe imputavam, como os relativos à sua sobrinha Je….

29.ª
Fê-lo consciente das consequências, sempre acompanhado do Advogado, desde a primeira vez em que foi confrontado com os factos.
As suas declarações foram importantes para consolidar a prova numa situação em que a prova, até devido à distância temporal dos factos, muito ocorridos há mais de 10 anos, seria sempre difícil.
30.ª
Como é do conhecimento assente, neste tipo de crimes a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, sendo regra geral apenas terem conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima.
Pois, são factos praticados em ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante.
31.ª
Pelo que, as declarações do recorrente, em sede de primeiro interrogatório judicial e audiência de julgamento, foram determinantes para descoberta da verdade.
Mais: o recorrente em nenhum momento apresentou uma atitude calculista ou desculpadora.
32.ª
A sua conduta expressa o arrependimento, a mágoa e desilusão consigo próprio.
Manifestou ainda a vontade de compensar as vítimas.
33.ª
Verifica-se ainda que o recorrente há mais de 6 anos que havia abandonado o ambiente pernicioso em que os factos ocorreram, tendo abandonado os hábitos de consumos etílicos e refeito a sua vida.
Com efeito, o recorrente desde 2017 que encetou uma vida em comunhão com a sua companheira, Cac…, que o continua a apoiar.
34.ª
A conduta processual aliada ao modo responsável como tem conduzido a sua vida nos anos mais recentes, tendo conseguido ultrapassar os problemas relacionados com o consumo de álcool e estruturado a sua vida de modo positivo, mostram como o recorrente é um homem arrependido e que erigiu sob as suas falhas a construção de um homem novo, socialmente responsável.
35.ª
Tendo inclusive apoiado a filha em todas as suas decisões.
36.ª
Os elementos exteriorizados pelos seus comportamentos permitem ao julgador aferir que o recorrente fez efetivamente uma censura interna aos seus comportamentos.

37.ª
Assim, deveria o tribunal ter procedido à atenuação especial da pena, prevista no nº 1 do artigo 72º do Código Penal, por se verificar circunstâncias que diminuem acentuadamente a necessidade de pena, designadamente por ter ocorrido arrependimento sincero do recorrente e por se verificar ter decorrido muito tempo após a ocorrência dos factos, tendo o recorrente mantido uma conduta socialmente responsável, sem ter praticado quaisquer crimes.
38.ª
Ao não reconhecer que existem as circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime acima elencadas, que diminuem por forma acentuada a necessidade da pena, como fez, o tribunal a quo violou o 72º, nº 1, do Código Penal.
39.ª
Pois, como acima exposto, o tribunal a quo deveria ter aplicado ao recorrente a atenuação especial da pena ínsita nesse normativo, que deveria ter sido aplicado no sentido de reconhecer que as circunstâncias pessoais e a conduta do recorrente posteriores ao crime diminuem de forma acentuada a necessidade da pena.
40.ª
O recorrente foi condenado na pena única de prisão efetiva de 10 (dez) anos pela prática de factos alegadamente ocorridos entre 2007 e 2014.
41.ª
Período em que o recorrente habitava em ambiente marcado pela violência doméstica exercida pelo seu progenitor e pela ingestão continuada de bebidas alcoólicas.
42.ª
Desde há vários anos que o recorrente alterou a sua vida, abandonando o ambiente pernicioso em que tudo ocorria, deixou de consumir bebidas alcoólicas, divorciou-se e passou a coabitar com outra pessoa, a senhora Cac…, que, entretanto, conheceu.
43.ª
Ademais, neste período prestou todo apoio à filha Já…
44.ª
Demonstrou arrependimento sincero tendo confessado prontamente.
45.ª
Tem uma relação laboral estável, sustentando-se apoiando a filha, entretanto maior.
46.ª
O arguido é pessoa cumpridora, pacifica e socialmente bem integrado.
47.ª
É primário.
48.ª
Estes factos permitem concluir que se está perante baixíssimas exigências de prevenção, quer especial quer geral.
49.ª
E não se invoque o perigo do alarme social pois os factos ocorreram à quase uma década, tendo o recorrente apresentado uma conduta exemplar desde esse período.
50.ª
Facto esse que a comunidade sabe valorar, o que diminui as necessidades de prevenção geral.
51.ª
Assim, ao aplicar ao recorrente uma pena superior ao mínimo legal, o tribunal violou o estatuído no artigo nº 71º, nºs 1 e 2, alíneas d) e).
52.ª
Uma interpretação correta do referido normativo impunha a determinação ao caso de uma pena no mínimo que a lei impõe.
53.ª
Acresce que a aplicação de medidas punitivas deve obedecer Princípio da Proporcionalidade, consagrado no nº2 da CRP.
“Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição Anotada, pág. 392 e ss.) sob o prisma do princípio da proporcionalidade importa distinguir os requisitos da idoneidade, necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
Estas três exigências são requisitos intrínsecos de toda a medida processual restritiva de direitos fundamentais e exigíveis, tanto no momento da sua previsão pelo legislador, como na sua aplicação prática.
O respeito pelo princípio da idoneidade exige que as limitações dos direitos fundamentais antecipadas pela lei estejam adaptadas aos fins legítimos a que se dirigem e que as mesmas sejam adequadas à prossecução das finalidades em função da sua adequação quantitativa e qualitativa e de seu espaço de aplicação subjetivo.
Significa o exposto que o juízo sobre a idoneidade não se esgota na comprovação da aptidão abstrata de uma medida determinada para conseguir determinado objetivo, nem na adequação objetiva da mesma, tendo em consideração as circunstâncias concretas, mas também requer o respeito pelo princípio da idoneidade a forma concreta e ajustada como é aplicada a medida para que não se persiga uma finalidade diferente da antecipada pela lei”.[[2]]
“Pela aplicação do princípio da necessidade a entidade vocacionada para aplicar a medida conformada pelo mesmo princípio deve eleger, entre aquelas medidas que são igualmente aptas para o objetivo pretendido que aquela é menos prejudicial para os direitos dos cidadãos”.[[3]]
54.ª
No caso em concreto, dadas as circunstâncias de vida do recorrente, que já abandonou o ambiente em que os factos ocorreram, que mostrou ter-se libertado dos hábitos alcoólicos, que é primário, reorganizou a sua via e mostra-se um cidadão cumpridor, a aplicação do princípio da proporcionalidade, na vertente da necessidade, impõe a aplicação de uma pena de prisão pelo mínimo legal.
55.ª
Pelo que o tribunal ao determinando uma pena superior ao mínimo legal, aplicou de modo errado o artigo 18º, nº2 da CRP, devendo fazê-lo, corretamente, no sentido de determinar a medida da pena, in casu, ao mínimo legal previsto.

Da execução da pena
56.ª
A pena aplicar, devendo sê-lo pelo mínimo legal conforme supra pugnado, não excederá os 5 anos de prisão.
57.ª
Considerando que recorrente mostrou arrependimento sincero, patenteado na confissão espontânea dos factos, as suas condições de vida, que mostram um homem que tendo vivido uma infância e adolescências difíceis, refez a sua vida, trabalhador estável, socialmente responsável, bem como todas as condições pessoais do recorrente supra expostas e que o douto Acórdão recorrido reconheceu, deverá o Tribunal concluir que se verificam os pressupostos para a suspensão da aplicação da pena de prisão, previstos no artigo 50º. do Código Penal.

Nestes termos e nos demais que V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores doutamente ditarem, deverá o Acórdão recorrido ser alterado nos termos indicados por ser essa a única decisão que fará JUSTIÇA! »

Inconformado com tal decisão, o Arguido Meca dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«A. Vem o presente recurso interposto do acórdão que decidindo julgar parcialmente procedente por provada a acusação deduzida pelo MP, condenou o arguido aqui recorrente pela prática, em autoria material, consumada e em concurso real, de 23 (vinte e três) crimes de abuso sexual de crianças agravado; 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado; 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado; 1 (um) crime de violação agravada, na pena de prisão de 30 (trinta) meses e em cúmulo jurídico na pena única de prisão efetiva de 7 (sete) anos - Desde logo, porquanto;
B. Entende o arguido que o acórdão recorrido não está fundamentado, limitando-se a enumerar os factos provados e não provados, tão só mais indicando a existência dos depoimentos feitos em audiência e das declarações prestadas para memória futura na fase de inquérito, mas não concretizando ou descrevendo, sequer minimamente, nem uns, nem outros.
C. Não se pretende que o Tribunal reproduza os depoimentos feitos em sede de audiência de julgamento ou de memória futura (que até se encontram transcritos), não obstante, será da mais elementar justiça e dever processual, que ainda, que de forma concisa, se exponham os motivos que levaram o Tribunal a formar a sua convicção em determinado sentido, através do exame critico das provas.
D. Mas a verdade é que o Tribunal se limitou a enumerar os factos que entendeu dar por provados, não procurando explicitar o processo de formação da sua convicção, donde e em face dessa omissão, não logra o recorrente retirar do texto do acórdão, quais as provas em que o Tribunal recorrido se baseou para formar a sua convicção e considerar provados os factos, que a final entendeu dar por provados.
E. E como tal, a decisão recorrida é nula, nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, alínea a) do CPP - Não concedendo;
F. O recorrente impugna a matéria adiante elencada, que o Tribunal considerou demonstrada, quanto à Já… e quando assentou em 70 que 70. Essa situação de cópula veio e repetir- se noutras ocasiões, quando Já… tinha pelo menos 11 anos de idade e até aos seus 13 anos, num número de vezes concretamente não apurado, mas não inferior a vinte e três.
G. Considera o recorrente que os factos dados como provados resultam da interpretação subjetiva do Tribunal a quo, suportada esta, em muitos casos, em meras presunções naturais que extravasam as regras da experiência, tendo por base, exclusivamente as declarações para memória futura da ofendida.
H. Certo é que da prova produzida não há como dar-se como provado, com certeza, que o recorrente abusou por pelo menos, 23 vezes da ofendida Já… - As declarações para memória futura prestadas pela Já…, já maior de idade, contrariamente ao que se exara no acórdão recorrido, não resultam minimamente individualizadas e provadas as condutas que possam, de alguma forma, realizar, de modo autónomo e independente, com especificação necessária, cada nova resolução criminosa que permita condenar o recorrente pela prática daquele número em concreto de ilícitos de abuso sexual de criança, p.e.p. do art.º 171.º, n.º 2 C. Penal.
I. Verifica-se assim, salvo o devido respeito, a arbitrariedade latente no acórdão recorrido relativamente à especificação da exata quantidade de resoluções criminosas autónomas e independentes entre si, não havendo elementos de prova bastantes ou suficientes para que se possa dar como provado que o arguido realizou por, pelo menos, 23 vezes autónomas e específicas, o crime de abuso sexual de criança.
J. Em face da prova produzida e em concreto das declarações prestadas pela Já… no inquérito é manifesta a impossibilidade de concretização do número exato de vezes que o tipo de crime em discussão (abuso sexual de criança –art.º 171.º, n.º 2 C. Penal) possa ter sido realizado pelo recorrente no período temporal identificado na decisão, pelo que condenando o Arguido em 23 unidades resolutivas criminosas autónomas e independentes sem que esteja suficientemente estribado em prova efetivamente produzida, o Tribunal a quo fere irremediavelmente os princípios da legalidade, nulum crimen sine lege e nula poena sine crimen.
K. O recorrente também impugna a matéria adiante elencada, que o Tribunal considerou demonstrada, quanto à Je… e quando assentou em 78. Noutra ocasião, em data não concretamente apurada, mas certamente situada no mesmo ínterim temporal, TJe… foi estudar com o arguido, tendo este determinado que se dirigisse ao seu quarto. 79. Ali, o arguido despediu-se e despediu Je… da cintura para baixo, introduziu o pénis na vagina da sobrinha, causando-lhe dores. 80. Por causa delas, a menor pediu ao arguido que parasse, ao que este acedeu.
L. Estas circunstâncias foram apuradas pelo tribunal recorrido apenas tendo por base as declarações da menor Je…, que a própria decisão reconhece terem sido prestadas de forma nervosa e constrangida, sem recurso a qualquer outro meio de prova.
M. Apesar disso, existe nos autos prova bastante, para que tais factos não tivessem recebido a convicção positiva do tribunal, da sua prática pelo recorrente. Com efeito, o acórdão recorrido não teve a menor consideração pelo relatório de perícia de natureza sexual realizado à menor Je…, de fls. 146 a 148 dos autos, a 16 de Julho de 2020, pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Médio Tejo e cujas conclusões permitem, à saciedade, não imputar ao recorrente a prática daqueles factos concretos.
N. Do mesmo resulta, na 2.ª conclusão, que não foram encontradas lesões traumáticas e/ou sequelas da superfície corporal em geral, relacionáveis com o evento em apreço. Da 4.ª conclusão, que como a membrana himenial apenas é permeável a um dedo, na ausência de lesões traumáticas ou sequelas, apenas nos é possível afirmar que a examinada não terá sido exposta a coito vaginal, concluindo em 5, que não foram encontrados no presente exame, quaisquer elementos que nos permitam afirmar que a examinada tenha sido submetida a práticas sexuais. Deste modo e em face do relatório pericial em apreço não é possível considerar demostradas as circunstâncias indicadas em 78, 79 e 80 da factualidade assente na decisão sob recurso.
O. A prova pericial representa em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127º do C.P.P. É que essa prova de apreciação vinculada como é a prova pericial, “tem lugar quando a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” - art. 151º do C.P.P.
P. Ora não tendo o julgador conhecimentos técnicos iguais aos dos peritos em clínica forense de natureza sexual, não poderá, sem mais, desconsiderar o resultado obtido pela perícia em causa (fls. 146 a 148). Certo é que tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca por depoimento que o próprio tribunal reputa de nervoso e constrangido, o que sucedeu no caso vertente.
Q. E assim, o Tribunal não só interpretou erradamente o resultado do exame pericial, como não o valorou em conformidade com o disposto na norma aplicável do artigo 163.º, no seu nº. 2, do C.P.P., violando assim o princípio da prova vinculada.
R. Do exposto conclui-se que o Tribunal incorreu em erro notório na apreciação da prova, não existindo fundamentos válidos que permitam divergir da prova pericial. E perante essa prova pericial, não poderia deixar de subsistir no espírito do julgador uma forte dúvida sobre a verdade dos factos narrados pela testemunha Je…, o que significa que a decisão recorrida desfavoreceu o recorrente quando deveria ter decidido em seu favor, violando o Princípio In Dúbio Pro Reo, consagrado art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP.
S. Segundo o n.º 1, do artigo 30º, do Código Penal: «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo de crime for preenchido pela conduta do agente.»
T. De acordo com a factualidade assente no acórdão recorrido, os factos respeitantes à menor Já… terão ocorrido no ano de 2009 ou 2010 (ponto 63) e o nº 2 do artigo 30º do Código Penal determina que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
U. Estamos em crer que é o caso dos factos dados como provados nos pontos 66 a 70 da factualidade assente, que deverão ser tidos como um único crime continuado e não numa perspetiva de pluralidade - É inquestionável que está em causa o mesmo tipo de crime ou vários que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico e igualmente existe uma execução homogénea, com a repetição de factos e modo de agir.
V. E apesar da redação atual do nº 3 do artigo 30º do Código Penal afastar do âmbito de aplicação do nº 2 do mesmo artigo os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, a verdade é que a data de ocorrência dos factos é dos anos de 2009/2010, pelo que apenas a partir da entrada em vigor da Lei n.º 40/2010, de 03.09, a 04 do mês de Outubro, os factos imputados ao recorrente, alegadamente praticados contra Já… deixaram de ser considerados crime continuado, o que significa que os 23 crimes considerados praticados pelo arguido na pessoa de Já…, deve ser considerado apenas um crime continuado de abuso sexual de criança e ao assim não entender, a decisão sob recurso viola, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no artigo 30.º do Código Penal.
W. A matéria de facto provada permite inferir que a conduta do arguido, em 2009 ou 2010, tomou uma unidade resolutiva que abarcou, ab initio, as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que viriam a ter lugar os vários atos sexuais.
Cada um dos vários atos do arguido ocorreu no mesmo contexto situacional no período indicado, na sua residência e tendo como motivo o computador ou outro equipamento eletrónico (ponto 65 dos factos provados), comandado por uma única resolução, traduzindo-se na lesão do mesmo bem jurídico protegido.
X. Cada uma das condutas do arguido - cada ato sexual - não é autónoma em relação às outras, sujeita a um juízo único, a uma única resolução, constituindo, assim, um único crime, de trato sucessivo, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 1 e 2 do Código Penal - Sem conceder;
Y. O recorrente entende que “o Tribunal “a quo” usou de enorme severidade, visto ser o mesmo primário e não levou em conta as condições pessoais do mesmo nem a sua conduta anterior ao facto e posterior a este (Art. 71º nº 2 al. c), d) e e) e artº 72º nº 2 d) do CP)”. VeJámos.
Z. Na determinação da pena deve ter-se em conta, nos termos do art. 71º do Código Penal, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a culpa do mesmo; o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham.
AA. A individualização da pena concreta aplicada pelo tribunal em cada caso não depende de uma qualquer opção discricionária por um qualquer número. Tem, pois, o tribunal de fixar o quantum da pena dentro das regras postuladas pelo legislador, impondo-se-lhe que objetive os critérios que utilizou e que fundamente a quantificação que decidiu -vd. artigo 71º n.º 3 do Código Penal. Assim, na graduação da pena atender-se-á aos critérios fornecidos pelos artigos 40.°e 71.°do Código Penal
- No caso concreto:
BB. O recorrente foi condenado na pena única de prisão efetiva de 7 (sete) anos pela prática de factos alegadamente ocorridos entre 2009 e 2010, há já mais de 10 anos.
CC. O arguido é pessoa trabalhadora, cumpridora, pacifica e socialmente bem integrado. Jamais tinha sido sujeito à ação da Justiça e nunca tendo tido contacto com o sistema judicial, sendo, pois, primo-delinquente. Estes factos permitem concluir que se está perante baixíssimas exigências de prevenção, quer especial quer geral, até porque os factos se passaram há mais de uma década, não existindo notícia de qualquer outro comportamento alvo da censura penal desde então.
DD. Por isso se entende, que ao aplicar ao recorrente uma pena superior ao mínimo legal, o tribunal violou o estatuído no artigo nº 71º, nºs 1 e 2, alíneas d) e). Melhor, a interpretação correta do indicado preceito legal, impunha a aplicação de uma pena no mínimo que a lei impõe. Até porque na aplicação de medidas punitivas o tribunal deve obediência ao Princípio da Proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República.
EE. Sendo o limite mínimo da moldura penal abstrata do concurso de crimes de 4 anos e 2 meses, deveria ter sido essa a opção do tribunal recorrido, o qual ao determinar uma pena superior ao mínimo legal, violou o disposto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.
FF. Ora sendo de aplicar ao recorrente, pena de prisão, mas pelo seu limite mínimo, nos termos atrás veiculados será sempre de equacionar a suspensão da execução dessa mesma a pena e nos termos da lei, o tribunal suspende a execução da pena de prisão se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
GG. No caso dos autos, ter-se-á de levar em linha de conta, que os factos são de há mais de 10 anos – Nunca até então tinha o recorrente tinha qualquer condenação, como desde então, em nenhum outro processo, senão neste, responde perante o Tribunal.
HH. Os factos provados, a partir do ponto 86 evidenciam que o recorrente alterou o seu rumo e nos anos mais recentes fez um percurso positivo de investimento numa nova vida, fundamentado num esforço pessoal, de submissão a regras, assumindo e superando debilidades e imaturidades. Entre 2011 e 2013 conclui o curso de dupla certificação de jardinagem e espaços verdes, que o certificou com o 9º ano de escolaridade. Ainda em 2013 realizou curso de eletricidade, continuando a investir na carreira e em 2016 terminando o curso de serralheiro mecânico e a par da atividade formativa exercia funções de eletricista na montagem de espetáculos.
II. À data da detenção, integrava o mesmo contexto familiar residencial, desenvolvendo atividade laboral na montagem de espetáculos. De tudo isto resulta um empenhamento pessoal na adequação normativa do seu comportamento, sinal de uma evolução positiva no processo de formação da sua personalidade.
JJ. Estamos em crer, que a capacidade de ressocialização que o recorrente revela consente uma esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda. Assim, a suspensão da execução da pena, acompanhada de regime de prova, será adequada a promover a responsabilização e socialização do recorrente sem os riscos - que, assim, se evitam - de efeitos de estigmatização e de marginalização (sempre empobrecedores para o indivíduo e para a comunidade) frequentemente ligados às medidas institucionais, nomeadamente às penas de prisão.
KK. Nestas circunstâncias, e numa outra perspetiva, a suspensão da execução da pena não deixará de ser compreensível pela comunidade, sem que dela advenha, portanto, qualquer abalo na sua confiança no direito e na administração da justiça.
LL. Com a suspensão da execução da pena ficará suficientemente acautelada a defesa do ordenamento jurídico. Pugna-se, nesta consonância, pela suspensão da execução da pena de prisão em que o recorrente vai condenado, por igual período, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova, segundo plano de reinserção social a elaborar e a acompanhar na 1.ª instância (artigos 50.º, 53.º e 54.º do CP).
MM. Pelo que ao não enveredar por tal caminho, viola a decisão recorrida, por erro de aplicação e interpretação o disposto nos arts. 40º, nº 1 e 50º, nº 1, ambos do Código Penal, merecendo, salvo o devido e melhor respeito por outro entendimento, o competente reparo
Nestes termos, nos melhores de direito aplicável e sempre com o mui douto Suprimento de V.Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente e em conformidade, revogada a sentença recorrida, com as demais consequências, assim se fazendo;
A necessária Justiça! »

Os recursos foram admitidos.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões
(i) relativamente ao recurso interposto pelo Arguido Meca [transcrição]:
«1ª – O arguido recorreu, pois, no seu entender a decisão recorrida não se mostra fundamentada.
2ª – Sustenta que os factos dados como provados resultaram da interpretação subjetiva do Tribunal a quo, suportada, em muitos casos, em meras presunções naturais que extravasam as regras da experiência, e tendo por base exclusivamente as declarações para memória futura prestadas pela ofendida.
3ª – Considera que os factos terão ocorrido no ano de 2009 ou 2010, e que face aos factos que foram dados como provados pela decisão recorrida, e atento o disposto art.º 30º, n.º 2, do Código Penal, deverão ser considerados como um único crime continuado e não numa perspetiva de pluralidade.
4ª – Considera ainda que ao não se ter assim entendido, a decisão recorrida violou, por erro na interpretação e aplicação, o disposto no art.º 30º, do Código Penal.
5ª – Por outro lado, sustenta que ao lhe ser aplicada uma pena superior ao mínimo legal, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 71º, n.ºs 1 e 2, alíneas d) e e), do Código Penal.
6ª - Considera também que sendo de aplicar uma pena de prisão pelo seu limite mínimo, deveria ser sempre equacionada a suspensão da execução da pena, pois atendendo à personalidade do agente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, era de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
7ª - Nos termos do disposto no art.º 379º, n.º 1, alínea a), do CPP, a sentença é nula quando não contiver as menções referidas no n.º 2, do art.º 374º, do mesmo diploma legal. Ou seja, quando não contém ou é deficiente a sua fundamentação, pois não indica os motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, e não faz um exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
8ª – Por sua vez, o exame da prova deverá passar pela análise de todas as provas, incluindo a prova irrelevante, pois só assim a sentença revela que foram apreciadas todas as provas (neste sentido v. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-11-2012 [processo n.º 220/09.2GAGLG.E1], acessível em www.dgsi.pt.
9ª - No caso dos autos, se analisarmos os vários segmentos da decisão recorrida, em especial o segmento respeitante à Motivação da matéria de facto, não se vislumbra qualquer falta ou deficiência na fundamentação da mesma.
10ª – Pelo contrário, percebemos de forma clara como é que o julgador, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, formou a sua convicção, no sentido que formou e não noutro, nomeadamente para ter dado como provado os factos que veio a dar como provados.
11ª - Donde, a decisão recorrida não é nula.
12ª – Consideramos que quando o recorrente sustenta que o Tribunal a quo só considerou as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, bem como, suportou também os factos dados como provados, em muitos casos, em meras presunções naturais que extravasam as regras da experiência, está a alegar que existiu um erro de julgamento e, no fundo, um erro na aquisição da prova, com as consequências que daí pretende retirar.
13ª – Mas ao fazê-lo, o que pretende é sindicar a forma como o Tribunal a quo valorou tal depoimento e restante prova. Ou seja, como foi valorada a matéria de facto produzida em audiência de julgamento.
14ª – Note-se, no entanto, que o arguido não pode substituir a convicção do julgador pela sua própria convicção, sendo certo que o arguido é o próprio destinatário da decisão que tem por base uma determinada convicção que o arguido pretende colocar em causa.
15ª - É sempre possível sindicar a valoração da prova por via da violação do disposto no art.º 127º, do CPP.
16ª – Mas nessa situação, necessário se torna demostrar que a descoberta da verdade processual não assentou em critérios marcados pela razão, lógica e resultantes da experiência comum.
17ª - Ora, o recorrente não demostrou que a descoberta da verdade processual não assentou nos referidos critérios. Antes limitou-se a alegar que o Tribunal a quo só considerou a versão dos factos dados pela ofendida, bem como, se baseou, em muitos casos, em meras presunções naturais que extravasam as regras da experiência.
18ª – Em todo o caso, se analisarmos de forma cuidada o segmento da decisão recorrida respeitante à motivação da matéria de facto, percebemos como é que o julgador, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, formou a sua convicção, no sentido que formou e não noutro, nomeadamente para ter dado como provado os factos que veio a dar como provados.
19ª – Acresce que neste segmento é especificado como foram considerados provados os vários pontos da matéria de facto dada como provada.
20ª – Na nossa opinião não se verificou qualquer divergência entre a convicção do julgador e o juízo contido no parecer do perito.
21ª - O facto de no Relatório Pericial se concluir, face à ausência de lesões traumática ou sequelas, apenas ser possível afirmar que a examinada não terá sido exposta a coito vaginal, não é fundamento bastante para se também concluir que o arguido não introduziu o pénis na vagina da ofendida.
22ª - Note-se que é perfeitamente possível ter ocorrido a introdução do pénis, por um período de tempo muito curto e com pouca penetração, não provocando assim lesões traumáticas.
23ª – Tenha-se presente que assim terá sido, pois foi dado como provado que a ofendida ao sentir dores pediu para o arguido para parar, o que este fez (pontos 79 e 80).
24ª – Logo, não existe qualquer desconsideração ou divergência com o juízo contido no Relatório Pericial.
25ª O Relatório Pericial também não é perentório no que respeita ao facto da vítima não ter sido exposto a coito vaginal. O que ali se diz é que face à ausência de lesões traumáticas, apenas é possível afirmar que a ofendida não terá sido exposta a coito vaginal. Não se diz, de forma perentório, que não foi exposta.
26ª - Dai que, face aos vários elementos de prova analisados o Tribunal a quo tenha dado como provado os pontos 78, 79 e 80.
27ª – Também não vislumbramos que tenha sido violado o disposto no art.º 127º, do CPP na apreciação da prova, pois não encontramos nessa apreciação qualquer incoerência, falta de percurso lógica ou violação das regras da experiência comum que possam justificar qualquer alteração à matéria de facto dada como provada.
28ª - Também não vislumbramos que a decisão recorrida tenha violado o princípio da legalidade.
29ª - Nos termos do art.º 30º, nºs 2 e 3, do Código Penal, são requisitos do crime continuado, (a) a realização plúrima de violação típicas do mesmo bem jurídico, desde que este não proteja bens eminentemente pessoais; (b) execução essencialmente homogénea das referidas violações; (c) realizada no quadro da mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa (neste sentido v. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08-11-2017 [processo n.º 1558/12.7TACBR.C1], acessível através de www.dgsi.pt.
30ª – No citado Acórdão também se diz “III – É necessário ser rigoroso na aferição dos requisitos de que depende a figura do crime continuado, sob pena de se premiar e promoverem as carreiras criminosas longas”.
31ª – Em face do caso, importa sublinhar que atenta à matéria de facto dada como provada, bem como, face ao que consta do segmento da decisão recorrida respeitante à escolha e determinação da pena, nomeadamente no que respeita à culpa do arguido, que se mostra elevada, não é possível concluir que o arguido atuou num quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminuiu consideravelmente a culpa.
32ª – Por isso, e independentemente da data da prática dos factos, para efeitos do disposto no art.º 30º, n.º 3, do Código Penal, imperioso se torna concluir que não se confirmam os requisitos legais de que depende a verificação do crime continuado.
33ª - Na determinação da medida concreta da pena, importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente – artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal.
34ª – Também em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal.
35ª - As finalidades das penas visam a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, conforme determina o disposto no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal.
36ª – Assim, na escolha da pena a aplicar, deverá atender-se quer a razões de prevenção geral positiva quer a razões de prevenção especial positiva.
37ª – Face ao que se diz no segmento da Escolha e Determinação da Medida de Pena, e a toda a fundamentação que ali é vertida, e com a qual se concorda na integra, teremos que concluir que a pena única e as penas acessórias aplicadas ao arguido se mostram justas e adequadas a prevenir a prática de crimes de igual natureza, quer por parte do arguido, quer por parte da comunidade em geral.
38ª – No caso dos autos as exigências de prevenção especial são relevantes.
39ª - O grau de ilicitude, in casu, é médio, tendencialmente elevado, considerando a data já algo longínqua a que se reportam os factos, bem como, o período de tempo em que os factos perduraram.
40ª - No que respeita à culpa, a mesma mostra-se elevada, considerando que o arguido atuou sempre com dolo direto, indiferente à violação dos interesses legalmente protegidos e com conhecimento da real idade das vítimas.
41ª - Donde, a pena única aplicada ao arguido não ultrapassa e estará longe de ultrapassar a medida da culpa, a sua medida concreta mostra-se imprescindível à tutela dos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora e às expetativas comunitárias, e mostra-se adequada a satisfazer a sua função de ressocialização.
42ª – É de concluir assim que a pena única de 7 anos de prisão efetiva aplicada ao arguido, se mostra justa e em conformidade com as exigências do caso concreto.
43ª – Por outro lado, se atendermos ao que consta na decisão recorrida relativamente à pena concretamente aplicada ao arguido, constatamos que a mesma foi sustentada na sua culpa, elevada, e bem assim nas exigências de prevenção especial que se mostraram relevantes.
44ª - Justamente por isso, e também pelo número de crimes que foram dados como provados, não vislumbramos como seria possível ser aplicada ao arguido uma pena não superior a 5 anos de prisão, que implicava sempre aferir se estavam ou não reunidos os pressupostos em que assenta a suspensão da execução da de prisão, estabelecidos no art.º 50º, do Código Penal.
45ª – A pena de prisão não superior a 5 anos de prisão pode ser suspensa na sua execução se atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, for de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
46ª - No caso do arguido, para além da pena de prisão que lhe foi aplicada, pelas razões já indicadas, ter que ser sempre superior a 5 anos de prisão, mas na hipótese, contudo, de ser igual ou inferior aos 5 anos, não se vislumbra, nomeadamente face às circunstâncias dos crimes, que se pudesse concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizavam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
47ª – Logo, não descortinamos a existência de fundamentos para a redução da pena de prisão para o mínimo legal, bem como para uma eventual suspensão da sua execução.
48ª – Por tudo o que vai exposto, a decisão recorrida não violou as disposições legais invocadas pelo recorrente.
49ª - Deve, pois, o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida.
Contudo, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA.»

(ii) relativamente ao recurso interposto pelo Arguido Leca [transcrição]:
«1ª – O arguido recorreu, pois, no seu entender considera que os factos dados como provados e constantes dos pontos n.ºs 33, 34, 35, 36, 37, 51 e 52, foram suportados nas declarações para memória futura prestadas pela ofendida e nas declarações prestadas pelas testemunhas To…, Mo… e assistente Zoz…, ignorando a sua versão, que merece credibilidade.
2ª – Considera que parte dos factos ocorreram nos anos de 2006 e 2007, e que está em causa o mesmo tipo de crime ou vários que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico.
3ª – Diz ainda que a sua atuação traduz uma execução de forma homogénea, com a reiteração de factos e modo de agir, e o seu quadro de alcoolémia frequente configura uma situação exterior que diminui consideravelmente a sua culpa.
4ª – Considera, por isso, que apenas deve ser considerado um crime continuado de abuso sexual de crianças por cada vítima.
5ª – Por outro lado, sustenta que o Tribunal a quo deveria ter procedido à atenuação especial da pena, nos termos do art.º 72º, n.º 1, do Código Penal, e que foi violado o disposto no art.º 71º, n.ºs 1 2, alíneas d) e e), do Código Penal, pois as medidas punitivas devem obedecer ao princípio da proporcionalidade, consagrado no art.º 18º, n.º 2, do CRP.
6ª – Sustenta ainda que face à sua conduta, mostrando arrependimento sincero, bem como, considerando as suas condições pessoas, deveria o Tribunal concluir pela verificação dos pressupostos a que alude o art.º 50º, do Código Penal, e suspender a execução a pena de prisão a aplicar.
7ª – Quando o recorrente sustenta que o Tribunal a quo só considerou as declarações para memória futura prestadas pela ofendida e as declarações das testemunhas que identificou e da assistente, ignorando a sua versão, está a alegar que existiu um erro de julgamento e, no fundo, um erro na aquisição da prova, com as consequências que daí pretende retirar.
8ª – Ao fazê-lo, na nossa perspetiva o que o recorrente pretende é sindicar a forma como o Tribunal a quo valorou tais depoimentos e restante prova. Ou seJá, pretende sindicar como foi valorada a matéria de facto produzida em audiência de julgamento.
9ª - Contudo, entendemos que o arguido não pode substituir a convicção do julgador pela sua própria convicção, sendo certo que ele é o próprio destinatário da decisão que tem por base uma determinada convicção que pretende agora colocar em causa.
10ª - É certo que é sempre possível sindicar a valoração da prova por via da violação do disposto no art.º 127º, do CPP.
11ª - Todavia, nesse caso, necessário se torna demostrar que a descoberta da verdade processual não assentou em critérios marcados pela razão, lógica e resultantes da experiência comum.
12ª - Ora, o recorrente, na nossa modesta opinião, não demostrou que a descoberta da verdade processual não assentou nos referidos critérios.
13ª – Ao invés, basta analisar de forma cuidada o segmento de decisão recorrida respeitante à motivação da matéria de facto, para percebemos como é que o julgador, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, formou a sua convicção, no sentido que formou e não noutro, nomeadamente para ter dado como provado os factos que veio a dar como provados. Inclusive neste segmento é especificado como foram considerados provados os vários pontos da matéria de facto dada como provada.
14ª - Assim, foi face aos vários elementos de prova analisados e conjugados, que o Tribunal a quo deu como provados os pontos n.ºs 33, 34, 35, 36, 37, 51 e 52.
15ª – Logo, não se descortina a existência de motivos que nos levem a concluir que tenha sido violado o disposto no art.º 127º, do CPP na apreciação da prova.
16ª – O princípio do in dúbio pro reo, para além de ser uma garantia subjetiva, impõe também ao julgador que se pronuncie de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa (v. Acórdão do STJ – processo n.º 237/1/01 – 5ª Secção, tendo como relator o Conselheiro Pereira Madeira). Ou seja, a dúvida deve ser sempre valorada em favor do arguido.
17ª – Só que no caso dos autos, face aos termos da decisão recorrida, em momento algum o Tribunal a quo, no que respeita ao arguido/ recorrente, teve dúvidas. Pelo contrário, atingiu uma certeza sustentada na observância das regras processuais, que constam do segmento da fundamentação da matéria de facto.
18ª – Assim, não tendo existido dúvida no julgador, não vislumbramos que o Tribunal a quo tivesse que recorrer à aplicação do citado princípio.
19ª - Nos termos do art.º 30º, nºs 2 e 3, do Código Penal, são requisitos do crime continuado, (a) a realização plúrima de violação típicas do mesmo bem jurídico, desde que este não proteja bens eminentemente pessoais; (b) execução essencialmente homogénea das referidas violações; (c) realizada no quadro da mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa (neste sentido v. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08-11-2017 [processo n.º 1558/12.7TACBR.C1], acessível através de www.dgsi.pt.
20ª - Também no citado Acórdão se lê “III – É necessário ser rigoroso na aferição dos requisitos de que depende a figura do crime continuado, sob pena de se premiar e promoverem as carreiras criminosas longas”.
21ª – Consideramos que face à matéria de facto dada como provada, bem como, ao que consta do segmento da decisão recorrida respeitante à escolha e determinação da pena, nomeadamente no que respeita à culpa do arguido, que se mostra elevada, não é possível concluir que o arguido atuou num quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminuiu consideravelmente a culpa, com seJá o seu quadro de alcoolémia frequente.
22ª - Mesmo considerando esse quadro de alcoolémia, que foi provocado pelo arguido e não por terceiros, a sua atuação, face aos factos dados como provados, contrasta flagrantemente com qualquer solicitação exterior, nomeadamente a referida, que lhe possa ter diminuído consideravelmente a culpa.
23ª – Logo, independentemente da data da prática dos factos, para efeitos do disposto no art.º 30º, n.º 3, do Código Penal, é de concluir que não se confirmam os requisitos legais de que depende a verificação do crime continuado.
24ª - Nos termos do art.º 72º, n.º 1, do Código Penal, o tribunal pode atenuar especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existem circunstâncias anteriores e posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
25ª - O referido art.º 72º, nas várias alíneas do seu n.º 2, de forma exemplificativa, enumera as várias circunstâncias que podem atenuar especialmente a pena a aplicar.
26ª - Porém, tendo em devida conta que a decisão recorrida considerou, e bem na nossa perspetiva, que a culpa do recorrente se mostrou elevada, não vislumbramos, neste quadro, como é podem existir ou se verificarem circunstâncias anteriores e posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que possam diminuir de forma acentuada a sua culpa.
27ª – O regime de atenuação especial da pena, constante dos artigos 72º e 73º, do Código Penal, destina-se a responder a situações em que a ilicitude do facto e a culpa, mas também a necessidade da pena e as exigências de prevenção se revelem diminuídas de forma acentuada (neste sentido v. Acórdão da Relação de Coimbra proferido em 16-07-2008 – processo n.º 480/07.3GAMLD.D1- acessível em www.dgsi.pt), o que não parece ser o caso do recorrente.
28ª - No que respeita à determinação da medida concreta da pena, importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente – artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal.
29ª - Por outro lado, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal.
30ª - Por sua vez, as finalidades das penas visam a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, conforme determina o disposto no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal.
31ª - Por isso mesmo, na escolha da pena a aplicar, deverá atender-se quer a razões de prevenção geral positiva quer a razões de prevenção especial positiva.
32ª - Se atendermos ao segmento da Escolha e Determinação da Medida de Pena constantes da douta decisão recorrida, e a toda a fundamentação que ali é vertida, e com a qual se concorda na integra, teremos que concluir que a pena única e as penas acessórias aplicadas ao arguido se mostram justas e adequadas a prevenir a prática de crimes de igual natureza, quer por parte do arguido, quer por parte da comunidade em geral.
33ª – De facto, resulta dos termos da decisão recorrida, que as exigências de prevenção especial são relevantes.
34ª - Por outro lado, o grau de ilicitude, in casu, é médio, tendencialmente elevado, considerando a data já algo longínqua a que se reportam os factos, bem como, o período de tempo em que os factos perduraram.
35ª - No que respeita à culpa, a mesma mostra-se elevada, considerando que o arguido atuou sempre com dolo direto, indiferente à violação dos interesses legalmente protegidos e com conhecimento da real idade das vítimas.
36ª – Por isso, a pena única aplicada ao arguido não ultrapassa e estará longe de ultrapassar a medida da culpa, a sua medida concreta mostra-se imprescindível à tutela dos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora e às expetativas comunitárias, e mostra-se adequada a satisfazer a sua função de ressocialização.
37ª - Ponderando todas as circunstâncias mencionadas no douto Acórdão recorrido, bem como o que acima ficou dito, é de concluir que a pena única de 10 anos de prisão efetiva aplicada ao arguido, se mostra justa e em conformidade com as exigências do caso concreto.
38ª - Se atendermos ao que consta da decisão recorrida relativamente à pena concretamente aplicada ao arguido, constatamos que a mesma foi sustentada na sua culpa, elevada, e bem assim nas exigências de prevenção especial que se mostraram relevantes.
39ª – Por isso e também pelo número de crimes que foram dados como provados, não conseguimos vislumbrar como seria possível ser aplicada ao arguido uma pena não superior a 5 anos de prisão, que implicava sempre aferir se estavam ou não reunidos os pressupostos em que assenta a suspensão da execução da de prisão, estabelecidos no art.º 50º, do Código Penal.
40ª - No que ao arguido respeita, para além da pena de prisão que lhe foi aplicada, pelas razões já indicadas, ter que ser sempre superior a 5 anos de prisão, na hipótese, contudo, de ser igual ou inferior aos 5 anos, não se vislumbra, nomeadamente face às circunstâncias dos crimes, que se pudesse concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizavam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
41ª – Donde, não descortinamos a existência de fundamentos para a redução da pena de prisão para o limite mínimo, bem como para uma eventual suspensão da sua execução.
42ª – Por tudo o que vai exposto, a decisão recorrida não violou as disposições legais invocadas pelo recorrente.
43ª - Deve, pois, o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida.
Contudo, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA.»

û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer [transcrição]:
«(…)
Mostra-se desnecessário estar a repetir ou a copiar o que consta do processo quer as condenações de que foram alvo, quer o teor do acórdão, as questões que ambos os arguidos alegam e que bem foram respondidas pelo Ministério Público junto da primeira instância e ainda mais quando a Procuradoria junto deste Tribunal da Relação se encontra completamente desfalcada de Magistrados – talvez que tal cópia ao longo do processo seja sempre uma técnica deveras inútil, mas no presente momento seria mesmo medíocre…
Assim optamos por dizer que o acórdão nos pareceu correto e de manter.
Mais, os vícios alegados pelos arguidos têm por base um objetivo evidente, conseguir chegar a uma pena que possa ser objeto de suspensão na sua execução.
Não existe aqui interiorização do resultado danoso do seu comportamento, mudança, pronúncio de que a pena efetiva poderia não se a única a dever ser aplicada…
Pretender ver nos factos um crime continuado é insultuoso para as vítimas, porque quanto mais vezes fossem abusadas menos censurável seria a conduta dos arguidos, como se o valor jurídico a proteger fosse também desvalorizado pelo Direito…
Sem mais, devem os recursos ser julgados improcedentes

Observou-se o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Na resposta que apresentou, Zoz…, devidamente identificada nos autos e neles constituída Assistente, aderindo à posição do Ministério Público, pugna por que se mantenha, na íntegra, o acórdão recorrido.
Na resposta que apresentou, Leca manteve a posição anteriormente assumida no processo.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[4]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[5]]

Posto isto, e vistas as conclusões dos recursos, entendemos serem as seguintes as questões suscitadas – agora ordenadas segundo um critério de lógica e cronologia preclusivas:
- da nulidade do acórdão por ausência de fundamentação da matéria de facto;

- da incorreta valoração da prova produzida em julgamento;
- da violação do princípio in dúbio pro reo;
- da incorreta subsunção dos factos ao direito;
- da desadequação, por excesso, da pena imposta;
- da reavaliação da forma de cumprimento da pena imposta.
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No acórdão recorrido foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«DA ACUSAÇÃO
1. Já… nasceu em 02/04/1999, é filha de (…), residindo, em julho de 2021, na (…) juntamente com (…).
2. Je… nasceu em 27/02/2006, é filha de (…).
3. Jo… nasceu em 02/02/2013, é filha de (…).
4. A habitação onde residem Já…, Je… e Jo… é contígua às dos arguidos Zeca… e Meca… .

DO ARGUIDO ZECA
5. Em 2009 ou 2010, quando Já… contava cerca de 10/11 anos de idade, (…)
(…)
10. Ao atuar pela forma descrita, livre, voluntária e conscientemente, o arguido Zeca quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que Já… era (…), que, quando a abordou pela primeira vez, contava pelo menos 11 anos de idade (…) em todo o circunstancialismo narrado, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e sendo capaz de as orientar de harmonia com esse conhecimento.
*
DO PERCURSO, CONDIÇÕES DE VIDA E ANTECEDENTES CRIMINAIS DO ARGUIDO
12. Zeca é natural de (…) concluiu o 4.º ano de escolaridade, sem registo de reprovações, abandonando desde logo a escola para começar a trabalhar na construção civil e colaborar nas despesas familiares.
14. O arguido casou com o atual cônjuge (…) antes de cumprir o serviço militar (…)
15. Em termos laborais, desenvolveu atividade como pedreiro, de forma estável e vinculativa, em várias empresas (…)
16. O arguido iniciou o consumo excessivo de bebidas alcoólicas de forma prematura, o que terá potenciado a deterioração da dinâmica intrafamiliar, pautada pela existência de disfuncionalidade relacional associada à ocorrência regular de episódios de abuso e maus-tratos infligidos ao cônjuge e descendentes numa vivência quotidiana de ameaças e de violência.
(…)
18. À data dos factos subjacentes aos autos, Zeca coabitava com o cônjuge, mantendo uma ligação próxima com os vários elementos da família que partilhavam o espaço habitacional, designadamente com os filhos, as companheiras destes e as netas.
19. Zeca sofre de diabetes, doença que lhe causou cegueira parcial há cerca de dez anos, o que motivou a sua reforma por invalidez, auferindo, atualmente, cerca de 600 euros mensais.
20. O arguido revela uma perceção distorcida das normas e modelos de relacionamento intrafamiliar, os quais foram objeto de transmissão intrageracional. Nesse quadro está patente a desvalorização e respeito da figura feminina, embora o arguido atribua os seus comportamentos de agressão sobretudos aos hábitos etílicos.
21. Em termos pessoais, é visto como um sujeito autoritário, egocêntrico e que privilegia a satisfação das suas necessidades imediatas, revela limitações ao nível da sua capacidade de autoanálise e de crítica perante situações e experiências de vida atípicas e, em concreto, bem como um certo esvaziamento de sentido ético-valorativo quanto a eventuais questões de abuso e de violência exercida sobre os outros.
22. O arguido padece de perturbação por uso de álcool de duração indeterminada, presente desde há longa data, em estado de abstinência desde que foi admitido no Estabelecimento Prisional, tendo conhecimento extenso dos efeitos do álcool.
23. O arguido detém capacidade para avaliar a ilicitude dos atos e de se determinar em função dessa avaliação por referência ao período temporal em que os factos foram praticados.
24. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
DO ARGUIDO LECA
25. Desde o seu nascimento que os pais de Já… não lhe prestavam os cuidados necessários, nomeadamente em termos de higiene, saúde e alimentação.
26. Constatando tal realidade, Mo…, tia paterna da menor, disponibilizou-se para cuidar dela.
27. Assim, entre os 6 anos e os 18 anos, Já… residiu com sua tia Mo….
28. Apesar disso, Já… passava os fins-de-semana com os pais, ao cuidado destes.
29. Em 2005, quando Já… contava 6 anos de idade, o arguido Leca, seu pai, começou a dirigir-lhe comportamentos de cariz sexual.
30. Para o efeito, o arguido aproveitou-se da proximidade a Já…, quer afetiva, decorrente da relação familiar, quer física, adveniente de coabitarem aos fins-de-semana, e da inexperiência daquela.
31. Assim, sempre que Já… ia passar o fim-de-semana com os pais, cerca de duas vezes por mês, em (…), e quando se encontravam sozinhos, no interior da habitação, o arguido acariciava-a por todo o corpo.
32. O arguido manipulava e apalpava ainda a zona genital e as mamas de Já…, quer por cima, quer por dentro da roupa, tocando-lhe nos mamilos.
33. Em 2007, quando sua a filha contava 8 anos de idade, pela primeira vez, o arguido introduziu o pénis na sua vagina.
34. Estas relações sexuais de cópula repetiram-se durante cerca 5 anos, com uma periodicidade de pelo menos duas vezes por mês, em casa do arguido, sendo que, quando ocorriam, o denunciado manipulava e apalpava a zona genital e as mamas de sua filha.
35. Para tanto, como Já… se debatia para impedir que o pai concretizasse os seus intentos, dizendo que não queria, ele usava a sua força física, designadamente, prendendo, com as suas mãos, os braços da filha e as suas pernas, impedindo-a de movimentar, e, dessa forma, introduzia o pénis na vagina da menor.
36. Sendo que, caso Já… não cedesse, o arguido lhe batia.
37. As situações de cópula ocorreram desde que Já… tinha 8 anos de idade e até aos seus 13 anos de idade, num número de vezes concretamente não apurado, mas certamente por duas vezes por mês ao longo de cinco anos, ou seJá, em número não inferior a cento e vinte vezes.
38. No mesmo contexto, no período compreendido entre os anos de 2006 e 2007, quando Já tinha cerca 7 e 8 anos de idade, pelo menos por dez vezes, o arguido, por sua iniciativa e instrução, praticou coito oral com a sua filha, introduzindo o seu pénis na boca dela, não chegando a ejacular.
39. Em determinada ocasião, quando tinha 14 anos de idade, Já… queixou-se a To…, seu padrinho, que era vítima de abusos sexuais por parte do avô, do pai e do tio Meca.
40. To… confrontou os arguidos com essa denúncia e, ao tomar dela conhecimento, o arguido Leca desferiu na sua filha murros, pontapés e chapadas por todo o corpo e apodou-a de “mentirosa”.
41. Os referidos comportamentos tidos pelo arguido sobre a sua filha causaram-lhe tristeza, mágoa, remorsos, tendo carecido de acompanhamento psicológico e medicamentoso.
42. Em 2013 ou 2014, quando Je…contava 8 ou 9 anos de idade, o arguido Leca, seu tio, dirigiu-lhe comportamentos de cariz sexual.
43. Para tanto, o arguido aproveitou-se da proximidade de Je…, quer afetiva, decorrente da relação familiar, quer física, adveniente da proximidade das habitações, e da inexperiência daquela.
44. Em data não concretamente apurada, mas situada no mencionado intervalo temporal, Je… deslocou-se à habitação do arguido.
45. Quando entrou em casa, o tio estava na sala a ver um filme na televisão e chamou-a para se sentar junto dele, ao que Je… acedeu.
46. Depois, o arguido despiu-se da cintura para baixo e colocou o seu pénis na boca de Je….
47. O arguido assumiu igual comportamento, no mesmo período temporal, pelo menos por mais cinco vezes, quando Je… se deslocava a sua casa e enquanto visualizavam filmes pornográficos.
48. Ao atuar pela forma descrita, livre, voluntária e conscientemente, o arguido Leca quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que Je… era sua sobrinha, que, quando a abordou, contava apenas 8/9 anos de idade e que a ofendia na sua liberdade e desenvolvimento sexuais, deixando-a confusa e nervosa.
49. Por seu turno, ao agir pela forma descrita relativamente a Já…, o arguido quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que a mesma era sua filha, que contava apenas 6, 7 e 8 anos e que dada a sua ascendência sobre ela lograria constrangê-la a com ele praticar tais atos sexuais.
50. Meca agiu com o propósito concretizado de, pela atuação acima descrita em «35.» e «36.», forçar sua filha Já…, como efetivamente forçou, a sofrer introdução vaginal do seu pénis contra a vontade daquela e pondo em crise a sua liberdade sexual, o que representou.
51. Por outro lado, Leca, nos termos descritos em «36.» e «40.», atuou com intenção de molestar física e psiquicamente a sua filha Já….
52. Com efeito, ao anunciar que batia na Já… se esta não acedesse a satisfazer os mencionados instintos libidinosos e ao esmurrá-la, esbofeteá-la e pontapeá-la quando tentou denunciá-lo, bem sabia o arguido que essas condutas eram idóneas a constrangê-la a praticar os factos em crise e magoá-la, como sucedeu.
53. Por outro lado, ao apodá-la de mentirosa, atuou ainda o arguido com intenção de diminuir e achincalhar sua filha e bem sabendo que tal epíteto era apto a transtorná-la psiquicamente e a atingi-la na sua honra e na sua consideração, o que igualmente sucedeu.
54. Em todo o circunstancialismo narrado, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e sendo capaz de as orientar de harmonia com esse conhecimento.
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DO PERCURSO, CONDIÇÕES DE VIDA E ANTECEDENTES CRIMINAIS DO ARGUIDO
55. O processo de desenvolvimento e de socialização do arguido, decorreu em (…) no seio de um agregado familiar numeroso e de humilde condição socioeconómica, com uma dinâmica intrafamiliar disfuncional, sendo assinalados maus-tratos físicos e psicológicos infligidos à mãe e aos filhos pelo progenitor, o arguido Zeca.
56. Leca iniciou a escolaridade em idade normal, tendo concluído nessa fase o ensino básico. Mais tarde, através do Instituto de Emprego e Formação Profissional, concluiu um curso de operador agrícola que lhe deu a equivalência ao 9.º ano de escolaridade.
57. No plano profissional, o arguido desenvolveu atividade laboral de forma regular, sendo o seu percurso marcado pelo exercício de funções como motorista de pesados, atividade que desempenhava, à data da sua detenção, (…).
58. Leca vivenciou um consumo de bebidas alcoólicas em excesso, para o qual não fez nenhum tratamento, e que se repercutiu negativamente na dinâmica relacional da primeira união de conjugalidade que estabeleceu. A vivência em comum decorreu num anexo junto à habitação dos familiares de origem e apesar de ter durado cerca de 17 anos, foi marcada por conflitos e violência contra a companheira. Dessa relação nasceu Já…, vítima nos presentes autos e única filha do arguido.
59. Há cerca de sete anos, o arguido saiu de casa, permanecendo a filha ao cuidado, simultaneamente da mãe e da tia, Mo…. Regressou, então, ao agregado habitacional da família de origem durante algum tempo, permanecendo num anexo, período em que terá intensificado o consumo de álcool, embora tentasse manter a sua atividade profissional.
60. O arguido conheceu, entretanto, a atual companheira, Cac…, com quem iniciou um relacionamento afetivo, tendo-se autonomizado do agregado familiar de origem.
61. À data da prisão, o arguido residia com a atual companheira e os enteados, há 4 anos, em (…) numa dinâmica familiar descrita como afetiva e sexualmente gratificante. Mantinha uma atividade profissional regular e possuía um quadro económico equilibrado.
62. O arguido não tem antecedentes criminais.
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DO ARGUIDO MECA
63. Em 2009 ou 2010, quando Já… contava 10 ou 11 anos de idade, o arguido Meca, seu tio, começou a dirigir-lhe comportamentos de cariz sexual.
64. Para o efeito, o arguido aproveitou-se da proximidade de Já…, quer afetiva, decorrente das relações familiares, quer física, adveniente da contiguidade das habitações, e da inexperiência daquela.
65. Assim, sempre que a Já… visitava a avó aos fins de semana, pelo menos uma vez por mês, o arguido chamava Já… para sua casa, aliciando-a para ver o computador ou outro equipamento eletrónico.
66. Aí chegada, no quarto do arguido, estando a sós, o arguido, ao mesmo tempo que visionava filmes pornográficos na televisão, apalpava a zona genital e as mamas de Já…, quer por cima, quer por dentro da roupa.
67. Até que, decorrido cerca de um mês e meio após esses factos, em data não concretamente apurada, o arguido chamou Já… a casa dele e, já no quarto, o arguido acariciou-a na zona do peito como na parte genital, despiu-a e introduziu o pénis ereto na sua vagina, sem preservativo, não obstante Já…, chorosa, pedir ao arguido para parar, dizendo que não queria.
68. Diante do que o arguido lhe dizia para se calar e que se não contasse o sucedido lhe oferecia um telemóvel ou levava-a a concertos.
69. Concomitantemente, o arguido presenteou a sobrinha com um telemóvel e levava-a a concertos, com vista a que mesma não relatasse o sucedido.
70. Essa situação de cópula veio e repetir-se noutras ocasiões, quando Já… tinha pelo menos 11 anos de idade e até aos seus 13 anos, num número de vezes concretamente não apurado, mas não inferior a vinte e três.
71. Após o que Já… queixou-se a To…, seu tio e padrinho, que era vítima de abusos sexuais por parte do avô, do pai e do tio Meca.
72. Em 2013, quando Je… contava 7 anos de idade, o arguido Meca, seu tio, dirigiu-lhe comportamentos de cariz sexual.
73. Para tanto, o arguido aproveitou-se da proximidade de Je…, quer afetiva, decorrente da relação familiar, quer física, adveniente da contiguidade das habitações, e da inexperiência daquela.
74. Efetivamente, Je… residia em habitação contígua à do arguido, ali se deslocando com alguma frequência.
75. Por outro lado, a menor tinha uma relação de estreita proximidade com seu tio Meca, pois ele ajudava-a a estudar matemática, quando frequentava o 1.º ano da escola primária.
76. Nesse circunstancialismo, em data concretamente não apurada, mas certamente quando Je… tinha 7 anos de idade, esta foi estudar com o arguido a casa deste.
77. Quando se encontravam no quarto, a sós, o arguido despiu as suas calças e despiu a Je… da cintura para baixo, conduzindo a sobrinha a tocar-lhe no pénis com as mãos.
78. Noutra ocasião, em data não concretamente apurada, mas certamente situada no mesmo ínterim temporal, Je… foi estudar com o arguido, tendo este determinado que se dirigisse ao seu quarto.
79. Ali, o arguido despediu-se e despediu Je… da cintura para baixo, introduziu o pénis na vagina da sobrinha, causando-lhe dores.
80. Por causa delas, a menor pediu ao arguido que parasse, ao que este acedeu.
81. Ao atuar pela forma descrita, livre, voluntária e conscientemente, o arguido Meca quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que Já… e Je… eram suas sobrinhas e que, quando as abordou, estas contavam, pelo menos, 11/12/13 e 7 anos de idade, respetivamente, e que as ofendia na sua liberdade e desenvolvimento sexuais.
82. Bem como, agiu com o propósito concretizado de, pela atuação acima descrita em «67.» e «68.», sujeitar a sua sobrinha Já…, como efetivamente a sujeitou, contra a sua vontade, a sofrer introdução vaginal do seu pénis e pondo em crise a sua liberdade sexual, o que representou.
83. Em todo o circunstancialismo narrado, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e sendo capaz de as orientar de harmonia com esse conhecimento.
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DO PERCURSO, CONDIÇÕES DE VIDA E ANTECEDENTES CRIMINAIS DO ARGUIDO
84. Meca é o oitavo filho de um casal de humilde condição económica e cultural, proveniente do meio rural. A sua infância decorreu junto dos progenitores, num ambiente familiar descrito como disfuncional devido ao alcoolismo do progenitor, com a ocorrência de episódios de violência física e psicológica deste relativamente à mãe e aos descendentes, num quadro de medo e de submissão à autoridade do aqui arguido, Zeca, o qual se impunha através de comportamentos de abuso e de agressão aos membros da família.
85. O percurso escolar do arguido decorreu de forma irregular, com reprovações no 4.º ano e 6.º ano, justificadas pelas dificuldades na aprendizagem e adaptação ao contexto escolar, tendo abandonado o ensino no decurso do 7.º ano de escolaridade e iniciado o desempenho de pequenas tarefas de cariz indiferenciado na área da construção civil e agricultura, conforme as propostas que surgiam na vizinhança e/ou nas localidades próximas.
86. Em 2007, iniciou através do Instituto do Emprego e Formação Profissional de (…), o curso de manutenção hoteleira, do qual desistiu e em 2009 realizou um curso de eletricidade e instalações, beneficiando para o feito de uma bolsa de apoio.
87. Entre 2011 e 2013, o arguido concluiu o curso de dupla certificação de “Jardinagem e espaços verdes” que o certificou com o 9.º ano de escolaridade.
88. Ainda em 2013, realizou o curso básico de eletricidade e instalações e de 2014/2015, participou no curso de técnico de organização de eventos e o curso de informática – Excel.
89. Continuou a investir na sua formação profissional, tendo em 2016 terminado o curso de serralheiro mecânico e, em 2017, frequentado o curso de refrigeração e climatização do qual acabou por desistir, em 23/01/2018, não tendo obtido a certificação com equivalência ao 12.º ano de escolaridade.
90. Concomitantemente à atividade formativa, exercia funções de eletricista na montagem de espetáculos em festas e romarias, ao longo do país, de forma sazonal e em regime de freelancer numa empresa da sua área residencial.
91. À data dos factos, não desenvolvia nenhuma atividade estruturada de tempos livres, mantendo poucas ligações de amizade, centrando o seu quotidiano, sobretudo, no contacto com os vários elementos da família nuclear. É descrito como uma pessoa pouco sociável e sem grande ligação a grupos de pares num registo de isolamento social.
92. A nível afetivo estabeleceu várias relações amorosas de curta duração, assinalando a primeira relação sexual aos 12 anos de idade, em contexto de namoro com uma colega da sua faixa etária.
93. Aos 27 anos de idade, iniciou o relacionamento marital com (…), coabitando com a companheira, num anexo da habitação dos pais. A relação, que durou cerca de doze meses, foi descrita pelo arguido como gratificante e da qual nasceu a filha do ex-casal (atualmente com 10 anos de idade).
94. A descendente do casal foi alvo de intervenção da CPCJ de (…), tendo sido entregue a responsabilidade parental à avó materna por falta de cuidados básicos de higiene e saúde da menor, não mantendo a criança, até à atualidade, contactos próximos com o pai e com a família paterna.
95. No final de 2015, encetou um segundo relacionamento marital, tendo coabitado com (…), no imóvel anexo à habitação dos pais, no entanto, a situação de conflitualidade relacional terá impulsionado a rutura da união, de pouca estabilidade e durabilidade.
96. Durante o ano de 2018, emigrou para (…), onde mantinha um contacto, via redes sociais, com uma amiga/companheira, com quem viveu cerca de doze meses.
97. À data da detenção, integrava o mesmo contexto familiar e residencial, desenvolvendo atividade laboral na montagem de espetáculos, sem o registo de convívios sociais de proximidade.
98. Através da internet conheceu (…), residente (…), assumindo manter uma relação amorosa com a mesma, via redes sociais. Perspetiva emigrar para aquele país, a fim de viver com a atual namorada, aguardando apenas a resolução da presente situação jurídica.
99. No meio prisional, recebe visitas regulares da mãe e da cunhada e estabelece contactos telefónicos com a atual namorada. A mãe ajuda-o economicamente e revela-se totalmente disponível para o apoiar no seu regresso ao meio livre.
100. O arguido não tem antecedentes criminais.»

Relativamente a factos não provados, consta do acórdão que [transcrição]:
«Não resultaram provados, com relevo, os seguintes factos:
(…)

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«A formação da convicção do Tribunal assentou na apreciação conjunta realizada aos diferentes meios de prova produzidos em Audiência de Discussão e de Julgamento, analisados em si, entre si e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
A factualidade descrita em «1.» a «4.» resultou da prova documental junta aos autos, a saber: assentos de nascimento de fls. 38-39, 207-224, 227-228 e 231-232, no confronto com o deposto a respeito pela assistente (…) e pelas testemunhas (… e … ), as quais, de forma espontânea, atestaram o domicílio de (…), bem assim a localização próxima da residência de (…), sendo que os arguidos Meca e Meca, nas declarações que prestaram em audiência de julgamento, também os confirmaram.
A factualidade descrita em «5.» a «9.»; «25.» a «41.» e «63.» a «71.», foram atestadas pelas declarações para memória futura prestadas na fase de inquérito pela vítima Já… (transcritas para os autos), a qual, diante da Sr.ª Juíza de Direito que presidiu à referida diligência, de forma bastante segura, eloquente, lógica, pormenorizada e sentida, atestou os referidos factos, com relação ao seu avô, ao seu pai e ao seu tio Meca, nos termos em que o Tribunal deu como provados.
De facto, foi possível extrair dessas declarações, com a segurança necessária, toda a referida factualidade, contextualizada no espaço e no tempo, nos termos em que se deram como provados. Destarte, qualquer elemento de prova foi trazido aos autos que pudesse infirmar o aí declarado pela Já….
O arguido Zeca, seu avô, optou por não prestar declarações, quer em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido, quer em sede de audiência de discussão e de julgamento.
O arguido Leca, seu pai, manifestando vontade em prestar declarações, admitiu parte da referida factualidade, isto é, que apalpava a filha sobre o peito, bem como o sexo oral que com ela praticava, introduzindo o seu pénis da boca dela, por sua iniciativa e sob o seu comando, quando, a partir dos seus 6/7 anos de idade, ela se deslocava a sua casa aos fins-de-semana e a mãe ausentava-se para trabalhar. Procurando justificar o aludido comportamento pelo facto de nesses momentos estar alcoolizado e de ter sido vítima de violência doméstica na infância, revelou arrependimento e interiorização do mal que provocara na filha. Mais admitiu que, no dia em que o seu irmão To… o confrontou com os abusos sexuais relatados pela Já…, lhe desferiu duas bofetadas e chamou-a de mentirosa, refutando, contudo, que a tivesse agredido fisicamente de outra forma mais gravosa, bem assim os demais maus-tratos imputados.
E o arguido Meca, seu tio, manifestando vontade em prestar declarações, de forma bastante confusa e procurando justificar as imputações feitas por razões patrimoniais, do interesse do seu irmão To…, não sustentada, contudo, diga-se, por qualquer outro meio de prova, negou a factualidade imputada.
Por outro lado, as testemunhas arroladas pela defesa, Ber…, ex-colega de trabalho do arguido Meca; Gog, ex-companheira do arguido Meca; Nu… e Hh…, ambos amigos do arguido Leca; e Sof…, atual companheira do arguido Leca, pese embora tenham revelado surpresa pelos factos imputados aos arguidos, não tendo presenciado quaisquer factos relativos à referida factualidade, não tiveram a virtualidade de fragilizar as declarações prestadas pela vítima Já….
De referir, quanto ao relevo dado às declarações para memória futura prestadas pela vítima, conforme é entendimento uniforme na Jurisprudência e na Doutrina, nas situações de abuso sexual de crianças e similares, por força das circunstâncias, a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, sendo regra geral apenas terem conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, baseada nos conhecimentos que sobre a matéria que vem sendo transmitida pelas investigações psicológicas, pois só nesse caso é suscetível de formar a convicção do julgador, como, de resto, o foi no presente caso. Destarte, em matéria de “crimes sexuais” as declarações da vítima têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante; pelo que, não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta, como são os crimes sexuais.
Assim, com base nas declarações da vítima Já… e ainda com os depoimentos prestados pelas testemunhas To…, Mo… e pela assistente Zoz…, indicados na acusação pública, o Tribunal formou a sua convicção quanto à referida factualidade.
De facto, (…), mãe da Já…, de forma colaborante, confirmou que, quando a filha tinha 6 anos de idade, foi viver com a tia Mo…, pelo facto de ela e o pai não terem tempo para cuidar da Já…. Mais referiu que, quando a filha tinha cerca de 13/14 anos, esta lhe contou que tinha brincadeiras com o pai e com o tio Meca que não gostava e que, pese embora observasse que a filha demonstrava algum repudio quando o pai brincava consigo e o tio he ter relatado que a Já se queixava de abusos por parte do pai, nunca deu importância ao assunto, pelo facto de não ter presenciado qualquer situação que a levasse a suspeitar dos alegados abusos. Ora, estes alertas dados pela então menor, em data mais próxima dos acontecimentos, reforçam a credibilidade que se deu às declarações prestadas pela Já….
Mais referiu que, a partir dos 6 anos de idade da filha, o pai era muito violento com a Já…, designadamente quando consumia bebidas alcoólicas em excesso, tendo notado que, quando a filha tinha cerca de 11/12 anos de idade, perdeu peso, andava muito triste, mais séria. Pelo que, dúvidas inexistem que o declarado a respeito pela Já… quanto aos maus-tratos infligidos pelo pai, mostra-se também reforçado com este depoimento.
Disse ainda que havia um bom relacionamento com o tio Meca, sendo usual a Já… ir a casa dele para aceder ao computador, quando se deslocava aos fins de semana a sua casa, nunca tendo suspeitado de qualquer abuso por parte daquele. Neste seguimento, confirmou a frequência mensal com que a filha a visitava, nos termos em que se deram como provados, bem assim o facto de a Já… frequentar a casa do tio Meca sempre que se deslocava a casa dos pais, nos termos por ela declarados.
Por outro lado, To…, pai da Je… e tio da Já…, filho do arguido Seca e irmão dos demais arguidos, com conhecimento direto, de forma colaborante, espontânea, que nos pareceu séria, a respeito da factualidade em causa, relatou que a sobrinha Já…, quando tinha cerca de 14 anos de idade, lhe confidenciou que o pai, o arguido Leca abusava sexualmente dela, diante do que confrontou o irmão, que negou, e a mãe da Já… o defendido, alegando que a filha tinha inventado tais factos como forma de retaliação pela tareia que tinha sofrido do pai. Mais referiu que, dias depois, a Já…lhe contou que o pai lhe tinha dado uma tareia de cinto, na sequência da denuncia feita, queixando-se de um dos joelhos, o que intensifica o declarado a respeito pela vítima.
Relativamente ao arguido Meca, seu irmão, relatou que era usual a Já… ir para casa dele, com quem tinha uma relação próxima, apenas sabendo dos abusos por ele cometidos mais tarde, genericamente confidenciados pela sobrinha. A propósito, negou que a situação dos autos esteja relacionada com as desavenças existentes com o pai e com os irmãos, aproveitando, contudo, para descrever o mau ambiente familiar que sempre se viveu em casa dos seus pais e as situações de violência doméstica que testemunhou com relação à sua mãe e a si mesmo.
Por fim, Mo…, filha do arguido Zeca e irmã dos demais arguidos, de modo seguro, espontâneo e emotivo, com conhecimento direto dos factos, atestou que, quando a Já… tinha 6 anos de idade, ofereceu-se para cuidar dela, diante da falta de cuidados que a mesma evidenciava. Assim, referiu que, desde então, a Já… passou a viver consigo, frequentando a casa dos pais aos fins de semana, onde pernoitava. Referindo não notado nada de estranho no seu comportamento quando a Já… regressava a sua casa, esclareceu, contudo, que, durante a noite, até aos 9 anos de idade, a mesma urinava na cama, tendo, por duas vezes, acordado com pesadelos. E que, por volta dos 14 anos, notou a Já… mais fechada, após estar com o pai, facto que, contudo, na altura, associou apenas à fase da adolescência.
Explicou que apenas teve conhecimento dos abusos de que Já… era vítima por parte dos familiares depois de ela o ter denunciado às autoridades, altura em que a Já… lhe relatou os factos nos termos em que o fez em sede de declarações para memória futura, referindo que ela própria também havia sido vítima de abusos, na infância, por parte do pai, o arguido Zeca.
Os factos descritos nos pontos «42.» a «47.», «72.» a «80.», foram atestados pelas declarações para memória futura prestadas na fase de inquérito pela vítima Je… (transcritas para os autos), a qual, diante da Sr.ª Juíza de Direito que presidiu à referida diligência, de forma algo constrangida e nervosa, justificável face à natureza dos factos, e que, por isso, não deixou de merecer a atenção, atestou os referidos factos, com relação ao seu tio Leca e ao seu tio Meca, nos termos em que o Tribunal deu como provados.
De todo o modo, o arguido Leca, prestando declarações em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido, confirmou que, quando a sobrinha tinha cerca de 9 anos de idade, por cerca de 6 vezes, na sua casa, quando se encontravam sós, por sua iniciativa, praticou sexo oral com ela, introduzindo o seu pénis da boca dela, ao mesmo tempo que, por vezes, visualizavam filmes pornográficos. Mais declarou estar arrependido, procurando justificar tais comportamentos pelo facto de estar alcoolizado.
O arguido Meca, seu tio, optando por prestar declarações, tal como fez com relação aos factos imputados com relação à sua sobrinha Já…, negou a factualidade imputada relativamente à sobrinha Je…. Não obstante, nos termos já deixados consignados quanto à valoração das declarações para memória futura prestadas pela Já…, os quais aqui se reiteram para os devidos efeitos legais, tendo as declarações prestadas pela Je… merecido credibilidade por parte do Tribunal, porquanto desde logo não infirmadas por qualquer outro elemento de prova, e as declarações prestadas pelo arguido não sido sustentadas por qualquer outro meio de prova, dúvidas inexistem que os factos ocorreram nos termos contados pela vítima e que se deram por provados.
To…, pai da Je…, pese embora sem conhecimento direto dos factos, contou que a filha, recentemente, lhe confidenciou os abusos perpetrados pelo seu irmão Meca quando se deslocava a casa dele para fazer os trabalhos de casa e aí ficavam a sós, nada existindo nos autos, pois, que nos leve a duvidar da veracidade das declarações prestadas pela menor.
Destarte, a demais prova produzida em audiência de julgamento, isto é, o depoimento prestado pelas testemunhas de defesa apresentadas pelo arguido Meca, a saber: Ber…, ex-colega de trabalho, e Gog…, ex-companheira, não atestaram qualquer facto que nos levasse a concluir de forma diferente.
Os factos descritos nos pontos «10. a 11.»; «48. a 54.» e «81. a 83.» da factualidade evidenciada, de índole subjetiva, porque insuscetíveis de prova direta, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objetivos provados, os quais, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade, sendo que o próprio arguido Leca, nas declarações que prestou em sede de primeiro interrogatório de arguido e em audiência de julgamento, reconheceu parte dos factos imputados e revelou ter consciência da ilicitude e punibilidade da sua conduta. Da mesma forma, o relatório pericial determinado realizar às faculdades mentais do arguido Zeca, no decurso da audiência de julgamento, também serviu para atestar a sua capacidade de compreensão quanto à censurabilidade dos comportamentos imputados. E o arguido Meca, pese embora não tenha admitido a factualidade imputada, demonstrou ter consciência da censurabilidade e punição da mesma, quando procurou desresponsabilizar-se da mesma.
Os factos elencados sob os pontos «12. a 24.»; «55. a 62.» e «84. a 100.» da factualidade provada, referentes ao trajeto e condições de vida dos arguidos, resultaram do teor dos relatórios sociais determinados realizar e juntos aos autos, corroborados que foram em parte com o deposto a respeito pelas testemunhas arroladas pelos arguidos, Ber…, ex-colega de trabalho do arguido Meca; Gog…, ex-companheira do arguido Meca; Nu… e Hh…, ambos amigos do arguido Leca; e Sof…, atual companheira do arguido Leca, e ainda com os depoimentos das demais testemunhas inquiridas arroladas na acusação pública, seus familiares diretos e, por isso, com conhecimento da realidade aí retratada.
Os factos referentes aos antecedentes criminais dos arguidos, advieram dos respetivos CRC’s incólumes, juntos aos autos.
Os factos não provados, elencados sob os pontos «a.» a «dd.» resultaram da sua falta de prova.
Destarte, quanto aos factos referentes à Jo…, alegadamente cometidos pelo arguido Zeca, não tendo a menor e o arguido prestado declarações e não tendo a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento incidido sobre os mesmos, por falta de prova, o Tribunal deu-os como não provados. O mesmo se diga quanto aos factos referentes à Je…, alegadamente cometidos pelo arguido Zeca, na medida que a menor se recusou a prestar declarações quanto a essa factualidade, o arguido nada declarou e as demais testemunhas não o testemunharam.
A demais factualidade não provada resultou também da sua falta de prova, na medida que, desde logo, as vítimas e os arguidos não a declararam nos termos descritos na acusação pública, mas apenas de acordo com o que o Tribunal deu como provado e que levou, por isso, à factualidade provada.»

û
Conhecendo.
(i) Da nulidade do acórdão por ausência de fundamentação da matéria de facto
É questão suscitada pelo Arguido Meca.
Que entende que o acórdão com que não se conforma carece de fundamentação, porque se limita «a enumerar os factos provados e não provados, tão só mais indicando a existência dos depoimentos feitos em audiência e das declarações prestadas para memória futura na fase de inquérito, mas não concretizando ou descrevendo, sequer minimamente, nem uns, nem outros
E sendo esta a sua perspetiva, o Recorrente conclui que «o Tribunal se limitou a enumerar os factos que entendeu dar por provados, não procurando explicitar o processo de formação da sua convicção, donde e em face dessa omissão, não logra (…) retirar do texto do acórdão, quais as provas em que o Tribunal recorrido se baseou para formar a sua convicção e considerar provados os factos, que a final entendeu dar por provados

Vejamos se lhe assiste razão.
A obrigatoriedade da sentença conter não só a indicação das provas que serviram para estruturar a convicção do Tribunal, mas também o seu exame crítico, surgiu com a revisão do Código de Processo Penal de 1998 – Lei n.º 59/98, de 25 de agosto – e seguiu-se ao julgamento de inconstitucionalidade, com fundamento na violação do direito ao recurso, da interpretação do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal que se bastava com a mera enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª Instância, não exigindo a clarificação do processo de formação da convicção do julgador [acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 680/98, de 2 de dezembro, e n.º 639/99, de 22 de novembro].
A fundamentação da sentença, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, há-de conter a «enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»
Esta norma corporiza exigência consagrada no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.
Dever de fundamentação que, reportado à sentença, abrange a matéria de facto e a matéria de direito, para que tal peça processual contenha os elementos que, por via das regras da experiência ou de critérios lógicos, conduziram o Tribunal a proferir aquela decisão e não outra.

Dispõe-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º
Ou seJá, de acordo com as disposições combinadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º e do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, a falta de fundamentação gera a nulidade da sentença.

Do exame do acórdão recorrido não resulta o defeito que o Recorrente lhe aponta.
Efetivamente, na parte do acórdão dedicada à motivação da decisão de facto, depois de se afirmarem as regras que presidem à valoração da prova, procedeu-se à indicação da prova valorada relativamente aos factos considerados como provados e não provados.
Ou seja, e na parte que agora nos interessa, o Tribunal de 1.ª Instância, relativamente aos factos provados [pontos 63 a 100] e não provados [pontos j. a dd.] valorou (i) as declarações para memória futura prestadas pela Já… e Je… – transcritas no processo -, que considerou aptas a, com a necessária segurança, contextualizarem, quer no espaço, quer no tempo, o comportamento do Arguido Meca, (ii) a nenhuma valia das declarações prestadas do Arguido Meca, porque confusas e dirigidas a justificar com razões de natureza patrimonial o comportamento de seu irmão To…, (iii) a pouca valia das declarações prestadas pelas testemunhas arroladas pelo Arguido Meca, que se revelaram surpreendidas com as imputações ao mesmo feitas e desconhecedoras dos factos em que se sustentam, e (iv) os depoimentos das testemunhas To…, Mo… e Zoz…, cujo teor relatou.

Ou seja, quem julgou deu prevalência à versão dos acontecimentos apresentada pelas Ofendidas Já… e Je…, relativamente à descrição que dos mesmos foi feita pelo Arguido Meca.
Porque as declarações para memória futura das primeiras se consideraram credíveis, não foram infirmadas pela prova arrolada pela defesa do Arguido Meca e encontraram confirmação nas declarações das testemunhas To…, Mo… e Zoz….

O raciocínio de quem julgou mostra-se, pois, perfeitamente revelado.
A não aceitação dele é questão diversa da invocação da sua ausência.

Pelo que não ocorre a falta ou insuficiência do exame crítico da prova.
Improcedendo o recurso, neste segmento.




(ii) Da incorreta valoração da prova produzida em julgamento
É questão suscitada por ambos os Recorrentes.

Antes de a afrontarmos, com o propósito de bem expressar o nosso entendimento, impõe-se precisar conceitos.
Em causa está o modo como pode sindicar-se a valoração da prova feita em 1.ª Instância, determinante para a fixação dos factos que aí se consideraram como provados e não provados – sindicância que pode fazer-se num primeiro momento fora e, depois, no âmbito dos vícios que devem ser aferidos perante o texto da decisão em causa [dito de outra forma, e respetivamente, no domínio da impugnação ampla da matéria de facto e no domínio da impugnação restrita da matéria de facto].

A impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto [ou aquela que se encontra fora do âmbito da previsão do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal], depende da observância dos requisitos consagrados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, ou seja:
«(...)
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(...)»
E ocorrendo impugnação da matéria de facto, com observância das regras acabadas de mencionar, o Tribunal, conforme se dispõe no n.º 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, «procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta de verdade e a boa decisão da causa
Encontramo-nos no domínio dos vícios do julgamento. No domínio do erro na “aquisição” da prova, que ocorre quando o Julgador perceciona mal a prova – porque o conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que, efetivamente, foi dito por quem os prestou.
Erro do Julgador, no momento em que perceciona a prova, em que toma contacto com ela, e não no momento em que a avalia. Erro que pode viciar a avaliação da prova, mas que a antecede e dela se distingue.
Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, página 1131, em anotação ao artigo 412.º do Código de Processo Penal, afirma que «a especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (...)»; «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (...) mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento».
«(...) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei nº 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado (...).».[[6]]
De onde é lícito concluir que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».[[7]]
Ou seJá, a gravação das provas funciona como “válvula de segurança” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto.

A sindicância da matéria de facto pode, ainda, obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão [e não do julgamento] – impugnação restrita da matéria de facto –, de conhecimento oficioso, que podem constituir fundamento de recurso, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito [n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal].
Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, reportando-se aos fundamentos do recurso:
«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
(...)»
Tais vícios, que se encontram taxativamente enumerados no preceito legal acabado de mencionar, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida [sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo], por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.
Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”[[8]]
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão ocorre quando se deteta «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.» [[9]]
O erro notório na apreciação da prova constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seJá, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.» [[10]]

Não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.
Mas tal valoração é, também, sindicável.
O que equivale a dizer que a matéria de facto pode ainda sindicar-se por via da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Neste preceito legal consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante[[11]], pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas exceções decorrentes da “prova vinculada” [artigos 84.º (caso julgado), 163.º (valor da prova pericial), 169.º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344.º (confissão) do Código de Processo Penal] e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova [artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal] e o do “in dubio pro reo” [artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa].[[12]]
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevante para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
«O ato de julgar é do Tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objetivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como seJám as da experiência a perceção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objetiváveis atinentes com a valoração da prova.
A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos atos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extratos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma perceção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjetivo, que se vincula o juiz à perceção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão [[13]]
E, seguindo tais ensinamentos, não resta senão concluir que não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.

a. recurso do Arguido Leca
Estão em causa os factos considerados como provados nos pontos 33 a 37, 51 e 52.
Entende o Arguido Leca que tendo sido valoradas as declarações que prestou e as declarações prestadas pela sua filha Já… – que não coincidem -, não há razão para se ter dado prevalência à versão dos acontecimentos por esta apresentada.
Porque (i) tem mantido a mesma versão dos acontecimentos ao longo do processo, (ii) tem relatado os factos que assumiu de forma espontânea e emocionada, (iii) a Já… revela-se serena e verbosa – uma boa contadora de histórias – relativamente a factos muito graves e de grande intimidade, (iv) a tia da Já…, que a criou, relata que a mesma, aos 9 (nove) anos de idade afirmava ter ido de comboio ao Brasil, (v) o cenário de violência descrito pela Já…, que havia de lhe deixar marcas físicas, nunca foi percecionado por terceiros, nomeadamente pela sua tia que a criou.

Não resultando das conclusões da motivação do recurso que se assinalem divergências entre aquilo que foi dito no decurso da audiência de julgamento e aquilo que quem julgou diz que se disse, nessa mesma ocasião, nem tendo sido observado o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, o desconforto do Recorrente relativamente à factualidade considerada como provada deve ser ponderado ao nível da violação do disposto no artigo 127.º desse Código e, num segundo momento, através da verificação de algum dos vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo compêndio legal.
As práticas sexuais são, por regra, levadas a cabo longe dos olhares de quem nelas não participa.
Nos crimes que envolvem a prática de atos sexuais, acentua-se a busca de resguardo.
Nos crimes desta natureza que envolvem crianças, o silêncio a que estas votam o que lhes sucede é, também por regra, uma imposição do agressor e adequa-se à estranheza da situação que as envolve e que não conseguem justificar perante si próprias.
Neste contexto, a versão dos acontecimentos apresentada pelo agressor/agressora e pela vítima – geralmente não coincidente – assume particular importância e há-de encontrar confirmação e validação em aspetos circundantes, também relacionados com a normalidade da vida e com os comportamentos comuns.
E sendo esta a nossa perspetiva, é evidente que aderimos ao raciocínio que o Tribunal de 1.ª Instância formulou aquando da avaliação da prova perante si produzida em julgamento.
Foi dada prevalência à versão dos acontecimentos apresentada pela Já…, relativamente à descrição que dos mesmos foi apresentada pelo Arguido Leca.
Porque as declarações para memória futura das primeiras se consideraram credíveis, não foram infirmadas pela prova arrolada pela defesa do Arguido Leca e encontraram confirmação nas declarações das testemunhas To…, Mo… e Zoz…

E aqui chegados, são de pouca utilidade as razões que o Arguido Leca enuncia para se insurgir contra a valoração da prova que conduziu à fixação dos factos no acórdão recorrido.
Senão vejamos.
É verdade que o Arguido tem mantido a mesma versão dos acontecimentos ao longo do processo.
Mas é verdade também que este processo não o apanhou de surpresa e que teve tempo bastante – mais de 7 (sete) anos, contados desde que a sua filha Já… denunciou o seu comportamento e o comportamento dos restantes Arguidos e a ocasião em que foram todos detidos – para estruturar a sua versão dos acontecimentos e a forma adequada a apresentá-la a terceiros.
Por outro lado, a versão única dos acontecimentos apresentada pelo Arguido não garante que seja o verdadeiro relato dos acontecimentos.
Desde logo porque os factos que o Arguido assume ter praticado o arredam de postura decente e de atitude confiável.
Depois, porque o Arguido, à data da prática dos factos em causa neste processo, consumia bebidas alcoólicas, regularmente e em excesso. E esta circunstância não garante ajustada perceção da realidade.
A forma como o Arguido descreve a postura processual de sua filha Já…, vítima dos seus atos, esquece a idade da mesma quando foi ouvida no processo e tempo decorrido desde que a usou para as suas práticas sexuais – a Já… contava já 21 (vinte e um) anos de idade quando prestou declarações para memória futura e os factos que relatou haviam ocorrido há mais de 7 (sete) anos.
E não é reconduzível à imaginação da criança de 9 (nove) anos – que diz que já foi de comboio ao Brasil… – a descrição de práticas sexuais que não experienciou.
Haverá aqui que ter presente que o relato dos acontecimentos em questão não é prestado pela criança de 9 (nove) anos, mas pela jovem adulta de 21 (vinte e um) anos.
Por fim, o cenário de violência descrito pela Já…, quando o seu pai lhe impunha práticas sexuais, era de constrangimento físico de um adulto sobre uma criança, não necessariamente causador de mazelas visíveis.

Impõe-se, ainda, dizer que as práticas heterossexuais visam a cópula, entendida como a relação sexual que supõe, especificamente, a introdução do pénis por via vaginal.
E não vislumbramos razão para o Arguido se ter afastado de tal propósito.

Isto posto, as razões do recurso, no segmento que agora nos ocupa, evidenciam que o Arguido Leca pretende sobrepor uma avaliação muito própria e muito favorável que faz da prova àquela que foi feita pelo Tribunal recorrido.
Mas sem afirmar, nem demonstrar, que a avaliação da prova feita pelo Tribunal recorrido não é possível.
E a constatação de tal possibilidade é, por si só, impeditiva da intervenção desta Relação ao nível da modificação factual.

Acresce que a leitura da prova feita pelo Tribunal recorrido se revela perfeitamente plausível, porque consonante com declarações e depoimentos prestados, e com as regras da experiência comum [o normal acontecer].
E contra semelhante “leitura” não concorrem provas inequívocas e em sentido diverso, que não a consintam.

Posto isto, e concluindo, surge como evidente que a não aceitação que o Recorrente manifesta relativamente ao modo como Tribunal de 1.ª Instância decidiu a matéria de facto não radica na existência de provas que impusessem decisão diversa da que foi proferida, mas tão-só na sua análise pessoal da prova e na sua vontade de a sobrepor a quem tem o poder\dever de a fazer.
O que não pode aceitar-se.

Invoca, também, o Arguido Leca ter sido desrespeitado o princípio in dubio pro reo.
Analisando o acórdão recorrido, dele não resulta que o Tribunal de 1.ª Instância tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objetiva e motivável – em relação ao comportamento do Arguido Leca e que, a partir desse estado, tenha procedido à fixação de factos, como provados, que lhe são desfavoráveis.
A esta conclusão (dubitativa) também se não chega da análise desse mesmo texto à luz das regras da experiência comum, ou seja, não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, as devesse ter.
Ora, não se encontrando o Tribunal a quo no referido estado de dúvida e nada nos permitindo concluir que o devesse estar, não se manifesta violado o princípio in dubio pro reo.

Resta deixar expresso, relativamente aos factos que respeitam ao Arguido Leca, que do exame do acórdão recorrido – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.
E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.

Improcedendo o recurso, neste segmento.

b. recurso do Arguido Meca
Estão em causa os factos considerados como provados nos pontos 70 e 79.
Entende o Arguido Meca que as declarações da Já… não bastam para considerar provado que com ela copulou por 23 (vinte e três) vezes.
Entende, ainda, que a insegurança com que a Je… prestou declarações e o teor do relatório da perícia da natureza sexual que consta do processo – fls. 146 a 148 – evidenciam erro notório na apreciação da prova, por não consentirem concluir que tenha introduzido o seu pénis na vagina da sobrinha Je….
Não resultando das conclusões da motivação do recurso que se assinalem divergências entre aquilo que foi dito no decurso da audiência de julgamento e aquilo que quem julgou diz que se disse, nessa mesma ocasião, nem tendo sido observado o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, o desconforto do Recorrente relativamente à factualidade considerada como provada deve ser ponderado ao nível da violação do disposto no artigo 127.º desse Código e, num segundo momento, através da verificação de algum dos vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo compêndio legal.

E aqui chegados, não resta senão recordar o que já se deixou dito.
As práticas sexuais são, por regra, levadas a cabo longe dos olhares de quem nelas não participa.
Nos crimes que envolvem a prática de atos sexuais, acentua-se a busca de resguardo.
Nos crimes desta natureza que envolvem crianças, o silêncio a que estas votam o que lhes sucede é, também por regra, uma imposição do agressor e adequa-se à estranheza da situação que as envolve e que não conseguem justificar perante si próprias.
Neste contexto, a versão dos acontecimentos apresentada pelo agressor/agressora e pela vítima – geralmente não coincidente – assume particular importância e há-de encontrar confirmação e validação em aspetos circundantes, relacionados com a normalidade da vida e com os comportamentos comuns.
E sendo esta a nossa perspetiva, é evidente que aderimos ao raciocínio que o Tribunal de 1.ª Instância formulou aquando da avaliação da prova perante si produzida em julgamento, dando prevalência à versão dos acontecimentos apresentada pela Já…, relativamente à negação dos mesmos levada a cabo pelo Arguido Meca, em discurso confuso e dirigido a encontrar justificação para a sua presença neste processo em razões de ordem patrimonial.
Porque as declarações para memória futura da primeira se consideraram credíveis, não foram infirmadas pela prova arrolada pela defesa do Arguido Meca e encontraram confirmação nas declarações das testemunhas To…, Mo… e Zoz…

O número de ocasiões em que o Arguido Meca manteve relação de cópula com a sua sobrinha Já… – 23 (vinte e três) –, referido no ponto 70 dos factos provados decorre das declarações da Já… e é o resultado daquilo que, com segurança, é possível calcular.
Entre os seus 11 (onze) e 13 (treze) anos de idade – dois anos, que correspondem a vinte e quatro meses –, a Já…frequentou a casa do tio Meca, pelo menos, uma vez por mês. E as práticas sexuais ocorriam nessas ocasiões.

Nenhum reparo merece, pois, o raciocínio do Tribunal de 1.ª Instância relativamente ao que fez constar como provado no ponto 70.

Outro tanto não sucede quanto ao que consta do ponto 79 dos factos provados - «Ali, o arguido despiu-se e despiu a Je…da cintura para baixo, introduziu o pénis na vagina da sobrinha, causando-lhe dores
Porque o relatório da perícia de natureza sexual que consta de fls. 146 a 148 e as declarações para memória futura da Je… não suportam tal conclusão.

No referido relatório consta, na alínea B) do item “Estado Atual”, dedicado ao “Exame Objetivo”, que «(…) visualiza-se membrana himenial rosada, semilunar, ligeiramente carnuda, com bordo livre discretamente irregular, com maior altura (cerca de 7 mm) entre as 5 e as 7 horas e menor altura (cerca de 3 mm) às 2 horas. Não foram constatadas lesões traumáticas aparentes (recentes/não recentes) na membrana himenial.
O ostíolo himenial é permeável apenas ao dedo indicador do perito médico que realizou o exame (não permitindo a cópula sem se lacerar).
(…)»
E concluiu-se,
«(…)
4. Como a membrana himenial apenas é permeável a um dedo, na ausência de lesões traumáticas ou sequelas, apenas nos é possível afirmar que a examinada não terá sido exposta a coito vaginal.
5. Assim, não foram encontrados, no presente exame, quaisquer elementos que nos permitam afirmar que a examinada tenha sido submetida a práticas sexuais, importando assinalar que a ausência de vestígios físicos não significa que o abuso sexual não possa ter ocorrido, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios e já decorreu período de tempo significativo desde a alegada prática dos factos

O hímen é a membrana que, na mulher anatomicamente virgem, tapa parcialmente a vagina.
Normalmente, o hímen rompe-se quando é pressionado para dentro – o que acontece aquando da primeira cópula.
Nada indicando que o hímen da Je… seja complacente, a sua integridade permite concluir não ter sido a mesma sujeita a coito vaginal.
O que é bastante para não se poder concluir, como se fez no ponto 79 dos factos provados, que o ora Recorrente introduziu o seu pénis na vagina da Je….

E neste mesmo sentido, surgem as declarações prestadas, para memória futura, pela Je….
Que, como inequivocamente resulta da sua leitura, disse que seu tio tentou introduzir o pénis na sua vagina. E que ao tentar fazê-lo, a magoou. Prática que o tio abandonou, depois de lhe pedir que não o fizesse.
Daqui decorre que o Arguido praticou ato sexual de relevo com a Je…, que não consistiu em cópula.
A matéria que consta do ponto 79 dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
«Ali, o Arguido despiu-se e despiu a Je… da cintura para baixo e tentou introduzir o seu pénis na vagina da sobrinha, com o que causou dor a esta.»

Face ao que já se deixou dito, a violação do princípio in dúbio pro reo é questão que se coloca apenas em relação à factualidade considerada como provada no ponto 70.
Analisando o acórdão recorrido, dele não resulta que o Tribunal de 1.ª Instância tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objetiva e motivável – em relação ao comportamento que o Arguido Meca mantinha com a sua sobrinha Já… e que, a partir desse estado, tenha procedido à fixação de factos, como provados, que lhe são desfavoráveis.
A esta conclusão (dubitativa) também se não chega da análise desse mesmo texto à luz das regras da experiência comum, ou seja, não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, as devesse ter.
Ora, não se encontrando o Tribunal a quo no referido estado de dúvida e nada nos permitindo concluir que o devesse estar, não se manifesta violado o princípio in dubio pro reo.

Resta deixar expresso, relativamente aos factos que respeitam ao Arguido Meca e com a correção que acima se deixou assinalada, que do exame do acórdão recorrido – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.
E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.

Procedendo parcialmente o recurso.

(iv) Da incorreta subsunção dos factos ao direito
É questão suscitada por ambos os Arguidos, em termos quase simétricos.
Entendem que os factos considerados como provados preenchem os requisitos do n.º 2 do artigo 30.º do Código Penal e que à data da prática de alguns desses factos não existia a previsão do seu n.º 3.
O Arguido Meca entende, em aparente alternativa, que ocorreu apenas uma única resolução criminosa, pelo que estamos perante um único crime, de trato sucessivo.

Antes de mais, precisemos conceitos.
A lei substantiva penal vigente regula no seu artigo 30.º a problemática do concurso de crimes, do crime continuado e do crime único constituído por uma pluralidade de atos ou ações, traduzindo o pensamento desde há muito expresso pelo Professor Eduardo Correia, na sua obra “Unidade e Pluralidade de Infrações – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”.

Aí se consagra que
«1 – O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 – Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
(…)»

O preceito legal aludido não fornece uma definição do que seja o concurso de crimes, limitando-se a indicar um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes.
Numa primeira abordagem, pode dizer-se que a afirmação de um crime pressupõe a existência de uma resolução (decisão de praticar determinados atos), atos de execução e que estes preencham a previsão legal (integrem um tipo de crime previsto no Código Penal).
A antijuridicidade de uma relação social começa por se exprimir pela possibilidade da sua subsunção a um ou a vários tipos de crime, pelo que é na concreta violação desta norma de determinação que assenta o juízo de censura em que se estrutura a culpa.
Assim, a uma reiterada ineficácia da mesma norma de determinação corresponderão plúrimos juízos concretos de reprovação. O critério para averiguar acerca da existência dessa reiteração é o da pluralidade de resoluções – isto é, de determinações da vontade – pelas quais o agente atuou: se foram tomadas duas ou mais resoluções no desenrolar da atividade criminosa, então duas ou mais vezes falhou a eficácia determinadora da norma. Sendo que, por cada vez que tal sucedeu, há um fundamento para o juízo de censura em que se estrutura a culpa.
O número de vezes de preenchimento do tipo pela conduta do agente conta-se pelo número de juízos de censura de que o agente se tenha tornado passível, o que, por sua vez, se deve reconduzir à pluralidade de processos resolutivos, resoluções ou decisões criminosas.

O n.º 1 do artigo 30.º do Código Penal contém duas partes, ambas reportadas a situações de pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente – na primeira parte dispõe-se que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos pela conduta do agente; na segunda parte declara-se que o número de crimes também se determina pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Estamos, assim, respetivamente, perante os denominados “concurso heterogéneo” (realização de diversos crimes decorrente da violação de diversas normas incriminadoras) e “concurso homogéneo” (realização plúrima do mesmo crime decorrente de violações da mesma norma incriminadora).
Certo é que, quer na primeira quer na segunda situação descritas, o comportamento do agente tanto se pode consubstanciar num só facto ou numa só ação, como em vários factos ou ações. Efetivamente, a partir de um só facto ou de uma só ação podem realizar-se diversos crimes, por violação simultânea de diversas normas incriminadoras, bem como o mesmo crime plúrimas vezes, por violação da mesma norma incriminadora; tal como a partir de vários factos ou de várias ações pode realizar-se o mesmo crime plúrimas vezes, por violação repetida da mesma norma incriminadora, bem como diversos crimes, por violação de diversas normas incriminadoras.
Em qualquer destes casos, estamos perante concurso de crimes, já que o mesmo ocorre sempre que o mesmo agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer mediante vários factos.

Mas não pode ficar-se por aqui, sendo certo que o crime é um facto humano, tipicamente ilícito e culpável e que o tipo de crime abrange o conteúdo global da norma incriminadora, isto é, o tipo legal objetivo e subjetivo.
E sendo toda e qualquer infração criminal constituída por três elementos – o facto típico, a culpabilidade e a punibilidade –, não basta produzir pelo modo previsto na mesma ou em várias disposições legais o evento jurídico de cada uma, sendo também necessário que relativamente a cada crime concorrente se verifique vontade culpável. É indispensável que cada crime seja doloso ou culposo e, nessa medida, punível.
No caso de pluralidade de infrações, distingue-se entre o concurso legal, aparente ou impuro e o concurso efetivo, verdadeiro ou puro.
No primeiro caso, verifica-se que a conduta do agente preenche formalmente vários tipos de crime, mas, por via de interpretação, conclui-se que o conteúdo dessa conduta é exclusiva e totalmente abrangido por um só dos tipos violados, pelo que os outros tipos devem recuar, não devendo ser aplicados.
Esses tipos de crime podem encontrar-se numa relação de especialidade [um dos tipos aplicáveis (tipo especial) incorpora os elementos essenciais de um tipo aplicável (tipo fundamental), acrescendo elementos suplementares ou especiais referentes ao facto ou ao próprio agente – situação em que deve ser aplicado o tipo especializado], de consumpção [o preenchimento de um tipo legal (mais grave) inclui o preenchimento de outro tipo legal (menos grave) – situação em que, por regra, deve ser aplicado o tipo mais grave], de subsidiariedade [certas normas só se aplicam subsidiariamente, ou seja, quando o facto não é punido por outra norma mais grave] e de facto posterior não punível [os crimes que visam garantir ou aproveitar a impunidade de outros crimes não são punidos em concurso efetivo com o crime de fim lucrativo ou de apropriação, salvo se ocasionarem um novo dano ao ofendido ou se dirigirem contra um novo bem jurídico].
No caso de concurso efetivo verdadeiro ou puro, entre os tipos legais preenchidos pela conduta do agente não se dá uma exclusão por via de qualquer das regras acabadas de enunciar, e as diversas normas aplicáveis surgem como concorrentes na aplicação concreta.
Dentro deste concurso faz-se a distinção entre o concurso ideal [quando mediante uma só ação se violam diferentes tipos (concurso ideal heterogéneo) ou se viola várias vezes o mesmo tipo (concurso ideal homogéneo)] e o concurso real [quando à pluralidade de crimes cometidos corresponde uma pluralidade de ações].
Resta referir que as relações entre normas que conduzem ao concurso legal aparente ou impuro não devem ser consideradas quando os bens jurídicos tutelados pelas normas violadas revestem natureza eminentemente pessoal.
Por último, importa ter presente que a regra constante no nº 1 do artigo 30º do Código Penal, para além das restrições resultantes do concurso aparente sofre, ainda, a restrição resultante do crime continuado.

«A temática do crime continuado, desenvolve-se a partir da influência de Birnbaum e Honig sobre a teoria do bem jurídico, com que se relaciona.
Em termos comparados com o concurso aparente de infrações, poderá questionar-se no caso de haver pluralidade de resoluções criminosas, se esta, em certas situações e mediante determinados pressupostos não será meramente aparente, em que a justiça e a economia processual aconselhem a verificação de um só crime.
Segundo ensina Eduardo Correia (Direito Criminal, II, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1971, p. 203 e segs), a solução da questão passa por duas vias fundamentais: uma ligada à teoria do crime nos seus princípios gerais, em que se procura “deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado – e teremos então uma construção lógico-jurídica do conceito”, sendo que nesta perspetiva distinguem-se as teorias subjetivas - em que “o elemento aglutinador das diversas condutas que forma o crime continuado seria a “unidade de determinação da vontade “ (Schroeder) ou a “unidade de resolução” (Mittermaier)” – e, as teorias objetivas, em que o elemento aglutinador residiria “na homogeneidade das condutas (Woeringen), na indivisibilidade (Scwartz) ou na unidade de objeto (Merkel) “
A outra via encontra-se ligada a uma construção teleológica do conceito e, atende antes a uma diminuição da gravidade revelada pela situação concreta, perante o concurso real de infrações, tentando encontrar a resposta no menor grau de culpa do agente.
A perspetiva teleológica é considerada, metodologicamente a melhor para resolver o problema, sendo que “quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou Kraushaar, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, desde que “se não trate de um agente com uma personalidade particularmente sensível a pressões exógenas.”
Elenca o mesmo Insigne Autor, como situações exteriores típicas da unidade criminosa da continuação, sem esgotar o domínio dessa continuação, e sendo sempre a “diminuição considerável da culpa”, como ideia fundamental, as seguintes:
“a) assim, desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira atividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos;
b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;
c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa;
d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua atividade criminosa.”
(…)
Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, p. 139, nota 29: “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele ativamente a provoca.”
Por outro lado, como salientava Eduardo Correia, (ibidem), “de o mesmo bem jurídico não se pode falar quando se esteJá perante tipos legais que protejam bens eminentemente pessoais; caso em que, havendo um preenchimento plúrimo de um tipo legal desta natureza, estará excluída toda a possibilidade de se falar em continuação criminosa”.»[[14]]

Através da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, ao artigo 30.º do Código Penal foi acrescentado um n.º 3, com a seguinte redação:
«3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.»
Que veio a ser alterado pela Lei n.º 40/2010, de 3 de setembro, nos seguintes termos:
«3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.»

No que diz respeito à figura do crime de trato sucessivo «muito embora a mesma não se encontre expressamente prevista na lei, a doutrina tem-lhe vindo a fazer referência, cumprindo convocar, desde logo, o entendimento de Lobo Moutinho que define tal categoria como o crime “em que a consumação se não dá mediante a prática de um só ato, mas de uma multiplicidade deles – eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os atos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados – eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo.”
Assim, o ponto central da definição de tal categoria é a noção de atos reiterados, sendo que são atos reiterados “(…) a pluralidade de atos homogéneos. Atos diversos não se reiteram.”
Porém, e uma vez que a reiteração e a homogeneidade também são elementos essenciais na densificação de outras categorias de crimes (como, por exemplo, o crime continuado), ainda segundo Lobo Moutinho, “para alcançar o sentido e alcance do protaimento da consumação mediante atos reiterados, torna-se necessário ter presente a evidente necessidade da sua delimitação de forma a não esvaziar de conteúdo as referidas figuras. Assi, em face dos dados legislativos e, muito particularmente, da clara generalidade das figuras da continuação criminosa, do concurso homogéneo de crimes e da tendência criminosa, impõe-se a conclusão de que apenas se pode admitir uma “consumação por atos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime.”
Assim, e em suma, os crimes de trato sucessivo correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se desdobra numa multiplicidade de atos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediando intervalos entre eles. São, deste modo, apontados como exemplos de crimes habituais o crime de maus-tratos, o crime de tráfico de estupefacientes e o crime de lenocínio[[15]]

De regresso ao processo, a factualidade provada não consente o preenchimento dos requisitos consagrados no n.º 2 do artigo 30.º do Código Penal.
Porque o alcoolismo do Arguido Leca, sendo condição que lhe é endógena, não preenche o quadro de uma mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a sua culpa.

O mesmo se diga quanto ao Arguido Meca, que se limitou a invocar, depois de transcrever o que dispõe o n.º 2 do artigo 30.º do Código Penal, que «Estamos em crer que é o caso dos factos dados como provados nos pontos 66 a 70 da factualidade assente, que deverão ser tidos como um único crime continuado e não numa perspetiva de pluralidade – É inquestionável que está em causa o mesmo tipo de crime ou vários que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico e igualmente existe uma execução homogénea, com a repetição de factos e modo de agir.»
Ora, nada dizendo o Recorrente, o certo é que não vislumbramos, perante a factualidade considerada como provada, qual o fator externo que o tenha impelido, com diminuição acentuada da sua culpa, às práticas sexuais com as sobrinhas.

Quanto à questão do crime único, suscitada pelo Arguido Meca, constitui jurisprudência dominante – a cujos argumentos aderimos - a rejeição do trato sucessivo quando, como sucede nos crimes de abuso sexual de crianças, estão em causa bens eminentemente pessoais.
Porque «(…) a específica configuração do crime de abuso sexual de crianças exige, pressupõe, a afirmação de uma pluralidade de resoluções criminosas na produção do resultado que desencadeiam e que, portanto, se autonomizam como tal.
O traço caracterizador da figura do crime de trato sucessivo residirá no facto de o crime, na sua estrutura típica, pressupor reiteração, punindo-se, desta forma, a prática, antes de mais, de uma atividade, que pode consumar-se em um ou mais atos.
Assim, caso a estrutura típica do crime em causa não pressuponha tal reiteração, no sentido de que com tal tipificação não se pretende punir a prática de uma atividade, não será aplicável a figura do crime de trato sucessivo. Sendo que, considera a referida jurisprudência maioritária, a estrutura típica do crime de abuso sexual de crianças não pressupõe tal reiteração, isto é, não se pretende com o mesmo punir uma atividade, pelo que não lhe é aplicável a figura do crime de trato sucessivo.
Refira-se, ainda, que a eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, no âmbito do tipo penal de abuso sexual de crianças, poderia redundar num resultado que o legislador claramente quis afastar – ainda que por referência à figura do crime continuado – com a alteração ao n.º 3 do artigo 30.º do Código Penal realizada pela Lei n.º 40/2010, de 3 de setembro, que exclui expressamente a admissibilidade da possibilidade de unificação de uma pluralidade de condutas na figura do crime continuado, quando esteJám em causa bens eminentemente pessoais.»[[16]]

Ou, como consta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de novembro de 2019, proferido no processo n.º 1257/18.6SFLSB.L1.S1, da 3.ª secção, «(…) a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a recusar uniformemente a aplicação, aos crimes contra a autodeterminação sexual, da categoria do “crime de trato sucessivo”. Nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual não têm cabimento categorias doutrinárias como o denominado crime prolongado, crime exaurido ou crime de trato sucessivo, figuras nas quais se convenciona (ficciona) que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos da infração».
E assim é porque:
«O tratamento penal dos crimes sexuais registou assinalável evolução sociológica e politico-criminal de modo que hodiernamente se enquadram dogmática e sistematicamente no âmbito dos crimes contra a pessoa individual, concretamente contra a sua liberdade e autodeterminação sexual. Consequentemente, a vítima e a sua perspetiva, quando não validamente expressa, assume relevância decisiva. Pode que esta evolução ainda não estivesse perfeitamente traduzida na tutela jurídico-penal. E, por isso, talvez, uma reiteração sucessiva de agressões sexuais não tivesse obtido o mesmo tratamento doutrinário e jurisprudencial que é dispensado à conduta que atenta contra a vida da mesma pessoa (duas ou três tentativas de homicídio não são tratadas como um crime prolongado ou reiterado) ou que ofende a integridade física do mesmo ser humano (bater meia dúzia de vezes na mesma pessoa em datas diferentes não constitui um só crime de trato sucessivo) ou ainda que atenta contra a liberdade pessoal (privar da liberdade todos sábados durante meio ano a mesma pessoa também não constitui um crime continuado nem um crime prolongado ou protraído). Nenhum fundamento jurídico razoável se deteta, no tipo objetivo nem no tipo subjetivo, para que deva dispensar-se tratamento diverso a agressões à liberdade e autodeterminação sexual. À insistência ou persistência da resolução criminosa do agente contrapõe-se e sobrepõe-se a necessidade de, perante cada atentado ao bem jurídico pessoal tutelado, reafirmar a sua validade e importância para garantir o exercício livre e autêntico da identidade e da expressão sexual da vítima. Cada vez que o agente força ou implica uma pessoa sem o consentimento desta ou com o consentimento viciado ou legalmente inadmissível, a ter de suportar atos lascivos, agride o direito pessoal à liberdade e autenticidade da sua expressão sexual. Na perspetiva da vítima, que deve ter-se por decisiva, cada agressão sexual, independentemente de o agente ser o mesmo ou diverso, está dotada de um sentido negativo de valor jurídico-penal. A reiteração sucessiva e mais ou menos prolongada no tempo de agressões sexuais não é nem se pode transformar, para a vítima, num empreendimento ou numa atividade do agressor que tenha de suportar. Identicamente ao que sucede nos demais crimes contra as pessoas e, designadamente nos crimes contra a liberdade, não há nem se pode ficcionar a existência de quaisquer circunstâncias que propiciem a reiteração de agressões sexuais. Na prática sexual forçada ou não livremente consentida com outra pessoa dotada de maioridade sexual, cada vez implica uma abordagem destinada a obter a sua anuência ou a adesão ao ato sexual, na certeza de que o agente não pode estar seguro de qual seJá a sua reação da pessoa visada e, consequentemente se consente ou adere. Muito diversamente das coisas móveis ou imóveis em que a situação criada com o primeiro atentado pode permanecer imutável ou mais favorável à repetição, aquele que pretende praticar noutra pessoa atos sexuais de relevo não saberá qual vai ser de cada vez a aceitação, ou não, da outra pessoa. Como identicamente não saberá como vai reagir se quiser voltar a agredi-la, sequestrá-la ou ameaçá-la. Por isso sempre que queira voltar a ofendê-la tem de renovar, adaptar e atualizar a estratégia. Consequentemente, cada agressão singular, repetida sucessivamente, indiferentemente do tempo que entre elas medeia, preenchendo todos os elementos do mesmo tipo (objetivo e subjetivo), constitui um crime autónomo, estabelecendo entre si uma relação de concurso real ou efetivo crimes e como tal deve ser punida».

Neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de maio de 2005 [proferido no processo n.º 890/05-5.ª, acessível em Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano 2005, Tomo 2, pág. 202], de 15 de junho de 2005 [proferido no processo n.º 1558/05-3.ª, acessível em Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano 2005, Tomo 2, pág. 216], de 17 de novembro de 2005 [proferido no processo n.º 2760/05-5.ª, acessível em Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano 2005, Tomo 3, pág. 217], de 5 de julho de 2007 [proferido no processo n.º 1766/07-5.ª, acessível em Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano 2007, Tomo 2, pág. 242, de 5 de setembro de 2007 [proferido no processo n.º 2273/07-3.ª, acessível em Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano 2007, Tomo 3, pág. 189], de 16 de Jáneiro de 2008, [proferido no processo n.º 4735/07-3.ª, acessível em www.dgis.pt], de 1 de outubro de 2008, processo n.º 2872/08-3.ª, acessível em www.dgis.pt], de 5 de novembro de 2008 [proferido no processo n.º 2812/08-3.ª, acessível em www.dgis.pt], de 19 de março de 2009 [proferido no processo n.º 483/09-3ª, acessível em www.dgis.pt], de 25 de março de 2009 [proferido no processo n.º 490/09-3.ª, acessível em Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano 2009, Tomo 1, pág. 237], de 25 de junho de 2009 [proferido no processo n.º 274/07.6TAACB.C1.S1-3.ª, acessível em Coletânea de Jurisprudência, Ano 2009, Tomo 2, pág. 247], de 20 de Jáneiro de 2010 [proferido no processo n.º 19/04.2JÁLRA. C2.S1, acessível em www.dgis.pt], de 13 de julho de 2011 [proferido no processo n.º 451/05.4JÁBRG.G1.S1, acessível em www.dgis.pt], de 12 de julho de 2012 [proferido no processo n.º 1718/02.9JDLSB.S1, acessível em www.dgis.pt], de 23 de maio de 2019 [proferido no processo n.º 134/17.2JÁAVR.S1, acessível em www.dgis.pt], de 27 de novembro de 2019 [proferido no processo n.º 784/18.0JÁPRT.G1.S1, acessível em www.dgis.pt], de 17 de junho de 2020 [proferido no processo n.º 91/18.8JÁLRA.E1.S1, acessível em www.dgis.pt], de 12 de Jáneiro de 2020, proferido no processo n.º 1070/20.4PASNT.S1, acessível em www.dgis.pt], e de 25 de junho de 2020 [proferido no processo n.º 227/16.3T9VFR.P1.S1, acessível em www.dgis.pt].

Improcedendo os recursos, neste segmento.

Resta dizer que face à alteração do ponto 79, da factualidade provada não decorre ter o Arguido Meca praticado um crime de abuso sexual de crianças, agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º n.º 1, alínea b) do Código Penal.
A conduta deste Arguido, face à mencionada alteração, integra a previsão dos artigos 171, n.ºs 1 e 3, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

(v) Da desadequação, por excesso, das penas impostas
É questão suscitada por ambos os Arguidos.
Ambos pretendem a redução das penas de prisão em que foram condenados e a suspensão da execução da pena única.

Diz o Arguido Leca que (i) contribuiu decisivamente para a descoberta da verdade, (ii) manifesta expresso arrependimento, mágoa e desilusão consigo próprio, (iii) tem vontade de compensar as vítimas e (iv) é um novo homem – porque abandonou o consumo de álcool, tem companheira que o apoia, é socialmente responsável e tem situação profissional estável, apoia a filha em todas as suas decisões, e é delinquente primário.
Neste contexto, deveria ter ocorrido a atenuação especial da pena, em conformidade com o disposto no artigo 72.º do Código Penal.
E por serem muito baixas as exigências de prevenção – quer geral quer especial, as penas devem ser fixadas no mínimo legal, devendo ser a pena única fixada em 5 (cinco) anos e suspensa a sua execução.

Diz o Arguido Meca que não foram devidamente valoradas as suas condições pessoais, nem a sua conduta anterior e posterior ao facto – é trabalhador, cumpridor, pacífico, está bem integrado e é delinquente primário.
E decorreu muito tempo desde a prática dos crimes.
Assim, são serem muito baixas as exigências de prevenção – quer geral quer especial, as penas devem ser fixadas no mínimo legal, devendo ser a pena única fixada em 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses, com execução suspensa.

Vejamos se lhes assiste razão.

Consta do acórdão recorrido, na parte dele dedicada à escolha e determinação da medida da pena:
«Qualificados juridicamente os factos e operada a respetiva subsunção aos preceitos incriminadores, importa, agora, proceder à escolha e determinação da medida da pena a aplicar.
Os factos ilícitos típicos praticados pelos arguidos são punidos com as seguintes penas:
§ Crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 3, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do
Código Penal – pena de prisão até 4 anos;
§ Crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º/1, al. a), do Código Penal – pena de prisão de 4 a 13 anos;
§ Crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal – pena de prisão de 4 a 13 anos;
§ Crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A/1, al. a) do Código Penal – pena de prisão de 1 a 5 anos;
§ Crime de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal – pena de prisão de 1 ano e 3 meses a 8 anos.

A espécie da pena aplicável a cada um dos crimes, de prisão, mostra-se fixada ope legis.
Nos termos do artigo 71.º/1 do Código Penal, “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Culpa e prevenção são, assim, os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de determinação concreta da pena.
Explicitando, nas palavras de Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Editorial Notícias, 1993, págs. 227 a 231), “primordialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (…)”. É que, “(…) quando se afirma que é função do direito penal tutelar bens jurídicos não se tem em vista só o momento da ameaça da pena, mas também – e de maneira igualmente essencial – o momento da sua aplicação. Aqui, pois, proteção de bens jurídicos assume um significado prospetivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou prevenção de integração (…)”.
No entanto, a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa. “A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena, reside, efetivamente, numa incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (…)”.
“Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos –, podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia ótima de proteção dos bens jurídicos”.
A aplicação de penas visa, como resulta do artigo 40.º/1, do Código Penal, a proteção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal, e a reintegração social do agente, sendo certo que, face ao preceituado no nº 2 do mesmo artigo, a pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa, isto é, não há pena sem culpa e a culpa decide da medida da pena.
Ou seJá, em suma, elege-se como comando da medida da pena a ideia de prevenção geral positiva ou de integração, com a qual hão-de interrelacionar-se objetivos de prevenção especial de ressocialização e considerações de culpa; esta, desde logo, enquanto limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, aqueles enquanto caminho para a concretização da reintegração do agente na sociedade.
O n.º 2 do artigo 71.º manda, todavia, atender ainda, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seJá destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
No caso sub judice, as exigências de prevenção geral são elevadíssimas, atenta a frequência clamorosamente crescente com que os bens jurídicos protegidos pelas normas em causa são postos em causa na atualidade, a dificuldade em denunciar e provar este tipo de criminalidade e a gravidade dos seus efeitos, designadamente nas vítimas; bem como o próprio sentimento que se gera na sociedade em torno deste tipo de ilícito, sendo certo que a reação da comunidade aumenta consideravelmente quando estão em causa crimes desta natureza, gerando forte alarme social. Destarte, ninguém fica indiferente a um acontecimento, a uma notícia que envolva crianças e um exemplo disso é quando, nos jornais, na televisão, nas redes sociais, se noticia um feito de uma criança, uma experiência traumática, de violência, vivenciada por uma criança, rapidamente essa notícia atinge inúmeras visualizações e comentários, tornando-se viral.
Impõe-se, por isso, reforçar junto da comunidade a importância das normas jurídicas violadas.
As exigências de prevenção especial são relevantes. Na verdade, diante do evidenciado quanto ao percurso e condições de vida dos arguidos, não obstante os mesmos não apresentarem antecedentes criminais, evidenciado sempre preocupação em ocuparem-se profissionalmente e não podendo escamotear a deterioração da dinâmica familiar que sempre
pautou as suas vidas, pautada pela existência de disfuncionalidade relacional associada à ocorrência regular de episódios de abuso e maus-tratos infligidos de que foram também vítimas, numa vivência quotidiana de ameaças e violência, certo é que os factos praticados ocorreram no mais íntimo seio familiar, em que as vítimas, neta, filha e sobrinhas, depositavam grande confiança, e, por isso, gerador de grande repulsa. Os arguidos evidenciaram, pois, com as suas condutas, um total desrespeito pelas “suas” crianças, neta, filha e sobrinhas, pelo seu bem-estar, pelo seu desenvolvimento íntegro e saudável. A par, qualquer um dos arguidos não denota uma adequada inserção familiar, sendo evidentes as fragilidades existentes a este nível.
O Tribunal também não ficou indiferente à postura assumida em audiência de discussão e de julgamento pelos arguidos Leca e Meca. Aquele, pese embora não tenha admitido a prática de todos os factos, acabou por contribuir para a descoberta da verdade material, designadamente no que respeita aos factos referentes à sua sobrinha Je… e mostrou-se arrependido. A par, não podemos desassociar a prática dos crimes em causa à sua problemática aditiva no que respeita ao consumo excessivo de bebida alcoólicas à data dos factos. E, quanto ao arguido Meca, o facto de não ter assumido qualquer facto, apresentando um discurso desconforme a realidade, cuja versão apenas visou confundir o Tribunal, não merecendo a adesão de qualquer prova produzida, não demonstrando, pois, qualquer interiorização do desvalor das suas condutas. Por fim, quanto ao arguido Zeca, importa também atender ao seu atual estado de saúde débil.
O grau de ilicitude, in casu, é médio, tendencialmente a elevado, considerando, por um lado, a data, já algo longínqua, a que os factos se reportam, o período de tempo em que os factos em crise perduraram, a relação familiar que os arguidos tinham com as vítimas e o contexto do qual se aproveitaram para a prática dos factos em causa. Tudo sem olvidar, os evidentes e naturais danos irreversíveis advindos para as vítimas diante das suas condutas.
Já a culpa dos arguidos se mostra elevada, considerando que atuaram sempre com dolo direto, indiferente à violação dos interesses legalmente protegidos, com conhecimento da real idade das vítimas, tendo todos eles atuado sempre de forma capaz, com discernimento em todos as resoluções criminosas em causa, quando poderiam ter optado por agir de forma diferente.
Tudo visto e ponderado, atendendo às molduras penais abstratas em causa e considerando que a função da pena a aplicar deverá quedar-se pela sinalização do desvalor dos comportamentos empreendidos pelos arguidos, servindo de suficiente contraestímulo

à renovação futura das atitudes ora censuradas, o Tribunal entende ser simultaneamente adequado às exigências de prevenção geral e especial e respeitador do limite imposto pela culpa a aplicação aos arguidos das seguintes penas, todas elas fixadas entre o limite mínimo e o meio da respetiva moldura penal abstrata, mais próximo daquele:

Ø Quanto ao arguido ZECA:
ü Por cada um dos vinte e quatro crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.ºs 1 e 3, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pessoa de Já… – 12 meses.
Ø Quanto ao arguido LECA:
ü Por cada um dos dez crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1, 2 e 177.º/1, al. a), do Código Penal, na pessoa de Já… – 55 meses;
ü Por cada um dos seis crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1, 2 e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de Je… – 50 meses;
ü Por cada um dos cento e vinte crimes de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 2, al. a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal, na pessoa de Já… – 60 meses;
ü Pelo crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A/1, al. a) do Código Penal, na pessoa de Já…– 22 meses.
Ø Quanto ao arguido MECA:
ü Por cada um dos vinte e três crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1 e 2 e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de Já… – 50 meses;
ü Pelo crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1 e 3, al. a) e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de Je… – 12 meses;
ü Pelo crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º/1 e 2 e 177.º/1, al. b), do Código Penal, na pessoa de Je… – 50 meses;
ü Pelo crime de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, na pessoa de Já… – 30 meses.
*
DA FIXAÇÃO DE PENA ÚNICA
Considerando a existência de várias penas aplicadas a cada um dos três arguidos, importa proceder à fixação de uma pena única, lançando mão do disposto no artigo 77.º do Código Penal, que determina as das regras da punição do concurso. Dispõe este preceito legal o seguinte: 1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes, antes de transitar em julgado a sua condenação por qualquer um deles, é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2 – A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicáveis aos vários crimes, não podendo ultrapassar os 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicáveis aos vários crimes.
Posto isto, procedendo ao cúmulo jurídico das indicadas penas, nos termos do transcrito preceito legal, ponderado o conjunto dos factos e a personalidade do agente, precedentemente expressa a propósito da determinação das penas parcelares, que aqui se reitera para os devidos efeitos,
Sendo o limite máximo da moldura penal abstrata do concurso de 24 anos e o limite mínimo de 1 ano, para o arguido Leca, reputa-se como adequada fixar a pena única de prisão em 5 (cinco) anos;
Sendo o limite máximo da moldura penal abstrata do concurso de 25 anos e o limite mínimo de 5 anos, para o arguido Zeca, reputa-se como adequada fixar a pena única de prisão em 10 (dez) anos;
Sendo o limite máximo da moldura penal abstrata do concurso de 25 anos e o limite mínimo de 4 anos e 2 meses, para o arguido Meca, reputa-se como adequada fixar a pena única de prisão em 7 (sete) anos.»

O acórdão recorrido, conforme resulta do que dele se deixou transcrito, tratou de forma clara e exaustiva as questões relativas à determinação das penas impostas – parcelares e resultantes do seu cúmulo jurídico.
Seria, por isso, inútil voltar agora ao tema, em termos teóricos – porque apenas se poderia dizer o mesmo, por outras palavras.
E o raciocínio nele expresso não nos merece qualquer reparo.

Quanto ao recurso interposto pelo Arguido Leca
Não temos dúvida de que contribuiu para a descoberta da verdade. Mas apenas de parte dessa verdade – assumiu a prática de 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de crianças, agravado e de um crime de maus-tratos, mas negou ter praticado 120 (cento e vinte) crimes de violação agravada.
Acresce que esta postura processual do Arguido não tem o alcance que o mesmo lhe atribui. Porque não está demonstrado que tenha sido determinante para a descoberta dos factos que se consideram como provados.
Bastará atentar que o Arguido não admitiu ter praticado os crimes de violação agravada e que os factos que os sustentam foram considerados como provados.

Dos factos provados não decorre que o Arguido manifeste arrependimento pelo comportamento que se apurou, nestes autos, ter levado a cabo. Nem que esteja magoado e desiludido consigo próprio.
Dos factos provados não decorre, também, que o Arguido tenha vontade ou propósito de compensar as vítimas.
Nem que seja um homem diferente. Não está provado que tenha abandonado o consumo de bebidas alcoólicas e que apoia a filha em todas as suas decisões.

Ou seja, do que o Arguido invoca para ver reduzidas as penas parcelares e única que lhe foram impostas apenas está demonstrado que tem companheira que o apoia, que trabalha e que é delinquente primário.
Estas circunstâncias mereceram ponderação aquando da determinação das penas e a nenhuma delas deve ser dado enfoque diverso ou mais acentuado, porque não se destaca da normalidade.

O artigo 72.º do Código Penal consagra a atenuação especial da pena, nos seguintes termos:
«1 — O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 — Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 — Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.»

«A atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excecionais, em que a imagem global do facto resultante da atuação da (s) atenuante (s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor -se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.
Daí (…) estarmos perante um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista para o facto e várias hipóteses na fixação do limite mínimo.
Adianta o Mestre de Coimbra, no já citado Direito Penal Português, As Consequências [...], II, § 453, pág. 306, a propósito das circunstâncias descritas nas alíneas do artigo 72.º, n.º 2, do Código Penal, que constituem exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuada contida na cláusula geral do artigo 73.º, n.º 1 (atual artigo 72.º) que: «passa -se aqui algo de análogo — não de idêntico — ao que sucede com os exemplos -padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas do n.º 2 do artigo 72.º podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas naquelas alíneas não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, só o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido». E conclui que a acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.
Espelham estes ensinamentos vários arestos deste Supremo Tribunal, de que são exemplos os que se passam a citar.
Segundo o acórdão de 24 -03 -1999, processo n.º 176/ 99 -3.ª, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, a atenuação especial da pena só deve funcionar quando, na imagem global dos factos e de todas as circunstâncias envolventes fixadas, a culpa do arguido e/ou a necessidade da pena se apresentam especialmente diminuídas, ou seja, quando o caso é menos grave que o “caso normal” suposto pelo legislador, quando estatuiu os limites da moldura correspondente ao tipo, reclamando, por isso, manifestamente, uma pena inferior.
O acórdão de 23 -02 -2000, proferido no processo n.º 1200/99 -3.ª, Sumários de Acórdãos do STJ, edição anual, n.º 38, pág. 75, expressou -se nos termos seguintes: «É na acentuada diminuição da ilicitude e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da pena. Daí que, as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal, não sejam as únicas suscetíveis de desencadear tal efeito, nem este seja consequência necessária ou automática da presença de uma ou mais daquelas circunstâncias».
No acórdão de 30 -10 -2003, processo n.º 3252/03 -5.ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208 (221 -2), pode ler -se: a atenuação especial só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar, considerando -se como antiquada a solução de consagrar legislativamente a cláusula geral de atenuação especial como válvula de segurança, pois que dificilmente se pode ter tal solução por apropriada para um Código como o nosso, “moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas”, seguindo -se aqui a lição constante do § 465 da referida obra de Figueiredo Dias.
No acórdão de 03 -11 -2004, processo n.º 3289/04 -3.ª, in CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 217, refere -se: “Justifica -se a aplicação do instituto de atenuação especial da pena, que funciona como instrumento de segurança do sistema nas situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo”.
E no acórdão de 25 -05 -2005, processo n.º 1566/05 -3.ª, in CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 207: “A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas se puder deve sê -lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, seJá pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena — vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas”.
Como se extrai do acórdão de 07 -06 -2006, processo n.º 1174/06 — 3.ª Secção, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 207, “A atenuação especial da pena depende do concurso de circunstâncias anteriores, posteriores ou concomitantes ao crime, que façam diminuir de forma acentuada a culpa, a ilicitude e a necessidade de pena, elencando de forma não taxativa o n.º 2 do artigo 72.º do CP os seus factos -índices, ligados a uma imagem global do facto favorecente do agente criminoso. O verdadeiro pressuposto material da atenuação são exigências de prevenção, na forma de reprovação social do crime e restabelecimento da confiança na força da lei e dos órgãos seus aplicadores e não apenas a ilicitude do facto ou a culpa do agente [...].
Nessa esteira, para além dos já citados, podem ver -se ainda os acórdãos de 05 -02 -1997, processo n.º 47885 -3.ª, SASTJ, n.º 8, Fevereiro 1997, pág. 77; de 07 -05 -1997, BMJ n.º 467, pág. 237; de 29 -04 -1998, processo n.º 449/98, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 191; de 07 -10 -1999, BMJ n.º 490, pág. 48; de 10 -11 -1999, processo n.º 823/99, SASTJ, n.º 35, 74; de 26 -04 -2000, processo n.º 82/00; de 18 -10 -2001, processo n.º 2137/01 -5.ª, SASTJ, n.º 54, 122; de 28 -02 -2002, processo n.º 226/02 -5.ª; de 18 -04 -2002, processo n.º 629/02 -5.ª, in CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 178; de 22 -01 -2004, processo n.º 4430/03 -5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 183; de 20 -10 -2004, processo n.º 2824/04 — 3.ª; de 06 -10 -2005, processo n.º 2632/05 — 5.ª; de 17 -11 -2005, processo n.º 1296/05 — 5.ª; de 07 -12 -2005, processo n.º 2967/05 —5.ª, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 229 (atenuação especial e imputabilidade diminuída); de 15 -12 -2005, processo n.º 2978/05 — 5.ª; de 06 -06 -2006, processo n.º 2034/06 — 5.ª, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 204; de 07 -12 -2006, processo n.º 3053/06 — 5.ª; de 21 -12 -2006, processo n.º 4540/06 — 5.ª; de 08 -03 -2007, processo n.º 626/07 — 3.ª; de 06 -06 -2007, processos n.ºs 1403/07 e 1899/07, ambos da 3.ª secção e processo n.º 1603/07 -5.ª; de 14 -06 -2007, processos n.ºs 1895/07 e 1908/07, ambos da 5.ª secção; de 21 -06 -2007, processo n.º 1581/07 -5.ª; de 28 -06 -2007, processo n.º 3104/06 — 5.ª; de 17 -10 -2007, processo n.º 3265/ 07 -3.ª; de 28 -11 -2007, processo n.º 3981/07 — 3.ª; de 16 -01 -2008, processos n.ºs 4638/07 e 4837/07, ambos da 3.ª secção; de 23 -01 -2008, processo n.º 4560/07 -3.ª; de 13 -03 -2008, processo n.º 2589/07 -5.ª; de 26 -03 -2008, processos n.ºs 105/08 e 306/08 -3.ª; de 17 -04 -2008, processo n.º 4732/07 -5.ª; de 30 -04 -2008, processo n.º 1220/ 08 -3.ª; de 03 -07 -2008, processo n.º 1226/08 -5.ª; de 25 -09 -2008, processo n.º 809/08 -5.ª; de 23 -10 -2008, processo n.º 1212/08 -5.ª; de 21 -01 -2009, processo n.º 4029/08 -3.ª; de 05 -03 -2009, processo n.º 4133/08 -5.ª; de 23 -04 -2009, processo n.º 388/09 -5.ª; de 02 -04 -2009, processo n.º 93/09 -5.ª; de 10 -12 -2009, processo n.º 36/08.3GABTC.P1.S1 -5.ª; de 17 -12 -2009, processo n.º 2956/07.3TDLSB.S2 -5.ª; de 27 -05 -2010, processo n.º 6/09.4JÁGRD.C1.S1 -3.ª; de 27 -10 -2010, processo n.º 971/06.1JÁPRT.S1 -3.ª, CJSTJ 2010, tomo 3, pág. 237; de 02 -02 -2011, processo n.º 1375/07.6PBMTS.P1.S2 -3.ª; de 07 -09 -2011, processo n.º 356/09.0JÁAVR.S1 -3.ª; de 26 -10 -2011, processo n.º 319/10.2PGALM.L1.S1 -3.ª; de 22 -02 -2012, processo n.º 1239/03.2GCALM.L1.S1 - 3.ª .
Mais recentemente, o acórdão de 17 -09 -2014, processo n. 595/12.6TASLV.E1.S1 -3.ª, afirma “O artigo 72.º, ao prever a atenuação especial da pena, criou uma válvula de segurança para situações particulares em que se verificam circunstâncias que diminuem por forma acentuada as exigências de punição do facto, por traduzirem uma imagem global especialmente atenuada, que conduz à substituição da moldura penal prevista pelo legislador para o facto por outra menos severa[[17]]

Das circunstâncias consagradas no n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal, interessa-nos, apenas o tempo decorrido desde a prática dos crimes e o comportamento, entretanto, adotado pelo Arguido Leca.
Porque a factualidade considerada como provada não evidencia qualquer outra circunstância que revista a excecionalidade pretendida no artigo 72.º do Código Penal, e porque resulta do que já se deixou dito que não houve ato demonstrativo de arrependimento do Arguido, nem reparação dos prejuízos que causou.
O tempo decorrido desde a prática dos crimes cometidos pelo Arguido Leca – pouco mais de 9 (nove) anos, contados até à prolação da sentença em 1.ª Instância – não tiveram qualquer interferência no facto ou no seu agente.
A alteração da vida do Arguido resumiu-se à mudança de companheira.
O trato sexual que manteve com sua filha e com uma das suas sobrinhas continua a ser um comportamento abjeto e em relação ao qual se acentuou a repulsa social.
Neste contexto, da factualidade apurada não sobressaem circunstâncias suscetíveis de diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do Arguido ou a necessidade da pena.
Sendo inaplicável o disposto no artigo 72.º do Código Penal.

A pretensão do Recorrente de penas de prisão próximas do mínimo da respetiva moldura penal abstrata encontrou já satisfação nas penas que lhe foram impostas.
Atente-se ter ocorrido lapso na determinação da moldura penal abstrata correspondente aos crimes de abuso sexual de crianças agravado e de violação agravada. Que se situam entre 4 (quatro) anos e 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de prisão e não 13 (treze) anos, como se diz no acórdão.
E foram impostas penas de 4 (quatro) anos e 7 (sete) meses, de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses e de 5 (cinco) anos pela prática, respetivamente, de crimes de abuso sexual de criança agravado [de que foi vítima a Já…], de abuso sexual de criança agravado [de que foi vítima a Je…], e de violação agravada [de que foi vítima a Já…].
Pela prática do crime de maus-tratos, a que corresponde moldura penal abstrata entre 1 (um) e 5 (cinco) anos de prisão, foi imposta pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão.

Resta referir que a aceitar-se a pretensão do Arguido – de lhe ser imposta, em cúmulo jurídico de penas, a pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão – ficaria impune a prática de 22 (vinte e dois) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, de 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, 119 (cento e dezanove) crimes de violação, agravada e de 1 (um) crime de maus-tratos.
Ou seja, punia-se, apenas a prática de um crime de violação, agravada.
O que seria absolutamente intolerável!

Pelo que o recurso não procede.

Quanto ao recurso interposto pelo Meca
Ao contrário do que afirma o Recorrente, o tempo decorrido desde a prática do crime, as suas condições de vida e a ausência de antecedentes criminais encontraram a valoração devida no acórdão recorrido.
Mas como se sabe, estes aspetos não são os únicos a considerar no momento da determinação das penas a impor.

Não obstante, da valoração dos mencionados aspetos as penas impostas ao Arguido situaram-se em limiar muito próximo do limite mínimo das respetivas molduras penais abstratas.
Atente-se ter ocorrido lapso na determinação da moldura penal abstrata correspondente aos crimes de abuso sexual de crianças agravado e de violação agravada. Que se situam, ao contrário do que consta do acórdão, entre 4 (quatro) anos e 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de prisão, entre 40 (quarenta) dias e 4 (quatro) anos de prisão e entre 1 (um) ano e 4 (quatro) meses e 8 (oito) anos de prisão.
As penas impostas, que não atingem sequer o primeiro quarto da moldura penal abstrata ajustam-se à gravidade dos crimes apurados e à postura processual do Arguido.
Neste raciocínio não se inclui o crime de abuso sexual de crianças, agravado que, face à alteração da matéria de facto constante do ponto 79, se entende ter o Arguido cometido e que corresponde à previsão dos artigos 171, n.ºs 1 e 3, alínea a) e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Que deixamos agora punido com uma pena de 12 (doze) meses de prisão.

A moldura penal abstrata do cúmulo jurídico de penas situa-se entre 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses e 25 (vinte e cinco) anos de prisão.
Entre estes limites, respeitando o raciocínio expresso no acórdão recorrido quando à determinação da pena – que não foi contestado, nem merece reparo – fixa-se a pena única em 6 (seis) anos de prisão.

Resta referir que a aceitar-se a pretensão do Arguido – de lhe ser imposta, em cúmulo jurídico de penas, a pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão – ficaria impune a prática de 22 (vinte e dois) crimes de abuso sexual de crianças, agravado, de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, agravado, de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, agravado, e de 1 (um) crime de violação, agravada.
Ou seja, punia-se, apenas a prática de um crime de abuso sexual de crianças, agravado.
O que seria absolutamente intolerável!

(vi) Da reavaliação da forma de cumprimento da pena imposta
É questão suscitada por ambos os Arguidos.
Mas que não cumpre conhecer, pois dependia de circunstância que não se verifica – a imposição de penas de prisão iguais ou inferiores a 5 (cinco) anos.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se
1. alterar a matéria de facto por forma a que o ponto 79 passe a ter a seguinte redação:
«Ali, o Arguido despiu-se e despiu a Je… da cintura para baixo e tentou introduzir o seu pénis na vagina da sobrinha, com o que causou dor a esta.»;
2. Absolver o Arguido Meca da prática de um crime de abuso sexual de crianças, agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal [em que figura como vítima Je…];
3. Condenar o Arguido Meca da prática de um crime de abuso sexual de crianças, agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1 e 3, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal [em que figura como vítima Je…], na pena de 12 (doze) meses de prisão;
4. Em cúmulo jurídico, condenar o Arguido Meca na pena única de 6 (seis) anos de prisão;
5. Manter em tudo o mais o decidido.

Custas a cargo do Recorrente Leca, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s
û
Évora, 2022 março 22
Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz (relatora)
Renato Amorim Damas Barroso (1.º adjunto)
Gilberto da Cunha (Presidente da Secção)

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[1] ]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 12-03-2009, processo nº07P1769, acessível em http://www.dgsi.pt/stj
[2] ] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 31-03-2011, processo 257/10.9YRCBR.S1, acessível em http://www.dgsi.pt/
[3] ] Idem.
[4] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[5] ] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[6] 6] No mesmo sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 17.ª Edição, páginas 965 e 966.
[7] 7] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006, processos n.º 2951/05 e n.º 461/06, respetivamente, acessíveis in www.dgsi.pt.
[8] 8] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª Edição – 2008, Editora Reis dos Livros, página 72 e seguintes.
[9] 9] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 75.
[10] ] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 77.
[11] 11] O julgamento surge, na estrutura do processo penal, como o momento de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.
[12] 12] O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.
Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
[13] ] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, relatado pelo Senhor Conselheiro Rui Moura Ramos
– acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
[14] ] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de março de 2009, proferido no processo n.º 09P0483 e acessível em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[15] ] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Jáneiro de 2016, proferido no processo n.º 414/12.3TAMCN.S1 e acessível em www.dgsi.pt
[16] ] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Jáneiro de 2016, proferido no processo n.º 414/12.3TAMCN.S1 e acessível em www.dgsi.pt
[17] ] Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 13/2015, de 9 de setembro de 2015, publicado no Diário da República, I Série, , n.º 202, de 15 de outubro de 2015.