A transmissão de acções tituladas ao portador, não regularmente convertidas em acções tituladas nominativas de acordo com todos os actos jurídicos e materiais de conversão previstos no DL n.º 123/2017, de 25-09, realizada em data posterior ao esgotamento do período transitório fixado para essa conversão, é nula pelo vício originário da violação de norma imperativa e proibitiva da transmissão, que limita, nesse período e com a manutenção da natureza de acções ao portador, a posição jurídica social dos proprietários-titulares dessas acções ao portador: art. 2.º, n.º 2, al. a), da Lei n.º 15/2017, de 03-05, e arts. 280.º, n.º 1, e 294.º do CC.
Revista Excepcional – Tribunal recorrido: Relação ..., ... Secção
Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I) RELATÓRIO
1. «REBOCALEX – Transportes, Reparação e Comércio de Automóveis, Lda.» instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo que fosse “declarada a nulidade dos “actos de transmissão corporizados na aposição da fórmula “endosso” nos títulos ao portador, juntos a esta PI, como docs. 5 a 35, representativos do capital social da sociedade anónima com a firma SOBRAL & FONSECA, SA, NIPC 501333002, com os números…” e ordenada “a recolha, pelo tribunal, dos originais dos títulos, correspondentes às acções identificadas no pedido anterior, para, neles, ser aposta, após trânsito em julgado da sentença, a menção da declaração de nulidade dos endossos, ali lavrados com data de 10 de Novembro de 2017”.
Os Réus apresentaram Contestação, pedindo a absolvição do pedido, assim como Reconvenção, pedindo a condenação da Autora a “aceitar que a transmissão das ações que detinha da SOBRAL e FONSECA, S.A. a 25.10.2017 foi feita por quem tinha legitimidade para o fazer e que são propriedade dos RR devendo abster-se de praticar quaisquer atos que impeçam o normal uso das ações pelos RR/reconvintes, nomeadamente representação social e titularidade.”
Em Réplica, a Autora impugnou os fundamentos do pedido reconvencional.
A Autora requereu a ampliação do pedido. Os Réus/Reconvintes declararam opor-se.
2. Realizou-se a audiência prévia, na qual foram admitidas a alteração do pedido e a reconvenção, e proferido despacho saneador, identificando-se o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal.
3. Foi proferida sentença pelo Juiz ... do Juízo de Comércio ... (Tribunal Judicial da Comarca ...), na qual se apreciou, quanto à “titularidade das 59.980 acções representativas do capital social da sociedade Sobral & Fonseca, S.A., especificadas no requerimento de 26-11-2018”, saber “se é válida a transmissão formalizada pela declaração de endosso aposta nos títulos referenciados nos presentes autos”, julgando-se parcialmente procedente a acção e improcedente a reconvenção, com o seguinte dispositivo decisório:
“1. Declarar nulos os actos de transmissão, corporizados na aposição da fórmula “endosso” nos títulos ao portador, de que foram juntas cópias com a PI, correspondentes às acções, representativas do capital social da sociedade anónima com a firma SOBRAL & FONSECA, SA, NIPC 501333002, com os números (…)
2. Ordenar a restituição pelos RR, à Autora, das referidas acções.”
4. Inconformados, vieram os Réus interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação ... (TR...), identificando-se como questões decidendas:
“1. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
2. Conversão das ações ao portador representativas do capital social da Sobral & Fonseca, S.A. em ações nominativas;
3. Validade das menções de endosso apostas nos títulos de 59980 ações representativas do capital social da Sobral & Fonseca, S.A.”
Foi proferido acórdão pelo TR... que julgou improcedente a apelação, decidindo-se “rejeitar o recurso quanto à matéria de facto” e “manter a sentença recorrida”.
5. Novamente sem se resignarem, vieram os Réus interpor recurso de revista excepcional ao abrigo do art. 672º, 1, a), b) e c), do CPC, sendo este último fundamento usado para impugnar a decisão de rejeição da impugnação da matéria de facto por incumprimento do art. 640º do CPC.
A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela rejeição da revista excepcional por falta de preenchimento dos pressupostos do art. 672º, 1, do CPC. Mais requereu a condenação dos Recorrentes em multa e indemnização, como litigantes de má fé.
6. Ordenada a remessa dos autos à Formação prevista no art. 672º, 3, do CPC, uma vez, no contexto de a revista ter sido interposta exclusivamente como excepcional, verificada a existência de “dupla conformidade decisória” na fundamentação coincidente das instâncias no que toca aos segmentos/questões de direito objecto de impugnação e de reapreciação pela Relação, “sem prejuízo de a questão da sindicação da decisão da Relação sobre a aplicação do art. 640º (e rejeição da impugnação feita quanto ao julgamento de facto), invocada pelo Recorrente tendo por fundamento oposição jurisprudencial, não concorrer para a “dupla conforme””, foi proferido acórdão pela Formação que, nos termos do regime do art. 672º, 5, do CPC, ordenou a remessa dos autos ao aqui Relator para os fins tidos por convenientes “sobre a questão da aplicação do art. 640º do CPC”, “sem embargo de oportuna intervenção desta Formação circunscrita aos aspectos que lhe cabem apreciar”.
Na sequência, foi proferida Decisão Liminar Sumária, que, depois de convolar a revista para a modalidade normal no que respeita ao segmento de impugnação respeitante ao cumprimento dos ónus de alegação recursiva prevista no art. 640º, 1 e 2, do CPC como condição processual da reapreciação da matéria de facto, sendo a demais impugnação (Conclusões C) a G)) interposta como revista excepcional a título subsidiário (nos termos das als. a) e b) do art. 672º, 1, do CPC), julgou improcedente a revista normal interposta a título principal e ordenou a remessa dos autos à Formação do STJ para julgamento da admissibilidade da revista excepcional subsidiária.
Vieram então os Réus e Recorrentes deduzir Reclamação para a Conferência dessa Decisão no que tange ao segmento decisório relativo à revista normal, sendo proferido acórdão nesta instância que a indeferiu, confirmando a Decisão reclamada.
7. Cumprida a Decisão Liminar Sumária quanto ao segmento relativo à remessa dos autos à Formação do STJ, veio esta a proferir acórdão que admitiu a revista excepcional.
8. São estas as Conclusões (a finalizar as alegações de recurso) pertinentes para a apreciação do recurso interposto pelos Recorrentes:
“C. A transmissão de direitos nominativos sobre um capital social de uma sociedade anónima não está impedida na Lei 15/2017, de 3 de Maio, nem na legislação subsequente. Só as transmissões de direitos sobre capital social sem identificação de titular (através de títulos ao portador) são proibidas.
D. Um direito nominal a um capital social de uma sociedade anónima pode ser titulado ou transmitido a qualquer tempo.
E. Uma ação que foi originariamente emitida ao portador que identifica – de acordo com deliberação legítima da entidade emitente – o seu titular nominal, perde a natureza de ação ao portador.
F. Não são ao portador as ações em que os detentores estão nominalmente identificados e que estão identificadas como ações nominativas.
G. A transmissão efetuada em 10.11.2017 que está em apreciação nos autos é legalmente válida não podendo ser equiparada a transação anónima realizada com títulos ao portador prevista na lei 15/2017, de 3 de Maio.”
Consignados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.
II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS
1. Objecto do recurso
1.1. De acordo com a delimitação empreendida pelo acórdão da Formação Especial deste STJ proferido por último nos autos, cumpre saber qual a consequência do disposto, em especial, nos arts. 2º, 2, da Lei 15/17, de 3 de Maio, e no art. 4º, 1, b), do DL 123/17, de 25 de Setembro, quanto à validade da transmissão a favor dos Réus das acções ao portador (representativas do capital social da sociedade «S..., S.A.») da propriedade da accionista «REBOCALEX», formalizada através de declarações de endosso apostas nos títulos, atentos a data dessa mesma transmissão e o regime legal predisposto por tais diplomas quanto ao processo de conversão de acções tituladas ao portador em acções tituladas nominativas.
1.2. Admitido o recurso de revista excepcional, é ainda de apreciar o pedido de condenação em litigância de má fé dos Recorrentes, deduzido pela Recorrida nas suas contra-alegações.
2. Factualidade
Foram considerados provados pelas instâncias os seguintes factos:
1. A A. é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 16.08.2002, com o capital social de 50.000,00 €, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Sintra, com sede social na Rua das Minas, Lote 16, Idanha, 2605-094 BELAS.
2. Os RR. foram, até ao dia 16 de Novembro de 2017, os únicos gerentes e os únicos sócios da A., em cujo capital, detinham, cada um, uma quota com o valor nominal de 25.000,00 €.
3. No dia 16 de Janeiro de 2003, os RR. outorgaram, a favor de CC, pai de ambos, a procuração de que foi junta cópia como doc. 3 do requerimento inicial, que conferia, a este, com relação às quotas de que eram titulares, poderes para prometer ceder e ceder, a quem entendesse, designadamente a ele próprio, mandatário, pelo preço e condições que entendesse, as referidas quotas, receber os respectivos preços, deles dar quitação, podendo assinar os competentes contratos.
4. A referida procuração foi outorgada no interesse do mandatário, com menção de que não poderá ser revogada “sem o seu, dele, consentimento ou acordo (…)”.
5. No dia 16 de Novembro de 2017, por escritura pública de que foi junta cópia como doc. 4 do requerimento inicial, CC, valendo-se dos poderes que, através da referida procuração, lhe haviam sido conferidos, cedeu, a seu favor e a favor de DD, as quotas, representativas da totalidade do capital social da A., Rebocalex, Lda., até então tituladas pelos RR.
6. No mesmo acto, após a assunção, por ambos, da qualidade de únicos sócios da A., CC e DD deliberaram destituir os RR. dos cargos de gerentes da A.
7. A A., Rebocalex, Lda., era portadora de 59.980 acções, representadas por títulos ao portador, com o valor nominal unitário de 1,00 €, no capital social da sociedade anónima com a firma SOBRAL & FONSECA, S.A., com o capital social de 120.000,00 €, matriculada, na Conservatória do Registo Comercial de Sintra, com sede social na Rua das Minas, Lote 16, Idanha, 2605-094 Belas, NIPC 501333002.
8. O Conselho de Administração da Sobral & Fonseca, S.A. era, em 25.10.2017, integrado por CC que presidia, e pelos RR..
9. Em reunião do Conselho de Administração da sociedade S..., S.A. de 25.10.2017, foi deliberado, por unanimidade, proceder à conversão das então acções ao portador em acções nominativas e conformar o contrato de sociedade ao disposto na Lei n.º 15/2017 de 03.05 e D.L. n.º 123/2017 de 25.09.
10. Na acta da referida reunião do Conselho de Administração da Sobral & Fonseca, S.A. de 25 de Outubro de 2017, ficou consignada a seguinte estrutura accionista:
REBOCALEX – Transporte de Automóveis, Lda ---------------------------------59.980
EE -------------------------------------------------------------30.000
CC -------------------------------------------------------------10.000
AA ------------------------------------------------------------- 10.000
BB --------------------------------------------------------------10.000
FF -------------------------------------------------------------------10
GG ------------------------------------------------------------------10
11. Os RR., na sua qualidade de administradores da sociedade SOBRAL & FONSECA, S.A., subscreveram a respectiva acta.
12. Após a tomada daquelas deliberações, foi promovido o registo comercial das alterações ao contrato de sociedade.
13. Em 05.12.2017 realizou-se, nas instalações sociais da SOBRAL & FONSECA, S.A., uma reunião informal de accionistas e, nela, o R. AA afirmou, perante os demais accionistas presentes, que as acções da A. eram suas e que estavam, bem guardadas, na sua casa.
14. Através de cartas registadas com aviso de recepção, remetidas pelo então Presidente do Conselho de Administração, CC, no dia 21 de Dezembro de 2017 e recebidas pelos RR. no dia 22 de Dezembro de 2017, estes foram interpelados para entregar os títulos antigos, ao portador, para receber títulos novos, nominativos.
15. No que se refere ao processo administrativo, de conversão das acções ao portador em acções nominativas, foram emitidos títulos provisórios, representativos das acções nominativas, que foram entregues a todos os accionistas da referida SOBRAL & FONSECA, S.A., à excepção dos RR.
16. Em reunião da assembleia geral da SOBRAL & FONSECA, S.A., realizada no dia 3 de Janeiro de 2018, os RR., representados através de cartas mandadeiras pelo advogado, Sr. Dr. HH, entregaram ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral, públicas-formas, de títulos representativos de 59.980 acções, nos quais foi aposta a menção “Endosso”, a data de 10 de Novembro de 2017 e o carimbo da A., seguido da assinatura de AA nos títulos correspondentes a 30.000 acções e da assinatura de BB nos títulos correspondentes a 29.980.
17. A entrega das públicas-formas foi acompanhada do requerimento à Mesa, de que foi junta cópia em 29.05.2018 como doc. 38 da petição inicial, através do qual o representante dos RR., naquela reunião, pretendia que a qualidade, derivada dos referidos títulos, fosse reconhecida aos seus representados.
18. A aposição da menção de endosso nos títulos em causa não correspondeu a qualquer movimento contabilístico ou entrada de valor na contabilidade da A., tendo as acções continuado a figurar na mesma como pertença da A..
19. Os RR. apresentaram, em 20.06.2018 no processo n.º 5647/18.... e em 05.07.2018 nos presentes autos, cópias digitalizadas das acções em causa, com as seguintes menções apostas:
- Sobre a menção originária dos títulos “Pertence ao Portador”, a menção “Acções nominativas”;
- Na parte inferior do anverso do título, a menção: Conversão feita ao abrigo da lei 15 de 2017, de 03 de maio, e do decreto-lei n.º 123/2017, de 25 de Setembro ao abrigo de deliberação do conselho de administração da sociedade, por unanimidade de dia 25 de outubro de 2017. Conversão feita ao abrigo do artigo 4º n.º 1 alínea b do decreto lei 123/17, de 25 de Setembro;
- No verso do título, na parte respeitante aos averbamentos, após as menções já referidas (“endosso”, “10/11/2017”, carimbo da A. e assinatura), em três títulos, correspondentes a 30.000 acções, o nome e NIF de BB seguidos da assinatura deste, e nos demais títulos correspondentes a 29.980 acções o nome e o NIF de AA, seguidos da assinatura deste.
20. Estas menções foram apostas, pelos RR., nos títulos, entre os dias 28 de Dezembro de 2017 e o dia 20 de Junho de 2018.
21. Até 30.11.2017 os RR investiram pelo menos € 76.501,20 na Sobral & Fonseca, S.A.
22. Os RR endossaram as acções na data nelas aposta, após terem tido conhecimento de que o Sr. CC ia fazer a cessão de quotas.
23. Após a referida data os RR efectuaram pagamentos no valor de € 4.890,54, 15.642,06 e € 1.444,28.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
a) As participações sociais tituladas pelos Réus no capital social da Autora eram propriedade do seu pai, CC, pois, tinha sido ele a realizar o capital necessário à constituição da mesma.
b) Cada um dos Réus assinou o endosso de títulos correspondentes a metade das 59.980 acções detidas pela Rebocalex.
c) A data de aposição das menções de endosso referidas nos títulos, é posterior àquela em que os RR. tiveram conhecimento da realização da escritura de cessão das quotas (16 de Novembro de 2017) ou do registo daquele facto.
d) No dia 5 de Dezembro de 2017, a operação de “endosso” ainda não tinha ocorrido.
e) Na data em que realmente procederam à outorga das menções de “endosso”, os RR já não eram gerentes da A..
f) Os RR apuseram menções correspondentes ao nome e NIF de cada um, em ordem a que cada um figurasse em metade dos títulos.
g) A conversão das 59.980 acções foi feita nos títulos originais assinados pelo Sr. CC.
h) Têm ainda as assinaturas dos dois administradores em exercício da Sobral e Fonseca, S.A. agora RR.
i) Os títulos são os originais estão devidamente carimbados com o selo branco da sociedade não existindo outros.
j) O investimento dos RR na Sobral e Fonseca, S.A. ascendeu a mais de uma centena de milhar de euros.
k) Os RR investiram na Sobral & Fonseca, S.A. no pressuposto de que eram maioritários e não o teriam feito se fossem minoritários.
l) Foi na qualidade de administradores da Sobral & Fonseca, S.A. e de únicos sócios da Rebocalex, S.A. que os RR deliberaram atribuir à Rebocalex as acções ao portador da Sobral & Fonseca, S.A. que aquela detinha como investimento financeiro.
m) A transmissão a favor dos RR, em 10.11.2017, das acções da Sobral & Fonseca, S.A. foi natural e consequente com a gestão que estavam a efectuar na Sobral & Fonseca., S.A. por afastamento voluntário de CC por acordo com os RR e com a sua perspectiva de futuro.
n) O principal activo da Rebocalex era o alvará de reboque que estava em nome de AA.
3. Direito aplicável
3.1. Da transmissão das acções
3.1.1. A L 15/2017 veio proibir a emissão de valores mobiliários ao portador a partir de 4 de Maio desse ano (arts. 1º, 1, e 2º, 1) e instituir a obrigação de os valores mobiliários ao portador serem convertidos em nominativos no prazo de seis meses – até 3 de Novembro de 2017 –, ficando, a partir deste momento, se não forem convertidas, «proibida a transmissão de valores mobiliários ao portador» e «suspenso o direito a participar em distribuição de resultados associado a valores mobiliários ao portador» (art. 2º, 2, a) e b))[1].
O seu art. 3º estabeleceu que fosse criado um regime transitório de conversão dos valores, o que veio a ser regulamentado pelo DL 123/2017, de 25 de Setembro, nos seguintes termos:
«Artigo 2.º
Conversão obrigatória dos valores mobiliários ao portador em nominativos
1 – Os emitentes de valores mobiliários ao portador promovem o processo de conversão destes em nominativos e praticam os demais atos previstos no presente decreto-lei num prazo máximo de seis meses a contar da entrada em vigor da Lei n.º 15/2017, de 3 de maio, doravante referido como período transitório.
2 – As alterações ao contrato de sociedade e aos demais documentos relativos às condições de emissão dos valores mobiliários necessárias para a conversão dos valores mobiliários ao portador em nominativos podem ser deliberadas pelo órgão de administração dos emitentes, sem necessidade de aprovação em assembleia geral.
Artigo 3.º
Procedimento para a conversão dos valores mobiliários ao portador em nominativos
1 – Os emitentes de valores mobiliários ao portador publicam, durante o período transitório, um anúncio informando os seus titulares acerca do processo de conversão daqueles em valores mobiliários nominativos.
2 – O anúncio referido no número anterior deve explicitar, nomeadamente:
a) A identificação dos valores mobiliários em causa;
b) A fonte normativa em que assenta a decisão;
c) A data da deliberação das alterações ao contrato de sociedade e demais documentos relativos à conversão dos valores mobiliários ao portador em nominativos e indicação do órgão deliberativo;
d) A data prevista para a apresentação do pedido de inscrição das alterações ao contrato de sociedade e aos demais atos sujeitos a registo no registo comercial;
e) As consequências da não conversão dos valores mobiliários durante o período transitório previstas no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 15/2017, de 3 de maio, e nos n.os 1 e 2 do artigo 7.º do presente decreto-lei.
3 – Quando estiver em causa a conversão de valores mobiliários titulados ao portador não integrados em sistema centralizado, o anúncio referido no n.º 1 do presente artigo indica ainda que os títulos são apresentados ao emitente ou ao intermediário financeiro por este indicado, pelos titulares ou mediante instruções e por conta destes, pelas entidades depositárias nos termos do artigo 99.º do Código dos Valores Mobiliários ou pelas entidades que tenham os títulos em sua posse, nomeadamente os beneficiários de garantias, até 31 de outubro de 2017, para efeitos de atualização ou substituição dos títulos em causa.
4 – Sempre que os valores mobiliários ao portador estejam integrados em sistema centralizado, é indicada no anúncio referido no n.º 1 a data prevista para a conversão ocorrer no referido sistema.
5 – O anúncio referido no n.º 1 é objeto de publicação obrigatória no sítio da Internet do emitente, se existir, e no Portal do Ministério da Justiça, em Publicações on-line de Atos Societários (http://publicacoes.mj.pt/), e, no caso de emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado ou sistema de negociação multilateral ou emitentes com o capital aberto ao investimento do público, no Sistema de Difusão de Informação da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).
6 – Os intermediários financeiros depositários de valores mobiliários titulados ao portador referidos no n.º 3 comunicam a cada cliente, em suporte duradouro, a necessidade de os títulos serem apresentados junto dos emitentes para serem convertidos, bem como das consequências legais da não conversão.
Artigo 4.º
Modos de conversão dos valores mobiliários ao portador em nominativos
1 – A conversão, a expensas do emitente, opera:
a) Através de anotação na conta de registo individualizado dos valores mobiliários escriturais ao portador ou dos valores mobiliários titulados ao portador integrados em sistema centralizado;
b) Por substituição dos títulos ou por alteração das menções deles constantes, realizadas pelo emitente.
2 – Sempre que a conversão opere por substituição dos títulos, o emitente ou, no caso dos valores mobiliários titulados ao portador integrados em sistema centralizado, a entidade gestora desse sistema promove a inutilização ou destruição dos títulos antigos.
3 – A entidade gestora de sistema centralizado estabelece e divulga os procedimentos de conversão a adotar relativamente aos valores mobiliários ao portador integrados no referido sistema.
4 – Aos valores mobiliários titulados ao portador depositados em intermediário financeiro cuja, emissão ou série seja, representada por um só título aplica-se o previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1.
Artigo 5.º
Conversão dos valores mobiliários ao portador em nominativos no final do período transitório
1 – Os valores mobiliários ao portador integrados em sistema centralizado que não tenham sido convertidos em nominativos por iniciativa do emitente nos termos dos artigos anteriores são convertidos pela entidade gestora de sistema centralizado no último dia do período transitório, nos termos a definir pela entidade gestora.
2 – Findo o período transitório, a entidade gestora de sistema centralizado e a entidade gestora de mercado regulamentado ou de sistema de negociação multilateral onde os valores mobiliários se encontram admitidos à negociação divulgam informação sobre os valores mobiliários convertidos ao abrigo do presente artigo.
3 – Os valores mobiliários escriturais ao portador registados num único intermediário financeiro, que não tenham sido convertidos em nominativos por iniciativa do emitente nos termos dos artigos anteriores, são convertidos, por esse intermediário financeiro, na data prevista no n.º 1, o qual comunica esse facto ao emitente.
Artigo 6.º
Atualização de registos
1 – A entidade gestora de sistema centralizado, as entidades registadoras no sentido do artigo 61.º do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro, e os emitentes atualizam os respetivos registos dos valores mobiliários convertidos nos termos do presente decreto-lei.
2 – Os emitentes devem requerer o registo comercial, designadamente, das alterações ao contrato de sociedade e demais documentos sujeitos a registo comercial necessários ao cumprimento do disposto no presente decreto-lei.
3 – Constituem documentos bastantes, para efeitos de registo comercial, a deliberação do emitente, bem como a nova redação do contrato de sociedade e demais documentos relativos à conversão dos valores mobiliários ao portador em nominativos sujeitos a registo comercial ou, ocorrendo a conversão referida no artigo anterior, a declaração da entidade gestora de sistema centralizado ou do intermediário financeiro.
4 – Enquanto não tiver operado a conversão dos valores mobiliários ao portador nos termos do disposto no artigo 4.º, deverá constar do registo comercial a menção da pendência do processo de conversão.
5 – O emitente deverá promover o registo comercial do encerramento do processo de conversão caso tenha ficado a constar do mesmo a respetiva pendência.
Artigo 7.º
Valores mobiliários ao portador não convertidos em nominativos
1 – Os valores mobiliários ao portador não convertidos em nominativos até ao fim do período transitório apenas conferem legitimidade para a solicitação do registo a favor dos respetivos titulares, devendo ainda, no caso de valores mobiliários ao portador titulados, ser apresentados junto do emitente os respetivos títulos para substituição ou alteração das respetivas menções, de modo que opere a conversão.
2 – O montante correspondente aos dividendos, juros ou quaisquer outros rendimentos cujo pagamento se encontre suspenso é depositado junto de uma única entidade legalmente habilitada para o efeito, em conta aberta em nome do emitente, e será entregue, com base em instruções do emitente, aos titulares dos valores mobiliários aquando da respetiva conversão.
3 – Caso o montante referido no número anterior vença juros, os mesmos revertem para o emitente.
4 – Ao saldo da conta referida no n.º 2 apenas pode ser deduzido o valor dos custos de manutenção da conta.»
Tal significa que, no que respeita às acções tituladas ao portador não integradas em sistema centralizado (estejam ou não depositadas em intermediário financeiro)[2] – onde se integra a natureza das acções em causa nos negócios transmissivos analisados nos autos –, se não forem convertidas de acordo com a operação complexa determinada pela lei até ao fim do período transitório de seis meses e, portanto, depois dele:
(i) não podem ser validamente transmitidas pelos seus proprietários-titulares;
(ii) fica suspenso o direito a quinhoar nos lucros sociais correspondentes;
(iii) conferem apenas aos seus proprietários-titulares a legitimidade material para exercer o direito de solicitar à sociedade emitente o registo (interno) a seu favor;
(iv) oneram os proprietários-titulares com a necessidade de apresentação das acções junto da sociedade emitente «para substituição ou alteração das respetivas menções, de modo que opere a conversão».
Estamos nessa situação de irregularidade perante acções diminuídas, em que “quase todos os direitos inerentes às ações (direitos de participação, direitos patrimoniais, direitos de controlo) ficam suspensos até à conversão”[3], e oneradas, em virtude de sobre elas (recte: sobre os seus titulares) recair a necessidade de adopção de um comportamento destinado à realização do interesse de extinção desse estado de diminuição da posição de socialidade inerente a essas acções não convertidas regularmente em nominativas.
Estes efeitos produzem-se independentemente do responsável pelo incumprimento pleno da operação complexa de conversão das acções, nomeadamente se for imputável à sociedade, enquanto promotora do processo de conversão (art. 2º, 1, do DL 123/2017). Sem prejuízo de o accionista sempre poder exercer e desencadear o procedimento do art. 7º, 1, do DL 123/2017, que pressupõe justamente esse incumprimento até ao fim do período transitório. Este procedimento funciona mesmo como um sucedâneo, ainda que num contexto extemporâneo, para desencadear a conversão omitida no período apontado pela lei (em todos os seus actos, por regra, com as devidas adaptações[4]), a fim de ser concretizada a final a entrega de novos títulos nominativos ou dos títulos antigos com alteração do texto (nos termos do art. 827º do CCiv.)[5].
Na verdade, para as acções tituladas ao portador fora do sistema centralizado, essa operação, promovida e dirigida pela sociedade emitente dos valores-acções, compreende, em termos cumulativos:
(i) deliberação da sociedade, através dos sócios ou através do órgão de administração (sem necessidade de ratificação pelos sócios), sobre as alterações ao pacto social e a descrição dos documentos (eventualmente necessários) para a emissão de novas acções (ou, será de entender, para a conversão sem substituição): art. 2º, 2;
(ii) anúncio informativo aos accionistas do processo de conversão, com conteúdo imperativo – destacando-se a indicação de apresentação dos títulos junto da emitente «para efeitos de atualização ou substituição dos títulos» – e publicação obrigatória no sítio da Internet da sociedade e/ou no Portal do Ministério da Justiça: art. 3º, 1, 2, 5;
(iii) substituição por acções novas (com inutilização ou destruição das acções substituídas: art. 4º, 2) ou alteração (por averbamento) das menções constantes (nomeadamente quanto à titularidade) nas acções antigas, a efectuar pela sociedade emitente, pressupondo-se a interpelação ou a iniciativa própria dos proprietários das acções para a sua entrega ou apresentação para esses efeitos[6]: art. 4º, 1, b), do DL 123/2017 (em relação com a indicação feita no anúncio prévio: art. 3º, 3).
Só a observância de todos estes passos e seus actos jurídicos e materiais – mesmo que realizados depois de 3 de Novembro de 2017, de acordo com o desencadeado pelo ónus previsto pelo art. 7º, 1, do DL 123/2017 – conduz à eficácia plena (interna e externa) da conversão deste tipo de acções em acções nominativas e, com ela, à extinção das restrições derivadas da incompletude ou incumprimento do processo de conversão após o aludido período transitório.
3.1.2. Aplicando ao caso, verifica-se que essa operação não foi plenamente cumprida por causas imputáveis à sociedade emitente e, pelo menos, aos accionistas aqui Réus (cfr., em esp., factos provados 13., 14. e 15.).
Houve deliberação do seu conselho de administração em 25/10/2017 – cfr. facto provado 9 (e subsequente registo das alterações do pacto social deliberadas nessa oportunidade, de acordo com o art. 6º, 2, do DL 123/2017: facto provado 12.).
Depois de 3 de Novembro, a sociedade «Sobral & Fonseca, S.A.», através do seu conselho de administração, interpelou os aqui Réus, “para entregar os títulos antigos, ao portador, para receber títulos novos, nominativos” – cfr. facto provado 14.
E houve a emissão de “títulos provisórios, representativos das acções nominativas”, que foram entregues a todos os accionistas da sociedade (incluindo portanto a Autora), com excepção dos accionistas aqui Réus – cfr. facto provado 15.
E nada mais se fez ou concretizou em ordem ao processo de conversão das acções da «Sobral & Fonseca, S.A.», de acordo com a factualidade provada e o período temporal a que ela se refere.
Assim sendo, clarifique-se.
3.1.3. A emissão de “títulos provisórios” nominativos para as acções da «Sobral & Fonseca, S.A.» desrespeitou o procedimento legal (art. 4º, 1, b), do DL 123/2017) e, por outro lado, não preclude a falta de observância de todos os actos integrantes (antes descritos) do processo de conversão, a fim de se criarem validamente acções nominativas substitutas.
3.1.4. As alterações produzidas nos títulos correspondentes às acções da propriedade da accionista, aqui Autora, «REBOCALEX», que constam do facto provado 19. (1º e 2º itens) –
a saber:
“- Sobre a menção originária dos títulos “Pertence ao Portador”, a menção “Acções nominativas”;
- Na parte inferior do anverso do título, a menção: Conversão feita ao abrigo da lei 15 de 2017, de 03 de maio, e do decreto-lei n.º 123/2017, de 25 de Setembro ao abrigo de deliberação do conselho de administração da sociedade, por unanimidade de dia 25 de outubro de 2017. Conversão feita ao abrigo do artigo 4º n.º 1 alínea b do decreto lei 123/17, de 25 de Setembro” –,
foram produzidas por actuação, alheia à sociedade emitente (v. factos provados 16. e 17., quanto à invocação em assembleia geral), dos aqui Réus e Recorrentes, em período ulterior à data (10/11/2017) do “endosso” das acções, ou seja, entre 28/12/2017 e 20/6/2018 (cfr. factos provados 20. e 22.). E, mais importante, em momento posterior ao esgotamento do período transitório, em que se aplica o referido art. 7º, 1, do DL 123/2017 para os proprietários de acções ao portador não convertidas.
Logo, para o que interessa, essas alterações para conversão estão feridas pela ilegitimidade subjectiva dessa operação – o corpo do art. 4º do DL 123/2017 refere «a expensas do emitente», devendo entender-se, por isso, a respectiva iniciativa para o efeito (tendo em conta a interpretação sistemática com o art. 2º, 1); depois do período transitório, o seu art. 7º, 1, confere à sociedade o poder para operar a conversão. Assim, e sem necessidade de qualquer outra indagação, não permitem sanar a falta de cumprimento do processo de conversão, desde logo por essa falta de legitimidade dos aqui Réus, fosse qual fosse a qualidade em que actuaram sobre as acções a converter durante esse período (pelo menos, para este domínio de actuação: accionistas a título pessoal da «Sobral & Fonseca, S.A.» e alegados adquirentes dessas acções da co-accionista «REBOCALEX»[7]).
Essas alterações e modificações nas acções ao portador são inoponíveis à sociedade e aos restantes accionistas para o efeito de conversão regular e eficaz e, por isso, sendo feridas por vício insuprível e omissão de procedimento, não permitem a extinção das restrições legais, impostas para a inobservância do processo de conversão e vigentes após o decurso do período transitório oferecido pela lei para essa conversão. Restrições essas devidas ao facto de as acções da Autora manterem após a extinção do prazo transitório de conversão a natureza de acções tituladas ao portador.
Logo.
3.1.5. Os aqui Réus vêm pugnar nos autos pela validade da transmissão por endosso das acções da Autora «REBOCALEX», com data de 10/11/2017 – 30.000 acções e 29.980 acções a favor de AA e BB (cfr. factos provados 16., 20., 3º item, 22.) –, tendo em conta a suficiência da deliberação do conselho de administração para a conversão em acções nominativas e, depois, a existência de poderes como gerentes da «REBOCALEX» para os “endossos” e a identificação dos transmissários.
Porém, em função do sobredito, nessa data, as acções cuja transmissão se invoca eram – ou continuavam a ser – acções tituladas ao portador afectadas pelo regime dos arts. 2º, 2, da L 15/2017 e 4º, 1, b), e 7º, 1, do DL 123/2017.
Em particular, a sua proprietária «REBOCALEX» estava impedida por norma imperativa de exercer a faculdade jurídica, inerente ao seu direito de propriedade, de transmissão das acções, uma vez ocorrida a transmissão em data ulterior a 3/11/2017 (data limite, como regra, para a conversão).
Ora:
independentemente do relevo do momento e do modo de vinculação (singular ou plural) para a sociedade transmitente desses negócios de transmissão/“endosso”;
da averiguação de as assinaturas que nela constam estarem devidamente inscritas (ou não) na qualidade de serem representantes-gerentes da sociedade transmitente e da identificação do transmissário enquanto tal;
de estar ausente prova sobre qualquer acordo de vontades para um negócio causal com os alegados transmissários e possuidores das acções (sem prejuízo do facto provado 18.);
a transmissão das acções é nula pelo vício originário da violação da lei proibitiva da transmissão: arts. 2º, 2, a), L 15/2017; 280º, 1, e 294º do CCiv.
3.1.6. Já agora, diga-se que, após o período transitório sem conversão regular:
(i) não se aplicava o regime vigente até 3/11/2017, em que as acções ao portador poderiam ser transmitidas nos termos do art. 101º, 1, do CVM («por entrega do título ao adquirente»), em conjugação com o art. 104º, 1, do mesmo CVM («posse do título»), precedida ou acompanhada de acordo de vontades que funcionasse como base de “justa causa” da transmissão (por ex., compra e venda, doação, troca, compensação, para transmissões voluntárias inter vivos), tendo em conta a repristinação desse(s) preceito(s) durante o período transitório definido no art. 2º, 2, da L 15/2017, operada pelo art. 9º do DL 123/2017[8];
(ii) nem se aplica – como está subjacente à argumentação dos Recorrentes – o regime para as acções que fossem de considerar, à data da translação, já nominativas por conversão, isto é, o do art. 102º, 1, 2, c), e 5, do CVM: declaração de transmissão a favor do transmissário, escrita pelo transmitente, e registo junto do emitente (o que inviabiliza a discussão da aptidão transmissiva do “endosso” averbado nas acções).
Ademais: como, a partir de 4/11/2017, se encontravam (e encontram) em definitivo revogados os arts. 101º e 104º, 1, do CVM, por força do art. 6º da L 15/2017, os titulares de acções tituladas ao portador (por não estarem convertidas) deixaram de ter em vigor um regime de transmissão e aferição da legitimidade para o exercício dos respectivos direitos sociais[9]. Daí que se não possa avaliar e sindicar, ainda que fosse admitida, essa transmissão de acções ao portador que, após o período de conversão, mantiveram essa natureza – proibida a montante e inviabilizada a jusante.
3.1.7. Sendo nula a transmissão, operam as consequências ditadas pelo art. 289º, 1, do CCiv., justificando-se, assim, o dispositivo decisório da sentença proferida em 1.ª instância.
Em síntese: não merece de todo censura o acórdão recorrido, falecendo as Conclusões C. a G. dos Recorrentes.
3.2. Do pedido de litigância de má fé dos Recorrentes
Veio a Recorrida, em sede de contra-alegações, peticionar incidentalmente a litigância de má fé dos Recorrentes por força da interposição da presente revista.
Para o efeito, imputa aos Recorrentes o comportamento de “deduzir pretensões sem fundamento sério manifesto” e sem “condições de sustentabilidade jurídica”, tendo em vista “ganhar tempo, retardando o trânsito em julgado e atrasando, neste caso, o momento da entrega dos títulos, à recorrida, em conformidade com o que foi decidido, pelo tribunal de 1ª instância e pelo tribunal da Relação”. Assim, “essa actividade tendente a ganhar tempo, mediante o retardamento do trânsito em julgado, é uma actividade ilícita, cominada com a aplicação de multa e indemnização”.
Concluiu que se configuram as situações previstas nas als. a) e d) do art. 542º, 2, do CPC, devendo ser os Recorrentes, por isso, condenados a indemnização nos termos do art. 543º do CPC.
Apreciemos.
O art. 542º do CPC determina:
«1 – Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.»
Uma das condutas em que se poderá exprimir a litigância de má fé consiste na intervenção em juízo com propósitos dilatórios, obstando, pela sua conduta temerária, que o Tribunal almeje uma rápida decisão, pondo assim em causa o objectivo de realização de uma justiça pronta, que, decidindo o litígio com rapidez, reponha a certeza, a paz social e a segurança jurídica, afrontadas pelo litígio[10]. Neste caso, estaremos perante uma má fé instrumental, desde que acrescida da assunção subjectiva da falta de razão nessa intervenção[11].
Porém, a litigância de má fé censurável – com dolo ou negligência grave – não se confunde com a discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta de uma posição jurídica, ainda que diversa daquela que a decisão judicial acolhe e ampara – mesmo quando haja entendimento comum em duas instâncias, sob pena de ser sempre convocada essa natureza de litigância quando se interpõe revista excepcional em caso de dupla conformidade decisória.
Não se nos afigura que os Recorrentes litiguem junto do STJ, nomeadamente com a culpa qualificada que a lei exige, com violação grave dos deveres de cooperação, boa fé processual e correcção recíproca (arts. 7º, 1, 8º e 9º, 1, CPC) na sua relação com as partes e com o Tribunal: seja porque fosse de exigir conhecimento ou cognoscibilidade da falta do fundamento recursivo, tendo em conta a diligência exigível para a pessoa média, colocada nesta situação em concreto, quanto à pretensão deduzida em face da disciplina jurídica em causa (de acordo com a al. a) do art. 542º, 1, do CPC); seja porque fosse de entender que o recurso esteve apenas ao serviço da obtenção dos fins considerados ilegítimos na al. d) do art. 542º, 1, do CPC.
É certo que os Recorrentes não se conformam com as consequências jurídicas do acórdão recorrido, que manteve a sentença de 1.ª instância. Tem, por isso, ao seu dispor, ainda que residualmente, a revista contemplada pelo art. 671º, 3, e 672º, como meio de impugnação residual e última, prevista para fazer inverter a solução da instância recorrida – que foi admitida pela Formação do STJ, com fundamentação que abona ao inconformismo interpretativo dos Recorrentes quanto a um regime ainda escassamente reflectido em decisões jurisprudenciais.
Aproveitar deste meio recursivo – para além da revista normal em sede de reapreciação do decidido quanto ao cumprimento na apelação do art. 640º do CPC, entretanto julgada improcedente, com trânsito – não permite concluir que foram violados os deveres processuais incompatíveis com uma actuação eivada da promoção de expedientes dilatórios, susceptível de desencadear a forte sanção punitiva que o CPC reserva para comportamentos abusivos em sede adjectivo-processual.
Os Recorrentes não infringiram com desconsideração manifesta e grosseira esses deveres, em aproveitamento da aparelhagem legal que lhe permite pugnar pelo vencimento de uma outra forma de interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto.
Razão pela qual não logra proceder o pedido da Recorrida e se absolvem os Recorrentes.
III. DECISÃO
Em conformidade, acorda-se em:
1) julgar improcedente a revista admitida como excepcional;
2) julgar improcedente e absolver os Recorrentes do pedido de condenação em litigância de má fé pela interposição da revista.
*
Custas da revista pelos Recorrentes.
Custas do incidente relativo à litigância de má fé a cargo da Recorrida, que se fixa em taxa de justiça correspondente a 0,5 UC.
STJ/Lisboa, 15 de Março de 2022
Ricardo Costa (Relator)
António Barateiro Martins
Luís Espírito Santo
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)
____________________________________________________
[1] Nesta sequência, modificaram-se os arts. 52º do CVM e 299º do CSC, a fim de configurar a redacção actualmente em vigor.
[2] Fora, portanto, do âmbito de actuação da conversão “necessária” do art. 5º do DL 123/2017 (valores integrados em sistema centralizado e valores escriturais registados em intermediário financeiro): v. ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Art. 300º” [revogado], Código das Sociedades Comerciais em comentário, Volume V (artigos 271º a 373º-B), 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 365-366.
[3] COUTINHO DE ABREU, “A propósito da eliminação das ações ao portador”, V Congresso Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 62.
[4] JOANA TORRES EREIO, “O fim dos valores mobiliários ao portador”, RDS, 2017 (4), pág. 852 e nt. 47.
[5] COUTINHO DE ABREU, “A propósito…”, loc. cit., pág. 62.
[6] V. Ac. da Relação de Lisboa de 25/5/2021, processo n.º 11978/19.0T8SNT.L1-1, Rel. ISABEL FONSECA, in www.dgsi.pt.
[7] Não interessa, neste domínio de actuação, terem sido gerentes da accionista «REBOCALEX» (sem averiguar da sua condição registal) até 16/11/2017 (cfr. factos provados 2. a 6.), circunstância com que os Recorrentes alegam os poderes de representar e vincular a «REBOCALEX» para o “endosso” (e consequente declaração transmissiva) em seu benefício.
[8] Sobre esse regime e sua relação com o art. 9º do DL 123/2017, v., em conjunto, JORGE COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Volume II, Das sociedades, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, págs. 346-347, 348-349, ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Artigo 327º”, Código das Sociedades Comerciais em comentário, Volume V cit., págs. 547 e ss, JOANA EIRÓ, “O fim dos valores mobiliários ao portador”, loc. cit., págs. 842 e ss; também o Ac. do STJ de 5/2/2019, processo n.º 95/14.0T8BGC.G1.S1, Rel. PAULO SÁ, in www.dgsi.pt.
[9] V. MARIA DE DEUS BOTELHO, “O fim das ações ao portador – O período de conversão do nosso descontentamento”, DSR, 2017, vol. 18, págs. 195-196 (“elemento de pressão no sentido da conversão dos títulos em nominativos”).
[10] ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 542º, pág. 593.
[11] V., neste sentido, o Ac. do STJ de 13/1/2015, processo n.º 36/12.9TVLSB.L1.S1, Rel. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.