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CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
FACTOS GENÉRICOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário
I – Considerando que o facto genérico é um “não-facto” (por isso, excluído da apreciação dos tribunais, ficando fora do elenco dos factos provados e não provados), o princípio do contraditório impõe que na imputação em juízo o facto deva manter a sua “singularidade” por forma a ser identificável pela defesa, não obstante se situe num período de tempo sem data precisa. II – A singularidade do facto fixa-se nos seus contornos ônticos, o que, no caso de uma conduta reiterada no tempo, torna mais fácil a sua identificação, atentos os comportamentos ou mau trato que se repete durante o referido período temporal. III – A repetição, réplicas e a frequência das condutas ao longo de determinado período de tempo (“x” vezes por mês; por ano; ou um número indeterminado durante 3 anos), integram a singularidade e a ontologia desse facto (maus tratos), enriquecendo o processo de identificação do mesmo pela defesa.
Texto Integral
Proc. 613/20.4PDVNG.P1
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Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
1 – Nos autos de processo comum singular que correu termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto foi o arguido AA condenado pela seguinte forma: “A - Nestes termos, julgo a acusação pública totalmente procedente, por provada, e em consequência decido: a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 04 (quatro) meses de prisão; b) Suspender a execução da pena de 2 (dois) anos e 04 (quatro) meses de prisão aplicada ao arguido AA pelo período de 3 (três) anos, sujeita a regime de prova, direcionada para a responsabilização pelos seus comportamentos, com vista a uma maior consciencialização sobre o desvalor das condutas de violência nas relações de intimidade e para os padrões relacionais disfuncionais, mediante plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, e com imposição das seguintes obrigações e regras de conduta: - responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social; - receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar-lhe à disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; - informar o Técnico de Reinserção Social sobre alterações de residência; - frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica dinamizado pela DGRSP. c) Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, nos termos do disposto no artigo 513º do Código de Processo Penal, e no artigo 8º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais. B - Julgo ainda parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante BB, em consequência do que decido: Condenar o demandado AA no pagamento da quantia de 2.000,00€ (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela demandante, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente sentença, até efetivo e integral pagamento;”.
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Não se conformando com a sentença o arguido veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES:
1 - O presente recurso tem por objecto a REAPRECIAÇÃO DA PROVA, NOS TERMOS DO ART. 411 nº 4 DO CPP, na qual o Tribunal a quo se sustentou para condenar pela prática de um crime de violência doméstica, p. p. pelo art.º 152 n.º 1 al. a) do Código Penal.
2. A Impugnação da condenação do arguido pelo crime de violência doméstica;
3. A impugnação dos factos inseridos na douta acusação pública, conduzindo a uma
4. Entende também o Recorrente, que do texto da decisão da qual ora se recorre, resulta o vícios da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
5. Destarte, nos termos do art.º 283º n.º 3 al. b) do CPP a acusação pública, deve incluir, se possível, o lugar, o tempo e a motivação dos factos;
6. Impondo-se, de acordo com a jurisprudência dominante, que no tipo de crime de espectro amplo, uma maior densificação das condutas com o desiderato de se obter uma justiça equitativa e a possibilidade de defesa do arguido que se demonstra inquinada, face a matérias descritas de forma genérica, vaga, com imputações conclusivas, sem factos naturalísticos;
7. Os artigos 7º, 12º, 16º e 31º dos factos provados, devem ser eliminados da acusação por consubstanciarem matéria vaga, genérica e conclusiva;
8. Os artigos 9º ao 11º, 13º e 14º dos factos provados, devem ser eliminados da acusação por consubstanciarem matéria vaga, sem concretização de tempo ou lugar que inviabilizam a defesa do arguido;
9. Na falta de especificação das circunstâncias factuais, que permitam concretizar as expressões conclusivas, juízos de valor e alusões de contornos indeterminados e de natureza genérica que não permitem extrair e fiscalizar a censura jurídico-penal inerente à globalidade do comportamento do arguido, a matéria acima indicada deverá ser eliminada dos factos provados, o que conduz à insuficiência de facto para a decisão:
10. Ao considerar-se a referida matéria violou-se o princípio do processo justo e equitativo, quer por imposição constitucional, decorrente do art. 32º, nº 1, da C.R.P., bem como o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
11. Sem prescindir;
12. O facto 6º da matéria dada como provada deve ser eliminado dos factos considerados provados e que passar a constar dos factos não provados, porquanto inexiste nos autos qualquer indício probatório traduzido em factos naturalísticos, de que tal posse, fosse uma forma de controlar a vida da assistente, temos pois uma interpretação extensiva da intenção do arguido, sem qualquer elemento que o sustente, o que no direito penal é inadmissível;
13. Os factos 7º e 8º da matéria dada como provada devem ser eliminados dos factos considerados provados e que passar a constar dos factos não provados. Esta matéria não consubstancia factos mas sim um juízo conclusivo, não definindo qualquer conduta naturalística, trata-se de uma imputação genérica, destarte a Assistente admite que a personalidade do arguido é assim em relação à demais família e que o mesmo utiliza no dia a dia linguagem brejeira, sendo esta mais uma forma de estar do que uma intenção dirigida à ofensa da dignidade humana da Assistente;
14. O facto 9º, 10º, 11º, 13º, e 14º da matéria dada como provada deve ser eliminado dos factos considerados provados, porquanto viola o direito de defesa do arguido, atento o hiato temporal alargado, sem circunstanciar ou contextualizar, violando o art.º 32º da CRP.
15. Os factos constantes dos artigos 11º, 16º e 32º, devem ser eliminados da matéria de facto dada como provada, enfatizando-se a total ausência de qualquer perícia ou elemento probatório, que ateste a violação do direito à saúde da assistente, viola o direito de defesa do arguido, na dúvida tem que funcionar o princípio in dúbio pro reo;
16. O facto constante do art.º 15º dos factos provados - encontra-se deturpado, em nenhum momento a Assistente em audiência de julgamento veicula que nessa discussão tenha sido apelidada de cabra e vaca, mais omite o facto de ter arremessado objectos ao arguido e ter sido a mesma a ter iniciado tal conduta, só à insistência da instância é que acaba por confessar que também arremessou objectos. Deve ser eliminado o segmento dos impropérios, porquanto nesse conspecto de tempo e lugar não é relatado por nenhum dos intervenientes;
17. No que se refere ao facto provado no art.º18º e artº 24º dos factos dados como provados, devem ser eliminados, o primeiro porque a redacção gramatical e o doc.de fls.182, dão uma interpretação diferente, destarte que a falta de rigor gramatical, induz a interpretações que não coincidem com a vontade declarativa do arguido, quanto ao segundo subsiste uma ausência absoluta de prova que tenha sido reproduzida em audiência de julgamento.
18. No que se refere aos artigos 22º e 23º dos factos provados - A interjeição “talvez”, revela que a Assistente não teve qualquer receio do que o arguido disse, nem fez da mesma uma interpretação literal, mais uma vez está a fazer-se uma interpretação extensiva das declarações do arguido, optando por lhe atribuir um processo de intenções que não estava nos seus horizontes, deve pois eliminar-se o último segmento do art.º 22 dos factos provados e alterar-se o art.º 23º dos factos provados, o passando a constar com o intuito de que a assistente dela tivesse conhecimento e com propósitos intimidatórios.”
19. Impõe-se a alteração da redacção dos artigos 25º e 26º, porquanto das declarações tanto da assistente como do arguido, não constam que em algum momento o mesmo tenha impedido a sua passagem - passando a constar “25º- Na penúltima semana de Setembro de 2020, o arguido cruzou-se na estrada ficando frente a frente com a assistente quando esta seguia apeada na Rua ...” - 26º- No dia 25 de Setembro de 2020, da parte da manhã, o arguido voltou a cruzar-se com a assistente, que persistia em não querer o contato com o arguido, este dirigiu-lhe as seguintes expressões: “vais começar com as tuas merdas?; Vais-me obrigar a ir a Tribunal?”,
20. No que se refere aos factos vertidos para os artigos 28º a 30º, o arguido contextualiza os factos ocorridos, sendo que a sua versão coaduna-se melhor com as regras da experiência do que com uma mera alusão de que o arguido gratuitamente, porque lhe apeteceu nesse dia de manhã resolveu ir tirar satisfações com a Assistente.
21. Com efeito, a sua conduta neste episódio de 12 de outubro não deixa de ser censurável, contudo mais uma vez se reforça a ideia de que não se trata de uma situação de especial crueldade perante a assistente, mas sim de um momento de raiva, pelo que a filha lhe tinha apelidado “palhaço”, devendo pois a redacção da al. h) dos factos não provados ser alterados passando a constar como um facto provado.
22. De tudo quanto supra se expôs, se concluiu que este artigo 31º tem que ser alterado, posto que o arguido não menosprezou a assistente, não a humilhou, não lhe controlou os movimentos, nem violou a sua privacidade, nem a intimidou, pelo que a redacção deste artigo deverá ser alterada passando a constar:
23. “O arguido observou a descrita conduta de agressão física, de ofensa à consideração pessoal, ao bom nome da mesma apesar de a assistente ser sua cônjuge e ex-cônjuge, e mãe de filhos menores em comum.
24. Do acervo fáctico constata-se que o arguido ao ver a assistente tentou falar com a mesma e que ela se desviou dele, em nenhum momento este coartou os seus movimentos ou liberdade, ou impediu que a mesma passasse, como se concluiu no art.º 32º dos factos provados “controlo de movimentos, de violação de privacidade”, passando o art.º32 a ter a seguinte factualidade - O arguido sabia que afetava a assistente na sua saúde física e atuou querendo ofender a sua integridade física e ofendê-la na sua honra, prevalecendo-se da privacidade e intimidade conferida pela residência familiar, o que logrou fazer.
25. E o artº 34º- a seguinte redacção - Em consequência da atuação do arguido, a assistente sofreu dores físicas, e sofreu tristeza e vergonha. Em conformidade com o alegado este artigo deverá passar a constar da factualidade agora descrita.
26. As circunstâncias concretas da prática de injúria, difamação e ameaça em apreço nestes autos não permite qualificar as condutas dadas como provadas, atentas as alterações propostas, como de maus tratos psíquicos.
27. Com efeito, não se pode chegar ao fim de um regime matrimonial e fazer uma sindicância, passando a censurar-se condutas que ab inicio foram assumidas pelo casal como normais;
28. Qualquer comentário, critica construtiva ou consideração, no caso dos autos assume a força de menosprezo e desconsideração (o querer que a assistente se vestisse melhor, o aceitar que a mesma fizesse uma cirúrgia plástica para retirar peles do peito e da barriga, a utilização de vocábulos que até ali eram considerados normais e que já faziam parte do vocabulário do arguido há vinte anos, sempre aceite, o caminhar um à frente outro atrás, apesar das testemunhas não corroborarem tal circunstancialismo);
29. Mesmo que a leitura dos factos diga o contrário, que o arguido gostava do corpo da assistente, caso contrário não estava sempre a querer fazer sexo, como refere a testemunha CC, ao arrepio da vontade da assistente, caso contrário não se lamuriava;
30. Neste conspecto entende-se que os factos considerados como provados atentas as alterações que se invocam, devem ser desqualificados, porquanto não se vislumbra uma especial censurabilidade, capaz de subsumir uma crueldade e densificar os maus tratos que o tipo de crime de violência doméstica exige.
31. O tribunal a quo também errou ao considerar como prova da factualidade o auto de denúncia de fls.5 a 17, os aditamentos de fls 48 e 96, posto que para além de não terem sido lidos na audiência de julgamento e poderiam ser nos termos do disposto no art.º 355º n.º 2 do CPP, acresce que não são factos presenciados pelas forças de segurança, mas sim factos reproduzidos pelas declarações veiculadas pelas partes, que estiveram e prestaram depoimento em sala de audiência de julgamento;
32. Estamos pois perante uma valoração proibida de prova, violando o art.º 355 n.º 1 do C.P.P.
33. O Tribunal “a quo” errou fixação da matéria de facto considerada como provada;
34. Ao recorrer ao documento de fls 5 a 17, fls. 48 e 96, violou-se de forma grosseira o disposto no art.º 355 do C.P.P., e por consequência inquinou-se a livre convicção do juiz que se sustentou em provas não produzidas, nem examinadas em julgamento. Violando-se o art.º nº 2 do art. 32º da C.R.P., nomeadamente a presunção de inocência que tem que presidir a todo o julgamento.
35. Constata-se pois a violação das garantias de defesa do arguido, afrontando-se de forma directa o disposto no art.º 32 n.º 2 da CRP, o princípio da presunção da inocência, para que a acusação seja justa tem que obedecer a um grau de certeza que permita desferir um juízo de censura baseado em provas convincentes para um apreciador arguto e experiente, de modo a ficar garantida a segurança na aplicação do direito, o que in casu não sucedeu.
36. No que refere ao tipo de crime de que o arguido vinha acusado e foi condenado, ora o crime de violência doméstica pressupõe uma reiteração ou uma única situação em casos de especial violência, o que não se aplica ao caso em concreto;
37. A factualidade provada não integra a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal. não se verifica o desejo de prevalência, de dominação sobre a vítima, nem se evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima, impõe-se pois a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, atenta a nulidade por insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, nos termos e para os efeitos do art.º 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, o que, como o demais alegado, justifica e impõe o reenvio dos autos à 1.ª instância para os fins do estatuído pelo art.º 426.º, n.º 1 do aludido diploma.
38. Porquanto o arguido não encetou uma conduta maltratante;
39. Normas jurídicas violadas: - Artigo 283, n.º 3, art.º 355 n.º 1 e n.º 2 do C.P.P., art.º 32 n.º 2 da CRP, art.º 6 da Convenção Europeia dos direitos do Homem.
TERMOS EM QUE, COM O QUE FICA, CONFORME AOS MELHORES DE DIREITO E SOBRETUDO, MAIS UMA VEZ, PELO MUITO QUE DOUTAMENTE SUPRIREIS, DEVE SER PROFERIDO DOUTO ACÓRDÃO QUE, REVOGANDO NA PARTE IMPUGNADA A DOUTA SENTENÇA DO TRIBUNAL A QUO, ABSOLVA OS RECORRENTES COM O QUE SERÁ FEITA, COMO SEMPRE, A MELHOR E A MAIS SÃ JUSTIÇA.
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O Digno Procurador Adjunto apresentou contra-motivação, sumariando da seguinte forma: O arguido/recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, que considera incorretamente julgada, porque o tribunal “a quo” terá apreciado e valorado mal a prova produzida em audiência de julgamento, dando como provados factos que deveriam ter sido dados como não provados, tendo transcrito excertos de depoimentos prestados, descontextualizados, porque não transcritos no todo. Salvo melhor opinião, afigura-se-nos não assistir qualquer razão ao recorrente, pelos motivos que passaremos a expor. Vejamos:
Da matéria de facto apurada, que por razões de economia processual se dá aqui como integralmente reproduzida, resulta que efetivamente o arguido praticou o crime por que foi condenado. É nosso entendimento que não colhem, pois, os argumentos do arguido/recorrente, de que a prova produzida em julgamento impõe decisão diversa daquela a que chegou o tribunal “a quo” ou de que o tribunal fez errada interpretação e valoração da prova produzida em julgamento, pelo contrário, entende-se que a matéria de facto dada como provada é a necessária e suficiente para que se considerem preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime pelo qual o arguido foi acusado e condenado.
Conforme se pode ler na motivação de facto da sentença ora recorrida, a convicção do Tribunal relativamente aos factos provados e não provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida em audiência, testemunhal e na prova documental constante dos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, do Código de Processo Penal, que impõe uma apreciação de acordo com critérios lógicos e objetivos De salientar, que na motivação da sentença ora recorrida é feita uma analise aprofundada e conjugada da prova produzida e se elaboram cuidadosamente os motivos que estiveram na base da formação daquela convicção, os quais se encontram devidamente explicitados, de forma individualizada, aliás, houve o cuidado de analisar criticamente, um por um os diversos depoimentos prestados, explicitando-se os motivos pelos quais mereceram, ou não mereceram, credibilidade, permitindo acompanhar todo o processo lógico decisório subjacente à fixação dos factos provados, bem como a restante prova elencada, documental e pericial, também objeto de analise individual. Ou seja, da leitura da motivação da sentença recorrida, resulta que a convicção do Tribunal “a quo”, não só relativamente aos pontos impugnados, mas quanto a toda a factualidade provada e não provada encontra-se devida, clara e exaustivamente fundamentada, alicerçando-se no conjunto da prova produzida em audiência, sabiamente concatenada com as regras da experiencia comum e de harmonia com o principio da livre apreciação da prova, consagrado no ar. 127º, do Código de Processo Penal.
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O arguido foi condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a), do Código Penal. Como é bem sabido, este tipo de crime ocorre, sobretudo, no seio do agregado familiar, no designado espaço doméstico, a casa de morada de família, razão pela qual escapa, em larga medida, ao conhecimento público. Por esta razão, veio progressivamente a aceitar-se na nossa jurisprudência, que quando está em causa este tipo de crime ou outros, cuja prática é menos visível, porquanto escondida entre as quatro paredes de uma casa, os depoimentos dos ofendidos devem merecer especial relevo probatório. Todavia, como pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa, de 23.11.2010, “(...) com isto não se pretende significar que se deva ter como certo que o acusado mente e que a ofendida diz sempre a verdade, mas sim que o tribunal deve estar particularmente atento às declarações e à atitude de um e de outro, pois são eles, especialmente o ofendido, quem fornece as bases em que vai assentar a convicção do julgador.
No caso, o Tribunal “a quo” tomou em consideração as declarações do arguido, que prestou no final da audiência de julgamento, tendo confessado parte dos factos que lhe são imputados na acusação pública, e negando os demais. “Assim, admitiu que agrediu a assistente em maio de 2019, referindo, no entanto, que se tratou de um acidente pois atirou com o porta guardanapos sem intenção de atingir a assistente, e na sequência de uma discussão do casal no decurso da qual aquela havia arremessado com um objeto à televisão e tinha tentado atingi-lo com um copo. Admitiu ainda que, em maio de 2020, quando de dirigiu à residência da assistente a fim de recolher os seus pertences, discutiu uma vez mais com a assistente, que atirou uma vitrine contra a secretária do computador, e então, num momento de descontrolo, acabou por partir a televisão, e depois inadvertidamente fez uma pequena moça no teto com um peso da ginástica enquanto procurava outros bens da sua propriedade. Assumiu o envio das mensagens transcritas nos autos, no entanto fez das mesmas uma interpretação diversa, dizendo desde logo que com a expressão “isto agora vai piar fino” queria dizer que ia para tribunal resolver as questões da partilha e da regulação das responsabilidades parentais, e que com a expressão “eu disse que matava o gaijo que eu vir a sair de casa…” queria na realidade formular uma pergunta mas não utilizou a pontuação adequada, tendo ainda justificado a linguagem de calão utilizada com a assistente e com os filhos por um hábito que tem de dizer palavrões, sem que pretendesse com tais expressões atingir a honra e consideração da assistente. Também admitiu que se dirigiu à assistente a 25 de setembro de 2020 e que quando referiu “não me obrigues a fazer coisas que não devo” também queria dizer que recorreria aos tribunais. No que respeita ao episódio ocorrido a 12 de outubro de 2020, também admitiu ter dirigido insultos ao filho, pelos quais já lhe pediu desculpa, e que deu um pontapé no portão de entrada, explicando, no entanto, que não causou os estragos que a assistente lhe imputa, comportamento que atribuiu a mais um momento de descontrolo.” De todo o modo, desvalorizou a gravidade das condutas assumidas e assumiu uma atitude de desculpabilização e de vitimização, culpabilizando, antes, a assistente, que acusou de não lhe dar qualquer apoio e de o provocar constantemente. Tal versão dos factos do arguido, ressalvados os factos que assumiram natureza confessória, não se afigurou minimamente credível ao Tribunal.
É certo que o arguido não está obrigado a dizer a verdade, todavia, querendo contar a sua versão dos factos que estão em julgamento, as suas declarações podem constituir um importante elemento de prova, cujo valor probatório o tribunal aprecia livremente, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova. Conforme se pode ler na motivação da sentença recorrida: “Com efeito, quando aos demais factos que lhe são imputados, o arguido limitou-se a assumiu uma postura de negação e de desvalorização, mas que resultou totalmente infirmada pelas declarações da assistente, em si mesmas merecedoras de credibilidade e, ademais, sustentadas por elementos de prova testemunhal e documental, conforme supra exposto. Quanto ao sentido a retirar das expressões transcritas nas mensagens, bem como das expressões transmitidas à assistente, afigura-se-nos que a suposta intenção do arguido não encontra qualquer suporte literal, e ademais quanto à normalização do uso de palavrões na sua linguagem habitual, o facto do o arguido os utilizar recorrentemente não lhes retira ilicitude nem diminui o seu potencial ofensivo da honra e consideração da pessoa a quem os dirige. Deste modo, da conjugação dos elementos probatórios constantes dos autos, nos termos expostos, resultou a prova dos factos descritos nos pontos 1º a 30º da factualidade provada.
Os factos constantes dos pontos 31º a 33º, relativos ao elemento subjetivo, resultam da valoração conjugada dos meios de prova acima enunciados, à luz das regras de experiência comum.”
Por outro lado, as declarações da assistente afiguraram-se ao tribunal “a quo”, convincentes, porquanto narrou de modo muito espontâneo os factos descritos na acusação pública, tendo-os confirmado na sua integralidade, tendo apresentado um depoimento inteiramente sério e objetivo, escorreito, determinado e detalhado, mas também sentido e emocionado, com uma serenidade e uma espontaneidade próprias de quem reproduz factos que efetivamente vivenciou, e que mereceram ao Tribunal “a quo” credibilidade, em si mesmo. E se as declarações da assistente foram, em si mesmas, merecedoras de credibilidade, foram ainda reforçadas pela prova documental e testemunhal produzida. Conforme se pode ler na motivação da sentença recorrida: as declarações da assistente “foram confirmadas pela testemunha CC, amiga do casal, que revelou conhecimento direto de alguns factos mas no essencial confirmou o que lhe foi confidenciado pela assistente, e em total consonância com o relato desta, e pelas testemunhas DD e EE, pais da assistente, que descreveram minuciosa e detalhadamente quer os episódios que lhe foram narrados pela assistente, quer os factos que presenciaram, nomeadamente as lesões que a assistente ostentava em Maio de 2019, e o episódio de 12 de Outubro de 2020, que presenciaram.” “Tais testemunhas depuseram de forma que se nos afigurou precisa, inequívoca, objetiva e desinteressada, corroborando a versão dos factos da assistente, tendo-nos merecido total credibilidade.”
De salientar, novamente, que este tipo de crime ocorre, sobretudo, no seio do agregado familiar no designado espaço doméstico, a casa de morada de família, razão pela qual escapa, em larga medida, ao conhecimento público, mas do qual é testemunha privilegiada a própria ofendida. Assim, o tribunal “a quo” credibilizou o depoimento da assistente e das testemunhas CC, DD e EE, mas porque os mesmos se revelaram isentos, credíveis e convincentes, que conjugados com as demais provas documentais, não deixaram quaisquer dúvidas ao tribunal de que o arguido praticou os factos dados como provados integradores do crime de violência domestica. Como bem pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 23-11-2010 “Há que ser cauteloso e evitar visões maniqueístas das situações: nem sempre o arguido é o demónio e a ofendida o anjo, a vítima cândida, inocente e indefesa que merece todo o crédito.” Contudo, da leitura da motivação da matéria de facto provada, constata-se que o tribunal “a quo” não menosprezou este facto, tendo-o valorado, de acordo com toda a prova produzida, testemunhal e documental, fazendo uma apreciação crítica da prova produzida, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova. Entende-se, pois, que a Meritíssima Juiz “a quo” baseou a sua decisão no depoimento do arguido, da assistente e das testemunhas ouvidas, tendo os seus depoimentos sido valorados pelo tribunal de acordo com as regras da experiência comum e o princípio da livre apreciação da prova. Assim, se as declarações prestadas pelo arguido não foram valoradas na forma pretendida por este, ora recorrente, foram-no, certamente, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova e de acordo com as regras de experiência comum, conjugada toda a demais prova produzida. Como pode ler-se no Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 16.11.05 “quanto à apreciação da prova, atividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o principio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal quer direta, quer indireta, tendo em vista a carga subjetiva e inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objeto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão de basear-se na correção de raciocínio mediante a utilização das regras de experiência e conhecimento científicos, tudo se englobando na expressão legal regras de experiência.” Ou seja, o juiz deve fazer a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correto e normal, avaliando as provas de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência comum.
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No caso, por todo o exposto a atenta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não restaram quaisquer dúvidas ao Tribunal “a quo”, que o arguido praticou os factos pelos quais foi acusado, pelo que nunca seria de aplicar ao caso concreto o principio in dúbio pro réu. O princípio in dubio pro reo não é mais que uma regra de decisão. Assim, produzida e valorada a prova, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
No caso, por todo o exposto a atenta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não restaram quaisquer dúvidas ao Tribunal “a quo”, que o arguido praticou os factos que foram dados como provados na sentença ora em crise, pelo que, nunca seria de aplicar ao caso concreto o principio in dubio pro reu Do mesmo modo, não se vislumbra a existência de quaisquer outros vícios da decisão recorrida, designadamente, insuficiência para a matéria de facto provada. Ocorre o vício de insuficiência para a matéria de facto provada, quando da factualidade vertida na decisão recorrida, resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. No caso, resulta claramente da matéria de facto dada como provada, a verificação dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime de violência doméstica. Por todo o exposto e de acordo com o que já acima se expôs, não restaram quaisquer dúvidas ao tribunal, em face da prova produzida, que o arguido praticou os factos de que vinha acusado e dados como provados, integradores do tipo de crime de violência doméstica, pelo que não há qualquer insuficiência para a matéria de facto provada ou violação do principio in dubio pro reu.
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Aqui chegados, cumpre agora dizer que “a intervenção do Tribunal de recurso em sede de avaliação da decisão proferida sobre matéria de facto, não visa a reapreciação sistemática e global da prova produzida em audiência, mas antes a deteção e a correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto,” – Acórdão da Relação de Lisboa de 23.11.2010. É esse o corolário lógico do princípio da livre apreciação da prova, relevando elementos que apenas podem ser percecionados, apreendidos e valorados por quem os presencia, elementos esses que não ficam gravados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como o tribunal “a quo” formou a sua convicção, referimo-nos, desde logo, à ausência da oralidade, particularmente, da imediação. Restando pois ao Tribunal de recurso, apreciar se a valoração dos depoimentos foi feita de acordo com as regras da lógica e da experiência.
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No caso, resulta claramente da matéria de facto dada como provada, a verificação dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime de violência doméstica. Nestes termos e nos demais de direito e por tudo o supra expendido, negando provimento ao recurso V. Excelências farão Justiça
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Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando, no essencial, pela improcedência do recurso.
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
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O recorrente, para além do mais, pretende não só a absolvição do demandado, como subsidiariamente a redução da indemnização, porém, à luz do dispostos no art.400 nº2 do CPP, não só o valor da condenação civil é inferior à alçada do Tribunal, como o valor da sucumbência é inferior a metade dessa alçada, por isso, a decisão de 1ª instância (quer sobre a admissibilidade da instância cível, quer sobre o mérito da mesma), nesta parte é irrecorrível, excepto, em caso da decisão penal final, influir na condenação cível, motivo porque, a pretensão quanto à matéria cível, por ser irrecorrível, não será apreciada.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.
É assim composto pela arguição de:
- Erro do tribunal na apreciação e valoração da prova;
- Insuficiência para a matéria de facto provada;
- Da violação do principio “in dúbio para o reu;
- não verificação dos elementos típicos do crime de violência doméstica.
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Do enquadramento dos factos. Da sentença recorrida constam como factos provados os seguintes:
“O Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, contra: AA, divorciado, trabalhador da construção civil, nascido a .../.../1981, natural de ..., ..., filho de FF e de GG, residente na ..., ..., ..., a quem imputa a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alíneas a) e c), n.º 2, n.ºs 4 e 5 do Código Penal, conforme consta da acusação pública de fls. 252 a 259, cujo teor, no mais, se tem por integralmente reproduzido.
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Nestes precisos termos foi recebida a acusação pública (cfr. despacho de fls. 293 a 294). * A assistente/demandante BB deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado, pugnando pela sua condenação no pagamento da quantia de 5.000,00€, a título de danos não patrimoniais causados pela prática do crime de violência doméstica de que vem acusado (cfr. fls. 284 a 289). Nestes precisos termos foi recebido o pedido de indemnização civil. (cfr. despacho de fls. 293 a 294).
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O arguido apresentou contestação, negando a prática dos factos e dando dos mesmos uma versão diversa. Arrolou testemunhas e juntou documentos. Tal contestação foi admitida por despacho de fls. 311.
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Foi solicitada à DGRSP a elaboração de relatório social, o qual foi remetido aos autos por ofício de 21/09/2021.
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Realizou-se a audiência de julgamento, com observância estrita das formalidades legais, como pode comprovar-se pela respetiva ata.
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Após o despacho que recebeu a acusação, não ocorreu qualquer nulidade ou exceção de que cumpra conhecer, mantendo-se os pressupostos de validade e regularidade processuais já apreciados, nada obstando à prolação de decisão.
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II- FUNDAMENTOS DE FACTO: Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão a proferir: 1º- O arguido AA casou com a assistente BB, nascida a .../.../1982. 2º- Divorciaram-se em Março de 2010, em França, voltaram a casar em Junho de 2015 e divorciaram-se a 08 de Julho de 2020, estando já separados desde Novembro de 2019. 3º- Tiveram quatro filhos: HH, nascida em .../.../2003, II nascido em .../.../2005, JJ nascida em .../.../2007 e KK, nascido em .../.../2009. 4º- A casa de morada de família situava-se, desde Dezembro de 2015, na Travessa ..., ..., ..., .... 5º- Após a separação e o divórcio, a assistente permaneceu a residir naquele local com os filhos. 6º- Após a separação, o arguido manteve em seu poder a chave de acesso à mesma contra a vontade da assistente, e como forma de controlo sobre a sua vida. 7º- O arguido não aceitava a vontade da assistente para que assim não sucedesse, impondo a sua vontade e nunca aceitando opinião contrária, além de a pressionar psicologicamente para não manter outra relação, com criação de intimidação quanto a esta situação. 8º- Durante a convivência, a partir de 2016 o arguido passou a sair à noite sem a assistente, o que a desagradava e motivava discussões, no decurso das quais o arguido lhe dirigia a expressão "vai chatear o caralho", ou então ignorava-a. 9º- No período a partir de 2016 e até 2019, por diversas vezes e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido apelidou a assistente de “puta”, “vaca”, “cabra”, “maluca” e “vai para a puta que te pariu”, o que ocorria na presença dos filhos menores. 10º- No período a partir de 2016 e até 2019, por diversas vezes e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido disse à assistente que a mesma não se sabia arranjar, que não se sabia vestir; e quando saíam, por exemplo quando iam à praia, o arguido ia à sua frente, fazendo de conta que não a conhecia, o que a menosprezava e rebaixava. 11º- Em 2018, a assistente foi acometida de uma depressão e o arguido costumava dizer-lhe para ir para a cama, que era maluca, o que a destabilizava. 12º- O arguido responsabilizava a assistente por não ter amigos. 13º- Em dia não apurado do ano de 2016 ou 2017, quando o arguido chegou a casa, provindo do futebol e a assistente o chamou à atenção por algo, o arguido atirou-lhe com a mochila que trazia, que a atingiu na cara. 14º- De seguida, o arguido colocou-lhe a mão no pescoço e empurrou-a contra a parede da cozinha e apertou-lhe o pescoço causando-lhe dificuldade em respirar, e só parou porque os filhos assistiram e começaram aos berros e a pedir para largar a mãe. 15º- Em 26 de Maio de 2019, durante uma discussão, o arguido apelidou a assistente de “cabra” e “vaca" e atirou-lhe com um porta guardanapos de plástico duro que a atingiu na cabeça, tendo ficado a sangrar, sendo que a assistente não recorreu a assistência médica. 16º- A assistente continuava a sofrer de depressão e o arguido continuava a apelidá-la de maluca e deixá-la sozinha em casa com os filhos, recusava conversar com ela e mandava-a para cama. 17º- Na noite de 13 de Novembro de 2019, o arguido abandonou a residência da família por sua iniciativa e não mais ali residiu. 18º- Contudo, o arguido não autorizava que a assistente se autonomizasse e mantivesse relacionamento com outra pessoa, e ameaçava que matava essas pessoas, tendo dito que matava o homem que visse consigo quando foi assinar os papéis do divórcio a sua casa em Maio de 2020. 20º- No dia 9 de Maio de 2020, o arguido deslocou-se até a residência da assistente, apesar de esta lhe ter comunicado que não era conveniente nessa ocasião por se encontrar adoentada, para recolher bens pessoais. 21º- No interior da residência da assistente, o arguido iniciou uma discussão com a mesma, impondo-lhe que não se atrevesse a meter ninguém dentro de casa, e, no sótão onde se encontravam, exaltado e com postura agressiva, partiu uma televisão de marca Samsung, empurrou a secretária o que determinou que a cadeira e dois computadores que pertenciam a ambos e habitualmente usados também pelas crianças caíssem ao chão, e furou o teto do sótão com um peso da ginástica. 22º- Nos dias 23 e 24 de Agosto de 2020, depois de a assistente não ter atendido o telefone, o arguido ligou para a filha HH a perguntar onde a mãe estava e enviou uma mensagem com o seguinte teor: “A partir de agora vai piar fino, a tua mãe assim está a pedir”, com o intuito de que a assistente dela tivesse conhecimento e com propósitos intimidatórios. 23º- Com efeito, a HH reencaminhou a mensagem para a mãe, o que nela, assim como na filha, provocou medo e insegurança por estar convencida que o arguido era capaz de concretizar a ameaça de atentar contra a sua integridade física. 24º- Ainda no final de Agosto, o arguido ligou para sua filha e nessa altura apelidou a assistente de “cabra”. 25º- Na penúltima semana de Setembro de 2020, o arguido colocou-se à frente da assistente quando esta seguia apeada na Rua ... e não a deixava passar. 26º- No dia 25 de Setembro de 2020, da parte da manhã, o arguido atuou da mesma forma e como a assistente persistia em não querer o contato com o arguido, este dirigiu-lhe as seguintes expressões: “vais começar com as tuas merdas?; Vais-me obrigar a fazer coisas que não devo?”, enquanto se posicionava à frente da mesma. 27º- No dia 11 de Outubro de 2020, o arguido enviou mensagens à assistente nas quais afirmou que a mesma era uma “vaca”, “grande puta” e ainda “quando te fodia gemias como uma vaca”. 28º- No dia 12 de Outubro de 2020, de manhã, o arguido deslocou-se até ao exterior da residência da assistente e dos filhos e exigiu que a mesma viesse para o exterior, o que esta recusou. 29º- Inconformado e furioso, o arguido desferiu pontapés com força no portão de entrada, o que o danificou, assim como o revestimento do muro exterior e uma laje em granito, o que perturbou e intimidou toda a família. 30º- A assistente acabou por sair para assegurar que o arguido não entrava na residência, e nessa ocasião, o mesmo mantinha-se exaltado no local, e quando o filho II lhe pediu para se ir embora, o arguido dirigiu-lhe a seguinte expressão: “ tu cala-te panão de merda!”. 31º- O arguido observou a descrita conduta de agressão física, menosprezo, de ofensa à consideração pessoal, humilhação, controlo de movimentos, de violação de privacidade, de intimidação e conseguiu perturbar o sossego e tranquilidade da vítima fragilizá-la na sua liberdade pessoal, assim como aterrorizá-la, fazendo-a temer pela sua integridade física, além de humilhar, ofender a honra e bom nome da mesma e desprezá-la apesar de a assistente ser sua cônjuge e ex-cônjuge, e mãe de filhos menores em comum. 32º- O arguido sabia que afetava a assistente na sua saúde física e psíquica e atuou querendo atemorizá-la e atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano, prevalecendo-se da privacidade e intimidade conferida pela residência familiar, o que logrou fazer. 33º- O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal. Provou-se ainda que: 34º- Em consequência da atuação do arguido, a assistente sofreu dores físicas, sentiuse humilhada, desprezada e menosprezada enquanto mulher, e sofreu grande tristeza e vergonha. Mais se provou que: 35º- Na data de 12 de Julho de 2020, a assistente remeteu ao arguido a mensagem com o teor constante de fls. 309 a 310. 36º- Na data de 22 de Julho de 2020, a assistente remeteu ao arguido uma mensagem com o seguinte teor: “Não é preciso eu sair daqui, nem outro homem estar no que é teu…Eu decidi deixar tudo, vou deixar a casa, os filhos e tudo o que está…Vais poder ser Pai e Mãe…Já devia ter feito antes”, e ainda a mensagem com o teor constante de fls. 298. 37º- Na data de 04 de Novembro de 2020, a assistente mandou ao arguido uma mensagem com uma fotografia dos seios, e com o seguinte teor: “Especial só para ti… Não era justo não teres…”. 38º- Posteriormente à separação, a assistente contactou a atual companheira do arguido através das redes sociais, tecendo considerações quanto ao caráter do arguido, e invocando que o arguido estava confuso e que lhe havia transmitido que tinha terminado essa relação. Provou-se ainda que: 39º- O arguido trabalha no setor da construção civil, por conta própria, aufere um rendimento mensal de cerca de 700,00€, vive com a namorada, em habitação arrendada, despendendo 250,00€ no pagamento da renda, contribui com a quantia de 400,00€ a título de pensão de alimentos devida aos filhos menores, acrescida de despesas médicas, encontra-se a amortizar um crédito bancário, no montante mensal de 120,00€, e tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade. 40º- O arguido apresenta uma trajetória profissional regular, dispõe de retaguarda familiar, descreve o novo relacionamento afetivo como suporte de estabilização pessoal e descreve a parentalidade como um espaço de gratificação emocional. 41º- É tido no meio familiar em que se insere como um indivíduo trabalhador, meigo e carinhoso, mas também nervoso e impulsivo. 42º- Não tem antecedentes criminais.
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Factos não provados, com relevo para a decisão a proferir: Com relevância para a decisão da causa, não se apuraram quaisquer outros factos, tendo resultado os seguintes factos não provados: a) – Que os factos referidos em 9º tenham ocorrido com uma frequência semanal; b) – Que, quando a assistente falava com amigos ou com qualquer homem o arguido dissesse que essa pessoa era seu amante, e "que os homens a que queriam comer". c) – Que o arguido controlasse o telemóvel da assistente; d) – Que, o arguido tenha dito, por mais que uma vez, que se visse a assistente com outro homem a matava porque é isso que se vê nas notícias; e) – Que, no início de Agosto de 2020, o arguido se tenha deslocado à residência da assistente e a tenha proibido de falar com outras pessoas, nomeadamente com outros homens; f) – Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 19º e 20º, o arguido tenha espalhado roupa pelo chão e tenha impedido a assistente de chamar a polícia, dizendolhe agressivamente: “ai de ti que ligues!”; g) – Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 22º e 23º, a assistente tenha ficado convencida de que o arguido pudesse atentar contra a sua vida; h) – Que os factos referidos em 28º tenham sido despoletados pelo facto de a filha HH ter apelidado o arguido de “palhaço”, e que nessas circunstâncias de tempo e de lugar o filho II o tenha insultado. i) – Que, aquando do divórcio, a assistente e o arguido tenham acordado que caso a assistente pretendesse reconstituir família com outra pessoa teriam que vender a casa, e que todas as conversas veiculadas entre eles sobre este assunto tivessem este pressuposto e esta intencionalidade.
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Não se provaram quaisquer outros factos, para além dos constantes da factualidade provada e não provada, ou que com os mesmos estejam em contradição, e que assumam relevo para a decisão a proferir.
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III- MOTIVAÇÃO: A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados e não provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida em audiência, e na prova documental constante dos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma apreciação de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável. Assim, o tribunal começou por tomar em consideração e valorar positivamente as declarações da assistente BB, a qual confirmou na sua quase integralidade os factos descritos na acusação pública, tendo apresentado um depoimento inteiramente sério e objetivo, mas também sentido e emocionado, com uma serenidade e uma espontaneidade próprias de quem reproduz factos que efetivamente vivenciou, e que nos mereceu credibilidade, em si mesmo. Começou por narrar ao tribunal a história de vida do casal, aludindo ao momento em que o arguido e a assistente iniciaram uma relação de namoro, ao primeiro casamento e à vivência em território francês, aos motivos que determinaram o divórcio e depois a reconciliação e o segundo casamento, até ao regresso a Portugal, no ano de 2015. Explicou ainda que já em Portugal, e sensivelmente a partir de 2016, as discussões entre o casal passaram a ser uma constante, ou determinadas por divergências quanto à educação dos filhos, ou por o arguido ter passado a sair à noite sem a assistente e a regressar tarde, o que muito a desagravada, ou por questões financeiras, sendo que, no decurso das mesmas, o arguido dirigia-se à assistente com palavras e expressões insultuosas, que especificou, tratamento este que ocorria mesmo na presença dos filhos e que era extensivo a eles. Mais aludiu às expressões que o arguido utilizava reiteradamente, tecendo considerações sobre o seu modo de vestir e o seu corpo, e ao comportamento que adotava quando se encontrava com a mesma na rua, bem como ao modo como se sentia em consequência desse comportamento. Especificou também as expressões que lhe passaram a ser dirigidas pelo arguido a partir do momento em que a assistente foi acometida de uma depressão, e os sentimentos que tais expressões lhe provocavam. Descreveu ainda com rigor e pormenor as agressões de que foi vítima por parte do arguido, concretizando os dois episódios em que tais factos aconteceram, um situado entre 2016 e 2017 e outro em Maio de 2019, e referindo a respeito de cada um o contexto de discussão em que foram desencadeados, as partes do corpo atingidas e as lesões sofridas, mais explicando o motivo pelo qual não diligenciou por assistência hospitalar. Concretizou a data em que o arguido abandonou a residência conjugal, por iniciativa deste, e discorreu sobre o comportamento controlador e agressivo que o arguido passou a adotar, quer através de ameaças, quer através de insultos, que persistiram, quer através de abordagens na rua e controlo de movimentos, quer mesmo através de mensagens escritas remetidas para o seu telemóvel e para o telemóvel da própria filha, a fim de serem transmitidas à assistente, o que tudo explicou minuciosamente. Descreveu também com o mesmo detalhe e precisão o episódio ocorrido em Maio de 2020, quando o arguido se dirigiu à sua residência a fim de recolher os seus pertences, tendo acabado por destruiu objetos no sótão da habitação e por lhe dirigir insultos e formular ameaças, e o episódio de 12 de Outubro de 2020, quando o arguido danificou o portão exterior da sua habitação e dirigiu insultos a um dos filhos e à assistente. Tais declarações da assistente, em si mesmas merecedoras de credibilidade, atento o modo irrepreensivelmente sério, objetivo e espontâneo, mas também sentido, emocionado e impressivo com que depôs, são ainda reforçadas pelo teor do auto de denúncia de fls. 5 a 17, e dos aditamentos de fls. 48 e 96, cuja autenticidade e genuinidade não foi questionada e o seu conteúdo não foi infirmado por nenhum outro meio de prova, e os quais são, por si só, dotados de força probatória porquanto foram elaborados por um órgão de polícia criminal e têm como pressuposto uma constatação imediata de determinado facto, a descrição do mesmo e dos procedimentos adotados. Confirmam-nas ainda as Fichas RVD-1L constantes dos autos, os prints das mensagens de fls.149 a 142, e os registos fotográficos de fls. 40 a 41, e 140 a 148. Por outro lado, também a prova testemunhal produzida foi de modo a corroborar as declarações da assistente, permitindo ao tribunal atribuir-lhe credibilidade. As suas declarações foram então confirmadas pela testemunha CC, amiga do casal, que revelou conhecimento direto de alguns factos mas no essencial confirmou o que lhe foi confidenciado pela assistente, e em total consonância com o relato desta, e pelas testemunhas DD e EE, pais da assistente, que descreveram minuciosa e detalhadamente quer os episódios que lhe foram narrados pela assistente, quer os factos que presenciaram, nomeadamente as lesões que a assistente ostentava em Maio de 2019, e o episódio de 12 de Outubro de 2020, que presenciaram. Tais testemunhas depuseram de forma que se nos afigurou precisa, inequívoca, objetiva e desinteressada, corroborando a versão dos factos da assistente, tendo-nos merecido total credibilidade. Por sua vez, o arguido AA prestou declarações no final da audiência de julgamento, tendo confessado parte dos factos que lhe são imputados na acusação pública, e negando os demais. Assim, admitiu que agrediu a assistente em Maio de 2019, referindo, no entanto, que se tratou de um acidente pois atirou com o porta guardanapos sem intenção de atingir a assistente, e na sequência de uma discussão do casal no decurso da qual aquela havia arremessado com um objeto à televisão e tinha tentado atingi-lo com um copo. Admitiu ainda que, em Maio de 2020, quando de dirigiu à residência da assistente a fim de recolher os seus pertences, discutiu uma vez mais com a assistente, que atirou uma vitrine contra a secretária do computador, e então, num momento de descontrolo, acabou por partir a televisão, e depois inadvertidamente fez uma pequena moça no teto com um peso da ginástica enquanto procurava outros bens da sua propriedade. Assumiu o envio das mensagens transcritas nos autos, no entanto fez das mesmas uma interpretação diversa, dizendo desde logo que com a expressão “isto agora vai piar fino” queria dizer que ia para tribunal resolver as questões da partilha e da regulação das responsabilidades parentais, e que com a expressão “eu disse que matava o gaijo que eu vir a sair de casa…” queria na realidade formular uma pergunta mas não utilizou a pontuação adequada, tendo ainda justificado a linguagem de calão utilizada com a assistente e com os filhos por um hábito que tem de dizer palavrões, sem que pretendesse com tais expressões atingir a honra e consideração da assistente. Também admitiu que se dirigiu à assistente a 25 de Setembro de 2020 e que quando referiu “não me obrigues a fazer coisas que não devo” também queria dizer que recorreria aos tribunais. No que respeita ao episódio ocorrido a 12 de Outubro de 2020, também admitiu ter dirigido insultos ao filho, pelos quais já lhe pediu desculpa, e que deu um pontapé no portão de entrada, explicando no entanto que não causou os estragos que a assistente lhe imputa, comportamento que atribuiu a mais um momento de descontrolo. Não obstante ter verbalizado que se encontrava arrependido, o arguido tentou justificar a sua atuação, assumindo uma postura de vitimização, desvalorizando a gravidade dos factos e culpabilizando a assistente, que acusou de não lhe dar qualquer apoio e de o provocar constantemente. Ficou assim bem evidenciado o seu discurso transversal de minimização da gravidade das condutas assumidas, e a sua atitude de desculpabilização e de vitimização. Tal versão dos factos do arguido, ressalvados os factos que assumiram natureza confessória, não se nos afigurou minimamente crível. Com efeito, quando aos demais factos que lhe são imputados, o arguido limitou-se a assumiu uma postura de negação e de desvalorização, mas que resultou totalmente infirmada pelas declarações da assistente, em si mesmas merecedoras de credibilidade e, ademais, sustentadas por elementos de prova testemunhal e documental, conforme supra exposto. Quanto ao sentido a retirar das expressões transcritas nas mensagens, bem como das expressões transmitidas à assistente, afigura-se-nos que a suposta intenção do arguido não encontra qualquer suporte literal, e ademais quanto à normalização do uso de palavrões na sua linguagem habitual, o facto do o arguido os utilizar recorrentemente não lhes retira ilicitude nem diminui o seu potencial ofensivo da honra e consideração da pessoa a quem os dirige. Deste modo, da conjugação dos elementos probatórios constantes dos autos, nos termos expostos, resultou a prova dos factos descritos nos pontos 1º a 30º da factualidade provada. Os factos constantes dos pontos 31º a 33º, relativos ao elemento subjetivo, resultam da valoração conjugada dos meios de prova acima enunciados, à luz das regras de experiência comum. Tomou-se ainda em consideração as certidões de assento de nascimento constantes dos autos para prova dos factos descritos nos pontos 2º e 3º da factualidade provada. A não prova dos factos vertidos nas alíneas a) a i) decorreu também do teor das declarações da assistente, e das precisões e especificações que efetuou ao longo das mesmas, ou por a eles não aludir. A prova dos factos alegados pelo arguido na sua contestação e descritos nos pontos 35º a 38º da factualidade provada resultou do teor das mensagens constantes de fls. 298 a 310 dos autos, conjugado com o depoimento da testemunha LL, atual namorada do arguido, que nos mereceu credibilidade. Os demais factos relativos às condições pessoais e socioeconómicas do arguido e ao seu caráter e personalidade, resultaram das suas próprias declarações, que valoramos positivamente a este propósito, conjugadas com o depoimento das testemunhas LL e MM, sua irmã, cujo depoimento valoramos positivamente, e com o teor do relatório elaborado pela DGRSP, constante dos autos (pontos 39º a 41º). Valorou-se também o certificado de registo criminal do arguido para dar como provada a ausência de antecedentes criminais (ponto 42º).
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IV- FUNDAMENTOS DE DIREITO: O arguido AA vem acusado da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 152º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a) e n.ºs 4 e 5 do Código Penal. Dispõe o artigo 152º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 44/2018 de 9/08, nos seus n.ºs 1 e 2, o seguinte: “1 — Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex -cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. 2- No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”. O tipo legal da violência doméstica visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida. Dentro das situações previstas no tipo legal em apreço, uma das que surge com mais frequência é, precisamente, a que por ora nos interessa - os maus tratos físicos e psíquicos a pessoa com quem o agente tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Segundo Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332, referindo-se ainda à redação anterior à Lei n.º 59/2007 de 4/9, “A “ratio” deste artigo 152.º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica e mental) do subordinado, bem como a sujeição a atividades perigosas, desumanas ou proibidas. Portanto, deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos (...)” . Sujeito passivo do ilícito penal previsto no n.º 1, al. a) e no n.º 2 do artigo 152º do Código Penal, que corresponde atualmente à alínea a) do n.º 1 daquele artigo, tem necessariamente que ser uma pessoa que se encontre numa relação de coabitação conjugal ou análoga com o sujeito ativo do delito. O atual tipo legal prevê agora expressamente que pratica o crime de violência doméstica “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…)”, pelo que o legislador veio clarificar que o preenchimento do tipo legal não exige uma reiteração de condutas. Com referência ao tipo legal em causa, antes da redação da já referida Lei n.º 59/2007 de 4/9, exigia-se uma certa reiteração do comportamento ilícito, caso contrário, a conduta do agente preencheria, tão só e apenas, o tipo legal de crime de ofensas à integridade física. A doutrina defendia que “o tipo legal de crime em análise, pressupõe segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respetivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos atos afastará a reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime” (Cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 334). Na jurisprudência já se vinha considerando que, mesmo com a redação de 1982, a referida conduta criminal se poderia verificar com uma única conduta agressiva, desde que a sua gravidade intrínseca a pudesse qualificar como tal (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 29 de Abril de 1987, in CJ, Ano XII, Tomo II, pág. 138 e os Acórdãos do STJ, de 17 de Outubro de 1996 e de 14 de Dezembro de 1997, in CJSTJ, Ano IV, Tomo 3.º, pág. 170 e Ano V, Tomo 3.º, pág. 135, respetivamente e Acórdão da Relação do Porto, de 2 de Dezembro de 1996, disponível in www.dgsi.pt). Este entendimento ficou definitivamente consagrado na letra da lei com a reforma operada pela Lei n.º 59/2007. Assim, em face da letra da lei e da interpretação que a jurisprudência mais recente vem fazendo das condutas típicas subsumíveis ao tipo legal da violência doméstica, entendemos que o relevante é que os factos praticados, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, sejam suscetíveis de colocar a vítima na situação de, mais ou menos permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal. Neste sentido pronunciaram-se, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 29 de Fevereiro de 2012, e o Acórdão da Relação de Guimarães de 02 de Novembro de 2015, pesquisados em www.dgsi.pt, e, respetivamente, assim sumariados: “I - Os maus-tratos previsto pelo crime de Violência doméstica, do art. 152.º do Cód. Penal, têm subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, capaz de eliminar ou limitar claramente a sua condição e dignidade humanas. II - Com a Reforma de 1995, os maus tratos psíquicos passaram a estar contemplados com um leque mais alargado de condutas, como humilhações, provocações, ameaças (de natureza física ou verbal), insultos, privações ou limitações arbitrárias da liberdade de movimentos, ou seja, condutas que revelam desprezo pela condição humana do parceiro, podendo provocar sentimentos de culpa ou de fraqueza mas não, necessariamente, um sofrimento psicológico. III - O relevante é que os maus-tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretenda exercer sobre a vítima, de que decorre uma maior vulnerabilidade desta.”. E ainda: “I - O tipo legal do artº 152º, do CP previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação. II - Este é, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual. (…)”. Em síntese, a prática de maus tratos consubstancia a perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade “familiar” (conceito de família genérica) igualitária. A violência doméstica é exercida de múltiplas formas. Uma delas consiste na violência física, mas também na violência emocional e psicológica, consistindo em “desprezar, menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos.”. Outra dessas formas é a intimidação, que é exercida através da coação e da ameaça. “Surge intrinsecamente associada à violência emocional-psicológica, consiste em manter a mulher vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e contra os seus familiares (...). Para tal o agressor pode recorrer a palavras, olhares e expressões faciais, gestos mais ou menos explícitos, (...). Pode ainda ameaçar, causar lesões ou a morte à companheira/esposa aos filhos ou a familiares daquela, pode ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone ou recorrer à utilização dos filhos para a imposição de poder sobre a vítima (...).” [Carlos Casimiro Nunes e Maria Raquel Mota, Revista do Ministério Público, ano 31, n.º 122, pág. 133 e ss.]. O n.º 2 do artigo 152º passou a consagrar uma agravação do limite mínimo da moldura penal quando os factos forem praticados, desde logo, perante menor de 18 anos, ou dentro do domicílio comum ou do domicílio da vítima. O propósito do legislador foi o de censurar mais gravemente a violência doméstica nestes casos, por considerar que os menores acabam por ser vítimas indiretas dos maus tratos, e bem ainda o de censurar mais gravemente a violência doméstica velada, em que a ação do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas (neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, página 406). Relativamente ao tipo subjetivo, o crime de violência doméstica exige o dolo. Assim, no caso de maus tratos físicos ou psíquicos, o dolo estende-se ao próprio resultado danoso da integridade física ou psíquica. É sempre necessário o conhecimento da relação de proteção – subordinação. Descendo ao caso concreto, face à factualidade provada, não existem dúvidas de que a conduta desenvolvida pelo arguido preenche a factualidade típica da violência doméstica, quer quanto aos elementos objetivos, quer subjetivos. Com efeito, provou-se que o arguido AA casou com a assistente BB, nascida a .../.../1982; que se divorciaram em Março de 2010, em França, voltaram a casar em Junho de 2015 e divorciaram-se a 08 de Julho de 2020, estando já separados desde Novembro de 2019; que tiveram quatro filhos: HH, nascida em .../.../2003, II nascido em .../.../2005, JJ nascida em .../.../2007 e KK, nascido em .../.../2009; que a casa de morada de família situava-se, desde Dezembro de 2015, na Travessa ..., ..., ..., ...; que após a separação e o divórcio, a assistente permaneceu a residir naquele local com os filhos; que, após a separação, o arguido manteve em seu poder a chave de acesso à mesma contra a vontade da assistente, e como forma de controlo sobre a sua vida; que o arguido não aceitava a vontade da assistente para que assim não sucedesse, impondo a sua vontade e nunca aceitando opinião contrária, além de a pressionar psicologicamente para não manter outra relação, com criação de intimidação quanto a esta situação; que, durante a convivência, a partir de 2016 o arguido passou a sair à noite sem a assistente, o que a desagradava e motivava discussões, no decurso das quais o arguido lhe dirigia a expressão "vai chatear o caralho", ou então ignorava-a; que no período a partir de 2016 e até 2019, por diversas vezes e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido apelidou a assistente de “puta”, “vaca”, “cabra”, “maluca” e “vai para a puta que te pariu”, o que ocorria na presença dos filhos menores; que, no período a partir de 2016 e até 2019, por diversas vezes e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido disse à assistente que a mesma não se sabia arranjar, que não se sabia vestir; e quando saíam, por exemplo quando iam à praia, o arguido ia à sua frente, fazendo de conta que não a conhecia, o que a menosprezava e rebaixava; que, em 2018, a assistente foi acometida de uma depressão e o arguido costumava dizer-lhe para ir para a cama, que era maluca, o que a destabilizava; que o arguido responsabilizava a assistente por não ter amigos; que em dia não apurado do ano de 2016 ou 2017, quando o arguido chegou a casa, provindo do futebol e a assistente o chamou à atenção por algo, o arguido atirou-lhe com a mochila que trazia, que a atingiu na cara; que, de seguida, o arguido colocou-lhe a mão no pescoço e empurrou-a contra a parede da cozinha e apertou-lhe o pescoço causando-lhe dificuldade em respirar, e só parou porque os filhos assistiram e começaram aos berros e a pedir para largar a mãe; que, na data de 26 de Maio de 2019, durante uma discussão, o arguido apelidou a assistente de “cabra” e “vaca" e atirou-lhe com um porta guardanapos de plástico duro que a atingiu na cabeça, tendo ficado a sangrar, sendo que a assistente não recorreu a assistência médica; que a assistente continuava a sofrer de depressão e o arguido continuava a apelidá-la de maluca e deixá-la sozinha em casa com os filhos, recusava conversar com ela e mandava-a para cama; que na noite de 13 de Novembro de 2019, o arguido abandonou a residência da família por sua iniciativa e não mais ali residiu; que, contudo, o arguido não autorizava que a assistente se autonomizasse e mantivesse relacionamento com outra pessoa, e ameaçava que matava essas pessoas, tendo dito que matava o homem que visse consigo quando foi assinar os papéis do divórcio a sua casa em Maio de 2020; que, no dia 9 de Maio de 2020, o arguido deslocou-se até a residência da assistente, apesar de esta lhe ter comunicado que não era conveniente nessa ocasião por se encontrar adoentada, para recolher bens pessoais; que, no interior da residência da assistente, o arguido iniciou uma discussão com a mesma, impondo-lhe que não se atrevesse a meter ninguém dentro de casa, e, no sótão onde se encontravam, exaltado e com postura agressiva, partiu uma televisão de marca Samsung, empurrou a secretária o que determinou que a cadeira e dois computadores que pertenciam a ambos e habitualmente usados também pelas crianças caíssem ao chão, e furou o teto do sótão com um peso da ginástica; que, nos dias 23 e 24 de Agosto de 2020, depois de a assistente não ter atendido o telefone, o arguido ligou para a filha HH a perguntar onde a mãe estava e enviou uma mensagem com o seguinte teor: “A partir de agora vai piar fino, a tua mãe assim está a pedir”, com o intuito de que a assistente dela tivesse conhecimento e com propósitos intimidatórios; que a HH reencaminhou a mensagem para a mãe, o que nela, assim como na filha, provocou medo e insegurança por estar convencida que o arguido era capaz de concretizar a ameaça de atentar contra a sua integridade física; que, ainda no final de Agosto, o arguido ligou para sua filha e nessa altura apelidou a assistente de “cabra”; que na penúltima semana de Setembro de 2020, o arguido colocou-se à frente da assistente quando esta seguia apeada na Rua ... e não a deixava passar; que, no dia 25 de Setembro de 2020, da parte da manhã, o arguido atuou da mesma forma e como a assistente persistia em não querer o contato com o arguido, este dirigiu-lhe as seguintes expressões: “vais começar com as tuas merdas?; Vais-me obrigar a fazer coisas que não devo?”, enquanto se posicionava à frente da mesma; que no dia 11 de Outubro de 2020, o arguido enviou mensagens à assistente nas quais afirmou que a mesma era uma “vaca”, “grande puta” e ainda “quando te fodia gemias como uma vaca”; que no dia 12 de Outubro de 2020, de manhã, o arguido deslocou-se até ao exterior da residência da assistente e dos filhos e exigiu que a mesma viesse para o exterior, o que esta recusou; que, inconformado e furioso, o arguido desferiu pontapés com força no portão de entrada, o que o danificou, assim como o revestimento do muro exterior e uma laje em granito, o que perturbou e intimidou toda a família; e que a assistente acabou por sair para assegurar que o arguido não entrava na residência, e nessa ocasião, o mesmo mantinha-se exaltado no local, e quando o filho II lhe pediu para se ir embora, o arguido dirigiu-lhe a seguinte expressão: “ tu cala-te panão de merda!”. A nosso ver, a factualidade provada evidencia que o arguido manteve diversas condutas que ofenderam a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de movimentos e a integridade moral da assistente, mas que para além disso se revelou especialmente censurável, permitindo concluir pela subjugação de um membro da relação a outro, pelo exercício de um domínio emocional de facto de um sobre o outro, neste caso do arguido sobre a assistente, consubstanciando assim um “infligir de maus tratos físicos e psíquicos" à assistente. O conjunto dos factos provados, reiterados quanto ao proferimento de insultos e de ameaças, bem como de agressões físicas, de perturbações do sossego, de coartação da liberdade de movimentos e de danificação de objetos no interior da residência de família e fora dela, num lapso temporal que se manteve durante cerca de quatro anos, durante o período em que viveram juntos, e que se prolongou após a separação do casal por mais um ano, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, são, a nosso ver, suscetíveis de colocar a vítima na situação de, permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da relação conjugal que mantiveram, mesmo depois de a mesma ter sido dissolvida. De resto, a circunstância de, posteriormente à prática destes factos, ter resultado provado que a assistente encetou aproximação do arguido no intuito de se reconciliarem, em nada colide com a conclusão de que a mesma sofreu maus tratos físicos e psíquicos, sendo aliás frequente a vítima desenvolver ambivalência de sentimentos em relação ao agressor e permanecer na dependência emocional do mesmo. Mais se provou que o arguido observou a descrita conduta de agressão física, menosprezo, de ofensa à consideração pessoal, humilhação, controlo de movimentos, de violação de privacidade, de intimidação e conseguiu perturbar o sossego e tranquilidade da vítima fragilizá-la na sua liberdade pessoal, assim como aterrorizá-la, fazendo-a temer pela sua integridade física, além de humilhar, ofender a honra e bom nome da mesma e desprezá-la apesar de a assistente ser sua cônjuge e ex-cônjuge, e mãe de filhos menores em comum; que sabia que afetava a assistente na sua saúde física e psíquica e atuou querendo atemorizá-la e atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano, prevalecendo-se da privacidade e intimidade conferida pela residência familiar, o que logrou fazer, e que agiu de forma livre, deliberada e consciente, o que demonstra que o arguido atuou com dolo direto. Com efeito, o dolo é o conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito objetivo (artigo 14º, n.º 1 do Código Penal), podendo afirmar-se que no dolo direto a vontade do agente do crime se dirige de facto à produção do resultado típico, o que se apurou no caso concreto. Desta feita, encontram-se também preenchidos os elementos constitutivos da factualidade típica, na sua vertente subjetiva. O arguido atuou ainda com culpa, uma vez que se provou que sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. Em síntese, o arguido constituiu-se autor material da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 152º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a) e n.ºs 4 e 5 do Código Penal.
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V- DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA: (…).
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VI – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL: A assistente/demandante BB deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado, pugnando pela sua condenação no pagamento da quantia de 5.000,00€, a título de danos não patrimoniais causados pela prática do crime de violência doméstica de que vem acusado. Dispõe o artigo 483º do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. A simples leitura do preceito mostra que vários pressupostos condicionam, no caso geral da responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, cada um dos quais desempenha um papel especial na complexa disciplina das situações geradoras do dever de reparação do dano, os quais poderão ser enunciados pela seguinte forma: a) o facto voluntário, controlável pela vontade humana; b) a ilicitude; c) o nexo de imputação do facto ao lesante; d) o dano sobrevindo à conduta ilícita e culposa; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano. Apreciemos, de per se, e no confronto com a factualidade apurada nestes autos, cada um dos pressupostos enunciados, atenta a pretensão da aqui demandante. Atenta a factualidade provada, não restam dúvidas que o arguido AA praticou factos ilícitos, na medida em que configuram a prática de um crime. Também resultou provado que a demandante sofreu danos, que foram consequência da atuação do arguido, porquanto resultou provado que, em consequência da atuação do arguido, a assistente sofreu dores e lesões, sentiu-se humilhada, desprezada e menosprezada enquanto mulher, e sofreu grande tristeza e vergonha, menosprezo, ofensas à consideração pessoal, humilhação, controlo de movimentos, de violação de privacidade, de intimidação, e perturbação do sossego e da tranquilidade. Tudo considerado, encontram-se preenchidas as condições legalmente exigidas para sustentar a aplicação do facto ilícito extracontratual como fonte da obrigação de indemnizar, sendo que os danos decorrentes da atuação do arguido que resultaram provados têm natureza não patrimonial. No que concerne aos danos não patrimoniais, de acordo com o estatuído no artigo 496º, nº 1, do Código Civil, apenas serão atendidos aqueles danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, gravidade que deve ser apreciada objetivamente. Com efeito, a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada) forma que os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos não patrimoniais. O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem. A indemnização não visa, então, propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido. Para a fixação dos danos não patrimoniais a ressarcir neste caso há que considerar a factualidade provada, devendo ser tomados em consideração o contexto que despoletou a atuação do arguido, a própria atuação em si e as consequências da mesma, o grau de lesão na personalidade moral do demandante, e a situação económica do arguido. Conjugando estes factos, crê-se razoável, adequado e, dentro dos condicionalismos referidos, justo e equitativo, fixar o montante indemnizatório por danos não patrimoniais na quantia de 2.000,00€ (dois mil euros), a pagar pelo demandado AA à demandante. Na fixação deste valor atribuído a título de danos não patrimoniais foi tomada em consideração a desvalorização da moeda, pelo que, sendo valores atualizados, são devidos juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença e até integral e efetivo pagamento (arts.566º, nº 2 do Código Civil e AUJ nº 4/2002; 804.º e 805.º, nº 1 e 3; 806º, nº 1 e 2, todos do Código Civil e artigo 1.º da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril). Nesta medida, impõe-se julgar o pedido de indemnização civil deduzido parcialmente procedente em conformidade, nos termos das aludidas disposições legais. (…)
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- DECISÃO: (…)”
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Cumpre apreciar.
Apreciando o recurso interposto pelo arguido, sendo a impugnação centrada na decisão da matéria de facto, primeiramente cabe considerar que a demarcação dos conceitos de erro de interpretação da prova, de insuficiência da decisão da matéria de facto, impõe que se tracem os limites de cada uma destas categorias, para que a sua análise não se confunda e sobreponha.
Os Tribunais superiores de forma pacífica e mantida vêm estabelecendo a destrinça entre a arguição da categoria de vícios que incidam sobre a decisão e dos vícios que inquinem o julgamento. A este propósito o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011 proferido no processo nº288/09.1GBMTJ.L1-5 sustentou que “a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de «revista alargada»; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs3, 4 e 6, do mesmo diploma; No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº2 do referido artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.” Ora, os vícios previsto no nº2 do citado art.410 (concretamente na alínea a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; na alínea b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e na alínea c) Erro notório na apreciação da prova) são vícios da decisão sobre a matéria de facto “vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.”
No elenco dos vícios da decisão, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorre quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal;
Diversamente, a impugnação da matéria de facto prevista no art.412º nº3 do CPP, consiste na apreciação, tal como sustentou o acórdão que temos vindo a citar”, “que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs3 e 4 do art. 412º do C.P. Penal. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º]”.
Portanto, traçados os contornos do quadro dogmático dos diversos vícios que poderão compor o objecto de recurso, cabe primeiramente apreciar os vícios reportados no art.410º nº2 do CPP.
Assim, apreciando o invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, cumpre referir que, quanto aos termos da sentença, o recorrente invoca que o Tribunal deu como provados factos de carácter genérico reportados a datas imprecisas, concretamente os factos dado por provados sob os pontos 7 a 14, 16 e 31 do elenco da matéria de facto provada, dos quais não se pôde defender. Assim, o recorrente entende que enfermam tais factos do vício de insuficiência nos termos da alínea a) do nº2 do 410º do CPP, considerando que contém expressões conclusivas, vagas e genéricas, não podendo figurar na matéria apurada, por violação do contraditório. É consabido que o facto genérico é um “não-facto”, por isso, excluído da apreciação dos tribunais, ficando sempre fora do elenco dos factos provados e não provados. Nesta problemática, só são suscetíveis de imputação processual com aptidão para serem judicialmente apreciados, factos que possam ser discutidos com respeito pelos princípios do contraditório e da legalidade.
Na discussão desta questão, a jurisprudência tem sentido, com preocupação, a importância do contraditório, sustentando os acórdãos ac. RP de 30/9/2015 www.dgsi.pt : “As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa devem considerar-se não escritas”; no mesmo sentidoo ac.RP de 20/4/2016 www.dgsi.pt e o ac RP 17/6/2015 www.dgsi.pt , contudo, a dimensão do problema assume alguma complexidade que cabe discutir e discernir.
A norma invocada pelo próprio recorrente no art.283º nº3 alínea b) do CPP, traduz um juízo de suficiência (para a imputação jurídica e para o contraditório, entenda-se). Com efeito, o disposto nesse preceito impõe, quanto aos factos imputados em acusação, sob pena de nulidade “a narração, ainda que sintética (….) incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.” (negrito nosso).
É necessário ponderar que no âmbito das garantias da defesa o indiscutível e sensível princípio do contraditório, deve assegurar que o facto em discussão, não obstante se situar num período de tempo sem data precisa (como sucede nos pontos 7 a 14) deve manter a sua “singularidade” por forma a ser identificável pela defesa e assim ser plenamente contraditado, se for o caso. Portanto, a identificação do facto pela defesa necessariamente tem de ser possível, para exercício do contraditório. Essa identificação do facto deriva da sua “singularidade” [1], a qual se fixa nos contornos ônticos do próprio facto, o que, no caso de uma conduta reiterada no tempo, torna mais fácil a sua identificação, atento os comportamentos ou mau trato que se repete durante o referido período temporal, podendo, por isso mesmo, a defesa, ou assistindo à mesma, a possibilidade de contraditar se ocorreu, ou não, esse procedimento delitual repetido.
Portanto, o processo de identificação do facto pela defesa existe e verifica-se quando ao arguido é imputado um tratamento delitual repetido no tempo, onde a reiteração desses maus tratos vem a constituir o fenómeno de “singularidade”, tal como sucede nos factos apurados sob os pontos 7 a 12 da matéria provada. Com efeito, se atomisticamente não é possível a reconstituição das datas em que ocorreu a sucessão de cada um dos eventos delituais, mas tão só o período de tempo em que sucedeu o mau tratamento, esta conduta reiterada torna-se identificável pela defesa, pelo que, basta para a identificação do facto e sua singularização a descrição ôntica desse tratamento (a qual inclui a imputação da sua frequência e repartição no tempo dos actos que se repetiram - réplicas) como tendo ocorrido em certo período de tempo. E aí, se o arguido maltratou repetidamente a ofendida, ou não, tudo dependerá da prova que se fizer sobre o tratamento entre o arguido e a ofendida. Aliás, o recorrente na impugnação sobre a decisão da matéria de facto nos termos do art.412º do CPP quando sustenta ter havido erro no julgamento de facto, depreende-se que identificou claramente os factos em discussão, impugnando-os, não existindo qualquer quebra do contraditório.
De notar que, quando a imputação se concretiza numa sucessão repetida de injúrias durante certo período de tempo (que podem ser de vários anos), o processo de identificação do facto pela defesa encontra-se facilitado, dado que é essa actividade plural que está em questão, restando apurar se a verificação dos actos ocorreu à razão de “x” número de vezes por ano, ou “y” número de vezes por mês; ou até, como acontece nos autos, em número indeterminado de vezes. Pois, a repetição e a frequência das condutas e suas réplicas integram a ontologia do facto (maus tratos) e enriquece o processo de identificação do mesmo.
Diversamente, quando se trata de um só acontecimento ou ato delitual imputado sem data precisa, a individualização e a sua singularidade ôntica, exige maior esforço de concretização. Aqui a necessidade de singularização é maior, pois, a irrepetibilidade do episódio é total.
Aliás, na discussão jurídica que ocorre nos Tribunais sobre a actividade delitual nos delitos tráfico de estupefacientes, em situações de trato sucessivo, ou na pluralidade de abusos sexuais verificados num determinado período de tempo, comungam dos mesmos princípios agora analisados, onde a singularidade dos factos apurados, reside na reiteração e pluralidade apuradas, concretamente quando um agente v.g. por cinco vezes “abusou sexualmente de um menor” (infligindo sobre o mesmo determinado comportamento) entre os anos de 2016 e 2018, bastando para a sua identificação, que os referidos abusos hajam sido suficientemente descritos na sua ontologia e com a localização no referido período temporal.
Portanto, satisfeitos os critérios da singularidade do facto, que permitem a sua identificação pela defesa, obviamente que não ocorre a violação dos arts.32º, nº 1, da C.R.P., e art.6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Assim, no elenco dos factos provados verifica-se que, no ponto 7º dos factos provados, para além do comportamento apurado ter suficiente concretização, pois está sedeado na atitude do arguido quando rejeita a hipótese da assistente recompor a sua vida afectiva com outra pessoa, associada à atitude de domínio (ao impor a sua vontade, não aceitando opinião contrária), fixando-se o seu contexto temporal no período após a separação, o qual resulta do ponto 6º (seguido do ponto 7), separação que se encontra identificada e situada no ponto 2 (Novembro de 2019), portanto, os factos em causa encontram-se situados e contextualizados e por isso singularizados e identificáveis;
Sobre os pontos 8º a 12º apuraram-se comportamentos do arguido cuja delimitação temporal encontra-se suficientemente precisa, a qual constitui um período temporal, onde se apuraram os comportamentos reiterados.
Sobre os pontos 13º e 14º reportam-se a um facto claramente singularizado, não oferecendo qualquer margem de discussão as hipóteses da sua identificação.
Quanto ao ponto 16º encontra-se o mesmo claramente contextualizado com a depressão apurada e iniciada no ponto 11º dos factos provados.
Quanto ao ponto 31º dos factos provados, diversamente do que é sustentado pelo recorrente, aqui apurou-se a atitude subjectiva e o dolo do arguido, directamente associado à conduta objectiva supra apurada, não enfermando de qualquer vício na sua singularidade objectiva.
Daqui decorre expressamente que, não sendo possível a indicação do dia, pelo menos se narre o mínimo do concretização temporal (bastando para tal a identificação do período temporal), com individualização do facto no mundo do ser e do acontecer histórico (o que nos delitos e agressões de trato sucessivo [também integradoras do crime de violência doméstica], definida pela pluralidade de condutas ilícitas em certo período, implica necessariamente a descrição da conduta num período de tempo), de modo a que o arguido possa perceber de que acontecimento de trata, de que conduta se lhe imputa, e assim se possa defender.
A concretização nos parágrafos em causa foi conseguida, não constituindo qualquer vício de insuficiência da decisão da matéria de facto previsto no art.410º nº2 alínea a) do CPP. Muito embora a alegação deste vício seja contida aos elementos internos da própria fundamentação, no entanto, o vício, não ocorre pelas razões supra expostas, não se verificando a invocada nulidade.
O recorrente pretende, afinal, suscitar a reapreciação ampla da prova, cuidando, inclusivamente, de cumprir os já supra referidos ónus de especificação previstos no artigo 412.º, n.º3 e 4, do C.P.P.
Portanto, não padecendo a sentença de quaisquer dos vícios previstos no art.410º do CPP, nesta parte deve improceder o recurso.
Portanto, o alegado erro de análise será aferido no regime de vícios previsto no art.412º nº3, enquanto impugnação da matéria de facto, e não padecendo a sentença de quaisquer dos vícios previstos no art.410º do CPP.
*
Continuando a apreciar o recurso interposto pelo arguido, sendo a impugnação da decisão da matéria de facto associada a parâmetros de dúvida que pretende ver instalados na convicção do Tribunal, a que somam os invocados erros de interpretação da prova, cumpre aferir destes.
Não basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação. O recurso com esses fundamentos apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância [cfr. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999].
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» [cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt]
O Tribunal de recurso, apreciando os fundamentos da impugnação da matéria de facto e os meios de prova indicados nos termos do art.412º nº3 do CPP (quando conste do objecto de recurso), deve aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
Em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal “a quo” se estribou nestes pressupostos, como já se enfatizou, o Tribunal “ad quem” não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1ª Instância se fundou fora da razoabilidade, em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
O recorrente centra a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto, defendendo que o Tribunal “A Quo” não julgou corretamente vários os pontos dos factos provados que discrimina, devendo essa matéria constar dos factos não provados, sustentando que o arguido não deverá ser condenado pelo crime de violência doméstica.
Analisando as discordâncias concretas do recorrente face aos parâmetros da decisão agora impugnada, este Tribunal depois de ouvir a prova produzida, concretamente as declarações do arguido, as declarações da assistente, e os depoimentos das testemunhas desde logo, cumpre referir que o juízo probatório do Tribunal “A Quo” quanto ao comportamento do arguido e sua conduta objectiva, no que concerne às acções que concretamente dirigiu contra a assistente, não merece reparo, porquanto plenamente sustentado na prova produzida.
Sobre a impugnação aos pontos 6 e 7 dos factos provado, diversamente do que sustenta o recorrente, e da curtíssima transcrição das gravações que consta da motivação (e que respeita à parte final das suas declarações), a qual não reflecte em nada da prova produzida, concretamente, a assistente nas declarações que prestou identificou muito bem a conduta do arguido em causa.
Quanto ao ponto 8º dos factos provados, cuja prova ocorreu pelas declarações da assistente, e que o recorrente pese embora a confirme, no entanto, pretende “normalizar” aquilo que não é normal, ao mesmo tempo que visa, sem ponta de razão, tornar aceitável a expressão inaceitável que se apurou neste ponto, e que é claramente demonstrativa do mau trato infligido e da soma de desconsiderações que se apuraram.
Sobre o ponto 9º depois de ouvidas as declarações da assistente por este Tribunal de recurso, parcialmente assiste razão ao recorrente, porquanto do elenco de nomes que o arguido dirigiu à assistente, esta nas declarações que prestou não mencionou o nome de “cabra” como lhe tendo sido dirigido, embora confirme de forma exuberante e detalhada a restante factualidade aí descrita, devendo, por isso, a redação deste ponto ser corrigida da seguinte forma: Passando o ponto 9º dos Factos Provados a ter a seguinte redação “9º- No período a partir de 2016 e até 2019, por diversas vezes e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido apelidou a assistente de “puta”, “vaca”, “maluca” e “vai para a puta que te pariu”, o que ocorria na presença dos filhos menores.” E acrescentando-se a alínea j) aos Factos Não Provados com a seguinte redação “j) - no ponto 9º dos factos provados o arguido também apelidou a assistente de “cabra”.
No que concerne à prova dos factos 11º a 16º, os sintomas da depressão são relativamente generalizados na sociedade, com grande incidência estatística, e com ampla divulgação da sintomatologia, classificada pela Organização Mundial de Saúde como o “mal do século” e que “A depressão é caracterizada pela perda ou diminuição de interesse e prazer pela vida, gerando angústia e prostração..”. A par da sintomatologia da depressão ser generalizada, o que torna a sua compreensão do domínio da comunidade, de relevante neste ponto, concretamente sobre os trâmites da convicção do Tribunal, cumpre esclarecer que a assistente nas declarações que prestou (e que o Tribunal de recurso ouviu) esclareceu que foi assistida por um psicólogo e que esteve sujeita a tratamentos, descrevendo com detalhe o seu condicionalismo depressivo, daí que face a esses elementos, estava inteiramente ao alcance do Tribunal “A Quo” a formulação do juízo probatório sobre o padecimento da assistente de depressão, sem necessidade de outros elementos periciais, excepto se houvesse sido suscitada alguma outra questão de saúde mental mais específica, que carecesse de indagação médica, o que não sucedeu..
Quanto ao ponto 15 dos factos provados sobre as declarações que o recorrente imputa à assistente, cabe referir que, diversamente do que sustenta, a assistente não padeceu de incoerência quando relatou este episódio, somente a mesma precisou que, depois de ser agredida, arremessou um objecto contra a televisão. No entanto, quanto às expressões dirigidas pelo arguido, neste episódio, não se apuraram, pelo que a redacção deste ponto haverá de ser corrigida nos termos: Passando oponto 15º dos Factos Provados a ter a seguinte redacção “15º- Em 26 de Maio de 2019, durante uma discussão, o arguido atirou-lhe com um porta guardanapos de plástico duro que a atingiu na cabeça, tendo ficado a sangrar, sendo que a assistente não recorreu a assistência médica.”
E acrescentando-se aalínea l) aos Factos Não Provados com a seguinte redacção “l) - no ponto 15º dos factos provados o arguido na discussão que ocorreu apelidou a assistente de “cabra” e “vaca””.
No que se refere ao facto provado no art.º18º e artº 24º dos factos dados como provados, a assistente nas declarações que prestou confirmou a matéria do ponto 18º com detalhe; já quanto ao ponto 24º por ausência de prova haverá o mesmo de ser transposto para os factos não provados, sob a alínea m) com a redacção “ m) – no final de Agosto de 2020, o arguido ligou para sua filha e nessa altura apelidou a assistente de «cabra»”.
No que se refere aos pontos 22º e 23º dos factos provados, a assistente descreveu com coerência e objectividade da conduta do arguido assim como as expressões o que gerou naquela receio e intranquilidade, aqui também improcedendo as conclusões. Relativamente aos pontos 25º e 26º, contrariamente ao que é afirmado pelo recorrente, nas declarações prestadas pela assistente e ouvidas pelo Tribunal de recurso, aquela descreveu expressamente a conduta do arguido, impedindo-a de passar, nessas duas ocasiões. No que toca ao episódio referido nos pontos 28º a 30º dos factos provados, a tese do recorrente não colhe, porquanto a descrição feita pela assistente é de claro confronto criado pelo arguido.
O julgamento dos pontos 31º, 32º e 34º não merecem o menor reparo, porquanto a apurada conduta do arguido, torna evidente a plurima intenção que se apura nestes pontos.
Mesmo quando o recorrente pretende desqualificar as ofensas, desconsiderações e menorizações graves, em meros “comentários”, ou “critica construtiva”, perante a soma e a carga ofensiva das expressões e daquilo que apelida de comentários, é apenas um sintoma do seu distanciamento ao respeito devido à vítima.
Quanto ao relevo dos autos de participação/notícia e aditamentos o Tribunal “A Quo” a esse respeito concluiu “dotados de força probatória porquanto foram elaborados por um órgão de polícia criminal e têm como pressuposto uma constatação imediata de determinado facto, a descrição do mesmo e dos procedimentos adotados” e somente nessa medida poderão relevar, ou seja, no que respeita à constatação policial de um facto e dos procedimentos adotados pelo OPC. Claro está que, não podendo as declarações da participante relevar (excepto quando à identificação do dia em que realizou a participação), também não resulta da fundamentação do tribunal que esses elementos tiveram qualquer autonomia na convicção do Tribunal, e nem poderiam ter, exceto se houvessem sido cumpridas as permissões do art.356º do CPP. Pois, a referência que é feita dos mesmos, é meramente residual e conclusiva, sem que se possa retirar que hajam sido valoradas pelo Tribunal “A Quo” as declarações aí prestadas, ou que as mesmas hajam influído na prova de um qualquer facto em discussão.
Portanto, o Tribunal de recurso ouvidos o depoimento da assistente e as declarações do arguido, entende que não existem desconformidades sobre o que foi considerado pelo Tribunal “A Quo” quanto à relevância de cada um destes meios de prova. Com efeito, o cliché e o estereotipo de que a ofendida, por o ser, não merece credibilidade, é raciocínio que não colhe, por si só, sobretudo quando possuindo uma razão de ciência direta e privilegiada no conhecimento, depõe de forma espontânea e objetiva, como foi o caso. Igualmente este Tribunal de recurso entende que após as demoradas instâncias (cerca de hora e meia) a que a ofendida foi sujeita, esta descreveu com manifesta espontaneidade e com particular detalhe todas as situações em discussão na acusação pública, concretamente, não só os episódios de agressão física, as ameaças e desconsiderações sobre a forma como se arranjava no vestuário, sobre o seu corpo e as de cariz sexual, como o mau trato das injúrias (sendo que aqui a matéria de facto merece alguma correção pela falta de prova sobre algumas expressões), sem que se notasse qualquer efabulação, exagero, ou alteração da conotação das agressões verbais e físicas. Se a declarante não houvesse vivido essas situações, seria muito improvável que, com espontaneidade revelada, descrevesse o contexto dessas situações com o grau de pormenor cronológico e com a riqueza de eventos que normalmente sucede nos acontecimentos da vida. Portanto, a ofendida descreveu de forma coerente as situações que efectivamente vivenciou, merecendo a credibilidade que lhe foi atribuída pelo Tribunal “A Quo”. Repete-se que as qualidades deste depoimento são evidenciadas pela sua espontaneidade e modo genuíno como descreveu os factos.
Diversamente, ouvidas as declarações do arguido por este Tribunal, e face à atitude que o mesmo repetiu ao longo das mesmas, é forçoso concluir como fez o Tribunal “A Quo” nos seguintes termos “Não obstante ter verbalizado que se encontrava arrependido, o arguido tentou justificar a sua atuação, assumindo uma postura de vitimização, desvalorizando a gravidade dos factos e culpabilizando a assistente, que acusou de não lhe dar qualquer apoio e de o provocar constantemente. Ficou assim bem evidenciado o seu discurso transversal de minimização da gravidade das condutas assumidas, e a sua atitude de desculpabilização e de vitimização. Tal versão dos factos do arguido, ressalvados os factos que assumiram natureza confessória, não se nos afigurou minimamente crível. Com efeito, quando aos demais factos que lhe são imputados, o arguido limitou-se a assumiu uma postura de negação e de desvalorização, mas que resultou totalmente infirmada pelas declarações da assistente, em si mesmas merecedoras de credibilidade e, ademais, sustentadas por elementos de prova testemunhal e documental, conforme supra exposto. Quanto ao sentido a retirar das expressões transcritas nas mensagens, bem como das expressões transmitidas à assistente, afigura-se-nos que a suposta intenção do arguido não encontra qualquer suporte literal, e ademais quanto à normalização do uso de palavrões na sua linguagem habitual, o facto do o arguido os utilizar recorrentemente não lhes retira ilicitude nem diminui o seu potencial ofensivo da honra e consideração da pessoa a quem os dirige”
Deste modo, o Tribunal de recurso ouvidas as declarações referenciadas e os depoimentos das testemunhas em causa, verifica que o Tribunal “A Quo” analisou corretamente esses meios de prova, realçando e inferindo os aspectos em que fundou a sua convicção, de forma apropriada de acordo com a lógica e as regras da experiência. Exceto quanto às alterações da matéria de facto que se impõe nos pontos supra assinalados, no restante objeto do julgamento da matéria de facto, concorda-se com o juízo de prova que foi realizado pelo Tribunal a quo, não existindo qualquer erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum, que imponham alteração de convicção, devendo deste modo improceder a impugnação movida à decisão a matéria de facto.
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O recorrente na sua impugnação invoca ambiente de dúvida que no espírito do Tribunal “A Quo” não existiu, nem neste Tribunal da Relação.
Não pode, por isso, operar o princípio “in dúbio pro reu”, dado que nos parâmetros de convencimento probatório do Tribunal não se vislumbra qualquer panorama de dúvida que fragilizasse a decisão da matéria de facto, de modo que não pode operar este princípio, assim improcedendo nesta parte as conclusões.
Deve assim, manifestamente improceder as conclusões do recorrente a este propósito.
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Quanto ao restante objecto de recurso, primeiramente, antes de se analisar o mérito sobre o perfil dos factos provados, cabe estabelecer as fronteiras típicas do crime que fora imputado ao arguido em sede de acusação, pois só assim se poderá interpretar a importância jurídica dos factos provados. Depois, caberá saber se a análise que o Tribunal “A Quo” procedeu sobre a tipicidade do art.152º do CP, foi certeira.
Quanto aos restantes pressupostos do crime de violência doméstica, contrariamente ao que se possa supor, o quadro normativo que deriva do tipo especial de violência doméstica, emerge entre sujeitos que estão ligados por especiais deveres de respeito, os quais assentam numa relação de proximidade, de conhecimento mútuo e por isso de elevada exposição. É necessário sublinhar que o conteúdo dos deveres recíprocos elevam e substanciam o estatuto da dignidade de um perante o outro, nessa relação.
O Ac.RelP de 28.09.2011, veio sintetizar “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.”
O reforço da tutela prevista no art.152º do CP surge porque o agressor pode vitimizar a ofendida de forma dramática. Para o cometimento do crime não é necessário que ocorra o drama das múltiplas e continuadas agressões, o legislador quis antecipar a tutela. Com efeito, quando uma única agressão ultrapassa os limites ao respeito devido à namorada, companheira ou ex-companheira, que nunca deviam ter sido ultrapassados, subsiste o perigo de se iniciar irremediavelmente um ciclo de violência (composto pelo seguinte iter: a agressão, pedido de perdão pelo agressor; o perdão concedido; nova agressão e assim sucessivamente) que tendencialmente se agravará. Portanto, basta uma agressão que atinja os referidos limites (não exigindo o tipo uma especial gravidade desta agressão tal como vem sendo sustentado por diversos acórdãos), para consumar o crime previsto no art.152º do CP, e é aqui se surpreende na previsão legal um tipo de perigo, tutelando o perigo abstracto na reiteração de futuras agressões, que poderão vir a seguir àquela “única” agressão. O perigo é abstracto porque na formulação legal não se tipifica o perigo concreto. Depois, a única agressão que tem a virtualidade de fechar a tipicidade deste crime de perigo (nesta componente de agressão única), é aquela que em potência se renovará em futuras agressões, acompanhada, claro está, do dolo de domínio e de subjugação, associada à intenção de lesar a dignidade. Esta potencialidade reside nas agressões desrespeitosas, que diminuam a ofendida e a coloquem numa posição de sujeição perante futuras agressões. Com efeito, existem agressões, como um soco na face ou uma violenta chapada (a face identifica-se com os parâmetros da personalidade do individuo), que não sendo muito relevantes em termos de gravidade objectiva nos termos do art.143º do CP, significam, no entanto, no seio da comunhão conjugal o que nunca poderia ter acontecido, ou seja, a sujeição da namorada/companheira ao medo, que a imobiliza perante futuras agressões, o que o agressor sabe, aproveitando para, a partir daí, impor a sua vontade, no seio dessa comunhão, exercendo então a tirania do mais forte, passando a desferir chapadas quando se quiser impor. É o perigo dessa tirania que o tipo de perigo do art.152º na “única agressão” visa tutelar e esconjurar, sem necessidade de esperar pela consumação do intenso e continuado sofrimento que decorre da reiteração. O legislador perante uma única agressão perigosa, quis antecipar a tutela, punindo logo o agressor como crime de violência doméstica.
É que, ultrapassados os importantes limites do respeito pela dignidade da vítima no seio da comunhão conjugal, iniciado este grau de agressões está “aberta a porta” para a sucessão dos ciclos de violência que caracterizam a violência doméstica.
Subsumir as agressões com a potencialidade de iniciar ciclos de violência conjugal aos tipos previstos nos arts.143º, 153º, 181º do CP, contraria o regime especial previsto no art.152º do CP.
Com as agressões e os maus tratos psíquicos, os deveres ao serem frontalmente violados, “por regra”, ou melhor, em princípio, ferem a dignidade da namorada da companheira, assim se mostrando quase inerentemente atingidos, tornando os tipos legais das ofensas à integridade física ou de injúrias (cfr.art.143º e 181º) tutelares de agressões de escala menor ou residual (porque também desacompanhados de dolo de querer dominar e de atingir a dignidade), por isso inaplicáveis àqueles maus tratos.
A ontologia normativa de uma violenta bofetada, um soco ou uma cabeçada infligidos na face de uma mulher, altera-se por completo se essa mulher for a namorada, cônjuge (ou ex-cônjuge) ou companheira, pois, os planos da dignidade mostram-se reforçados e encimados pela relação de proximidade afectiva, pela comunhão de vida. No art.152º do CP não é tutelada a dignidade humana, mas sim da dignidade da mulher ou do homem, namorado, companheiro ou cônjuge.
No naipe gradativo de agressões, é claro que um simples empurrão ou uma palmada num braço ou a injúria com um nome de carga ofensiva moderada (embora criminosa); coacções ou ameaças de baixa densidade ou meramente isoladas; ou mesmo uma bofetada depois de uma provocação desnecessária, previamente dirigida pela vítima (bofetada que pode resultar de uma reacção mal medida do arguido) não integram o dolo de maus tratos físicos da violência doméstica (pois, embora dolosa, é de baixa densidade e a tipicidade desse dolo situa a agressão fora da violência doméstica, antes se integrando no art.143º do CP, não obstante a agressão na face). Daí que o recenseamento destas agressões constituindo delitos disponíveis pela vítima, porque semipúblicos, serão subsumíveis aos arts.143º, 153º, 154º 181º todos do CP, respectivamente, sem prejuízo pela agravação que deriva da especial censurabilidade cfr.arts.145º nº1 alínea a) e 132º nº2 do CP. É que, sendo a carga de indignidade das agressões, um resultado desvalioso, situa-se na ilicitude e não na culpa (aqui se discordando que os maus tratos implicam uma culpa especialmente censurável). A culpa até poderá ser especialmente censurável, mas o tipo não o exige, bastando o dolo de domínio e de lesar a dignidade. Ou seja, certa agressão física a uma companheira pode não ter a carga de indignidade típica do crime de violência doméstica (precisamente porque o desvalor do resultado não é acentuado), mas ser especialmente censurável, e, por isso, integrar o art.145º nº1 alínea a) do CP.
No entanto, pode ocorrer que, sucessivas desconsiderações, pressões psicológicas (sem que integrem injúrias, coacções ou ameaças) e atitudes que não preencham, sequer, a tipicidade de algum dos delitos previstos nos arts.143º, 153, 154º ou 181 do CP, no seu conjunto constituam maus tratos degradantes e desumanos, assim aviltando a dignidade da companheira, o suficiente para subsumir o art.152º. Tudo isto para significar que a realidade do crime de violência doméstica é inteiramente distinta daquela que é tutelada pelos citados tipos legais “atomísticos”.
A questão é sensível porque alguma jurisprudência reclama para o patamar típico do crime de violência doméstica uma maior carga de indignidade no patamar da ilicitude concreta, densificando-a para além da literalidade típica (e até a contrariando, quando exige um padrão de frequência) assim direccionando a subsunção de agressões, ameaças e injúrias (que atinge a dignidade da companheira ou companheiro) para os tipos previstos nos arts.143º, 153º, 181º do CP (que deveriam, a nosso ver, ser classificadas de violência doméstica, mas que por força dessas especiais interpretações, vem a ser subsumidas para crimes de ofensas à integridade física, injúrias), desqualificando estes comportamentos. Concretamente, pretende ler-se e substanciar a violação da dignidade em contextos e situações como a subjugação ou dominação da vítima, associados a padrões de frequência.
Este tipo de densificações, alteram a tipicidade dos delitos, sendo muito questionáveis dado que, facilmente, ferem o princípio da legalidade. Com efeito, podem bem existir maus tratos físicos e psíquicos típicos do art.152º do CP, sem o ambiente de subjugação ou dominação (não obstante ser esse o dolo do agente), e como se sabe a lei dispensa expressamente o padrão de frequência. Ou seja, o agente tem o dolo de domínio, mas o crime consuma-se mesmo que não exista essa situação concreta de subjugação.
Assente que está o recorte exegético do art.152º do CP, interessa agora aferir, em face da matéria de facto provada,
Desde já devem asseverar-se que, face aos pressupostos acima desenhados é por demais evidente que a conduta ilícita desenvolvida pelo arguido nos diversos episódios e momentos ao longo do matrimónio e depois da separação e do divórcio, tem clara aptidão para subsumir os pressupostos do crime de violência doméstica, apurando-se que repetidamente dirigiu uma soma de desconsiderações e vexames à ofendida não só nos nomes que lhe dirigiu, mas sobretudo pelas humilhações e ameaças que lhe dirigia que a intranquilizaram e vexaram, a qual ficou constrangida e receosa. O arguido nas agressões físicas que cometeu, atingiu a vítima de forma plural. É exuberante a forma como o arguido com dolo tratou com desumanidade a assistente, visando subjugá-la.
O tipo objectivo do crime previsto no artigo 152.º, do Código Penal pode ser preenchido por diversas variantes de condutas: violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal, sendo certo que o novo elenco legal de violência doméstica é exemplificativo, concretizando o conceito legal de maus-tratos, mas não o esgotando.
Concordante com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas integradoras do tipo-de-ilícito não são individualmente consideradas, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre as vítimas do crime.
Como resulta dos fundamentos expostos, exceto quanto às alterações à matéria de facto acima referida, deve ser negado provimento às restantes conclusões do recurso, mantendo-se nessa parte a douta decisão do Tribunal “A Quo”.
DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso, apenas no que concerne à alteração da matéria de facto provada nos pontos 9º e 15º; na eliminação do ponto 24º dos factos provados; e com aditamento das alíneas j), l) e m) aos factos não provados, nos termos supra expostos, confirmando a restante parte do que fora decidido na douta sentença.
Custas do recurso pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UCs (dado que o provimento parcial é sem influência na decisão final).
Notifique.
Sumário:
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Porto, 16 de Março 2022.
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
_____ [1] O conceito de singularidade (aqui usado) do facto respeitante a uma conduta delitual (com figurino típico), não respeita à ideia de excentricidade, ou de algo extraordinário, mas antes à individualização de um evento que se destaca da vivência do dia-a-dia e de diferenciação de outros factos. Ao mesmo tempo, assume-se como conceito de “particularidade” que torna o facto distinto de outros. O ato de singularizar é aqui usado com o significado de “especificar”, “particularizar”, “distinguir dos outros”; “destacar”.