I - Nos termos do art. 239º do CPCivil, um réu residente no estrangeiro deve ser citado de harmonia com o estiver estipulado em tratados ou convenções. Não existindo estes convénios, a citação deve ser feita por carta registada, com aviso de recepção. Frustrando-se a via postal, sendo o réu estrangeiro, ouvido o autor, realizar-se-á a citação por carta rogatória;
II - Quando não seja possível a citação por esta via, designadamente por se mostrar decorrido o prazo de três meses fixado na lei para o cumprimento de diligência a realizar no estrangeiro (art. 176º/3 do CPC), nada obsta à citação por via edital;
III - É que apesar de o nº 4 do art. 239º do CPC estar vocacionado para a citação edital de réus portugueses residentes no estrangeiro, não deverá ser excluída a sua aplicação a réus estrangeiros residentes fora de Portugal, quando não seja possível a citação por outra via, por tal interpretação ser a única que evita a paralisação do processo e possibilita a realização do direito que o autor pretende fazer valer na acção.
A Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação ..., em representação oficiosa, (artºs 3º-1-a) e 5º-1-c) - Estatuto do Ministério Público, a favor da menor AA, instaurou Acção de Revisão e Confirmação de Sentença Estrangeira, contra:
1 - BB, natural da ... e de nacionalidade portuguesa, portador do CC ... e residente no Largo ..., ...;
2 - CC, natural de ..., ..., residente na Rua ..., ..., ...;
3 - DD, natural de ... e residente na mesma morada,
Pedido:
Que se decrete a revisão e confirmação da sentença proferida em 24.05.2019, pelo Tribunal Regional de ..., Secção de Família, Menores e Trabalho no Proc. nº 21/2019, já transitada em julgado, que decretou a tutela da menor AA nascida em ..., República da ... em ...-...-2005, registada como filha de CC, e DD, tendo o primeiro Requerido, tio materno da menor, com quem vive em Portugal, sido nomeado seu tutor.
Frustrou-se a tentativa de citação por via postal e por carta rogatória dos réus dados como residentes em ....
Veio a Requerente requerer a citação edital daqueles, o que foi indeferido por despacho do Exmº Desembargador Relator.
Houve reclamação para a conferência, mas sem sucesso pois que o acórdão da Relação ... de 23.09.2021, complementado pelo da Conferência de 04.11.2021, com um voto de vencido, indeferiu a nulidade do acórdão, e confirmou a decisão do Relator.
Do acórdão da conferência vem interposto recurso de revista pelo M.P., ao abrigo art. 671º, nº 2, alínea a) e 629º, nº 2, alínea d), do CPC, sendo invocada contradição do acórdão recorrido com o Acórdão da Relação ... de 29.04.2019, proferido no P. nº 18180/16.....
O Recorrente conclui como segue as suas alegações:
1 - O Ministério Público instaurou a presente ação especial de revisão e confirmação da sentença estrangeira proferida por um Tribunal ..., através da qual foi decretada a tutela de uma menor e foi nomeado tutor um seu tio, com quem a menor reside em Portugal.
2 - Sendo os progenitores da menor requeridos neste processo, não foi possível proceder à sua citação por via postal ou por funcionário judicial, através de carta rogatória;
3 - O Ministério Público, com apoio em doutrina e jurisprudência nesse sentido, requereu a citação edital, considerando que a mesma também é aplicável às pessoas que, residindo no estrangeiro, nunca tiveram residência em Portugal, devendo apenas serem publicados os anúncios da citação edital nos termos do disposto nos artigos 240 nº 1 do CPC, alínea h do nº 6 do artº 1° e artº 24º da Portaria 280/2013, de 26 de Agosto e não sendo afixado o edital na última residência em Portugal, por inexistência da mesma.
4 - No acórdão sob recurso foi recusada a citação edital, nos termos requeridos, mas nada foi ordenado quanto ao meio de se proceder à citação.
5 - A lacuna de previsão legai relativamente à citação de estrangeiros que se encontram em parte incerta e que nunca tiveram residência em Portugal, deve ser integrada peio Tribunal, nos termos previstos no artº. 10º do Código Civil.
6 - O dever de gestão processual impõe que o Tribunal dirija ativamente o processo, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, conforme resulta dei disposto no n.º 1 do art.º 6.º do CPC.
7 - Nada tendo decidido sobre a forma de se efetivar a citação, o acórdão padece de nulidade por omissão de pronúncia, como se prevê na primeira parte, da al. d), do n.º 1, do art.º 615.º, aplicável por força do art.º 666.º, ambos, do CPC.
8 - Não se vislumbrando outra forma de se permitir o bom e regular andamento do processo, impedindo que o mesmo fique paralisado, deverá ser determinado que se proceda à citação edital dos requeridos através da publicação de anúncio e sem a afixação de edital, por não ter os mesmos não terem tido qualquer residência em Portugal.
9 - Pelo que, revogando-se a decisão sob recurso e sendo a mesma substituída por outra que ordene a citação editai nos termos referidos, se fará a devida Justiça.
A questão a decidir consiste em saber se deve proceder-se à citação edital de réus estrangeiros que nunca tiveram residência em Portugal, depois de se frustrar a tentativa de citação postal e por carta rogatória.
Fundamentação.
Elementos que relevam para a decisão:
1. O Ministério Público, em representação oficiosa da menor AA, instaurou em 02.07.2019 a presente acção de revisão de sentença estrangeira,
2. Foi tentada a citação por via postal dos réus dados como residentes em ..., mas sem sucesso;
3. Por despacho de 24.03.2021, determinou-se que se procedesse à citação por carta rogatória;
4. O Ministério dos Negócios Estrangeiros insistiu junto da embaixada de Portugal na ..., em 28.05.2021 e 28.06.2021, para obter das autoridades daquele país informação relativa à carta rogatória emitida;
5. Face à ausência de resposta à carta rogatória, o Exmº Desembargador Relator em 28.06.2021, determinou a notificação do Ministério Público para requerer o que tivesse por conveniente;
6. Foi requerida a citação edital, com a publicação de anúncios em página informática “por os RR nunca terem tido residência em Portugal”.
7. Tal requerimento foi indeferido por decisão singular do Relator de 06.07.2021, que foi confirmada, com um voto de vencido, pelo acórdão da conferência de 23.09.2021.
“A citação edital é muito específica na sua arquitectura e muito formal nos seus mecanismos! Por tal razão, encontra-se a sua disciplina sujeita a uma interpretação muito estrita. Por assentar em normas processuais, vê-lhe vedada a integração analógica. Por causa do seu formalismo interno - no qual se esteia, por funcionar nos limites da inocuidade e irrelevância, ou seja, num extremo interpretativo - não convoca leituras extensivas.
É, ainda, artificial. Justamente porque não dá garantias de contacto como o destinatário do acto e opera no limiar da violação do princípio da proscrição da indefesa, sustentáculo do sistema de administração de Justiça suportado em normas do Direito Internacional Público, de Direito da União Europeia, constitucionais e processuais - cf., designadamente, o estabelecido no art. 10.° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 6.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, no art. 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no art. 20.° da Constituição da República Portuguesa e nos arts. 3.° e 4.° do
Alimenta-se da esperança (de que o artificialismo produza, apesar de tudo, um resultado efectivo); quer-se acreditar que alguém do local da última residência do citando possa, num nicho de fortuna e rebate de solidariedade, ver o edital e contactar o citando ou alguém da sua família que o informe da iniciativa processual.
Sem essa esperança (id est, sabendo-se à partida que se está a praticar um acto inútil, ou seja, sem proveito que extravase a satisfação de' forma), sem tal viabilidade, ainda que remota e residual, resta-nos um acto mágico, simbólico, perfunctório, singelo arremedo, reconstituição singularmente estética é caricatural de um processado válido e simples alegoria do cumprimento das finalidades axilares acima apontadas. Esta fragilidade fere de morte um encadeado de intervenções processuais já de si particularmente frangível pelas razões sobreditas, designadamente porque o Direito internacional e da União Europeia de contornos garantísticos e a Constituição da República Portuguesa não se alimentam da forma, mas de conteúdos.
Encontramo-nos, por estas razões, face à importância solene do contraditório, diante de uma figura erosionada e, eventualmente, em processo de diluição e desaparecimento.
Por estarmos no limiar da ineficácia e do cumprimento formal e arriscadamente inconsequente de comandos estruturais, designadamente emergentes do bastas vezes denominado «acquis communautaire», é que o legislador da União Europeia proscreveu a débil forma de citação sob menção, afastando-a do diploma de Direito civil da UE que regula as citações e notificações transfronteiriças. Com efeito, não se admite, aí já citação meramente ficcionada - vd. o Regulamento (CE) n.° 1393/2007, de 13.11.2007.
O Distinto Ex.mo Procurador-Geral Adjunto Requerente propôs a publicação do anúncio «apenas em página informática». Porém, logo aqui, fez emergir inevitável incongruência: qual a página a escolher que nos deixe no dito limiar da esperança quando se visa contactar um cidadão na ... que nunca terá tido residência em território nacional?
A este nível - mesmo que se admitisse a integração analógica ou, na fronteira, uma longânime interpretação extensiva e contemporizadora do n.° 4 do art. 239.° do Código de Processo Civil - sempre estaríamos, como estamos, bloqueados perante inultrapassável obstáculo.
Nas relações de referente transfronteiriço, os direitos nacionais atingem os seus limites de intervenção, o que sempre convoca a cooperação judiciária, aliás realidade em permanente desenvolvimento face à globalização da economia e à intensificação da circulação de pessoas e capitais, sobretudo sob a égide da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado e, com particular dinamismo, da União Europeia.
Nesta área, por se visar a criação de um espaço comum de Justiça, ou seja, de um sistema de justiça integrado e de funcionamento efectivo, vem sendo particularmente intenso o desenvolvimento de tal cooperação, com especial acuidade no período posterior à entrada em vigor do Tratado de Amesterdão (que colocou a cooperação judiciaria no primeiro pilar da construção da União) e da aprovação das Conclusões da Presidência do Conselho Europeu de Tampere de 15 e 16 de Outubro de 1999. Neste espaço geográfico, chegou-se mesmo, sob tal dinâmica, a excluir o exequatur das decisões judiciais - instituindo o princípio da livre circulação das decisões judiciais e indo além dos regimes existentes nos próprios estados federais - e a estabelecer a regra da comunicação directa entre os tribunais dos vários países sem intermediação dos executivos e suas estruturas para a Justiça.
Como é manifesto, se existissem e fossem viáveis soluções suportadas no Direito adjectivo interno, não se envolveriam os Estados e a União Europeia no pesado esforço referido. Não teria qualquer sentido, por exemplo, a aprovação do apontado Regulamento relativo às citações e notificações transfronteriças.
Daqui resulta que a vontade de solucionar dificuldades, servir os cidadãos e bem administrar Justiça, que a todos deve assistir, não pode ser confundida com voluntarismo nem com alijamento do Direito e da técnica adequada. Não é essa a intervenção que se reclama dos Tribunais, antes a postura descrita sempre fragilizaria as suas intervenções e as tornaria arbitrárias e situadas à margem da «ruie of law» do Direito de «common law» ou do Estado de Direito dos sistemas continentais.
Face ao exposto, indeferimos o requerimento sob ponderação.”
O processo especial de revisão de sentença estrangeira previsto nos artigos 978º a 985º do CPCivil visa o reconhecimento meramente formal de sentença estrangeira, sendo seu objectivo verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir em Portugal os mesmos efeitos que lhe são atribuídos no país de origem.
Estatui o art. 981º que “apresentado com a petição o documento de que conste a decisão a rever, é a parte contrária citada para, no prazo de 15 dias, deduzir a sua oposição (…).
A citação, que nos termos do nº 1 do art. 219º do CPC, “é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender”, pode ser pessoal ou edital.
A citação edital tem lugar quando o citando se encontre ausente em parte incerta, nos termos dos artigos 236º e 240º. (art. 225º, nº 6 do CPC).
Estando em causa a citação do residente no estrangeiro, há que atender ao que dispõe o art. 239º:
1. Quando o réu resida no estrangeiro, observa-se o que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais.
2. Na falta de tratado ou convenção, a citação é feita por via postal, em carta regista com aviso de receção, aplicando-se as determinações do regulamento local dos serviços postais.
3. Se não for possível ou se frustrar a citação por via postal, procede-se à citação por intermédio do consulado português mais próximo, se o réu for português; sendo estrangeiro, ou não sendo viável o recurso ao consulado, realiza-se a citação por carta rogatória, ouvido o autor.
4. Estando o réu residente em parte incerta, procede-se à sua citação edital, averiguando-se previamente a última residência daquele em território português e procedendo-se às diligências a que se refere o art. 236º.
Do nº 3 da norma citada, e uma vez que os RR dados como residentes em ..., não têm nacionalidade portuguesa, foi correcta a decisão que determinou a sua citação por carta rogatória.
A citação por carta rogatória deveria ser cumprida no prazo de três meses (art. 176º, nº2 do CPC), o que não sucedeu.
E frustrada a via postal e da carta rogatória, o caminho não pode deixar de passar pela citação edital, por pertinentes que sejam os argumentos contra esta modalidade de citação.
É certo que a citação edital “não dá garantias de contacto como o destinatário do acto”, como se expressou o acórdão recorrido, fragilidade que o legislador não desconhece. No entanto, mantém-na no ordenamento jurídico, como um mal menor, quando não se vê outra forma de tentar dar a conhecer ao demandado a pretensão do autor e porque importa dar seguimento à tramitação do processo.
No caso em apreço, a não se admitir a citação edital, cair-se-ia num impasse e ficaria sem revisão e confirmação a sentença revidenda, o que seria susceptível de implicar evidentes prejuízos para a vida da menor AA em Portugal.
Sendo os réus estrangeiros, ainda que nunca tenham residido em Portugal, a doutrina e a jurisprudência admitem esta modalidade de citação.
Dizem-no expressamente Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in Código de Processo Civil, I, pag. 278:
“O regime do nº 4 (do art. 239º), está vocacionado para réus portugueses, embora nada exclua a sua aplicação a réus estrangeiros residentes fora de Portugal, pelo que deve ser efectuada a citação edital de réu estrangeiro não residente em Portugal quando não seja possível a sua citação por via postal e por carta rogatória (RC 17.01.2006, P. 3824/05).”
Assim também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, anotado I, que em anotação ao art. 240º, sob a epígrafe “Formalidades da citação edital por incerteza do lugar”, escrevem que no caso de réu estrangeiro “e não se saber onde residiu, se é que alguma vez em território português, não se afixa edital”, pelo que a citação se bastará com a publicação de anúncio previsto no nº 1 do citado art. 240º.
Na jurisprudência e além do acórdão fundamento, admitiu a citação edital de réu estrangeiro não residente em Portugal, quando não seja possível a sua citação por via postal e por carta rogatória, o Ac. Relação de Coimbra de 17.01.2006, P. 3824/05.
O acórdão fundamento, que foi relatado pelo Ilustre Juiz Desembargador Carlos Querido, encontra-se assim sumariado:
I - O nº 4 do artigo 239º do CPC, apesar de estar vocacionado para a citação edital de réus portugueses residentes no estrangeiro, não deverá ser excluída a sua aplicação a réus estrangeiros residentes fora de Portugal quando não seja possível a sua citação por outra via.
II - Tal interpretação é a única que se coaduna com a vocação do processo para a realização do direito (art. 2º, nº 2 do CPC), com vista ao integral cumprimento do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, já que, verificando-se a impossibilidade de citação do réu residente no estrangeiro em parte incerta, não sendo a mesma superada por via da citação edital, equivaleria à paralisação do processo e à consequente impossibilidade de realização do direito que o autor pretende fazer valer na acção.
Entendemos ser esta a melhor interpretação da lei. A recusa pura e simples da citação edital e não se adiantando uma outra solução para ultrapassar o impasse resultante de se terem frustrado as outras vias de citação tentadas, conduziria à impossibilidade de realização do direito que se pretende fazer valer na acção.
A defesa dos RR, e uma vez que o Ministério Público instaurou a acção em representação da menor, efectuada a citação edital e não sendo deduzida oposição, será assegurada por defensor oficioso, nos termos previstos no art. 21º do CPCivil.
O recurso merece provimento, não podendo subsistir a decisão impugnada.
Sumário (art. 663º, nº 7 do CPCivil):
I - Nos termos do art. 239º do CPCivil, um réu residente no estrangeiro deve ser citado de harmonia com o estiver estipulado em tratados ou convenções. Não existindo estes convénios, a citação deve ser feita por carta registada, com aviso de recepção. Frustrando-se a via postal, sendo o réu estrangeiro, ouvido o autor, realizar-se-á a citação por carta rogatória;
II - Quando não seja possível a citação por esta via, designadamente por se mostrar decorrido o prazo de três meses fixado na lei para o cumprimento de diligência a realizar no estrangeiro (art. 176º/3 do CPC), nada obsta à citação por via edital;
III - É que apesar de o nº 4 do art. 239º do CPC estar vocacionado para a citação edital de réus portugueses residentes no estrangeiro, não deverá ser excluída a sua aplicação a réus estrangeiros residentes fora de Portugal, quando não seja possível a citação por outra via, por tal interpretação ser a única que evita a paralisação do processo e possibilita a realização do direito que o autor pretende fazer valer na acção.
Decisão.
Pelo exposto, concede-se provimento à revista, pelo que se revoga o acórdão recorrido, devendo ordenar-se a citação edital dos RR, limitada à publicação do anúncio, nos termos previstos no nº 1 do art. 240º do CPC, seguindo depois os autos a sua normal tramitação.
Sem custas.
Lisboa, 08.03.2022
Ferreira Lopes (relator)
Manuel Capelo
Tibério Nunes da Silva