CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA
NÃO PUNIBILIDADE
CARTA DE CONDUÇÃO
Sumário

I- O condutor de um veículo automóvel, que uma vez sujeito a uma operação de fiscalização, apresente perante a autoridade policial um documento que pretende fazer passar por carta de condução, mas que seja visível a olho nu, não só por erros ortográficos, designadamente a palavra “serviços de aviação” na identificação da entidade emissora em vez de “serviços de viação”, a “numeração da Carta de condução” - data de validade que não correspondia à idade do arguido, que tal documento não pode ser  uma carta de condução verdadeira ou legitimamente emitida pelas autoridades competentes, não pode ser punido como autor de um crime de falsificação de documento, p.p pelo artigo 256°, n° 1, alínea e), e n° 3, do Código Penal.
II - A sua conduta acima descrita era objectivamente inidónea para consubstanciar a lesão do tipo objectivo do crime de falsificação, uma vez que a simples observação a olho nu do referido documento exibido, feita por qualquer cidadão, com conhecimentos médios, permitia concluir ser patente que tal documento não era uma carta de condução verdadeira ou legitimamente emitida pelas autoridades competentes, estando assim perante uma situação de “falso grosseiro” ou “falsificação patentemente grosseira”, que não tinha virtualidade para enganar eventuais destinatários, tratando-se antes de uma tentativa impossível (artº 23º/3 do C.P).

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 - No processo nº 1366/20.1SILSB, do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa - Juiz 3, foi submetido a julgamento em processo sumário, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido ASV_____ , filho de  , nascido em 1991-06-20, natural de Cabo Verde, solteiro, repositor, com domicílio na Rua … Corroios, a quem o M.P imputou os factos descritos na acusação pública (fls 30 a 32), que integram a prática em autoria material e sob a forma consumada de:
 - um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3°, n° 1 e n° 2, do Decreto-Lei n° 2/98;
- um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256°, n° 1, alínea e), e n° 3, do Código Penal.
Realizado o julgamento, por sentença proferida em 23.12.2020, foi o arguido condenado nos seguintes (transcritos) termos:
DISPOSITIVO DA SENTENÇA
Pelo exposto, o Tribunal julga a acusação procedente, por provada e, em consequência, decido:
I - Condenar o arguido ASV_____  pela prática, em 06-12-­2020, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3°, n° 1, e n° 2, do Decreto-Lei n° 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros).
II - Condenar o arguido ASV_____  pela prática, em 06-12­-2020, em autoria j material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256°, n° 1, alínea e), e n° 3, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à razão diária de €5,00 (cinco euros).
III - Condenar o arguido ASV_____ , depois de efectuado o cúmulo jurídico das 2 (duas) penas parcelares, na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia de € 800,00 (oitocentos euros).
IV - Condenar o arguido ASV_____  no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC, nos termos dos artigos 513°, n° 1 e 514°, n° 1, ambos do Código de Processo Penal, e artigo 8° n° 9, do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao mesmo.
*
2 – Inconformado com tal decisão, dela recorreu o Ministério Público, sendo que a motivação apresentada termina com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
1- O arguido foi condenado como autor do crime de falsificação de documentos por ter apresentado ao agente fiscalizador do trânsito uma carta de condução falsa.
2- Contudo,uma análise ponderada da prova documental e testemunhal, leva a considerar que se tratou de uma falsificação grosseira sem potencialidade para enganar os destinatários.
3- A condenação baseou-se apenas na convicção pessoal do julgador, sem considerar a prova produzida em julgamento.
4- Os fundamentos da condenação são rebuscados e inadmissíveis.
5- A douta sentença recorrida viola o disposto nos arts 10ºnº1, 23ºnº3 e 256º do CP e 127º do CPP.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, deve o presente recurso ser considerado procedente e, por via disso, ser o arguido absolvido da prática do crime de falsificação de documentos.
Apreciando e decidindo, como sempre sabiamente, V.as Ex.as farão JUSTIÇA
3 - Este recurso foi admitido por decisão proferida em 02.02.2021.
4 - Notificado, veio o arguido apresentar a sua resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, finalizando a mesma com as seguintes (transcritas) conclusões:
A) O arguido foi condenado num crime de falsificação de documento por ter apresentado uma carta de condução falsa.
B) Da prova produzida, tanto documental como testemunhal, apurou-se inequivocamente que foi uma falsificação grosseira sem qualquer possibilidade de suscitar engano.
C) Os argumentos em que a douta sentença recorrida se baseou para fundamentar a decisão de condenar o arguido não têm qualquer sustentação.
D) A douta sentença recorrida violou o art° 10, n°1, 23, n°3, e 256 do CP e 127 do CPP
Termos em que,
Deverá o recurso proceder, absolvendo-se o arguido do crime de falsificação de
documento.
FAZENDO-SE, ASSIM,
JUSTIÇA
5 - Nesta Relação de Lisboa, a Digna Procuradora Geral Adjunta apôs o seu visto em 08-03-2021 (fls 65).
6 - Foi oportunamente cumprido o artº 417º/2 do C.P.P.
7 - Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II - Questões a decidir
 Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (artº 410º nº 2 e 3 do C.P.Penal).
Por outras palavras, do artº 412º/1 do C.P.P resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso (neste sentido vide Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal”, III, 2ª edição, 2000, pág. 335 e Acs do S.T.J de 13.5.1998 in B.M.J 477-263; de 25.6.1998 in B.M.J 478º-242 e de 3.2.1999 in B.M.J 477º-271), exceptuando aquelas que são do conhecimento oficioso (cf Artº 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do C.P.P e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J de 19.10.1995 in D.R, I - série de 28.12.1995).
Assim, a única questão a apreciar por este Tribunal ad quem, é a de saber se a alteração da carta de condução, apresentada pelo arguido aos agentes da P.S.P, consubstancia uma falsificação patentemente grosseira, por ser manifesta a inaptidão do meio empregue pelo agente e como tal a conduta do arguido não pode ser punida, constituindo antes uma tentativa não punível – artº 23º/3 do C.P
III- Fundamentação de Facto
A decisão recorrida (segundo transcrição efectuada pela 1ª instância, a pedido da Relação)
TRANSCRIÇÃO
 [00:00:13] JUIZ (doravante designada apenas por MJ): o Ministério Público deduziu acusação em processo especial sumário contra ASV_____  imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada em concurso real de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3o, n.° 1, e n.°2, do Decreto-Lei n° 2/98, de 3 de Janeiro e um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 255°, alínea c), 256°, n.° 1, alíneas a e e), e n.° 3, ambos do Código Penal.
O arguido não contestou a acusação nem arrolou meios de prova. Da prova produzida em sede de audiência de julgamento ficaram resultaram provados todos os factos vertidos no libelo acusatório deduzido a folhas 30 a 32, para onde se remete ao abrigo do disposto no artigo do 389°-A, n°.1, alínea a), do Código de Processo Penal
Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido resultou provado que o mesmo exerce a profissão de repositor, auferindo um vencimento mensal no montante de cerca de 600 € (seiscentos euros), habita em casa de seus pais com a sua companheira e um filho menor de idade e contribui mensalmente para as despesas domésticas com a quantia mensal no montante de cerca de 350 € (trezentos e cinquenta euros). A companheira do arguido encontra-se desempregada e não aufere qualquer rendimento ou subsídio. Provou-se ainda que o arguido não tem antecedentes criminais.
Factos não provados com relevância para a decisão, não existem. O tribunal formou a sua convicção valorando toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Assim, e começando a nossa análise pelas declarações prestadas pelo arguido, este negou que conhecesse que a sua carta de condução não tivesse sido emitida pelas entidades competentes, referindo ter ido de férias para Cabo Verde entre Novembro de 2017 e Março de 2018, altura em que aí se inscreveu na Escola de condução, frequentou as aulas de código, efectuou o exame de código na própria escola de condução, frequentou as aulas práticas e submeteu- se a exame prático, sempre com aproveitamento e que a sua carta de condução posteriormente lhe foi remetida a Portugal. Estas declarações do arguido, por inverosímeis, e até no confronto com o documento que se mostra apreendido nos autos e junto a folhas 40, não se afiguram minimamente credíveis. Efectivamente resulta das regras da experiência e do senso comum que os exames das Escolas de condução não são efectuadas na própria Escola de condução, depois o arguido afirmou ter regressado para Portugal em Março de 2018 e, do título exibido pelo arguido consta que a mesma é válida a partir de 23 de Abril de 2018, o que significará que terá sido nesta data que o arguido obteve o aproveitamento no exame prático e como tal, ficou habilitado a conduzir a partir dessa data, ora, altura esta que, das declarações do próprio o arguido o mesmo já se encontraria em Portugal. Depois, também, não se vislumbra como é que uma escola de condução, a ser verdade o declarado pelo arguido, tendo um aluno cumprido todas as formalidade legais lhe envia uma carta de condução que não corresponde à verdade, sendo falsificada.
Assim, as declarações do arguido, conforme já se dissemos, não se afiguram minimamente credíveis.
E assim, os factos resultaram provados com base no depoimento da testemunha  , Agente da PSP, que revelou conhecimento directo dos factos sobre os quais depôs e que prestando um depoimento claro, bastante circunstanciado e isento, referiu que nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas na acusação o arguido se encontrava a conduzir um veiculo automóvel ligeiro de passageiros, tendo sido fiscalizado e quando questionado pelos seus documentos exibiu então um documento intitulado de carta de condução que foi apreendido. No que tange à circunstância de o documento exibido pelo arguido não ter sido emitido pelas Entidades Oficiais sendo um documento falso, o Tribunal atendeu desde logo, ao exame pericial a esse mesmo exame constante de folhas 38 e 39 onde se comprova que efectivamente o mesmo não é um documento autêntico. É certo que a testemunha  , por força da formação e dos anos de experiência que tem nesta área disse que, confrontado com o documento, rapidamente constatou que o mesmo não era verdadeiro, não só por erros ortográficos que o mesmo continha designadamente a palavra aviação em vez de viação, a numeração da Carta de condução que não corresponde àquelas que são emitidas ainda actualmente e, bem assim, à sua data de validade e à circunstância de o mesmo conter duas categorias A1. No entanto, e não obstante estas incongruências que saltaram a olhos vistos deste mesmo agente, certo é que o Tribunal também não pode deixar de considerar que para chegar à conclusão de que efectivamente o documento era falsificado o Ministério Publico requereu o exame pericial, o que desde logo nos indicia que não estamos perante uma falsificação grosseira do documento em causa, porquanto, se falsificação grosseira se tratasse, em nosso entender, desnecessário teria como prova pericial para demonstrar efectivamente essa falsificação do documento. Não obstante, o Tribunal também não poderá de deixar consignado que a circunstância do agente policial, conforme já dissemos, por força da formação especifica que tem e da experiência que também tem no âmbito da fiscalização rodoviária, nós não podemos generalizar esse mesmo conhecimento para todas as demais pessoas que nunca tivessem tido contacto nem conhecimento com a Carta de condução em causa e que sendo confrontado pela primeira vez com o título de condução alegadamente emitido pelas Entidades de Cabo Verde não pudessem ser enganadas por ela. Aliás, se assim não fosse também não se perceberia como é que o arguido aqui em audiência de julgamento tentou comprovar ou demonstrar que o seu título teria sido emitido por Entidade competente, ele próprio quis demonstrar em Tribunal que estava convencido disso, ora se de uma falsificação grosseira se tratasse não se vislumbrava como é que o arguido pudesse sequer tentar convencer o tribunal de que estaria cumprido tudo o que essa carta de condução teria sido emitida pelas Entidades competentes.
Assim, e atendendo ao que já se deixou exposto, cotejado também e corroborado não só pelo exame pericial ao que o Tribunal já se aludiu, mas também ao resultado da pesquisa informática à base de dados do IMT, junto aos autos, de onde se extrai que efectivamente o arguido não é titular de Carta de condução que o habilite a conduzir veículos motorizados, o Tribunal concluiu que efectivamente dúvidas não restam da prática, pelo arguido, dos factos que lhe são imputados e, bem assim, da falsificação do documento por ele exibido perante Agente de Autoridade.
No que se refere aos elementos subjectivos dos tipos de ilícito imputados, os mesmos decorrem da acusação empreendida pelo próprio arguido, porquanto, evidente se afigura que quem age da forma descrita sabe que não é titular de carta de condução válida emitida pelas entidades competentes para conduzir veículos automóveis e que o documento que exibiu perante os agentes da Autoridade não tinha sido emitida pelas Entidades competentes pretendendo assim, dessa forma, enganar os agentes da autoridade que o estavam a fiscalizar por forma a fazer querer que era titular de uma carta de condução válida e emitida por Entidade competente que efectivamente não o era.
Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido atendeu-se ao por ele declarado, nada se tendo apurado que nessa sede não o fizesse com verdade e no que se refere aos antecedentes criminais valorou o Tribunal do certificado do registo criminal do arguido inserto a fls. 43.
Apurados os factos importa agora proceder ao seu enquadramento jurídico. Ao arguido é imputada a prática de dois ilícitos criminais, sendo que, lhe é imputado desde logo o crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3o, n°. 1 e n°. 2, do Decreto-Lei 2/98 de 03 de janeiro. Quanto a este tipo de ilícito, prescreve o n°. 1, do artigo 3o, do Decreto-Lei 2/98 de 03 de janeiro, que quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado, nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. Seguidamente prevê o n°. 2 deste artigo se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.
Tendo presente o preceituado no normativo citado e atendendo a matéria factual assente, no que respeita ao preenchimento do tipo em termos de imputação objectiva a conduta do arguido integra, uma vez que se traduziu na condução de veiculo automóvel, numa via pública, sem que estivesse munido de carta de condução. No que respeita à imputação subjectiva deste crime, o mesmo também se verifica tendo o arguido agido com dolo directo, ou seja, com conhecimento e vontade de realização desse comportamento, conforme artigo 14°, n°,1, do Código Penal. Inexistem causas que justifiquem a conduta do arguido, pelo que a mesma é ilícita. Pelo exposto, incorreu o arguido na prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3o, n.°1,e n.°2, do Decreto-Lei n° 2/98, de 3 de Janeiro
Ao arguido ainda imputada a prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido, pelo artigo 256°, n°1, alíneas a e e) e n°. 3, do Código Penal.
Dispõe então o artigo 256°, n°.1, na parte que aqui importa considerar, que quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, nos termos da alínea a), fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo, nos termos da alínea e), usar documento a que se referem as alíneas anteriores é punido com prisão até três anos ou com pena de multa.
Nos termos do n°. 3, do mesmo preceito, se os factos referidos no n.° 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer título de crédito não compreendido no artigo 267.°, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.
Tendo presente então, uma vez mais, o preceituado no normativo citado e descendo ao caso concreto, da factualidade apurada é possível concluir que a conduta do arguido integra todos os elementos objectivos e subjectivo do crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256°, n°.1, alínea e) e não alínea a), porquanto, nenhuma prova foi feita que tivesse sido o arguido a falsificar o documento aqui em causa, sendo certo, aliás, que nem tal é sequer referido na acusação e bem assim a qualificativa do número 3 do mesmo artigo 256°., porquanto, tratando-se de uma carta de condução, estamos perante um documento autêntico. Do mesmo modo, da matéria factual provada também resulta verificado o elemento volitivo emocional deste tipo de ilícito, pelo que, e não existindo quaisquer causas que excluem a ilicitude da conduta do arguido, sempre a mesma ilícita, importa concluir ter então o arguido incorrido igualmente na prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256°, n° 1, alínea e) e n° 3, do Código Penal.
O crime de condução sem habilitação legal, praticado pelo arguido é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa de 10 até 240 dias, por sua vez o crime de falsificação de documento praticado pelo arguido é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.
Admitindo ambos os tipos legais de crime ora em causa a aplicação em alternativa das duas penas principais, cumpre em primeiro lugar proceder à determinação da espécie de pena que concretamente irá ser aplicada considerando para o efeito o sentido e o alcance do princípio geral que resulta da conjugação dos artigos 40° e 70°. ambos do Código Penal.
No caso vertente e, começando pelas necessidades de prevenção geral, cumpre atentar que são elevados os índices de criminalidade da Comarca e que o tipo legal de crime, principalmente o de condução sem habilitação legal, é de prática frequente e contribui para um clima de insegurança rodoviária a qual é marcada no nosso país para uma elevada sinistralidade. É pois de concluir que são elevadas as necessidades prevenção geral positiva.
Relativamente às necessidades de prevenção especial, face aqui no caso imposta importa considerar que as mesmas se afiguram medianas atendendo, desde logo, à circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais e se mostrar inserido social, familiar e profissionalmente, o que nos conduz à conclusão que as supra aludidas exigências satisfazem com pena de multa, que, por isso, será aplicada por adequada.
Determinada a pena a aplicar, cabe agora proceder a fixação da respectiva medida concreta o que se fará nos termos equacionados no artigo 71°, do Código Penal. Assim, ter-se-á em atenção a ilicitude do facto, e aqui o juízo de censura a verter sobre a conduta do arguido no que tange ao crime condução sem habilitação legal afigura-se mediano designadamente no seu segmento de desvalor do resultado, dado que e não obstante estamos perante um crime abstrato a conduta do arguido não resultou perigo concreto ou dano para terceiros, no que tange ao juízo de censura a verter sobre a conduta do arguido no que se refere ao crime de falsificação de documento, o mesmo já assume alguma gravidade, atendendo aos contornos da prática dos factos, desde logo à circunstância do arguido com esse mesmo título pretender demonstrar ser titular de carta de condução que efectivamente não o é. Importa também considerar o dolo directo com que actuou e a concomitante culpa mais elevada do arguido, as elevadas exigências de prevenção geral, nos termos já referidos e, a favor do arguido milita a ausência de antecedentes criminais e a sua inserção social, familiar e profissional.
Assim, sopesados que foram todos os critérios de determinação da concreta medida da pena que acabamos de expor, entendemos aplicar ao arguido uma pena de 80 (oitenta) dias de multa, pela prática do crime de condução sem habilitação legal e a pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, pela prática do crime de falsificação de documento. Nos termos do n°.2, do artigo 47°, do Código Penal, a cada dia de multa corresponde a uma quantia fixada entre € 5 (cinco euros ) e €500 (quinhentos euros) o Tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e ainda dos seus encargos pessoais
No caso dos autos, atendendo a situação pessoal e económica do arguido nos termos julgados provados, julgamos adequado e justo fixar tais dias de multa, à razão diária de 5 € (cinco euros).
Tendo o arguido incorrido na prática de 2 (dois) ilícitos criminais, importa agora proceder à determinação da pena única das penas parcelares de multa impostas ao arguido, pela prática dos referidos crimes, uma vez que nos termos do artigo 77°, n°. 1, do Código Penal se preceitua que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado de qualquer um deles é condenado numa única pena. A pena única será encontrada dentro de um mínimo representando pela pena parcelar mais elevada e o máximo pela soma material de todas as penas. Assim, partindo de uma moldura de concurso de 120 (cento e vinte) a 200 (duzentos) dias de multa, teremos de considerar em conjunto os factos e a personalidade do arguido para determinar a pena única. Assim, atendendo, por um lado, aos factos considerados como um todo e por outro a personalidade do arguido, sendo aqui de atender à circunstância do arguido não ter antecedentes criminais, entendemos aplicar ao arguido a pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de 5 € (cinco euros).
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga a acusação procedente como provada e em consequência decide, condenar o arguido ASV_____ , pela prática, em 06 de Dezembro de 2020, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3o, n.° 1, e n.°2, do Decreto-Lei n° 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 80 (oitenta dias) de multa, à razão diária de 5 € (cinco euros); condenar o arguido ASV_____ , pela prática em 06 de dezembro de 2020, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256°, n° 1, alínea e) e n° 3, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de 5 € (cinco euros). Em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas condenar o arguido na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de 5 € (euros), o que perfaz o montante global de 800 € (oitocentos euros).
Condenar ainda o arguido ASV_____  no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 1 (uma) Unidade de conta, conforme artigos 513° e 514°, n°. 1, do Código de Processo Penal e 8o, n° 9 do Regulamento das Custas Processuais, com referência à tabela III, anexa a este último Diploma Legal.
Proceda ao depósito da sentença na secretaria, conforme artigos 372°, n° 5, do Código de Processo Penal.
E Após trânsito, Remeta boletins à D.S.I.C..
Analisando
Da alegada falsificação grosseira da carta de condução apresentada pelo arguido
Veio o M.P e ora recorrente invocar que o Tribunal a quo, com base na prova testemunhal e na prova documental produzidas, deveria ter proferido uma decisão de absolvição do arguido, quanto ao crime de falsificação de documento p.p pelo artigo 256° n° 1, alínea e) e n° 3, do Código Penal – relativamente à “carta de condução”, cuja titularidade invocou e que foi por ele exibida em 6.12.2020 à autoridade policial (P.S.P), numa operação rotineira de fiscalização rodoviária.
Argumenta para o efeito o M.P, resultar de forma manifesta, da simples observação a olho nu desse documento, a inaptidão do meio empregue pelo agente, para comprovar perante aquela força policial, que se encontrava habilitado a conduzir veículos automóveis na via pública, através da emissão de uma carta de condução legítima e verdadeira.
Conclui assim, que a actuação do arguido foi incorrectamente apreciada pelo Tribunal a quo do ponto de vista do seu enquadramento jurídico, defendendo que se impunha a sua absolvição ao abrigo do artº 23º/3 do C.P – isto é que nos presentes autos, se estava perante uma situação de “falso grosseiro” ou “falsificação patentemente grosseira”, que não tinha virtualidade para enganar eventuais destinatários, tratando-se antes de uma tentativa impossível.
O arguido na sua resposta formulada em 1ª instância, acompanhou esta argumentação do recurso do M.P, nos seus precisos termos, por não lhe merecer a mesma qualquer reparo ou censura.
Quid Juris?
Dispõe o artº 256º/1 alínea e) do C.P, o seguinte:
Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
(…)
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores;
(…)
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
E por sua vez dispõe o nº 3 deste preceito:
Se os factos referidos no nº 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, (...) o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.”
Importa assim ter presente, que os bens jurídicos tutelados pela incriminação em causa, são a segurança e credibilidade na força probatória de documento destinado ao tráfico jurídico.
Por outro lado, no que respeita ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos, o crime de falsificação de documento é um crime de perigo abstracto quando cometido nas modalidades previstas na alínea a) a d) do nº 1 e um crime de dano quando cometido nas modalidades previstas nas al. e) e f) do nº 1, uma vez que o bem jurídico só é efectivamente atingido quando o documento é posto em circulação (ou seja é utilizado).
Veja-se também que o tipo objectivo, pode assumir diversas modalidades desde a fabricação ex novo de documento, passando pela modificação a posteriori de um documento já existente, a integração no documento de uma declaração distinta daquela que foi prestada ou a circulação de um documento falso.
Claramente que no presente caso, a carta de condução exibida pelo arguido aos agentes da P.S.P, na operação de Stop verificada em 6.12.2020, é um documento falso, por não ser emitida pelas autoridades competentes para esse efeito em Cabo Verde, tal como se podia constatar pela simples observação do documento a olho nu, sendo tal facto também comprovado no exame pericial, junto aos autos a fls 38/39.
Mas como bem foi referido na 1ª instância, não se fez prova que o arguido tivesse participado na fabricação dessa carta falsa, pelo que apenas poderia estar em causa a imputação ao arguido da modalidade de actuação no preenchimento do tipo objectivo, prevista na alínea e) do nº 1 do artº 256º do C.P - acção de fazer circular ou usar documento falsificado por terceiros -, actuação essa agravada por se tratar de um documento autêntico, nos termos do nº 3 do artº 256º do C.P.  
Por fim, quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção, o crime de falsificação de documento cometido nas modalidades previstas nas alíneas a) a d) do nº 1 é um crime de resultado, mas já quando cometido nas modalidades previstas nas al. e) e f), temos um crime de mera actividade, que é o que sucedeu no caso em apreço, porquanto da actividade do agente não decorreu ou resultou uma alteração do mundo exterior.
Ora ficou expresso na motivação de facto da sentença, que a testemunha CS… agente da P.S.P, por força da formação e dos anos de experiência que tem nesta área, referiu em julgamento o seguinte:
confrontado com o documento, rapidamente constatou que o mesmo não era verdadeiro, não só por erros ortográficos que o mesmo continha designadamente a palavra “serviços de aviação” na identificação da entidade emissora em vez de “serviços de viação”, a “numeração da Carta de condução” - que não corresponde àquelas que são emitidas ainda actualmente - e, bem assim, à sua data de validade que não correspondia à idade do arguido (carta emitida em 4.5.2018 e válida até 19.6.2035) e à circunstância de o mesmo conter duas categorias A1.
Na realidade, importa sublinhar porém que não obstante o sr. Agente da PSP, ouvido como testemunha nos autos, possuir experiência nesta área da fiscalização deste tipo de documentos, a verdade é que se constata da simples observação do documento apreendido e junto aos autos a fls 40, que o mesmo apresenta as incongruências referidas pela testemunha em julgamento e que “saltaram a olhos vistos” deste mesmo agente da P.S.P, como saltariam aos olhos de qualquer outra pessoa, com conhecimentos medianos, que no circunstancialismo de tempo e de lugar descritos na acusação, observasse o referido documento.
Não foram pois, exclusivamente os detalhes técnicos mencionados no auto de notícia junto aos autos (nomeadamente elevado teor de fluorescência do substracto e impressão de fundo e das menções fixas em técnica distinta do espécime original), as características típicas deste documento que determinaram o agente da P.S.P a desconfiar da autenticidade da carta de condução exibida pelo arguido.
Desta forma, é notório que as características acima referidas e mencionadas pelo agente da P.S.P Carlos Sousa, no seu depoimento em julgamento, que se encontravam impressas nesse documento e eram visíveis a olho nu para qualquer cidadão mediano, tornavam o mesmo manifestamente inidóneo para poder configurar uma “carta de condução verdadeira”, isto é, emitida pelos órgãos competentes para o efeito, em Cabo Verde.
Essa inidoneidade ou falta de aptidão do meio empregue pelo agente, para na data dos factos, lograr comprovar ser o mesmo titular de uma carta de condução autêntica e estar legitimamente habilitado para a condução de veículos automóveis, era algo claramente patente para qualquer pessoa de conhecimento médio, colocado no lugar do agente da PSP Carlos Sousa e não apenas para esse agente da P.S.P.
E naturalmente que não é o facto de o M.P na fase de inquérito, ter mandado realizar a perícia (certamente por prudência), que afasta a realidade da falta de aptidão deste meio empregue pelo arguido, para lesar o bem jurídico protegido pela norma incriminadora.
Por outro lado, é verdade que o arguido, em julgamento, no uso de um direito que lhe assiste, não confessou a falsificação e disse estar convencido que a carta de condução era genuína. 
Mas tão pouco podem estas declarações prestadas em juízo pelo arguido, ser usadas nos termos que ficaram expostos na sentença, para fundamentar a convicção do Tribunal a quo no sentido de afastar a existência de uma falsidade grosseira – como é sabido, o valor das declarações do arguido em julgamento, não pode ser igual ao de qualquer outra testemunha, porquanto o arguido não é obrigado a falar sobre os factos que o incriminam e quando fala, não o faz sob juramento, pelo que querendo pode sempre faltar à verdade ou omitir pormenores que o incriminem.
Sendo assim, é manifesto da simples leitura da sentença, que perante a factualidade apurada, se impõe a conclusão de que no caso em apreço, o arguido não logrou preencher com a sua conduta o tipo objectivo do tipo legal em causa.
Com efeito, ao ser portador e exibir aquele documento que se mostra apreendido nos autos e que apresentou às autoridades policiais em 6.12.2020, como sendo uma “carta de condução”, não lesou nem fez em momento algum, perigar o bem jurídico - segurança do tráfico probatório - tutelado por esta incriminação.
A conduta do arguido nesta parte era objectivamente inidónea para consubstanciar essa lesão, uma vez que a simples observação a olho nu do referido documento exibido, feita por qualquer cidadão, com conhecimentos médios, permitia concluir ser patente que tal documento não era uma carta de condução verdadeira ou legitimamente emitida pelas autoridades de Cabo Verde, competentes para esse efeito.
Dispõe o artº 23º/3 do C.P: “A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime”.
No caso em dos presentes autos, a actuação do arguido consubstancia sem dúvida de uma falsificação grosseira, que não é punível nos termos do artº 23º/3 do C.P e em consequência, impõe-se absolver o arguido do crime de falsificação p.p no artº 256º/1 e) e nº 3 do C.P, de que vinha acusado pelo M.P.  
Tudo visto, importa desfazer o cúmulo jurídico que foi efectuado em 1ª instância, subsistindo apenas a condenação do arguido como autor material e na forma consumada de um crime de condução sem habilitação legal, p.p no artº 3º/1 e 2 do D.L nº 2/98 de 3.1, numa pena de  80 dias de multa, à razão diária de 5,00 euros, o que perfaz a quantia de quatrocentos (400) euros.
Procede assim na íntegra o recurso do M.P

III- Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em:
A) Julgar provido o recurso interposto pelo M.P e em consequência:
- absolver o arguidoASV____ da prática de um crime de falsificação de documento p.p no artº 256º/1 e) e nº 3 do C.P, por se tratar de uma falsificação patentemente grosseira e como tal não punível, ao abrigo do artº 23º/3 do C.P;
- manter no mais a sentença recorrida, persistindo a sua condenação, numa pena de 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de 5,00 euros, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de condução sem habilitação legal, p.p no artº 3º/1 e 2 do D.L nº 2/98 de 3.1, nos termos acima expostos.
B) Sem Custas.

Lisboa, 9.2.2022
Ana Paula Grandvaux Barbosa
Maria Gomes Bernardo Perquilhas