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PRESCRIÇÃO
CAUSAS DE INTERRUPÇÃO
ARGUIÇÃO
SUSPENSÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
ACÇÃO INSTAURADA EM TRIBUNAL INCOMPETENTE
CITAÇÃO NÃO EFECTUADA NO PRAZO DE CINCO DIAS
CAUSA IMPUTÁVEL AO REQUERENTE
Sumário
I - A prescrição é uma excepção e deve ser arguida pelo demandado; as causas de interrupção da prescrição são uma excepção à excepção e devem ser arguidas pelo demandante, na resposta à excepção, para o tribunal delas poder conhecer. II - Mesmo que na resposta à excepção o demandante não se tenha referido à causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 323.º do Código Civil, o tribunal pode conhecer dela desde que se atenha aos factos processuais uma vez que estes são de conhecimento oficioso. III - Tendo a autora instaurado a acção num tribunal que não era o competente e tendo esse tribunal, conforme podia fazer ex oficio, conhecido de imediato da excepção e só após essa decisão ordenado a remessa para o tribunal competente onde depois se iniciaram as diligências para citação, a circunstância de a citação não se ter efectuado no prazo de cinco dias após a instauração da acção resulta de causa imputável ao requerente, pelo que a prescrição não se tem por interrompida com o decurso desse prazo.
Texto Integral
Recurso de Apelação ECLI:PT:TRP:2022:1721.9.0T8PVZ.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório: X ... – Companhia de Seguros, S.A., pessoa colectiva com o número de identificação e de contribuinte fiscal ..., com sede no Porto, instaurou acção judicial contra AA, com o número de identificação civil ......., contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., pedindo a sua condenação no pagamento à autora do valor de €24.684,31 acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a data da citação, até integral pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que celebrou um contrato de seguro automóvel com o réu, o qual, no dia 5-8-2014, conduzindo o veículo segurado, embateu na traseira de um veículo parado em terceiro lugar numa fila de veículos que se encontravam parados num sinal vermelho, por manifesta falta de atenção já que não viu os veículos imobilizados, não reduziu a velocidade que imprimia ao seu veículo, não travou nem conseguiu parar o seu veículo no espaço que tinha à sua frente, sendo que nesse momento conduzia sob efeito do álcool, com uma taxa de álcool no sangue de 1,47g/l.
Para reparação dos danos causados pelo réu, a autora pagou €4.904,88 ao próprio réu, na qualidade de proprietário do veículo com que conduzia e para o qual tinha contratada a cobertura de danos próprios. Também pagou ao proprietário do veículo ...-FG-... a quantia de €6.600,10 pela perda do veículo e pela privação do uso, a quantia de €106,91 pela assistência hospitalar e a quantia de €4.500,00 de indemnização pelos danos remanescentes, bem como, por o acidente ser em simultâneo, para este, um acidente de trabalho, pagou à congénere dos acidentes de trabalho a quantia de €3.446,98 pela regularização de danos e €2.619,94 para despesas médicas e medicamentosas. Pagou ainda à seguradora do veículo ...-BU-... a quantia de €2.155,70, no âmbito da convenção CRS.
O processo deu entrada no Juízo Local cível da Póvoa de Varzim, o qual, depois de notificação à autora para se pronunciar quanto à sua incompetência, e da resposta da autora, por despacho de 28-11-2019, determinou a remessa dos autos para os Juízos Locais Cíveis de Vila do Conde.
O réu contestou por excepção e por impugnação.
A título de excepção, arguiu a prescrição do direito da autora, dizendo que o prazo de prescrição é de 3 anos, e as indemnizações pagas pela autora aos proprietários dos veículos ...-...-VV e ...-BU-..., bem como aos bombeiros remontam ao ano de 2014 e por isso o direito de regresso está prescrito. A indemnização relativa aos danos sofridos pelo proprietário do veículo com a matrícula ...-FG-... foi paga em 2014, tal como as despesas hospitalares relativas ao condutor foram pagas em Setembro de 2014 ou 2015, pelo que o direito de regresso também está prescrito. A única indemnização que resta apurar é a que foi paga ao condutor do veículo ...-FG-..., o que alegadamente aconteceu em Outubro de 2016, pelo que também já tinham decorrido mais de três anos até à propositura da acção e por isso, também o direito da Autora se encontra prescrito.
Em sede de impugnação, aceitou que conduzia com a taxa de álcool alegada, mas sustentou que não foi alegado o nexo de causalidade entre a condução do álcool e o acidente, mais sustentando que o veículo que seguia à sua frente travou bruscamente e retirava-lhe visibilidade ao réu, pelo que apesar de ter travado não conseguiu evitar a colisão.
A autora respondeu à matéria de excepção, defendendo que o último pagamento que fez teve lugar em 25-11-2017, e por isso o seu direito não se encontra prescrito. Acrescenta que o prazo de prescrição só se inicia quando é paga a última parcela da indemnização, pois só nessa altura se dá o cumprimento total da obrigação. Deste modo, tendo o último pagamento ocorrido a 25-11-2016 e tendo a acção dada entrada em juízo a 18.11.2019, e considerando-se que o prazo de prescrição de interrompe cinco dias depois da entrada da acção, a prescrição considera-se interrompida a 23-11-2019, ou seja, antes da prescrição que ocorreria a 25-11.2019.
Oportunamente foi realizado julgamento e proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e o réu condenando a pagar à autora a quantia de €17.273,83, acrescida de juros de mora à taxa legal desde 04.07.2020 até integral pagamento.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- O Mmº Juiz do Tribunal “a quo” defendeu que os danos em causa nos presentes autos são autonomizáveis não pela sua natureza ou bem jurídico atingido, mas sim consoante o lesado.
2- A autonomização de danos consoante o lesado não tem reflexo normativo ou jurisprudencial.
3- No caso dos presentes autos a apelante por via do mesmo facto viu-se obrigada a suportar danos de diversos lesados.
4- O responsável pelo facto gerador da obrigação da apelante indemnizar os lesados foi apenas um.
5- Se fosse defensável e juridicamente sustentável que os danos são autonomizáveis consoante o lesado, a apelante ver-se-ia obrigada a intentar várias acções de regresso.
6- O prazo de prescrição começa a correr, efectuado que esteja, o último pagamento da obrigação.
7- O art. 306º do CC, estatui que o prazo de prescrição só começa a correr quando a indemnização poder ser exigida.
8- A indemnização pretendida pela Apelante, no âmbito do direito de regresso estatuído no art. 27º, nº 1, al. c) do DL 291/2007, só é passível de ser exigida, depois de conhecida toda a dimensão dessa mesma indemnização, o que aconteceu apenas, quando se encontraram todos os lesados ressarcidos.
9- Todos os danos ressarcidos pela autora correspondem ao mesmo núcleo indemnizatório, designadamente por se tratarem de danos normativamente semelhantes, excepção feita ao último pagamento, efectuado a 25.06.2016, que corresponde não só a danos não patrimoniais como patrimoniais, factos assentes 30), 31) e 32).
10- Os pagamentos elencados nos factos assentes 17) a 32) correspondem a danos patrimoniais.
11- Todos os pagamentos têm a mesma natureza, não sendo normativamente diferenciados, não havendo por isso qualquer fundamento para juridicamente os considerar autónomos.
12- Estando salvaguardada a tempestividade do pedido da apelante no que ao último pagamento efectuado diz respeito, designadamente a quantia paga a 25.11.2016, conforme facto assente 32) e não se podendo sustentar a sua autonomização relativamente aos danos constantes nos factos assentes 17) a 29), não se pode aceitar a prescrição de qualquer um destes pagamentos;
13- Com o que, concedendo provimento ao recurso, revogando a decisão do Tribunal “a quo” e condenando o Apelado a pagar a indemnização peticionada pela Apelante, farão V. Exas. a costumada Justiça.
O réu interpôs igualmente recurso de apelação da sentença, apresentando alegações de recurso que terminam com as seguintes conclusões:
I - Qualquer decisão judicial deve providenciar a tutela efectiva dos direitos dos cidadãos, dizendo o direito e a justiça, assim consagrando a certeza e a segurança das relações jurídicas, sobretudo quando estamos perante uma acção de regresso movida em 18/11/2019 pela X... - Companhia de Seguros, S.A., grande grupo segurador e grande litigante, que deixou passar mais de cinco anos sobre o acidente (ocorrido em 05/08/014) e sobre grande parte dos pagamentos efectuados em finais de 2014, e quase três anos sobre o último pagamento de 25/11/2016, para exigir ao D./recorrente, simples particular, a quantia elevada de €24.684,31, quando este, citado em 2020, não se lembrava, sequer, de todas circunstâncias em que se tinha dado o acidente.
I.1- Não pode o D./recorrente ser penalizado e condenado nos presentes autos única e simplesmente porque foi o único culpado no acidente e porque conduziu sob o efeito do álcool, tendo, em sede penal, respondido pelos actos por ele cometidos.
I.2. O direito, a justiça, fazem-se com leis, sendo que uma atitude moralmente reprovável, o que é o caso, pode não ser legal ou processualmente condenável, pois existem regras e obrigações que devem ser cumpridas, não só pelos cidadãos comuns, mas também pelas seguradoras, nomeadamente quanto ao prazo de prescrição e ao exercício do direito de regresso.
I.3. Mostram-se violados os n.ºs 1, 4 e 5, do art. 20º, da Constituição da República Portuguesa, bem como seu correspondente art. 2º do CPC, e, consequentemente, o princípio constitucional da tutela da confiança, enquanto princípio imanente ao Estado de Direito, quando uma sentença opta por condenar o D./recorrente a pagar à A./recorrida grande parte das indemnizações por ela liquidadas, enquanto existem nos autos todos os elementos que permitem concluir que o direito de regresso da seguradora encontra-se prescrito e não constam dos autos a prova de todos os pagamentos alegadamente efectuados.
II - A presente acção foi instaurada em 18/11/2019 passados mais de cinco anos sobre o acidente, ocorrido em 05/08/2014, sendo que a citação não ocorreu nos cinco dias após a propositura da acção, até 23/11/2019, mas também não ocorreu até ao fim do prazo de prescrição de três anos previsto no art. 498º, n.º 2, do C. Civil, até 25/11/2019, em relação ao último pagamento efectuado (a 25/11/2016), pelo que o direito de regresso da A./recorrente mostra-se prescrito.
II.1. Mostram-se violados o princípio do contraditório e a proibição das decisões-surpresa, consagrados no art. 3º, n.º 3, e o disposto no art. 609º, n.º 1, ambos do CPC, quando a Meritíssima Julgadora a quo determina que a citação do D./recorrente não ocorreu no prazo de cinco dias após o início da acção por causa não imputável à A./recorrida, enquanto tal questão não foi por esta suscitada (a quem competia o ónus da prova, nos termos do disposto no art. 342º, n.º 1, do C. Civil), pelo que a sentença é nula por excesso de pronúncia prevista no art. 615º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do CPC.
III. Sem prescindir, a demora ou retardamento na efectivação da citação deveu-se ao facto de a A./recorrida ter apresentado a acção num tribunal incompetente, em violação das regras de competência territorial, nomeadamente o disposto no art. 71º, n.º 2, do CPC que determina a competência do tribunal da comarca em que o acidente ocorreu e o Decreto-Lei n.º 38/2019, de 18/03, que alterou o mapa judiciário, reforçando a especialização dos tribunais judiciais, criando o Juízo Local Cível de Vila do Conde.
III.1. Face aos elementos de prova constantes dos autos, deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto nos art. 662º, n.º 1, 607º, n.º 4, e 413º do CPC, dando-se como provados que: A./recorrida não requereu a citação urgente do D./recorrente; que no dia 20/11/2019, quarta-feira, foi proferido o seguinte despacho, in fine: “Assim, competente para os termos da presente acção é o Tribunal de Vila do Conde, por ser o do local do facto ilícito. Nesta conformidade, notifique a autora para, querendo, se pronunciar sobre a eventual incompetência territorial deste Tribunal, nos termos do artigo 3º, n. º 3 do C.P.C., no prazo de 5 dias.”; que na segunda-feira seguinte, dia 25/11/2019, às 19h09, a A./Recorrida apresenta o seguinte requerimento: “X... - Companhia de Seguros S.A., Autora nos autos supra identificados, tendo sido notificada do despacho a fls.. vem requerer a remessa dos presentes autos ao Juízo Local Cível de Vila do Conde com o aproveitamento de todo o processado.”, sem requerer urgência na remessa, sem prescindir do prazo de recurso e sem, mais uma vez, requerer a citação urgente do D./recorrente; que o processo foi distribuído, no Juízo Local Cível de Vila do Conde, Juiz 1, em 16/01/2020, depois de decorridos o prazo de recurso e as férias judiciais; que o D./recorrente foi objecto de uma primeira tentativa de citação na sua antiga morada sita em ..., constante do contrato de seguro e da petição inicial, em 17/01/2020, que veio devolvida em 31/01/2020; que, após uma consulta à bases de dados, apurou-se que o D. tinha a sua residência em Vila Nova de Gaia, sendo enviada nova carta de citação em 27/02/2020.
III.2. A A./recorrida beneficiar da interrupção da prescrição prevista no art. 323º, n.º 2, do C. Civil, numa acção de regresso iniciada em 18/11/2019 num tribunal incompetente, em violação das regras de competência territorial, previstas no art. 71º, n.º 2, do CPC e no Decreto-Lei n.º 38/2019, de 18/03, quando apenas faltavam sete dias para terminar o prazo de prescrição de três anos previsto no art. 498º, n.º 2, do C. Civil, em relação ao último pagamento de 25/11/2016.
IV – A jurisprudência determina que o art. 498º, n.º 2, do C. Civil deve ser interpretado no sentido que, citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 28/10/2004, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Salvador da Costa, no Processo n.º 04B3385: “A prescrição é o instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante certo tempo, que se funda no interesse social da certeza dos direitos e na estabilidade patrimonial do devedor.”, pelo que “Decorrentemente, a conclusão é no sentido de que o prazo de prescrição do direito de crédito de regresso da recorrente se iniciou em relação a cada uma das pessoas que indemnizou no momento em que cada uma foi indemnizada.”; vide, também, Acórdão do mesmo Tribunal Superior, de 03/07/2018, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Pinto de Almeida, no Processo n.º 2445/16.5T8LRA-A.C1.S1: “E tal autonomização ou diferenciação, operada funcionalmente em razão da natureza dos bens lesados, poderá tornar razoável uma consequencial autonomização do início dos prazos de prescrição do direito de regresso: assim, por exemplo, não vemos razão bastante para que, - tendo a seguradora assumido inteiramente perante o lesado o ressarcimento de todos os danos decorrentes da destruição e privação do uso da viatura sinistrada – possa diferir o exercício do direito de regresso quanto a essa parcela autonomizável e integralmente satisfeita da indemnização apenas pela circunstância de, tendo o acidente provocado também lesões físicas determinantes de graves sequelas, ainda não inteiramente avaliadas e consolidadas, estar pendente o apuramento e a liquidação da indemnização pelos danos exclusivamente ligados à violação de bens da personalidade do lesado.”.
IV.1. No que refere a uma parte dos pagamentos, o Tribunal a quo decidiu: “E quanto a estes danos, todos indemnizados pela autora no ano de 2014, a lesados distintos, mas sem relação com os danos reparados em momento posterior, que são apenas relativos ao proprietário e condutor de outro veículo (o veículo com a matrícula ...-FG-...), e aderindo à jurisprudência supra referida, porque se trataram de danos autonomizáveis, que corresponderam a núcleos indemnizatórios autónomos e bem diferenciados, relativamente aos restantes valores, consideramos que o direito de regresso da autora em relação ao réu se encontra prescrito. Procede, assim, a defesa por excepção do réu, e em consequência, pelo menos nesta parte, o réu tem de ser absolvido do pedido.”.
IV.2. Quanto aos outros pagamentos efectuados pela A./recorrida, são independentes, autónomos e juridicamente diferenciados, quer por que se trata de lesados/credores diferentes (o proprietário do veículo, o hospital, a seguradora de acidentes do trabalho W... e o condutor do veículo), quer porque se tratam de danos diversos (patrimoniais e não patrimoniais), logo, a data da prescrição começou a correr no dia em que cada pagamento foi efectuado, à luz do disposto no art. 498º, n.º 2, do C. Civil, sendo que, por outro lado, nada justifica o facto de a A./recorrida ter demorado quase três anos sobre o último pagamento (ocorrido a 25/11/2016) e mais de cinco anos sobre o acidente e sobre o primeiro pagamento efectuado (em, respectivamente, 05/08/2014 e 03/09/2014), para iniciar a presente acção de regresso.
IV.3. Mais, o próprio funcionário ou colaborador da A./recorrente “há mais de 50 anos” (cfr. acta de audiência e discussão em julgamento de 03/09/2021), a testemunha BB, é peremptória quando afirma: “Portanto, se nós resolvemos um problema de um carro com o Senhor Fulano, pagamos. Pronto. Depois, se resolvermos com o Senhor Fulano, pagamos. Não são datas, não é tudo igual, não é tudo igual.”.
IV.4. Nos termos do disposto no art. 304º, n.º 1, do C. Civil, “Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.”, o que o D./recorrente fez e demonstrou na presente acção, devendo também ser absolvido da parte restante do pedido, que ascende a €7.273,83, objecto do presente recurso.
V - Determina o art. 342º, n.º 1, do C. Civil: “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.” e mais estabelece o art. 393º, n.º 1, sob a epígrafe “Inadmissibilidade da prova testemunhal ”, ex vi do art. 395º, ambos do C. Civil: “Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.”.
V.1. Tratando-se de pagamentos efectuados na sequência e com base na factura de uma unidade de saúde, numa convenção de regularização de sinistros e num aviso de pagamento com outra seguradora, podia e devia a A./recorrida ter junto aos autos, como o fez com outros pagamentos, os comprovativos do seu pagamento, através de transferência bancária, de cheque ou do competente recibo de pagamento ou quitação; o que a A./recorrida não fez.
V.2. Foi feita uma errada valoração da prova, pois o depoimento da testemunha BB não é admissível, devendo ser dados como não provados os factos sob 24), 28) e 29, nos termos conjugados do disposto nos arts. 342º, n.º 1, e 393º, n.º 1, ex vi do art. 395º, todos do C. Civil, e no art. 607º, n.º 4, do CPC.
V.3. Sem prescindir, Meritíssima Julgadora a quo fez uma incorrecta apreciação e valoração do dito depoimento que apenas e somente se funda num “print” onde consta dados que não correspondem à verdade, sendo que, em confronto com toda a prova documental junta aos autos, ou à falta dela, os factos sob 24), 28) e 29) devem ser dados como não provados, por não ter sido feita a prova do pagamento.
V.4. Requerendo-se, em conformidade, a V. Exas. se dignem alterar a decisão sobre a matéria de facto, dando como não provados os factos supramencionados, nos termos do disposto no art. 662º, n.º 1, do CPC.
VI - A douta sentença impugnada, não só fez uma incorrecta apreciação da prova, como não integrou a ponderação das suas consequências, na aplicação à concreta situação de facto sub judice, pois, constatando-se a prescrição do direito de regresso da A./recorrida, deveria ter absolvido o D./recorrente, o que fez, em parte, solução que, além de contemplada na lei, é a mais justa, no confronto entre uma grande grupo e um simples particular, e a que maior satisfaz a certeza e a segurança das relações jurídicas.
Com base nos documentos juntos aos autos, verifica-se que o direito de regresso da A. prescreveu no que concerne a todos os pagamentos efectuados, pois, por um lado, à data da instauração da presente acção em 18/11/2019, já tinha decorrido mais de 3 anos sobre grande parte dos pagamentos parcelares e autónomos efectuados, e, por outro, mesmo a considerar o último pagamento de 25/11/2016, não ocorreu a interrupção da prescrição prevista no art. 323º, n.º 2, do CPC, e logo mostra-se prescrito o direito de regresso da A. quanto a esse último pagamento e a todos os pagamentos antes efectuados.
Deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo a decisão revogada e substituída por outra que determine que o direito de regresso da A. em relação aos pagamentos efectuados e provados mostra-se prescrito, absolvendo o D. da totalidade do pedido, e não só de um parte, assim se fazendo Justiça!
A autora respondeu às alegações de recurso do réu defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
1. Se a decisão recorrida é nula.
2. Se a matéria de facto deve ser ampliada e/ou modificada a decisão respectiva.
3. Se o prazo de prescrição do direito da autora se interrompeu, ao abrigo do n.º 1 do artigo 323.º do Código de Processo Civil.
4. Na afirmativa se nos diversos pagamentos feitos pela autora é possível separar e distinguir alguns, cujo prazo de prescrição se conte somente a partir do último pagamento parcelar efectuado pela autora.
III. Os factos:
Ficaram provados os seguintes factos:
1) Em 28 de Julho de 2013, no exercício da sua actividade, a autora celebrou um contrato de seguro automóvel com o réu, a que corresponde a apólice n.º ....., relativo ao veículo automóvel com a matrícula ...-...-VV.
2) Aquando da celebração do contrato de seguro referido em 1), a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do veículo com a matrícula ...-...-VV, foi transferida para a esfera jurídica da atora, sendo que ficaram ainda seguros, para além do mais, o «choque. colisão e capotamento» do veículo seguro por um capital de €5.750,00 com uma franquia de €350,00.
3) No dia 5 de Agosto de 2014, pelas 06h40, ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional ... (EN..), mais concretamente ao km 11,25, no concelho ..., distrito ....
4) Neste acidente foram intervenientes, além do veículo seguro com a matrícula ...-...-VV, propriedade e conduzido pelo ora réu, o veículo de matrícula ...-FG-..., propriedade de M... S.A. e conduzido por CC, o veículo de matrícula ...-BU-..., propriedade de DD e conduzido por EE, e ainda o veículo de matrícula ...-...-UP, propriedade de A..., Lda. e conduzido por FF.
5) A faixa de rodagem no local do acidente caracteriza-se por ser uma recta, com duas vias de circulação, uma para cada sentido, separadas por uma linha longitudinal descontínua demarcada no pavimento.
6) A velocidade máxima permitida no local do acidente é de 50 km/h, uma vez que se trata de uma localidade.
7) A EN.., no local onde se deu o acidente, apresenta boa visibilidade, na medida em que é possível avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura, numa extensão de, pelo menos, 50 metros.
8) Ao km 11,25 da EN.. existe um semáforo.
9) Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, os veículos de matrícula ...-...-UP, ...-BU-... e ...-FG-... encontravam-se imobilizados no sinal luminoso vermelho, no sentido .../....
10) O veículo com a matrícula ...-...-UP encontrava-se junto ao sinal luminoso, tendo à sua retaguarda o veículo com a matrícula ...-BU-..., o qual precedia o veículo com a matrícula ...-FG-....
11) Sucede que, subitamente e sem que nada o fizesse prever, o condutor do veículo com a matrícula ...-FG-... foi surpreendido pelo embate na traseira do veículo por si conduzido do veículo com a matrícula ...-...-VV.
12) O réu conduzia o veículo seguro ...-...-VV na EN.. e ao aproximar-se dos veículos tal como referido em 10) e do semáforo ali existente, embateu com a parte frontal do veículo que conduzia na parte traseira do veículo com a matrícula ...-FG-... que, atenta a força do embate, foi projectado contra a traseira do veículo com a matrícula ...-BU-..., que, por sua vez, foi projectado contra a traseira do veículo com a matrícula ...-...-UP.
13) No local, após o acidente referido em 3) a 13) inexistiam rastos de travagem.
14) Nas circunstâncias referidas em 3) a 13), o réu conduzia o veículo com a matrícula ...-...-VV com uma taxa de álcool no sangue de 1,47 g/l.
15) Em resultado do acidente dos presentes autos, veículo seguro com a matrícula ...-...-VV sofreu danos cujo valor da reparação era superior ao valor venal do veículo, pelo que, foi considerado perda total.
16) A autora assumiu o valor correspondente à indemnização pela perda total do veículo seguro com a matrícula ...-...-VV, no total de €4.390,00.
17) A autora procedeu ao pagamento ao réu do valor de €4.375,00 em 03.09.2014.
8) Uma vez que o veículo com a matrícula ...-...-VV ficou impossibilidade de circular, a autora procedeu ainda ao pagamento do valor despendido com o aluguer do veículo de substituição, no total de €514,88, em 25.09.2014
19) Relativamente ao veículo com a matrícula ...-FG-..., o mesmo foi igualmente considerado como perda total e a autora assumiu o valor correspondente à indemnização pela perda total do veículo com a matrícula ...-FG-..., no total de €5.072,00.
20) A autora procedeu ao pagamento do valor de €5.072,00 (cinco mil e setenta e dois euros), à proprietária do veículo com a matrícula ...-FG-..., em 01.10.2014.
21) Como o veículo com a matrícula ...-FG-... ficou impossibilitado de circular, a autora acordou com a proprietária do mesmo o pagamento de uma indemnização no valor de €1.528,10, a título de paralisação.
22) A Autora procedeu ao pagamento do valor de €1.528,00 à proprietária do veículo com a matrícula ...-FG-... em 08.10.2014.
23) Em consequência do acidente, o condutor do veículo com a matrícula ...-FG-... sofreu diversas lesões, tendo sido transportado para o Hospital, nomeadamente, para a Unidade Local de Saúde ....
24) A Autora assumiu o pagamento da factura hospitalar no valor de €106,91, que efectuou em 25.09.2014.
25) Para o condutor do veículo com a matrícula ...-FG-..., o acidente de viação descrito em 3) a 13) foi também um acidente de trabalho.
26) A S..., S.A. (anteriormente designada por W...) na qualidade de seguradora de acidentes de trabalho, regularizou os danos decorrentes desse acidente de trabalho.
27) Posteriormente, S..., S.A. no âmbito da CRS, solicitou à autora, o montante despendido com os danos decorrentes do acidente de trabalho.
28) Nessa sequência, a autora procedeu ao pagamento à S..., S.A. do montante de €3.446,98, em 17.11.2016.
29) A Autora procedeu ainda ao reembolso de diversas despesas médicas e medicamentosas à S..., S.A., no valor total de €.2.619,94 em 01.10.2015.
30) O condutor do veículo com a matrícula ...-FG-... propôs uma acção judicial contra a aqui Autora para ser indemnizado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência do acidente dos autos, a qual correu termos no Tribunal da Comarca do Porto – Instância Local – Secção Cível, sob o n.º 1297/16.0T8PVZ.
31) Na acção supra identificada em 30), a aqui autora e o condutor do veículo com a matrícula ...-FG-... juntaram uma transacção aos autos, nos termos da qual a ora autora comprometeu-se a pagar ao referido condutor o montante de €4.500,00.
32) Por via da referida transacção, a autora indemnizou o condutor do veículo com a matrícula ...-FG-..., no valor total de €4.500,00, em 25.11.2016.
33) Ainda na sequência do acidente, a autora procedeu ao pagamento, no âmbito da CRS, do montante de €2.155,70 à K..., para reparação dos danos no veículo com a matrícula ...-BU-..., em 28.10.2014.
34) A Autora pagou ainda aos Bombeiros Voluntários ... o montante de €349,80 (trezentos e quarenta e nove euros e oitenta cêntimos), referente a despesas com a limpeza da via onde ocorreu o sinistro, em 12.09.2014.
35) A presente acção deu entrada no Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim, no dia 18.11.2019, às 17.29 horas e foi distribuída no dia 19.11.2019.
36) Por despacho de 20.11.2019, o tribunal ordenou a notificação da autora para, querendo se pronunciar sobre incompetência territorial do Tribunal, ao que a autora respondeu a 25.11.2019, requerendo a remessa dos autos para o Juízo Local Cível de Vila do Conde e por despacho de 28.11.2019, o Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim declarou-se territorialmente incompetente ordenou que os autos fossem remetidos ao Juízo Local Cível de Vila do Conde.
37) Em 17.01.2020, foi enviada carta de citação ao réu, para a morada constante da petição inicial e do contrato de seguro, a qual veio devolvida por «objecto não reclamado».
38) Depois de feitas pesquisas nas bases de dados, nos termos do art. 236.º do Código de Processo Civil, conforme ordenado em despacho de 24.02.2020, em 27.02.2020 foi enviada nova carta de citação ao réu, a qual veio igualmente devolvida por «objecto não reclamado».
39) No dia 04.07.2020, foi afixada nota de citação do réu.
IV. O mérito dos recursos: 1. Da nulidade da sentença (recurso do réu):
O réu sustenta que a sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia uma vez que o tribunal decidiu se a razão pela qual a citação não ocorreu nos cinco dias posteriores à instauração da acção não é imputável à autora, não tendo essa questão sido suscitada pela autora.
Salvo melhor opinião, o réu não tem razão.
O artigo 304.º do Código Civil estabelece que uma vez “completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito”. A prescrição é, portanto, uma excepção que permite ao devedor impedir o exercício do direito de crédito pelo credor (cf. Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Volume II, 9.ª Edição). A prescrição não extingue o direito de crédito, apenas permite ao devedor recusar o seu cumprimento.
A prescrição é, por isso mesmo, uma excepção. Quem tem o ónus de a arguir para dela poder beneficiar é o demandado que pretenda opor-se ao exercício do direito de crédito do demandante. Logo quem tem o ónus de alegar e fazer a prova de todos os factos necessários para o tribunal poder concluir que o direito prescreveu é o excepcionante. Uma vez arguida a prescrição pelo demandado, o tribunal passa a poder conhecer dessa excepção, julgando-a verificada ou não.
As causas de suspensão e de interrupção da prescrição são factos novos em relação aos factos destinados ao preenchimento desta excepção e, por isso, podem efectivamente assumir a natureza de excepção à excepção, cabendo então ao demandanteexcepcionado o ónus de arguir esses factos para afastar a excepção da prescrição arguida pelo demandado (assim, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-3-2010, proc. n.º 1472/04.OTVPRT-C.S1, in www.dgsi.pt).
Todavia, entre os factos que são de conhecimento oficioso do tribunal encontram-se aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (artigo 5.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil). Se o tribunal pode conhecer oficiosamente desses factos, onde se incluem, por maioria de razão, os factos processuais ocorridos no próprio processo, há-de evidentemente poder proceder à qualificação jurídica desses factos e retirar consequências jurídicas dos mesmos para efeitos das questões de que lhe é consentido conhecer, designadamente da questão da prescrição quando esta haja sido arguida.
A interrupção da prescrição pela citação e o momento em que se deve considerar verificada essa interrupção, em regra, são questões que dependem exclusivamente de factos processuais ocorridos no seio do próprio processo onde a prescrição é arguida e por isso podem ser conhecidas pelo tribunal com fundamento nos factos que são do seu conhecimento oficioso.
Quando para verificar a existência de alguma causa de suspensão ou interrupção da prescrição for necessário usar factos que extravasem o âmbito do processo e da respectiva tramitação (v.g. factos destinados a demonstrar que por outras razões o atraso na citação não é imputável ao requerente ou que ocorreu o reconhecimento do direito), então sim, é necessário que o demandante, confrontado com a invocação da prescrição e pretendendo demonstrar que o respectivo prazo se suspendeu ou interrompeu, alegue esses factos para o tribunal poder conhecer deles e pronunciar-se sobre a causa de suspensão ou interrupção do prazo arguida por essa via.
Entendemos, pois, que o tribunal a quo podia efectivamente avaliar as circunstâncias em que a citação do réu teve lugar e pronunciar-se sobre se a prescrição se interrompeu uma vez decorridos os cinco dias posteriores à instauração da acção, usando para esse efeito, estritamente, os factos processuais praticados na acção, como fez. Nessa medida, o tribunal não conheceu de questão que lhe estivesse vedado conhecer e não incorreu na nulidade arguida pelo réu. 2- Da fundamentação de facto da sentença (recurso do réu):
O recorrente pede no recurso que sejam julgados provados vários factos, sustentando que «deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto nos artigos 662.º, n.º 1, … do Código de Processo Civil …».
Nesta redacção está subentendido tratar-se de uma impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Essa impugnação ocorre quando o tribunal a quo julgou provado ou não provado um determinado facto e o recorrente pretende a modificação dessa decisão. Coisa diferente é a ampliação da matéria de facto. A ampliação é a figura processual aplicável quando o tribunal a quo não proferiu decisão sobre um determinado facto que o recorrente entende que é necessário para o conhecimento do mérito da causa e por isso pretende que seja proferida (a primeira) decisão sobre o mesmo. A diferença é que no primeiro caso o que se pretende é a alteração da decisãoproferida, no segundo que seja proferida a decisão que ainda não existe no processo.
As duas situações têm regimes processuais distintos. Na impugnação da decisão sobre a matéria de facto cabe ao tribunal de recurso reapreciar a prova, formar a sua própria convicção e decidir se o julgamento da primeira instância deve ser mantido ou alterado (n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil). Na ampliação da matéria de facto o tribunal de recurso deve pronunciar-se sobre o relevo dos novos factos para a apreciação das questões a decidir e, reconhecendo a respectiva importância, deve anular a decisão proferida na 1.ª instância e determinar a reabertura da audiência para nessa instância esses factos serem julgados (n.º 2, alínea c), última parte, e n.º 3, alínea b) do artigo 662.º do Código de Processo Civil).
No caso, afigura-se-nos que não é necessário chegar a esse desfecho.
Com efeito, os factos que o recorrente pretende que sejam aditados à matéria de facto (ampliando-a) são puros factos processuais, atinentes à tramitação do próprio processo que, como já vimos, podem ser conhecidos oficiosamente.
Acresce que essa tramitação já consta, em grande parte, dos pontos 35 a 39, pelo que nada obsta a que sem modificar a matéria de facto, esta Relação possa a seguir apreciar a questão da interrupção da prescrição levando em conta se necessário as especificidades desses actos que o recorrente assinala. Como assim e sem prejuízo dessa possibilidade desatende-se a pretensão da ampliação da matéria de facto.
Noutras conclusões das suas alegações o recorrente já impugna verdadeiramente a decisão sobre a matéria de facto, reclamando que sejam julgados não provados os factos dos pontos 24, 28 e 29 que o tribunal a quo julgou provados.
Uma vez que se mostram cumpridos os requisitos específicos dessa impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obsta ao conhecimento da mesma.
São dois os fundamentos apresentados para justificar a alteração pretendida: por um lado, a inadmissibilidade da prova desses factos por testemunhas; por outro lado, a insuficiência do depoimento da testemunha que motivou a decisão do tribunal.
O primeiro fundamento é, a nosso ver, improcedente.
Os factos em questão são relativos a pagamentos que a autora alegou ter feito de uma despesa hospitalar e de despesas apresentadas por outra seguradora. Ora, não existe norma legal, razão pela qual o recorrente não a cita, e não foi invocada convenção das partes que impusesse que o pagamento de uma obrigação pecuniária e mais concretamente estes pagamentos devesse obedecer a qualquer forma específica ou solene.
Não pode, cremos confundir-se as exigências de natureza tributária e contabilística, designadamente a necessidade de as sociedades credores emitirem facturas para titular os seus créditos e recibos para comprovar os pagamentos desses créditos, com a exigência cível de que os negócios jurídicos que estão na origem desses créditos sejam formalizados por escrito ou provados por escrito.
A previsão do artigo 393.º do Código Civil, segundo o qual se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal, reporta-se a esta última hipótese, isto é, aos casos em que existe uma disposição legal ou convenção das partes a impor que a declaração negocial seja reduzida a escrito ou provada por escrito (a que depois o artigo 395.º acrescenta os factos extintivos da obrigação e os contratos extintivos da relação obrigacional decorrente dessas declarações negociais).
Que saibamos inexiste norma legal que imponha aos hospitais que apenas se disponham a prestar assistência hospitalar mediante contratos escritos ou aos lesados (ou credores a outro título do reembolso) que apenas reclamem por escrito do lesante indemnização por despesas hospitalares com o tratamento das lesões. Por isso, uma vez que o disposto no artigo 393.º do Código Civil não se aplicava ao caso em apreço, a prova testemunhal foi validamente admitida para demonstração dos factos em causa.
No que concerne à suficiência ou insuficiência dos meios de prova e mais especificamente da prova testemunhal, recordemos a motivação da decisão sobre os pontos em causa:
«… o tribunal formou a sua convicção … valorando a prova documental junta aos autos, nomeadamente … o relatório do salvado de fls. 16 e 16v, cartas de fls.17, 17v, 27v e 28, facturas e recibos de fls. 18, 29v, 31, 34, 34v e 67, relatório de perda total de fls. 18v a 27, acordo de fls. 28v, certificado de matricula de fls. 9, convenção de regularização de sinistros de fls. 26 e 32v, … transacção do processo n.º 1297/16.0T8PVZ de fls. 31v e 32, emails de fls. 33 e 33v, resumo de fls. 67v e 68, comprovativo de transferência bancária de fls. 68v, relação de pagamentos de fls. 69 a 75 e 76v a 77, cópias de cheques de fls. 75v, 76, 78 e 78v, carta de citação do processo n.º 1297/16.0T8PVZ de fls.95 a 102v e p resumo de fls. 128 dos autos, em conjugação com os depoimentos de … e BB (funcionário da Autora). […] No que concerne aos danos e respectiva indemnização pela Autora – factos provados em 15) a 34) – valorou-se, em primeiro lugar, a posição assumida pelo Réu que aceita os danos e a sua indemnização. O Réu, na ausência de alegação pela Autora, na petição inicial, da data em que pagou as indemnizações, aceitou as datas que constavam dos documentos, sendo que se valorou tal posição assumida pelo Réu, depois conjugada com os documentos juntos (cheques, transferências e resumo de fls. 128) dando como provadas as datas que se pode aferir de tais documentos. […] Os factos provados em 24) e 34) resultam dos documentos juntos a fls. 29v, 34v, 77, 78v e 128, em conjugação com o depoimento de BB. Já quanto aos danos sofridos por CC (factos provados em 25) a 29)), condutor do veículo com a matrícula ...-FG-..., valoramos conjuntamente os depoimentos de CC e BB, em conjugação com os documentos juntos. A testemunha CC confirmou que ia trabalhar, tendo sido corroborado por GG que disse que tinha um funcionário que teve um acidente de trabalho. Logo, considerando tais depoimentos, não nos restam quaisquer dúvidas de que se tratou de um acidente de trabalho e considerando isso com os documentos juntos a fls. 29v a 31, 77 e 128, demos como provado que a aqui Autora indemnizou a S... que era a seguradora de acidentes de trabalho e por esta ter reparado CC, pois este confirmou que recebeu todas as indemnizações. As datas dadas como provadas são as que foi possível apurar dos documentos juntos (facturas, recibos e resumo).»
Como se vê desta motivação, o depoimento de BB, funcionário da autora, não foi o único meio de prova levado em conta pelo tribunal para proferir decisão sobre os factos em causa, razão pela qual improcede sem mais a tese da autora deque este depoimento é insuficiente para a prova desses factos: o próprio tribunal a quo não lhe atribui essa suficiência já que o levou em conta em simultâneo com outros meios de prova.
No que concerne aos documentos juntos aos autos, sendo embora certo que os mesmos não eliminam todas as dúvidas porque isso apenas sucederia se estivessem juntos comprovativos dos meios de pagamento usados para efectuar os pagamentos em causa, mesmo levando em conta as hesitações da testemunha BB que naturalmente só tem em seu poder um print dos serviços financeiros da autora que não lhe permite saber tudo quanto era necessário para explicar os dados, atenta a dimensão da autora, o volume de pagamentos que esta faz regularmente a título de ressarcimento de danos cobertos pelos seguros, a complexidade logística e administrativa da guarda e conservação de todos os documentos e a verosimilhança e probabilidade de os pagamentos terem ocorrido atenta a inexistência de conflito sobre a responsabilidade e a natureza das entidades credoras (um hospital e a seguradora de acidentes de trabalho), consideramos tais documentos como suficientes para a prova dos factos cuja decisão vem impugnada, sendo certo que a prova em juízo não reclama uma certeza absoluta, mas somente um grau de segurança e de probabilidade próprio das regras da vida e da experiência.
Nessa medida, decide-se manter a fundamentação de facto da sentença recorrida. 3. Da prescrição do direito da autora (recurso do réu):
A autora pretende exercer o direito de regresso que lhe é atribuído pelo n.º 1, alínea c), do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, segundo o qual uma vez «satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos».
O réu opôs a esta pretensão a prescrição do direito de crédito da autora fundado naquela norma.
No recurso não se discute nem o preenchimento da previsão da norma (que o réu deu causa ao acidente gerador dos danos indemnizados pela sua seguradora e que nessa ocasião conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida) nem que o direito da autora se encontra sujeito ao prezo de prescrição de três anos consagrado no artigo 498.º, n.º 2, do Código Civil, nos termos do qual o direito de regresso entre os responsáveis prescreve no prazo de três anos, a contar do cumprimento.
A questão que vem colocada a esse respeito e que já se discutiu em 1.ª instância consiste em saber em que data se deve considerar interrompido o prazo de prescrição. Com efeito, a definição do momento em que a interrupção teve lugar é determinante para determinar se o direito se encontra ou não prescrito, podendo depois discutir-se se só parte dele se encontra prescrito.
A tese sustentada pela autora consiste em contar aquele prazo apenas a partir da data em que foi efectuado o último dos pagamentos parcelares que perfazem o montante que ela pretende obter do réu por via do direito de regresso.
Nos termos do artigo 323.º, n.º 1, do Código Civil, a prescrição interrompe-se pela citação do devedor na acção na qual se manifesta a intenção de exercer o direito. Como o último pagamento foi realizado em 25.11.2016 e a citação do réu só teve lugar em 04.07.2020, datas separadas entre si por mais de três anos, em princípio quando a citação foi efectuada o direito da autora estaria já prescrito, consequência que se reflectiria sobre a totalidade dos valores indemnizatórios que a mesma suportou.
Não será assim se por outra razão se dever considerar interrompida a prescrição em data anterior à da concretização da citação, de modo que se essa interrupção tiver ocorrido até ao dia 25.11.2019 (último dia dos 3 anos) haverá que concluir que o direito não prescreveu, podendo depois discutir-se se essa consequência jurídica abrange todos os pagamentos parcelares (mesmo os realizados mais de três anos antes), apenas alguns deles (e agrupados segundo que critério) ou mesmo somente o último deles, único relativamente ao qual ainda não tinham passado três anos sobre o cumprimento (stricto sensu).
Assume, pois, inteira relevância discutir no caso a aplicação do disposto no artigo 323.º, n.º 2, do Código Civil que estabelece o seguinte: «Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias».
Como vimos, em princípio a prescrição apenas se interrompe com a concretização da citação. Resulta desta norma que a mera instauração da acção, exprimindo embora a intenção do credor de exercer o direito, não faz interromper a prescrição. Para esse efeito, é ainda necessário que o devedor tome conhecimento dessa intenção através da sua citação para a acção.
O instituto da prescrição prende-se com razões de certeza e de segurança nas relações jurídicas, mas visa igualmente proteger os devedores das dificuldades de prova resultantes do decurso do tempo e exercer pressão sobre o titular do direito para que não descure o seu exercício (cf. Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1987, pág. 445-446; Meneses Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, pág. 159-162; Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 1983, págs. 373-374 e Vaz Serra, in Prescrição e Caducidade, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 107, pág. 285). Através dele procura-se dar resposta à preocupação da estabilização das situações jurídicas, de modo a dar às pessoas a segurança e a paz de saberem com antecedência o conteúdo da respectiva esfera jurídica, dando-lhes a oportunidade de fazerem a suas opções de vida, sabendo de antemão quais os direitos que possuem e quais as vinculações jurídicas a que estão sujeitas.
Ana Filipa Morais Antunes, in Estudos de Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, vol. III, página 39, escreveu que a «prescrição justifica-se em homenagem ao valor da segurança jurídica e da certeza do direito, mas, também, em nome do interesse particular do devedor, funcionando como reacção à inércia do titular do direito, fundada num imperativo de justiça (.). Na verdade, a prescrição é um instituto que se funda em interesses multifacetados. Não existe, pois, uma só razão justificativa do instituto, nem tão-pouco consensos ao nível doutrinário (.). Os seus principais fundamentos são: i) a probabilidade de ter sido feito o pagamento; ii) a presunção de renúncia do credor; iii) a sanção da negligência do credor; iv) a consolidação de situações de facto; v) a protecção do devedor contra a dificuldade de prova do pagamento; vi) a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos; vii) o imperativo de sanear a vida jurídica de direitos praticamente caducos; viii) a exigência de promover o exercício oportuno dos direitos.»
Para Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 5.ª Edição, Almedina, página 380, «a prescrição é um efeito jurídico da inércia prolongada do titular do direito no seu exercício, e traduz-se em o direito prescrito sofrer na sua eficácia um enfraquecimento consistente em a pessoa vinculada poder recusar o cumprimento ou a conduta a que esteja adstrita. Se o credor, ou o titular do direito, deixar de o exercer durante certo tempo, fixado na lei, o devedor, ou a pessoa vinculada, pode recusar o cumprimento, invocando a prescrição.»
O fundamento da prescrição radica na negligência que o credor revela ao não exercer o seu direito durante o período de tempo em que seria legítimo esperar que ele o exercesse, se nisso estivesse interessado.
O prazo de prescrição está sujeito a causas de suspensão e de interrupção. Ao estabelecer que a prescrição se interrompe apenas com a citação e já não com a instauração da acção, o artigo 323.º do Código Civil confronta o credor com uma circunstância que ele não pode controlar: a oportunidade da realização da citação. Em condições normais, instaurada a acção, seguir-se-á a breve trecho a citação. Todavia, tal pode não suceder porque a máquina judiciária não funcionou com a diligência que era devida, porque o modo como está organizada a forma de processo conduz a que a citação apenas deva ser realizada após a prática de actos que o credor não controla ou por diversas outras razões.
Ora se a prescrição tem como motivação genética a inércia do credor, responsabilizando-o por uma omissão que ele tinha perfeitas condições para evitar, não parece compatibilizar-se com esse juízo o decurso de tempo imputável à máquina judiciária ou às regras processuais. Por outras palavras, não parece justo que a protecção do devedor vá ao tempo de fazer com que o credor suporte o prejuízo de uma demora a que é inteiramente estranho (cf. Dias Marques, in Prescrição Extintiva, p. 148, apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.03.2010, Serra Baptista, in www.dgsi.pt).
Para resolver este dilema, a norma estabelece que se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, a prescrição tem-se por interrompida logo que decorram os cinco dias. Esta solução tem como razão de ser evitar que recaia sobre o credor, ainda que o mesmo tenha, diligentemente, instaurado a acção a tempo de a citação se fazer antes de se completar o prazo prescricional, o risco de isso não suceder por questões que lhe sejam totalmente alheias, não devidas a culpa sua.
Para que a interrupção da prescrição ocorra ao abrigo do n.º 2 do artigo 323.º do Código Civil é necessário, em primeiro lugar, que o prazo prescricional ainda não esteja esgotado nem se esgote nos cinco dias posteriores à instauração da acção, depois que a citação não tenha sido realizada nesses cinco dias; a seguir que o facto de a citação não ter sido realizada nesses cinco dias não seja imputável ao credor, e finalmente que a citação venha a ser realizada (o preceito só ficciona que a mesma teve lugar em data anterior, não que ela teve lugar).
No caso concreto, discute-se se a não realização da citação nos cinco dias posteriores à instauração da acção se deveu ou não a causa imputável à autora.
Olhando apenas para a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e tomando por referência os Acórdãos que mais proximamente se pronunciaram sobre esta questão, encontramos na base de dados do Ministério da Justiça, no sitio www.dgsi.pt, a seguinte posição manifestada de forma reiterada e praticamente consensual:
- Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03-07-2018, proc. n.º 1965/13.8TBCLD-A.C1.S1, e de 02-04-2019, proc. n.º 1772/06.4TVLSB.L2.S1, onde se escreveu: «O que se mostra relevante para a (des)aplicação do apontado regime legal é que tenha havido por banda do requerente uma manifesta e objectiva infracção das regras processuais aplicáveis, cf. Acórdão STJ de 4 de Novembro de 1992 (Relator Dias Simão) e de 5 de Julho de 2018 deste mesmo Colectivo, in www.dgsi.pt.»
- Acórdão Supremo Tribunal de Justiça 24-01-2019, proc. n.º 524/13.0TBTND-A.C1.S1, depois acompanhado no Acórdão de 11-07-2019, proc. n.º 1406/16.9T8ACB-A.C1.S1, onde se afirma a propósito do n.º 2 do artigo 323.º do Código Civil: «Trata-se de uma ficção legal, que funciona como uma verdadeira excepção ao mecanismo da interrupção da prescrição por via da citação ou notificação judicial e que tem a sua razão de ser na necessidade de proteger o titular do direito, quando este requereu antecipadamente a citação (ou a notificação) judicial do devedor, e esta se atrasou sem culpa sua [6]. O efeito interruptivo da prescrição, estabelecido no nº 2 do citado art. 323º, pressupõe, assim, a concorrência de três requisitos: i) que o prazo prescricional ainda esteja a decorrer e assim se mantenha nos cinco dias posteriores à instauração da acção; ii) que a citação não tenha sido realizada nesse prazo de cinco dias; iii) que o retardamento da citação não seja imputável ao requerente [7]. E sobre a interpretação a dar à expressão «por causa não imputável ao requerente», é jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que esta expressão legal deve ser interpretada em termos de causalidade objectiva, ou seja, a conduta do requerente só exclui a interrupção da prescrição quando tenha violado objectivamente a lei em qualquer termo processual até à efectivação da citação [8]. Nas palavras do Acórdão do STJ, de 03.02.2011 (processo nº 1228/07.8TBAGH.L1.S1) [9], o que é essencial para a aplicação do regime da citação «ficta» em 5 dias é que a conduta do requerente não haja implicado qualquer violação culposa de normas procedimentais ou adjectivas, radicando nessa infracção objectiva – e só nela – a preclusão do benefício emergente do referido nº 2 do art. 323º. Assim, a demora será imputável ao requerente quando se demonstre existir um nexo objectivo de causalidade entre a conduta do requerente, posterior ao requerimento para a citação, e o resultado de a citação ter sido efectivada para além do quinto dia posterior à apresentação daquele [10]. Do mesmo modo, constitui entendimento pacífico na jurisprudência deste Supremo Tribunal que, quando a demora na citação resulta da desconjugação dos preceitos da lei de custas, de processo e de organização judiciária com as normas substantivas, o conflito deve solucionar-se no sentido da prevalência destas, sem que tal desconjugação possa imputar-se aos que requerem as citações [11]. E ainda que, sendo a acção proposta com a antecedência mínima de 5 dias em relação à consumação do prazo prescricional, nem necessita o autor de requerer a citação antecipada para poder aproveitar do artigo 323º, nº 2 do Código Civil [12], pois, como se afirma no citado Acórdão do STJ de 03.02.2011, o que «releva decisivamente na aplicação do dito regime legal é o eventual cometimento pelo autor de uma infracção a regras procedimentais a que estava vinculado e que tenham sido causais da demora na consumação do acto de citação – e não uma «omissão» de actos ou diligências aceleratórias – que, porventura a terem sido adoptadas, poderiam permitir um curso mais célere do processo na sua fase liminar mas que constituem uma faculdade e não um dever ou ónus do autor».
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2018, proc. n.º 5282/07.4TTLSB.L1.S1, que assinala: «A eficácia deste desvio depende da inexistência de causa imputável ao requerente na não efectivação da citação ou notificação. Esta cláusula geral utilizada pela lei «por causa não imputável ao requerente» tem sido densificada em diversos arestos do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que a conduta do requerente só exclui a interrupção da prescrição quando tenha infringido objectivamente a lei em qualquer termo processual e até à verificação da citação, devendo a referida expressão legal ser interpretada em termos de causalidade objectiva (Acórdão de 20-06-2012, proferido no processo n.º 347/10.8TTVNG.P1.S1; Acórdão de 20-10-2011, proferido no processo n.º 329/08.0TTLRA.C1.S1 e Acórdão de 29-11-2016, proferido no processo n.º 448/11.5TBSSB-A.E1.S1). Trata-se de um entendimento referenciado e assumido pela doutrina também de forma pacífica (cf. Nota de Júlio Gomes ao art.º 323.º do Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pág. 772).»
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-11-2016, proc. n.º 448/11.5TBSSB-A.E1.S1, que decide: «É entendimento pacífico na jurisprudência do STJ que a conduta do requerente só não exclui a interrupção da prescrição quando tenha infringido objectivamente a lei em qualquer termo processual até à verificação da citação, sendo que a expressão «causa não imputável ao requerente», usada no dito artigo, deve ser interpretada em termos de causalidade objectiva, só excluindo a interrupção da prescrição quando tenha infringido objectivamente a lei em qualquer termo processual até à verificação da citação (Acs. de 30-04-1996, de 14-05-2002) e ainda o de 03-02-2011 [1] em que expressamente se afirma “ora, por força do preceituado no art. 323º do CC, a prescrição interrompe-se pela citação na acção em que é formulada a pretensão indemnizatória – valendo, porém, inteiramente o regime de «citação ficta» consagrado no nº 2 de tal preceito legal: se a citação se não fizer dentro de 5 dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os 5 dias”. Como também se refere no acórdão de 2-10-07 [2] “o efeito interruptivo da prescrição, estabelecido no nº2 do referido preceito, pressupõe a concorrência de 3 requisitos: que o prazo prescricional ainda esteja a decorrer e assim se mantenha nos 5 dias posteriores à propositura da acção ;- que a citação não tenha sido realizada nesse prazo de 5 dias ;- que o retardamento na efectivação desse acto não seja imputável ao autor. E este benefício, assim concedido ao autor, exige necessariamente que o demandante não tenha adjectivamente contribuído para que a informação não chegasse ao demandado no sobredito prazo de 5 dias; caso contrário, isto é, se a demora lhe for imputável, a lei retira-lhe o ficcionado benefício e manda atender, sem mais, à data da efectiva prática do acto informativo – devendo interpretar-se aquela expressão legal – causa não imputável ao requerente – em termos de causalidade objectiva, ou seja, a conduta do requerente só exclui a interrupção da prescrição quando tenha infringido objectivamente a lei, em qualquer termo processual, até à verificação da citação”.»
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-01-2014, proc. n.º 8021/04.8YYLSB-A.L1.S1, que sustenta: «Tem-se entendido pacificamente que a citação efectivada depois de decorridos os cinco dias após a apresentação do respectivo requerimento pelo credor não é imputável a este quando tal se fique a dever a razões inerentes à orgânica e funcionamento do tribunal, ou a razões de natureza processual e ou referentes à parte contrária, mas já o sendo, quando se demonstre existir um nexo objectivo de causalidade entre o comportamento processual do requerente, após a apresentação do requerimento de citação, e o facto desta ter sido concretizada para além do 5.º dia após a apresentação daquele. E tal nexo verificar-se-á quando o credor (Autor /Exequente) viole normas legais; como se escreveu no Ac. deste STJ de 03-02-2011 (Revista n.º 1228/07.8TBAGH.L1.S1 - 7.ª Secção, Rel. Lopes do Rego), “deve interpretar-se a expressão legal «causa não imputável ao requerente» – em termos de causalidade objectiva, ou seja, de a conduta do requerente só excluir a interrupção da prescrição quando tenha infringido objectivamente a lei, em qualquer termo processual, até à verificação da citação”. O atraso na citação será, portanto, da responsabilidade do requerente sempre que ele não pratique ou pratique mal os actos processuais que lhe incumbe realizar entre o momento da apresentação do requerimento (nestes se incluindo também a correcta formalização do requerimento) e o da citação ou, dito de outro modo, sempre que esta não possa efectivar-se por aqueles motivos.»
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-02-2011, proc. n.º 1228/07.8TBAGH.L1.S1, depois citado regularmente noutros Acórdãos, que proclama «E este benefício, assim concedido ao autor , exige necessariamente que o demandante não tenha adjectivamente contribuído para que a informação não chegasse ao demandado no sobredito prazo de 5 dias; caso contrário, isto é, se a demora lhe for imputável, a lei retira-lhe o ficcionado benefício e manda atender, sem mais, à data da efectiva prática do acto informativo – devendo interpretar-se aquela expressão legal – causa não imputável ao requerente – em termos de causalidade objectiva, ou seja, a conduta do requerente só exclui a interrupção da prescrição quando tenha infringido objectivamente a lei, em qualquer termo processual, até à verificação da citação. Saliente-se ainda, por um lado, que a exigência, formulada expressamente pelo CC de que o autor tivesse «requerido» a citação do réu carece presentemente de sentido e alcance prático, face ao estabelecimento pela lei de processo de um regime de oficiosidade da citação, na generalidade dos casos cometida directamente à secretaria : daqui decorre que, mesmo que, porventura, o A. não tivesse introduzido na parte final da petição inicial o tradicional e tabelar pedido de citação do R., tal «omissão» em nada poderá afectar a aplicabilidade do regime previsto no nº2 do art. 323º, já que sempre competirá à secretaria judicial proceder à citação do R. nos termos do art. 234º do CPC, não podendo imputar-se a tal hipotética omissão a menor consequência processual ou atraso na normal realização do acto, perante a vigência da referida regra da oficiosidade. Consideramos, por outro lado que – proposta a acção com a antecedência mínima de 5 dias em relação à consumação do prazo prescricional – não pode extrair-se qualquer consequência desfavorável da circunstância de o A. não ter requerido que a citação «urgente» precedesse a distribuição, nos termos consentidos pelo art. 478º do CPC, ou de não ter, porventura, «acelerado» o andamento das diligências processuais a seu cargo, prescindindo, nomeadamente, dos prazos legalmente concedidos pela lei de processo para praticar qualquer acto ou diligência na fase liminar com que esteja onerado: o que é essencial para a aplicação, em seu benefício, do regime da citação «ficta» em 5 dias é que a sua conduta não haja implicado qualquer violação culposa de normas procedimentais ou adjectivas, radicando nessa infracção objectiva – e só nela – a preclusão do benefício emergente do referido nº 2 do art. 323º. Radica este entendimento, desde logo, em prementes necessidades de certeza e objectividade na aplicação prática do regime da citação «ficta», dificilmente conciliáveis com uma apreciação casuística do andamento de cada processo até ao acto de citação, de modo a realizar uma distinção, problemática e geradora de incerteza, entre os comportamentos do autor – todos eles processualmente lícitos – que lhe seriam ou não exigíveis, como forma de alcançar uma especial «aceleração» do processo, até se consumar o acto de citação. O que, deste modo, releva decisivamente na aplicação do dito regime legal é o eventual cometimento pelo autor de uma infracção a regras procedimentais a que estava vinculado e que tenham sido causais da demora na consumação do acto de citação – e não uma «omissão» de actos ou diligências aceleratórias - que, porventura, a terem sido adoptadas, poderiam permitir um curso mais célere do processo na sua fase liminar, mas que constituem uma faculdade e não um dever ou ónus do autor.»
Ora no caso defrontamo-nos com uma violação objectiva por parte da autora das normas adjectivas que devia ter levado em conta ao instaurar a acção para quele fosse, de seguida, tramitada judicialmente.
Com efeito, a acção foi instaurada pela autora em tribunal que não era o competente segundo as regras legais em vigor concernentes à divisão judicial do território. A acção foi instaurada no Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim quando o competente para preparar e julgar a acção era o Juízo Local Cível de Vila do Conde, conforme aquele veio a decidir, em conformidade, aliás, com a posição que logo a autora assumiu quando foi confrontada com a incompetência do tribunal onde a acção fora instaurada.
Quando propõe a acção, o autor deve determinar qual é o tribunal competente e instaurar a acção nesse tribunal uma vez que a competência do tribunal é um pressuposto indispensável para que este possa preparar e julgar a acção. A incompetência, quer absoluta, quer relativa, do tribunal é mesmo configurada como uma excepção dilatória, cuja consequência é impedir o tribunal de conhecer do mérito da causa e determinar a absolvição da instância ou a remessa dos autos para outro tribunal, o tribunal competente (artigos 576.º e 577.º do Código de Processo Civil).
A causa objectiva e real de a citação não ter sido feita nos cinco dias após a instauração da acção foi essa falha da autora, uma vez que o tribunal se apercebeu de imediato da sua incompetência e actuou processualmente no sentido de conhecer dessa excepção dilatória por forma a ulteriormente remeter o processo para o tribunal onde a respectiva tramitação regular, conducente à citação, só foi iniciada.
É certo que nos casos em que a incompetência (relativa) é do conhecimento oficioso, como aqui sucedia, a excepção pode ser suscitada e decidida até ao despacho saneador ou até ao primeiro despacho subsequente ao termo dos articulados (artigo 104.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), o que abre a possibilidade de mesmo numa acção instaurada num tribunal incompetente o tribunal iniciar a tramitação, proceder à citação do réu e este apresentar contestação.
Todavia, o momento processual fixado naquela norma é somente o limite à possibilidade de o tribunal conhecer oficiosamente da excepção, não equivale à fixação do momento em que ela (só) pode (deve) ser conhecida. A norma não impede o tribunal de conhecer da excepção logo no despacho inicial, recusando proceder a qualquer outro tramite processual, situação que se deve entender como a normal, a correcta, a expectável, precisamente porque os tribunais estão organizados por competências, estas encontram-se fixadas legalmente e devem ser observadas pelas partes aquando da instauração da acção e verificadas pelo tribunal nos casos em que o seu conhecimento oficioso é admitido ou a excepção foi arguida pela parte interessada.
Não há como deixar de concluir que a instauração da acção num tribunal incompetente não é o exercício de uma faculdade processual, é uma falha do autor que gera um vício. Daí que não se possa entender que não sendo o autor responsável pelo modo como a lei processual rege o conhecimento desse vício, é exclusivamente imputável à máquina judiciária e às leis do processo o momento em que o mesmo pode (deve) ser conhecido e o tempo que a decisão demorar, não podendo o autor ser prejudicado por essa tramitação que não pode controlar. O autor podia controlar a falha inicial e é ela que dá causa à não citação do réu nos cinco dias posteriores à instauração da acção.
Na decisão recorrida admite-se que a acção não deu entrada no tribunal competente, mas entende-se que não foi isso que impediu a realização da citação nos cinco dias seguintes, porque «mesmo que a acção tivesse dado entrada, logo, no Juízo Local Cível de Vila do Conde … e diligenciando a Secretaria, de imediato, pela citação do Réu na morada constante da petição inicial, … o Réu não seria citado, pois tinha alterado o seu domicilio … e porque mesmo quando a carta é enviada para o seu domicílio – carta de citação de 27.02.2020 – a mesma não foi levantada pelo Réu (veio devolvida com a informação de objecto não reclamado)».
Trata-se de um raciocínio que não podemos acompanhar porque substitui a causa real por uma causa virtual, o que naturalmente não pode ser feito porque no nosso sistema jurídico a tese dominante é a de que a relevância negativa da causa virtual é excepcional e não a regra, aplicando-se somente nas situações em que expressamente a lei a reflecte, v.g. os casos dos artigos 491.º, 492.º e 493.º do Código Civil (cf. Pereira Coelho, in O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, reimp., Almedina, Coimbra, 1998, página 87).
A citação não se fez nos cinco dias posteriores à instauração da acção porque, por falha da autora, a acção não foi instaurada no tribunal competente e como a incompetência era do conhecimento oficioso o tribunal procedeu de imediato à detecção da excepção dilatória correspondente e à tramitação da acção exclusivamente para conhecer e decidir a excepção.
Qualquer outra situação que se a acção tivesse sido instaurada no tribunal competente tudo indica que conduzisse igualmente ao resultado de a citação não vir a ser realizada naquele prazo de cinco dias, não passa, no caso concreto que nos ocupa, de uma causa virtual ou hipotética.
Refira-se que esta situação é perfeitamente equiparável àquelas a duas conhecidas em que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que a não citação do réu nos cinco dias posteriores à instauração da acção era imputável ao autor. Referimo-nos ao Acórdão já citado de 02-04-2019, em que aquela decisão foi aplicada a um caso em que o autor instaurou a acção, mas não juntou a procuração forense apesar de a acção ser de constituição obrigatória de advogado e foi notificado para a juntar, tendo, entretanto, decorrido o prazo de cinco dias. E ainda ao Acórdão de 28-10-2021, proc. n.º 15359/17.2T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, em que o mesmo foi decidido em relação a um caso em que o autor instaurou a acção pretendendo que a data da instauração correspondesse à data em que havia pedido a nomeação do patrono que a subscreve (i.e. que a interrupção da prescrição ocorresse nos cinco dias posteriores a essa data) mas juntou um pedido de apoio judiciário que não esclarece se a nomeação era para a instauração dessa concreta acção.
Em conclusão, tendo sido por culpa da autora que a citação não se fez no prazo de 5 dias subsequente à instauração da acção, não tem aplicação ao caso o disposto no artigo 323.º, n.º 2, do Código Civil, razão pela qual a prescrição do direito do autor não se interrompeu no dia 23-11-2019. E como a citação, necessária nesse contexto para a interrupção da prescrição, também não foi concretizada nos dias 24 e 25 seguintes, o direito da autora prescreveu no término do dia 25-11-2019, quando se completaram três anos sobre o último dos pagamentos efectuados pela autora e cujo reembolso reclama por via de regresso.
Nesses termos, a decisão recorrida deve ser revogada, julgando-se prescrito o direito da autora e absolvendo-se o réu do pedido. 4. Do recurso da autora:
O acabado de decidir sobre a prescrição conduz irremediavelmente à improcedência do recurso da autora.
A recorrente, partindo do pressuposto aceite pela decisão recorrida de a prescrição se ter interrompido antes de se completarem três anos sobre a data do último pagamento que fez aos lesados, pretende por via do recurso que esta Relação decida que essa interrupção se estende mesmo em relação a pagamentos efectuados mais de três anos antes.
O decidido quanto à prescrição e à sua não interrupção ao abrigo do n.º 2 do artigo 323.º do Código Civil, faz soçobrar essa pretensão.
O recurso é por isso improcedente.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso da autora improcedente e o recurso do réu procedente; em consequência, revogam a decisão recorrida e declaram prescrito o direito da autora, absolvendo o réu do pedido.
Custas dos recursos pela autora, a qual vai condenada a pagar ao réu, a título de custas de parte, o valor das taxas de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 24 de Fevereiro de 2022.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 668)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]