SIGILO PROFISSIONAL
DISPENSA
IMPRESCINDIBILIDADE
Sumário

1 - No incidente para levantamento do sigilo profissional, a utilização pelo legislador do conceito “imprescindibilidade do depoimento”, tem em vista inculcar uma mais exigente ponderação, no plano concreto, dos juízos de necessidade, proporcionalidade, adequação, ou idoneidade do meio probatório em causa, como também uma utilização subsidiária da sua utilização – quando houver outro que conduza ao mesmo resultado, deve ser esse o preferencialmente utilizado.
2 - O sigilo médico visa a protecção do direito do paciente à confidência, i.e., à preservação sigilosa dos factos relacionados com a sua doença e o seu tratamento.
3 - No processo de maior acompanhado, tendo sido realizada perícia colegial, com intervenção de médicos psiquiatras e realização de exame neurológico, mais tendo os peritos médicos prestado os esclarecimentos que lhes foram solicitados, não se justifica o levantamento do sigilo profissional a que se encontra sujeita uma médica que segue o beneficiário há 20 anos, por não ocorrer impossibilidade absoluta, ou muito relevante, de realização da prova.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

No Juízo de Competência Genérica do Entroncamento, em 20.02.2019 foi proferida sentença, transitada em julgado, contendo o seguinte dispositivo:
- “aplico em benefício do requerido (…), medida de acompanhamento de autorização prévia para a prática dos seguintes actos: actos de disposição patrimonial, concretamente para a aquisição ou disposição de imóveis ou veículos automóveis, prestação de garantias, contratação de créditos, realização de liberalidades (doações) e empréstimos de valores superiores a € 500,00 (quinhentos euros);
- fixo em 29 de Março de 2017 a data a partir da qual se mostrou necessária a medida em causa;
- designo como acompanhante (…), filha do requerido, à qual incumbirá a autorização para os actos de disposição acima elencados;
- fixo para a revisão da medida aplicada o prazo de um ano.”
Em 03.06.2020, a Digna Magistrada do Ministério Público requereu a revisão da medida de acompanhamento.
A filha e acompanhante (…) apresentou articulado defendendo a manutenção da medida.
Por seu turno, o Requerido (…) contestou, pugnando pelo levantamento.
Determinada a realização de perícia colegial na especialidade de psiquiatria, após exame de neurologia realizado pela Prof. Dra. (…), foi produzido relatório no qual consta de maior relevo:
“(…) afirmam os peritos psiquiatras que o examinando não possui patologia psiquiátrica grave que condicione a capacidade de discernimento nem de autodeterminação, estando este capaz de avaliar os seus actos e as possíveis consequências destes. Pelo exposto, possui íntegra a capacidade volitiva que permite a gestão da sua saúde, celebrar testamento e testamento vital, decidir onde e com quem reside, deslocar-se, votar e prestar declarações em tribunal. No que concerne à disposição do seu património, demonstrou possuir a noção do mesmo bem como dos seus compromissos financeiros, parecendo agir de forma reactiva face à avaliação que faz quanto à forma como é tratada pelos filhos, situação modelada pelos seus traços de personalidade e não resultante de um qualquer défice cognitivo.
Atendendo ao supra exposto, médico-legalmente, não subsistem na actualidade razões clinico-periciais que lhe seja designado um acompanhante legal.”
Procedeu-se à inquirição do Requerido, da sua filha e acompanhante (…), dos peritos médicos psiquiatras que realizaram a perícia colegial, bem como da médica neurologista Prof. Dra. (…), que realizou o exame dessa especialidade solicitado pelos peritos.
Por requerimento de 04.01.2022, a filha e acompanhante (…) requereu a inquirição da Dra. (…), médica neurologista, afirmando que esta havia realizado consulta ao seu pai em 22.12.2021 e que já acompanhava a sua situação clínica há mais de 20 anos.
Por requerimento de 07.01.2022, o Requerido opôs-se à inquirição da referida médica neurologista.
Por despacho de 10.01.2022, foi determinada a inquirição da Dra. (…), na qualidade de testemunha, “reputando-se o seu depoimento relevante para aquilatar a situação do requerido”.
Por requerimento de 16.02.2022, o Requerido afirmou não carecer de acompanhamento quanto à prestação de consentimento para a quebra do sigilo profissional, e declarou que, “enquanto doente da médica Dra. (…), expressamente, declara que não dá o seu consentimento ao levantamento do segredo médico profissional quanto a todos os factos compreendidos nos artigos 139.º, n.º 2, do EOM e 30.º, n.º 2, do RDM, que lhe digam respeito.”
Na acta de 18.02.2022, consta a inquirição da Dra. (…), a qual foi ajuramentada e declarou aos costumes ser médica do Requerido desde 2005.
Mais consta que às questões formuladas pela Ilustre Mandatária da acompanhante, designadamente quanto ao estado de saúde do Requerido (…), a testemunha deduziu escusa, por motivos de sigilo profissional.
A Ilustre Mandatária da acompanhante solicitou então que o tribunal se pronunciasse sobre se a escusa era legítima ou ilegítima e se seria necessário obter junto do Tribunal da Relação de Évora o incidente de levantamento do sigilo profissional.
O Requerido afirmou que a recusa era legítima e se opunha ao levantamento do sigilo profissional, “uma vez que a sua situação clínica foi aferida em perícia colegial.”
E foi proferido despacho considerando legítima a recusa da Dra. (…) e suscitando incidente de quebra de sigilo profissional.

Estes são os factos relevantes à decisão.[1]

Aplicando o Direito.
Tendo sido solicitada a intervenção deste Tribunal da Relação de Évora, nos termos do artigo 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil e do artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, diremos que o dever de cooperação para a descoberta da verdade tem como limite (para além do respeito pelos direitos fundamentais enquanto limite absoluto imposto constitucionalmente), o acatamento do dever de sigilo, ou seja, o juiz não pode, pelo menos em absoluto, ao abrigo do dever de cooperação, provocar a violação do segredo profissional a que a entidade visada se encontre legalmente vinculada.
Ora, o artigo 135.º, n.º 1, do Código de Processo Penal estabelece que os médicos, entre outras pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo, podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
Por seu turno, o artigo 139.º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pela Lei 117/2015, de 31 de Agosto, estipula o seguinte, sob a epígrafe “Segredo profissional”:
“1 – O segredo médico profissional pressupõe e permite uma base de verdade e de mútua confiança e é condição essencial ao relacionamento médico-doente, assentando no interesse moral, social, profissional e ético, tendo em vista a reserva da intimidade da vida privada.
2 – O segredo médico profissional abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua profissão ou por causa dela e compreende especialmente:
a) Os factos revelados directamente pela pessoa, por outrem a seu pedido ou por terceiro com quem tenha contactado durante a prestação de cuidados ou por causa dela;
b) Os factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiros;
c) Os factos resultantes do conhecimento dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica referentes ao doente;
d) Os factos comunicados por outro médico ou profissional de saúde, obrigado, quanto aos mesmos, a segredo.
3 – A obrigação de segredo profissional existe quer o serviço solicitado tenha ou não sido prestado e seja ou não remunerado.
4 – O segredo profissional mantém-se após a morte do doente.
5 - …
6 - …”
O artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal permite ao tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
Deste modo, o tribunal superior deve ponderar o valor relativo dos interesses em confronto, por um lado os protegidos pelo segredo e, pelo outro, os associados à descoberta da verdade material e à realização dos fins da justiça, inerente ao Estado de Direito.
Trata-se da aferição do interesse preponderante na decisão do incidente de quebra do segredo profissional, tendo em conta a imprescindibilidade para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos – n.º 3 do citado artigo 135.º.
A utilização pelo legislador do conceito “imprescindibilidade do depoimento”, tem em vista inculcar uma mais exigente ponderação, no plano concreto, dos juízos de necessidade, proporcionalidade, adequação, ou idoneidade do meio probatório em causa, como também uma utilização subsidiária da sua utilização – quando houver outro que conduza ao mesmo resultado, deve ser esse o preferencialmente utilizado.[2]
O sigilo médico visa a protecção do direito do paciente à confidência, i.e., à preservação sigilosa dos factos relacionados com a sua doença e o seu tratamento. Constitui um dos pilares essenciais da profissão médica, como condição necessária da confiança dos doentes, e como tal está garantido na Constituição da República Portuguesa, por via da tutela do direito à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º 1) e do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º).
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira[3], o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar desdobra-se: a) no direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar; e, b) no direito a que ninguém divulgue tais informações.
Gilbert Hottois e Marie-Hélène Parizeau[4] ensinam que, “no plano filosófico, o respeito pelo segredo baseia-se num direito natural à intimidade que faz parte do desenvolvimento da pessoa. O segredo identifica-se com uma condição necessária à realização de certas relações interpessoais onde a intimidade entra em jogo: o respeito, o amor, a amizade, a confiança. O segredo concorre para o estatuto da pessoa humana, porquanto visa proteger a intimidade e o poder de autodeterminação do ser humano.”
Por outro lado, o direito à prova está igualmente consagrado na Constituição e decorre do direito à protecção jurídica e ao acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1), o que implica que haja um dever geral de realizar a prova, desde que lícita e necessária ao objecto do processo.
Vistos os critérios gerais, vejamos agora se os factos apurados nos autos justificam a pretendida quebra do sigilo médico.
Está em causa a revisão da medida de acompanhamento decretada ao Requerido por sentença de 20.02.2019, que condiciona a prática de certos actos de disposição patrimonial à autorização prévia da acompanhante.
Foi realizada perícia médica na especialidade de psiquiatria, tendo os peritos médicos solicitado a realização de exame neurológico, realizado pela Prof. Dra. (…).
Estes produziram o respectivo relatório pericial e prestaram esclarecimentos em audiência, como solicitado pelas partes e determinado pelo Tribunal.
A questão que se coloca é a seguinte: as necessidades de prova justificam, neste caso concreto, a quebra do sigilo médico a que está sujeita a Dra. (…)?
Ponderando os interesses em confronto, de harmonia com o princípio da prevalência do interesse preponderante, com base no critério da proporcionalidade na restrição de direitos e interesses que se encontram constitucionalmente protegidos, entende-se que, in casu, assume relevo superior o interesse de proteger a confidencialidade da relação médico/doente.
Na verdade, as necessidades de prova podem, e devem, ser realizadas com os meios já colocados à disposição do Tribunal: a perícia médica, o exame neurológico realizado, a inquirição do Requerido, a inquirição da sua filha e acompanhante, e a inquirição das testemunhas arroladas.
Dispondo o Tribunal de tais elementos – abundantes – de prova, não se vê a essencialidade do depoimento da Dra. (…), com quebra do sigilo médico a que está sujeita, por força da relação médico/doente firmada com o Requerido (…).
Note-se que a quebra do sigilo médico apenas se justificaria se existisse uma impossibilidade absoluta, ou muito relevante, de realização da prova. Mas esse não é o caso, existem outros meios de prova produzidos nos autos que são aptos à realização dos fins judiciais e à tutela jurisdicional efectiva.
Ademais, o levantamento do sigilo profissional não é um instrumento para resolver outro problema que, eventualmente, pode colocar-se nos autos e parece motivar os requerimentos da filha e acompanhante (…): a realização de prova desfavorável.
A prova existe, pode é não ser entendida como favorável, mas tal não justifica, por si só, a quebra do sigilo médico.

Decisão
Destarte, recuso o levantamento do sigilo médico a que se encontra sujeita a Dra. (…).
Notifique, inclusive à referida médica.
Informe a primeira instância.
Custas pela filha e acompanhante (…).
Évora, 15 de Março de 2022
Mário Branco Coelho

Sumário: (…)


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[1] Esclarecendo que se procedeu à consulta electrónica dos autos principais e seus apensos, através do Citius – artigo 15.º, n.º 2, alínea b), da Portaria 280/2013, de 26 de Agosto, na sua versão actual.
[2] Assim se escreveu, e bem, no Acórdão da Relação de Lisboa de 15.17.2014 (Proc. n.º 1698/10.7TAOER.L1-5), publicado em www.dgsi.pt.
[3] In Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2007, Coimbra Editora, páginas 467-468.
[4] In Dicionário de Bioética, edição do Instituto Piaget, página 331.