PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA
CONTRADITÓRIO
Sumário

I.- O procedimento cautelar comum previsto nos artigos 362.º e 376.º do CPC, pode ser decretado sem a audição do requerido se a sua audição puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência (artigo 366.º/1).
II.- Caso a providência tenha sido decretada sem audição do requerido e também sem audição das testemunhas oferecidas pelo requerente no requerimento inicial, havendo oposição do requerido, as testemunhas não ouvidas devem sê-lo na audiência final, sob pena de violação do princípio d contraditório.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Procº 499/21.1T8ODM-A.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: (…) Aquicultura, Lda.

Recorrida: (…), viúva, cabeça de casal da herança de (…).

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No Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo de Competência Genérica de Odemira – Juiz 1, no âmbito da providência cautelar comum proposta por (…), cabeça de casal da herança de (…), contra (…) Aquicultura, Lda., peticionando:
A intimação da Requerida para que esta efetue as obras de reparação nas comportas que são da sua propriedade de forma a evitar o salgamento dos solos da requerente;
A condenação da requerida no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de €500,00 (quinhentos euros) por cada dia atraso no cumprimento da reparação das comportas em causa desde o dia da notificação da sentença até à total reparação das comportas;
A inversão do contencioso, dispensando-se a requerente da propositura da ação declarativa de que o presente procedimento cautelar seria dependente, nos termos do artigo 369.º/1, do Código de Processo Civil.
Alega, em síntese, a necessidade de realização de obras de impermeabilização das comportas, de modo a evitar que o vazamento salgue os terrenos e os impossibilite para o uso agrícola.
Com dispensa de audiência prévia, foi proferida decisão que decretou a obrigação de realização dos trabalhos.
Citada a requerida, deduziu oposição pelo que foi realizada audiência de julgamento.
Nesta sede, foi consignado em ata o seguinte:
Deixa-se consignado que após a identificação da testemunha, (…), o Ilustre Mandatário do Requerido solicitou a palavra, tendo a mesma lhe sido concedida pela Mm.ª Juiz tendo o mesmo informado de que não se tinha apercebido de que iria contar com prova testemunha produzida pela Requerente, tendo o mesmo requerido que só fosse produzida prova por parte do requerido, uma vez que já foi decretada a providência, sendo a presente diligência para o contraditório, tendo o mesmo sido gravado pelo sistema informático em uso neste Tribunal.
Dada a palavra à Il. Mandatária da Requerente, pela mesma, em súmula, foi referido que tal deve ser indeferido.
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Seguidamente a Mm. ª Juiz proferiu o seguinte:
Despacho
Súmula:
"Atendendo-se ao agora indicado pelo Ex.mo Mandatário do requerido, porém, a Requerente oportunamente requereu a sua produção de prova testemunhal, tendo sido o Tribunal que, em face da urgência do processo e do seu esclarecimento, entendeu não ser necessária a sua audição para decisão da providência.
No seu exercício legítimo de defesa os Requeridos deduziram oposição, arrolando a competente prova, sem prejuízo, assiste igualmente ao requerente o direito a que a sua restante prova seja aqui plenamente ouvida de modo a também poder contraditar a própria prova dos requeridos, isto porque, se esta audiência visa repor o contraditório, não quer dizer que ela própria não possa ser feita sem contraditório da requerente, caso em que então nem estaria aqui presente a requerente, nem sequer representada.
No demais não foi a requerente que entendeu dispensar a prova testemunhal, mas o julgador, por se entender ser suficientemente esclarecido, pelo que, sempre não poderia a requerente perder os seus direitos ou o exercício da produção de prova em face do que foi uma decisão do julgador.
Termos em que se indefere a reclamação apresentada, mantendo-se a audição da prova da requerente nos termos já designados, nos termos dos artigos 6.º, 3.º e 4.º do CPC.
Notifique”.

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Não se conformando com o decidido, (…) Aquicultura, Lda. recorreu da decisão formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2 do CPC:

A. O Tribunal a quo, ao decretar uma medida cautelar sem contraditório prévio, forma a sua convicção quanto ao alegado pelo requerente com base no teor do seu requerimento inicial e nos elementos de prova por este produzidos.

B. Caso o requerente tenha requerido a produção de prova testemunhal, se o Tribunal a quo não se socorrer dessa prova para formar a sua convicção, tal prova, porque tendente a aquilatar o alegado no requerimento inicial, não pode ser produzida em momento posterior, nem se destina a contraditar o teor de uma oposição deduzida posteriormente pelo requerido.

C. A audiência de julgamento realizada após a dedução de oposição pelo requerido no âmbito de um procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio destina-se, única e exclusivamente, à produção de prova do requerido.

D. Nessa audiência não é admissível a produção de prova testemunhal da requerente.

E. Entendimento contrário carece de qualquer suporte legal, doutrinário ou jurisprudencial e viola os princípios da igualdade de armas e do contraditório.

F. O âmbito do contraditório permitido ao requerente nessa sede restringe-se “[a] o direito de intervir na audiência destinada à produção e valoração das novas provas oferecidas pelo oponente e de nela formular as instâncias que reputar convenientes em relação às testemunhas inquiridas ou de se pronunciar sobre quaisquer elementos probatórios que sejam carreados”.

G. Por estes motivos, deverá o despacho de admissão de prova sub judice ser revogado e substituído por outro que, em cumprimento da lei, determine a inadmissibilidade da produção de prova testemunhal requerida pela Recorrida no seu Requerimento Inicial, na audiência de julgamento realizada após a dedução de Oposição pela Recorrente.


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Contra-alegou a recorrida, com as seguintes conclusões.

1- O recorrente vem recorrer do douto despacho proferido em sede de audiência de discussão e julgamento realizada no dia 17.12.2021, por ter sido indeferida a reclamação apresentada pelo requerido, ora recorrente.

2- Tratando-se de despachos ou sentenças orais, reproduzidos no processo, o prazo corre do dia em que foram proferidos, nos termos do artigo 638.º, n.º 3, do CPC.

3- Por aplicação do disposto no artigo 638.º, n.º 1, do CPC, o prazo para a interposição de recurso seria de 15 dias, uma vez que estamos perante um procedimento cautelar, urgente.

4- Esse prazo iniciou-se no dia da audiência de julgamento, 17.12.2021 e terminaria no dia 31.12.2021.

5- Sucede que a recorrente apresentou o seu requerimento de interposição de recurso e respetivas alegações apenas no dia 3.01.2022, já depois do término do prazo e sem proceder, até à data, ao pagamento imediato da respetiva multa, prevista no n.º 5 do artigo 139.º do Código de Processo Civil.

6- Assim, o recurso apresentado pela recorrente, por ter sido apresentado fora do prazo, deve ser considerado intempestivo, nos termos do artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do C.P.C., caso não seja apresentado o comprovativo do pagamento da competente multa processual.

7- O fundamento do recurso do recorrente baseia-se na reclamação pelo facto de ter sido admitida pelo ilustre julgador a quo a produção da prova testemunhal da requerente, ora recorrida, em sede de audiência de discussão e julgamento.

8- Sem olvidar que, na sua petição, a recorrida apresentou os seus meios probatórios, designadamente, prova documental e testemunhal.

9- Assim como a recorrida requereu a inversão do contencioso, com a inerente dispensa da requerente da propositura da ação declarativa de que o procedimento cautelar seria dependente, nos termos do artigo 369.º/1, do CPC.

10- Sucede que, a Meritíssima Juiz de Direito decidiu indiciariamente, pela procedência da providência cautelar e proferiu decisão, sem audição da requerida, ora recorrente, ao abrigo do artigo 367.º do Código de Processo Civil.

11- Tendo a Mma Juiz fundamentado a sua decisão tendo em conta a natureza do pedido – a necessidade de obra urgente em comportas – decidindo que o prazo necessário ao cumprimento do contraditório e julgamento poderia pôr em risco sério a eficácia da providência, a qual visa atuar antes da entrada da época das chuvas que se aproxima.

12- Mais acresce o facto de a convicção do Tribunal quanto à matéria de facto indiciariamente provada ter sido assente na análise crítica e ponderada dos documentos juntos ao processo, fotografias e vídeos juntos no requerimento inicial, dispensando a produção de prova testemunhal, nos termos do artigo 367.º do CPC.

13- Dando assim cumprimento ao disposto nos números 4 e 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.

14- Ora, após a dedução da Oposição pela recorrente e após a Inspeção Judicial efetuada ao local onde se situam as comportas sub judice, foi assegurado, e bem, o exercício do direito do contraditório à requerente, ora recorrida, com a audição das testemunhas arroladas no seu requerimento inicial.

15- Aliás, a requerente, ora recorrida, não teve oportunidade de efetuar a produção de prova testemunhal, relativamente às testemunhas arroladas no seu requerimento inicial, uma vez que a Mma Juiz, proferiu a decisão indiciária cautelar apenas com fundamento na prova documental (fotografias e vídeos), dispensando a audição de testemunhas, nos termos do artigo 367.º, n.º 1, do CPC.

16- Ao abrigo do artigo 369.º do CPC, a requerente da providência cautelar requereu a inversão do contencioso, sendo que para a dispensa de intentar a ação principal, o ilustre julgador tem de formar a convicção segura acerca da existência do direito a acautelar e a providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

17- Pelo que não bastaria ao requerente fazer prova sumária do seu direito, devendo antes esgotar todos os meios de prova ao seu dispor, como faria se fosse a ação principal.

18- A audição das testemunhas arroladas pela requerente, ora recorrida, deve ser admitida, por não terem sido previamente ouvidas, bem como pelo facto de se visar a reposição do contraditório e da igualdade de armas entre as partes.

19- A audiência de julgamento realizada após a dedução de oposição pelo requerido no âmbito deste procedimento cautelar decretado sem contraditório prévio não se destina, única e exclusivamente, à produção de prova do requerido.

20- Assim, bem decidiu a Meritíssima Juiz no douto despacho proferido em 17.12.2021, indeferindo a reclamação apresentada sobre a audição da prova da requerente, ora recorrida.

21- Fundamentando a Meritíssima Juiz o referido despacho de indeferimento nos termos dos artigos 6.º, 3.º e 4.º do Código de Processo Civil.

22- Assim sendo, incumbe ao juiz dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo as diligências que se afigurem necessárias ao normal prosseguimento da ação, em conformidade com o disposto no artigo 6.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

23- Dando-se cumprimento o Princípio do Contraditório previsto no n.º 3 do artigo 3.º do C.P.C., e assegurando-se o Princípio da Igualdade das Partes previsto no artigo 4.º do Código de Processo Civil.

24- Não obstante, e, em todo o caso, continua a sustentar-se que o critério de se conceder um amplo poder de apreciação ao juiz deve ser aplicado considerando as regras gerais da experiência e as particularidades do caso concreto, equacionando o equilíbrio a observar entre os valores da contraditoriedade e os da eficácia da Justiça e não esquecendo que, se o Princípio do Contraditório é a regra.

Nestes termos, devem Vossas Excelências julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter na íntegra, o douto despacho recorrido, fazendo assim, como sempre, a costumada justiça.


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Foram dispensados os vistos.

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As questões que importa decidir são:
1.- A tempestividade do recurso.
2.- A decretação da providência sem audição quer da requerida quer das testemunhas da requente; os efeitos da dispensa da audição das testemunhas na possibilidade da sua audição em sede de audiência final.
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A matéria de facto a considerar é a que resulta do relatório inicial.
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Conhecendo.
1.- A tempestividade do recurso.
Alega a recorrida que o recurso é intempestivo, uma vez que, sendo o prazo para recorrer de 15 dias (artigos 638.º/1 e 3 e 644.º/2, d), do CPC), a interposição no dia 03-01-2022, sem que tenha sido paga a multa prevista no artigo 139.º/5, do CPC, o recurso foi apresentado fora de prazo, dado que a decisão oral foi proferida em 17-12-2021.
Compulsados os autos, verificamos que a recorrida não tem razão.
Com efeito, o prazo para apresentar o recurso terminou no dia 01-01-2022 que é um feriado, o que significa ter-se transferido o seu termo para o primeiro dia útil para o dia seguinte (artigo 279.º, e), do CC), sem pagamento da multa alegada pela recorrida, pelo que o recurso é tempestivo, improcedendo as conclusões da recorrida nesta parte.
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2.- A decretação da providência sem audição quer da requerida quer das testemunhas da requente; os efeitos da dispensa da audição das testemunhas na possibilidade da sua audição em sede de audiência final.
Alega a recorrente que, tendo o tribunal a quo decidido a providência sem audição da requerida e também sem audição das testemunhas que a recorrente indicou no seu requerimento inicial, precludiu o direito de as referidas testemunhas serem ouvidas em sede de audiência final.
A recorrida defende a tese oposta, fazendo apelo ao respeito pelos princípios do contraditório e de igualdade de armas.
Vejamos.
O procedimento cautelar comum previsto nos artigos 362.º e 376.º do CPC, pode ser decretado sem a audição do requerido se a sua audição puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência (artigo 366.º/1).
No caso dos autos o tribunal a quo entendeu que se verificavam os requisitos de que dependia a decretação da providência, apenas com a análise dos documentos juntos pela requerente e com uma inspeção ao local, pelo que, em primeiro lugar decidiu não ouvir nesse momento a requerida e não julgar imprescindível, à boa decisão da causa, a audição das testemunhas arroladas pela requerente.
Nenhuma destas decisões está em causa no presente recurso, mas tão só o efeito desta decisão de prescindir da audição das testemunhas da requerente, que a recorrente alega não mais poderem ser ouvidas.
Contudo, sem razão.
Se bem equacionarmos a situação, podemos entender que as testemunhas da requerente da providência servem para provar a matéria de facto alegada no requerimento inicial, mas também para fazer contraprova dos factos que a requerida alegou no seu requerimento de oposição, quer se tenha defendido por impugnação quer por exceção.
Só por esta circunstância, as testemunhas da requerente da providência não poderiam deixar de ser ouvidas, sob pena de ser coartar o direito de defesa da requerente e ser violado o princípio do contraditório.
Com efeito, este princípio protege e serve de garantia às partes no processo para uma participação efetiva, em todos os atos processuais, de tal forma que possa ser ouvida, impugnar a admissão de meios de prova e a sua força probatória, ou seja, o sistema tem de permitir às partes influenciar a decisão judicial antes dela ser tomada.
Este magno princípio processual encontra consagração no artigo 3.º/3, do CPC: O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Em comentário ao artigo em questão (367.º) Lebre de Feitas e Isabel Alexandre, citando Ramos de Faria e Luísa Lourenço, in CPC Anotado, 2º Vol., 3ª ed. pág. 37 ensina: “A audiência só é final quando o requerido haja sido ouvido. No entanto, o artigo tem aplicação também aos casos em que a sua audição é dispensada. Nestes casos, é admissível que, quando, no ato da produção e prova, o juiz entenda estar já suficientemente esclarecido, ele o revele ao advogado do requerente, não sendo então necessário produzir a restante prova oferecida, sem prejuízo de, havendo oposição, virem a ser ouvidas em contraditório as testemunhas não ouvidas anteriormente”.
É o caso dos autos.
A apelação é, pois, improcedente e a decisão deve ser confirmada.
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Sumário: (…)

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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma a decisão recorrida.

Custas pela recorrente – artigo 527.º do CPC.

Notifique.

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Évora, 24-03-2022

José Manuel Barata (relator)

Conceição Ferreira

Emília Ramos Costa