ANULAÇÃO DA VENDA
VENDA EXECUTIVA
RESTITUIÇÃO DE BENS
RESTITUIÇÃO DO PREÇO
Sumário

I - Ficando a venda executiva “sem efeito” nascem, para o executado/vencedor, como efeitos opcionais da ineficácia superveniente da venda, direitos (conferidos pelo nº3 do art. 839º, do CPC): i) - à restituição dos bens; ii) ao preço da venda, a exercer, na ação executiva, dentro de 30 dias a contar da decisão definitiva.
II - Não exercendo o executado a opção, dentro do referido prazo, sedimenta-se, independentemente das circunstâncias do caso, o direito ao preço da venda.
III - Não obstante a lei, ao consagrar os referidos efeitos, tutelar interesses do executado, o legislador estatuiu, para a opção pela restituição, um prazo curto, por razões de certeza e segurança jurídicas, com vista à, proporcional, defesa, dos interesses do comprador, também merecedores de tutela.
IV - E, na ação executiva, não é permitido o exercício de outros direitos, sequer o exercício do direito de restituição fora do referido prazo, sendo que pretensões nesse sentido, das partes ou de terceiros, designadamente decorrentes de responsabilidade civil, por ação ou omissão, têm, a poder ser exercidas, de o ser em ação própria.
V - De nenhuma inconstitucionalidade material padece a interpretação conferida ao nº3, do art. 839º, do CPC, que consagra meros efeitos das vicissitudes que o processo executivo revela, habilitando, desde logo, à decisão, meramente materializadora de estatuição legal, a decretar efeitos consagrados como os justos e adequados, que proporcionais são ao caso de a venda ficar sem efeito e aos vários interesses a tutelar – os dos executados e os dos compradores -, sendo que outros direitos, das partes ou de terceiros, que porventura possam ser configurados, não ficando sem tutela têm, contudo, de ser exercidos em meio próprio.

Texto Integral

Apelação nº 4494/17.7T8ENT-D.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha – Juiz 2

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Maria José Simões

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: AA
Recorrida: BB

BB, interdita, representada pelo seu acompanhante, CC, apresentou-se nos autos de ação executiva que S..., Sa contra si moveu, a requerer, ao abrigo do disposto no nº 3, do artigo 839º, do Código de Processo Civil, a restituição do preço do imóvel vendido nos autos.
AA, invocando a qualidade de protutora da interdita, veio pronunciar-se pelo indeferimento do requerido, porquanto o incumprimento do prazo aí previsto não se deve a razões imputáveis à executada, que se encontra interdita, mas sim ao seu acompanhante, que faltou ao dever de desencadear o procedimento para obter a restituição do bem.
O interveniente acidental, comprador do imóvel, DD requereu que fosse deferido o requerido pela executada.
Foi proferida decisão a, deferindo o requerido pela executada, representada pelo seu acompanhante, determinar que o valor do preço, que se encontra depositado na conta do Sr. Agente de Execução, seja entregue à executada.
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A protutora, AA, apresentou recurso de apelação pretendendo a revogação da decisão, com afastamento da aplicação do disposto no nº3, do artigo 839.º, do CPC, ao caso em apreço, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
1. A Recorrente não pode aceitar a interpretação legalista que o Tribunal “a quo” faz do artigo 839.º, n.º 3 do CPC, desenquadrada das particularidades do caso em apreço, nomeadamente do facto de a Executada ser interdita, estando por isso só impossibilitada de cumprir o consagrado naquele artigo.
2. Foram deduzidos embargos de executado (apenso A) pelo Ministério Público, julgados procedentes pelo Tribunal “a quo”, que declarou extinta a execução, por sentença proferida a 29/05/2019, já transitada em julgado.
3. O alegado comprador, Senhor DD, era conhecedor das vicissitudes que determinaram a anulação da execução, na medida em que a Recorrente veio arguir, além de outras, a nulidade da falta de citação da sua mãe (a interdita/executada) logo que teve conhecimento da existência da presente execução e dos seus termos.
4. Em razão das movimentações do processo, tardava uma decisão, e no sentido de evitar prejuízos, mormente para a interdita, a aqui Recorrente tomou a iniciativa de proceder à notificação judicial do senhor DD, dando-lhe conhecimento rigoroso do pedido formulado de apreciação da nulidade da citação da interdita, dos seus fundamentos e das consequências que dali adviriam (mormente a anulação da venda realizada nos autos de execução), notificação judicial esta realizada em 9 de Novembro de 2018.
5. E logo após ter conhecimento do douto despacho proferido nestes autos, julgando procedente a nulidade da citação, a Recorrente providenciou por dele dar conhecimento, através de carta registada com aviso de recepção ao senhor DD.
6. Significa isto que o comprado sempre teve conhecimento, mesmo antes de proferida a decisão em referência, das vicissitudes da compra em causa nos autos e dos riscos que corria, e que a ora Recorrente (agindo sempre na qualidade de pró-tutora) tudo procurou fazer para minimizar os prejuízos não só da interdita, mas também dos demais interessados, designadamente o senhor DD.
7. Contrariamente, o Acompanhante CC tem mantido uma atitude impávida perante a delapidação do património da sua mãe (Executada), e até mesmo conivente com aquele comprador.
8. Quando o Tribunal refere que não foi cumprido o prazo de 30 dias previsto no n.º 3 do artigo 839.º do CPC, esquece-se que cabia precisamente ao Acompanhante CC, já há muito tempo, ter vindo reivindicar do comprador a entrega do imóvel, com a consequente devolução do preço alegadamente pago ao mesmo.
9. A Executada BB encontra-se interdita por sentença proferida no âmbito do processo n.º 122/11.2T2ALB, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha.
10. Por apenso àquela acção (processo n.º 122/11.2T2ALB-A), foi promovida uma acção de autorização judicial de venda, tendo em vista a obtenção de receitas suficientes para o pagamento dos encargos assistenciais de que a interdita carecia, designadamente para o pagamento do alojamento e demais cuidados prestados pelo S....
11. Naqueles autos de autorização judicial para a venda, o referido CC lutou acerrimamente pela venda do único prédio urbano da Interdita, mas o Tribunal entendeu (e bem) mandar proceder, em 3 de Maio de 2017, à avaliação dos prédios rústicos titulados pela mesma, decidindo após tal avaliação que apenas alguns deles (dois de natureza rústica) seriam só por si suficientes para o pagamento dos encargos da mesma, inclinando-se para a sua venda.
12. Dias após a decisão do Tribunal em ordenar a avaliação dos imóveis surge a injunção (apresentada em 16-06-2017), que constituiu o título desta execução n.º 4494/17.7T8ENT.
13. Tal injunção não teve qualquer oposição do à data tutor CC, que dela não deu, também, conhecimento à aqui Recorrente, ao Ministério Público ou mesmo aos autos de autorização judicial, logrando a aposição da fórmula executiva e sendo intentada a presente execução.
14. Aqui também, como nos autos de injunção, o Acompanhante não deduziu qualquer oposição e, igualmente, não deu conhecimento à Recorrente, ao Ministério Público ou aos autos de autorização judicial que havia sido promovido a tal cargo pela Directora Técnica da Exequente S... e cujo objectivo e finalidade era precisamente a obtenção de verbas que permitissem o pagamento dos encargos da Interdita com aquele lar.
15. O acompanhante nada fez para vender os outros bens que a interdita tinha e, assim, para providenciar pelo pagamento das despesas correntes da mãe.
16. Agora, uma vez mais, em vez de proteger o património da sua mãe, devendo ser o primeiro a reivindicar daquele comprador a devolução do imóvel, é o próprio a requerer a sua entrega, num claro venire contra factum proprium, relativamente ao qual o Tribunal “a quo” nada vez.
17. Cabia ao Acompanhante, nessa qualidade, no quadro da relação processual entre as partes na acção executiva e o comprador que interveio na venda entretanto anulada, o qual fica vinculado à respectiva decisão anulatória, desencadear o procedimento para obter a restituição dos bens decorrente da ineficácia da venda executiva, nos termos do art.º 839.º do CPC.
18. Ora, não tendo o Acompanhante cumprido as suas funções, sendo apenas ele a ter poder e competência para tal, não pode agora vir aproveitar-se desse incumprimento para obter o resultado que sempre norteou a sua actuação (obter a efectivação da venda do imóvel em apreço, o que nunca foi consentido pela aqui Recorrente).
19. O artigo 839.º, n.º 3 é de afastar quando, como no caso em apreço, o comprador não se encontrar de boa-fé, sendo antes conhecedor de todas as vicissitudes da execução, e, mesmo assim, efectivar o negócio.
20. A preclusão do direito do executado à restituição do bem vendido em execução no prazo de 30 dias (art. 839.º/3 CPC) destina-se a evitar situações em que o adquirente do bem celebre negócios com terceiro, máxime, proceda à venda do bem adquirido, obstaculizando a sua restituição ao executado, o que não é o caso, na medida em que não só o adquirente não transmitiu o bem para terceiro, como estava ciente de que a venda executiva poderia, com grande probabilidade, ser anulada.
21. A ratio subjacente ao art. 839.º /3 CPC justifica o afastamento do prazo pelo mesmo estabelecido quando o Executado se encontrar privado, por razões que não lhe sejam imputáveis, de o cumprir, maxime o facto de o mesmo ser interdito, e o seu Acompanhante, de forma intencional, não proceder a tal pedido.
22. Deve ser considerada materialmente inconstitucional a norma prevista no n.º 3, do art. 839º do Código Processo Civil, se interpretada no sentido de se aplicar sempre, independentemente das circunstâncias do caso, o prazo de 30 dias a contar da decisão definitiva para pedir a restituição dos bens cuja venda foi anulada, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva (que decorre do princípio constitucional do Estado de Direito Democrático, plasmado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa).
23. A decisão recorrida, mesmo entendendo que deveria aplicar o disposto no artigo 839.º, n.º 3, nunca poderia ter deferido o requerido pelo acompanhante da Executada, uma vez que o que o mesmo pretende é apenas a restituição do remanescente, descontado o montante já retirado para efeitos de pagamento da quantia exequenda e despesas, e não a restituição integral do preço.
24. Estamos antes perante uma verdadeira distorção da decisão proferida por este douto Tribunal da Relação a 09/11/2020, que manteve a decisão de primeira instância, que julgou nulo todo o processado a seguir ao requerimento de injunção, incluindo o próprio título executivo, pelo que não há quantia exequenda, nem despesas da responsabilidade da executada.
25. A aplicação daquele n.º 3 do artigo 839.º do CPC não pode aniquilar a decisão proferida em primeira instância e confirmada pela Relação, não podendo tudo se passar como se existisse título executivo e quantia exequenda.
26. A aplicar-se aquele n.º 3 sempre teria que ocorrer a devolução da totalidade do preço da venda, e não o que sobrar após o pagamento da quantia exequenda e das despesas com o processo.
27. A decisão recorrida, com a interpretação que faz do artigo 839.º, n.º 3, descontextualizada da conduta assumida pelas partes e pelas particularidades do caso em apreço, violou o disposto no artigo 334.º do Código Civil. Além disso, ao dar acolhimento à pretensão do acompanhante da Executada viola a força de caso julgado das decisões proferidas nos autos que determinaram a nulidade de todo o processado, incluindo da venda.
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A executada BB, representada pelo seu acompanhante, apresentou resposta a pugnar por que seja negado provimento ao recurso interposto, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
“a) Salvo melhor entendimento, não deve ter provimento e consequentemente a douta decisão proferida não deve ser revogada, porquanto:
b) A interdita e executada BB, encontra-se internada no Lar S... (exequente) desde há vários anos.
c) Desde o mês de Maio de 2018, que só paga uma parte das despesas mensais correspondente à totalidade do valor da pensão que recebe. Sendo que, as mensalidades dos anos anteriores em dívida, eram de cerca de € 9.000,00 e que foi a quantia exequenda paga com o produto da venda do imóvel em apreço.
d) E sendo que, na presente data, tem já novamente uma dívida, para com a instituição onde se encontra, no montante de € 15.737,48. Pois que, a exequente Lar S..., após o recebimento da referida quantia no âmbito dos presentes autos de execução, só recebeu o valor das pensões o que é manifestamente insuficiente. Estando portanto, a prestar desde Maio de 2018 até à presente data, todos os cuidados à interdita, sem dela receber o pagamento contratualizado.
e) Ora, como consta dos autos, a referida instituição (exequente) intentou a presente acção executiva para cobrança das mensalidades não pagas. Não havendo dúvidas, de que a executada/interdita se encontra aí internada, bem como que não efetuava o pagamento das mensalidades desde há vários anos, questiona-se o seguinte:
f) Que tipo de contestação/oposição, poderia ou deveria ter apresentado o Acompanhante CC em defesa da interdita sua mãe?? Porventura, não corresponde à verdade que a mesma se encontra internada no S..., e pouco ou nada paga no final do mês???
g) Esta é a justificação, para a execução não ter sido contestada em sede própria pelo Acompanhante CC, não foi contestada, porque corresponde à verdade e o valor é devido à exequente.
h) Nesse sentido, outra alternativa não restou, que não fosse deixar vender o único bem imóvel da interdita, com algum valor, a casa de habitação, para fazer face ao pagamento das quantias devidas ao referido Lar e para os demais já vencidas e vincendas.
i) Não percebe pois, o Acompanhante CC, o que move protutora AA… Existe uma dívida, essa dívida tem que ser paga e teve que ser vendido um imóvel…Nada mais simples do que isso.
j) Diga-se ainda em abono da verdade, que o imóvel foi bem vendido, inclusivamente por um valor ligeiramente acima do valor de mercado da altura. Note-se que o imóvel foi colocado à venda em leilão electrónico com o valor base de € 120.000,00 e o valor a anunciar de € 102.000,00… Acabando por ser adquirido pelo Sr. DD pelo preço de € 135.357,10. O qual depositou o preço em conta bancária à ordem do Tribunal – Agente de Execução, o qual após ter adquirido o imóvel com título de transmissão, mudou-se para o imóvel aí passando a residir com a sua família, após ter realizado diversas obras.
k) Necessita assim, a executada/interdita de receber o preço da da venda do imóvel, para proceder ao pagamento da dívida que contraiu junto do Lar onde está institucionalizada… Pergunta-se, o que pretende então a protutora?? Porventura a dívida é inexistente??
l) Julga, que a exequente não intentará novo processo executivo para cobrança dos valores devidos? Julga que a sua mãe, poderá estar num Lar, sem ter que pagar a mensalidade e restantes despesas??
m) Estas são pois as perguntas que o Acompanhante CC faz à sua irmã AA, e para as quais não obtém resposta.
n) De um lado, está o Acompanhante CC que se preocupa com o bem estar da interdita, sabendo que os cuidados de saúde que se encontram a ser prestados à sua mãe, têm que ser pagos… Do outro lado, está a protutora AA, sua irmã, cuja única preocupação é o imóvel antiga casa de habitação da interdita.
o) No caso dos autos, foram julgados procedentes os embargos de executado por douta sentença transitada em julgado. Pelo que, dispunha executada de 30 dias para pedir a restituição do imóvel, o que não fez.
p) Alega a protutora AA, que o Acompanhante CC não o fez, com o intuito de prejudicar o património da executada interdita…
q) Atento tudo o supra exposto, questiona-se prejudicar o património da executada/interdita porquê? Como? Quando o imóvel foi vendido por preço bem superior ao que estava estipulado, mais cerca de € 15.357,10.
r) Requerendo a restituição do imóvel, ter-se-ia que devolver o dinheiro resultante do produto da venda do imóvel, acrescido de juros, eventualmente ter-se ia igualmente que ressarcir o comprador Sr. DD das várias dezenas de milhares de euros que investiu na restauração e melhoramentos da casa, atente-se que a mesma, estava vandalizada e desabitada há vários anos, a necessitar urgentemente de obras.
s) E como ficava o pagamento da dívida à exequente Lar S...??? Que se vem paulatinamente vencendo até hoje e que não é paga por força da Protutora que tudo faz para que o processo emperre e não pague a interdita ao Lar o que lhe é devido.
t) Seria a sua mãe, porventura “expulsa” do Lar, por falta de pagamento do mesmo?? Para onde esta iria, na medida em que necessita de cuidados permanentes, apenas possíveis de serem prestados neste tipo de instituições?? Iria para um novo Lar, como é que o mesmo seria pago??
u) O Acompanhante CC, não pediu a restituição do imóvel e consequente a devolução do preço, por entender que o que melhor servia e serve a sua mãe, é a mesma continuar no Lar onde se encontra, e proceder-se ao pagamento da dívida exequenda e despesas, para que a mesma não corra o risco de ser expulsa do lar, por falta de pagamento.
v) Tão simples quanto isto. Para além, de que os dois prédios rústicos pertença da interdita foram avaliados por perito do Tribunal e que colocados à venda, e não apareceu um único comprador. Isto é não foi possível vendê-los.
w) Com efeito, não se vislumbra o invocado abuso de direito sob a forma de “venire contra factum próprio” quanto ao comportamento do Acompanhante CC, quando é o próprio artigo 839, nº 3 do CPC, que prevê o pedido de entrega do preço quando não é pedida a restituição do bem no prazo de 30 dias.
x) Não é portanto inconstitucional o artigo 839, nº3 do CPC, contrariamente ao defendido pela recorrente. Inconstitucional seria, por violação do direito à certeza e segurança jurídicas se não houvesse qualquer prazo para pedir a restituição dos bens…aliás, o prazo de 30 dias, é unânime na doutrina, findo o qual preclude o direito a pedir a restituição do imóvel.
y) Mais se dirá ainda, que a decisão recorrida, ao contrário do alegado,“não aniquila a decisão proferida em primeira instância e confirmada pela Relação”, antes pelo contrário, faz aplicar a lei, a qual é geral e abstracta e não pode ser adaptada aos interesses das partes, como pretende a protutora AA.
z) Pelo que, o prazo de 30 dias previsto no nº 3 do artigo 839 do CPC, não só não é inconstitucional, como se ali não fosse consagrado um prazo legal para a dita acção, os princípios da certeza e segurança jurídicos consagrados no artigo 2º da CRP, ficariam sim, feridos mortalmente. Sendo certo, que para se poder conhecer da invocada inconstitucionalidade, a mesma tinha que ser invocada em momento processo anterior ao recurso, o que não ocorreu.
aa) Não sendo respeitado o prazo de 30 dias, caduca o direito de pedir a restituição do imóvel, conforme melhor se alcança do nº 3 do artigo 839 do CPC, sendo que, não há qualquer violação de caso julgado. Pois que com o trânsito em julgado da decisão que julgou procedentes os embargos, começou uma nova fase processual.
bb) Pelo que, bem andou o “tribunal a quo”, ao proferir a decisão que proferiu, devendo a mesma ser confirmada pelo douto Tribunal da Relação, por ser legal, correcta e justa, não violando quaisquer disposições legais”.
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O comprador, referindo ter, válida e legalmente, adquirido o imóvel e nele ter realizado obras, pugna pela improcedência do recurso, sustentando não padecer o nº3, do artigo 839º, do CPC, de qualquer inconstitucionalidade.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Do erro da decisão: efeitos da anulação da venda executiva (v. nº3, do art. 839º, do CPC) e da arguida inconstitucionalidade.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos provados, com relevância, para a decisão (transcrição):
1 – Nos presentes autos de execução, foi penhorado, em 29.11.2017, o prédio urbano sito na Av. ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial urbana da ... sob o artigo .... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-A-Velha sob o n.º...., pertencente à executada BB.
2 – Foi proferida decisão quanto à modalidade da venda do referido bem a realizar-se através de leilão eletrónico, sendo o valor base de € 120.000,00 e o valor a anunciar de 102.000,00€.
3 – No âmbito do leilão eletrónico, foi apresentada proposta de aquisição do referido prédio no valor de 135.357,10€ por DD.
4 – A qual foi aceite, tendo sido emitido, pelo Sr. Agente de Execução, o título de transmissão.
5 - Por apenso à execução, o Ministério Público deduziu embargos de executado em representação da executada incapaz, invocando a nulidade da notificação em sede de procedimento de injunção e consequentemente, a invalidade do título executivo.
6 – Nos embargos de executado foi verificada a nulidade da notificação da executada em sede de procedimento de injunção, e julgado nulo todo o processado a seguir ao requerimento de injunção, incluindo a força executiva dada ao requerimento de injunção, por força do disposto no artigo 187/1, alínea a) do Código de Processo Civil e declarado nulo o título executivo.
7 – No prazo de 30 dias após se tornar definitiva a decisão proferida em sede de embargos de executado, a executada não deduziu pedido de restituição do imóvel penhorado.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da reapreciação da decisão: efeitos da anulação da venda executiva e sua constitucionalidade.

Insurge-se a apelante contra a interpretação que o Tribunal a quo faz do nº 3, do art. 839º, do Código Processo Civil, desenquadrada das particularidades do caso.
Entende materialmente inconstitucional a norma prevista no n.º 3, do art. 839º, do Código Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, se interpretada no sentido de se aplicar, independentemente das circunstâncias do caso, o prazo de 30 dias a contar da decisão definitiva para pedir a restituição dos bens cuja venda foi anulada, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva (que decorre do princípio constitucional do Estado de Direito Democrático, plasmado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa). Sustenta que a ratio subjacente ao nº3, do art. 839.º, justifica o afastamento do prazo pelo mesmo estabelecido quando o Executado se encontrar privado, por razões que não lhe sejam imputáveis, de o cumprir, maxime o facto de o mesmo ser interdito, e o seu Acompanhante, de forma intencional, não proceder a tal pedido. Entende que, no caso, cabendo ao Acompanhante da executada reivindicar do comprador a entrega do imóvel, com a consequente devolução do preço pago, tendo o mesmo mantido uma atitude conivente com o comprador, com vista a obter o resultado que sempre norteou a sua actuação (obter a efectivação da venda do imóvel), é de afastar a norma em causa por o comprador ser conhecedor de todas as vicissitudes da execução, e, mesmo assim, ter efetivado o negócio.
Os únicos interessados na decisão da questão que se coloca no âmbito da ação executiva – a executada e o comprador – pronunciaram-se, ambos, no sentido do bem fundado da decisão, conforme lei ordinária e constitucional, sendo que a observância do prazo fixado no referido preceito se impõe por razões que se prendem com exigências de certeza e segurança jurídicas.
Apreciemos.
Estatuindo sobre os “Casos em que a venda fica sem efeito”, para além dos casos previstos no art. 838º, quanto à anulação da venda executiva, consagra o artigo 839º, do Código de Processo Civil:
“1 - Além do caso previsto no artigo anterior, a venda só fica sem efeito:
a) Se for anulada ou revogada a sentença que se executou ou se a oposição à execução ou à penhora for julgada procedente, salvo quando, sendo parcial a revogação ou a procedência, a subsistência da venda for compatível com a decisão tomada;
b) Se, tendo corrido à revelia, toda a execução for anulada nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 851.º, salvo o disposto no n.º 4 do mesmo artigo;
c) Se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195.º;
d) Se a coisa vendida não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono.
2 - Quando, posteriormente à venda, for julgada procedente qualquer ação de preferência ou for deferida a remição de bens, o preferente ou o remidor substituem-se ao comprador, pagando o preço e as despesas da compra.
3 - Nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1, a restituição dos bens tem de ser pedida no prazo de 30 dias a contar da decisão definitiva, devendo o comprador ser embolsado previamente do preço e das despesas de compra; se a restituição não for pedida no prazo indicado, o vencedor só tem direito a receber o preço”.
Os fundamentos das referidas al. a) e b), visam tutelar o executado[1].
E, como refere Alberto dos Reis “compreende-se a razão da lei. A penhora, a venda e o pagamento foram praticados à sombra do título executivo (…) em que a execução se fundou. Mas esta sentença caiu (…). Desde que tal sucedeu têm, logicamente, de cair também os actos que à sombra dela se haviam praticado e tinham nela o seu apoio.
Por outras palavras, (…) a execução foi injusta; o princípio de justiça exige, pois, que se apaguem as consequências produzidas pela execução”[2].
Esclarece o referido autor como se apagam essas consequências - “Restituindo o executado ao estado anterior à penhora e portanto entregando-lhe, livres do vínculo jurídico que a penhora criara, os bens que haviam sido apreendidos e vendidos.
Como se vê, a alínea a), do art. 909º funciona em benefício do executado; a venda fica sem efeito para que possam ser restituídos a este os bens penhorados e vendidos. (…) a venda fica sem efeito para que o executado possa pedir a restituição dos bens vendidos. (…) Mas é necessário tomar em consideração (…) A restituição dos bens terá de ser pedida no prazo de 30 dias a contar da decisão definitiva devendo o comprador ser embolsado previamente do preço e despesas da compra. Se a restituição não for pedida dentro do prazo indicado, o recorrente só terá direito a receber o preço”[3].
Assim, nos casos previstos no art. 839º, nº1, als. a), b) e c), a restituição dos bens tem de ser pedida, no prazo de 30 dias a contar da decisão definitiva, devendo o comprador, nesse caso, ser embolsado do preço e das despesas da compra. Caso o não seja, preclude o direito do executado à restituição do bem.
E não sendo pedida a restituição, nesse prazo, resta somente ao executado/vencedor o direito a receber o preço (nº3)[4] [5] [6]. “Em qualquer caso, terá ainda direito aos rendimentos da coisa posteriores à entrega ou à venda, nos termos referidos”[7].
Bem se compreende que assim seja, pois que, não obstante com as consagrações das als a) e b), de que vimos falando, se pretender tutelar o executado, não pode o comprador ficar, indefinidamente, à inteira mercê da vontade e escolha que o executado possa vir a manifestar.
Como nos dá conta Lebre de Freitas, legislações existem em que a tutela se orienta, até, no sentido da proteção do comprador, referindo “outras legislações restringem os fundamentos de anulação, em nome da tutela do comprador de boa fé e também, nos casos em que está em causa a tutela do comprador, por entenderem inaplicáveis as normas que regem a nulidade ou a anulação do negócio jurídico (OTHMAR JAUERNIG, ZVKR cit., p. 80; BROX-WALKER, ZVR cit., p. 242).
O nosso legislador quis que o direito à restituição dos bens seja exercido dentro do prazo de trinta dias a contar da decisão definitiva, sob pena de o executado ficar tão só com o direito a receber o preço da venda.
Vejamos onde e como estes direitos do executado são exercidos.
Quer o direito à restituição do bem quer o direito a receber o preço devem ser exercidos no próprio processo executivo.
O exercício daquele direito - à restituição - é feito pelo executado mediante requerimento, feito dentro de 30 dias, a pedir ao juiz da execução a restituição do bem vendido.
Então, o juiz, verificando que a sentença foi anulada ou revogada ou que a oposição à execução foi julgada procedente e que a restituição foi pedida dentro do prazo, lavrará despacho a determinar ao comprador a restituição dos bens, desde que este seja embolsado, previamente, do preço e das despesas da compra, sem necessidade (embora não esteja impedido de o fazer, mormente em casos de dúvida) de ouvir os interessados (o comprador - que é quem tem de restituir o bem -, o exequente - que têm de repor o preço da venda que haja recebido e o montante das despesas - e os credores interessados - que têm de repor o que hajam recebido), pois que os autos reúnem já todos os elementos, de conhecimento de todas as partes interessadas, a habilitá-lo a ordenar a restituição[8].
Sentiu o legislador necessidade, por razões de certeza e segurança jurídica, de fixar um prazo curto para definição da situação. Tendo a restituição do bem, em poder do comprador, para ser determinada de ser pedida, tem de o ser no prazo fixado, sob pena de preclusão do direito, que não mais pode ser exercido.
O procedimento para o exercício deste direito, integrado, como vimos, no próprio processo executivo, não prevê que se estabeleça qualquer audiência contraditória nem qualquer fase de proposição e de produção de provas, pois que a decisão meramente trata de extrair, de ordenar, um mero efeito que a lei consagra e que decorre do que já resulta dos autos, se encontra sedimentado e é de todos os interessados conhecido.
Decorre, expressamente, do nº3, do artigo em análise que não sendo a restituição pedida dentro de 30 dias, resta ao executado, somente, o direito a receber o preço. Com efeito, dentro dos trinta dias pode optar, decorridos os trinta dias a opção desaparece e somente subsiste o direito ao preço[9], o único que validamente se constituiu.
Ora, no caso sub judice, não são os específicos interesses da interdita e a atuação do acompanhante que os possa ter lesado, com a, consequente, responsabilidade do mesmo por atos por si praticados, que estão em apreciação na execução, mas tão só os direitos que resultam da lei para o executado vencedor, em ação executiva em que a venda fica sem efeito. Em causa estão os efeitos da anulação e os direitos daí decorrentes para a executada, parte interessada, que, apesar de nenhum ato poder praticar por si, está, devidamente, representada.
E, com efeito, “Nos casos das alíneas a), b) e c), do nº1, do art. 839º, a restituição tem de ser pedida no prazo de 30 dias a contar da decisão definitiva proferida sobre o recurso, a oposição ou a anulação, sob pena de o executado só ter direito ao preço. E pedida a restituição, o comprador só tem de restituir o bem vendido depois de ser reembolsado do preço e das despesas da compra (IMI, escritura, etc.). A restituição do preço é feita pelo tribunal, no caso de o produto da venda estar ainda depositado à sua ordem, ou pelo exequente e pelos credores que o hajam recebido, se o pagamento tiver sido efetuado”[10].
Como dos autos resulta, in casu, os embargos de executado foram julgados procedentes, por sentença transitada em julgado, tendo a venda ficado sem efeito por ineficácia superveniente, e constata-se que no prazo estatuído no nº3, do art. 839º, a executada, interdita, mas devidamente representada nos autos pelo seu acompanhante, nada requereu, tendo precludido o direito de pedir a restituição do bem vendido. Perdeu, pois, o direito de optar, sendo que o direito que, neste caso, lhe é conferido e decorre expressamente da própria lei é somente um – “o vendedor só tem direito a receber o preço”.
Considerou o Tribunal a quo que o invocado pela protutora - o acompanhante não ter exercido atempadamente o pedido de restituição do imóvel vendido e a devolução do preço ao comprador com o intuito de prejudicar o património da executada interdita - não é “passível de discussão nos presentes autos”.
E, assim, acontece, na verdade, sendo que a protutora sequer é parte na ação executiva para nela se apresentar a fazer valer direitos e “direitos de terceiros têm de ser exercidos em ação própria[11].
Em causa nos presentes autos, estão somente as consequências do efeito anulatório da venda executiva, decretada nos autos entre as partes na execução e o comprador.
O “regime previsto no nº3 vale somente no quadro da relação processual entre as partes na ação executiva e o comprador que interveio na venda executiva entretanto anulada, o qual fica vinculado à respetiva decisão anulatória”[12].
Tal é a solução que o legislador considerou justa e equilibrada aos interesses em jogo, salvaguardando razões de certeza e segurança jurídica.
Outras questões que envolvam outros interesses e direitos de terceiros têm de ser tratadas em ação própria, que não a executiva.
É a própria lei a fixar um prazo curto para ser pedida a restituição dos bens, fazendo-o o legislador por estarem em causa interesses e direitos de terceiros que cumpre acautelar.
E claramente prevê o nº3, do artigo 839º seja efetuada a entrega do preço quando não é pedida a restituição do bem no prazo que expressamente consagra.
E bem pode dar-se o caso, como defendem os apelados, de a restituição ser menos vantajosa e de o executado/vencedor não pretender por ela optar, por até configurar má escolha face à importância do preço de venda obtida e logo disponível, à existência de obras efetuadas pelo comprador, eventualmente a ter de ser levadas em consideração, e haver outras despesas a ter de ser ressarcidas assistindo ao comprador direito de retenção.
De nenhuma inconstitucionalidade material padece o nº3, do artigo 839º, não sendo o interesse da executada o único a tutelar e a merecer uma efetiva proteção legal, sempre se impondo, o exercício da pretensão de restituição do bem vendido num curto prazo, por razões relacionadas com a definição e consolidação de direitos em prazo tido por razoável.
Não obstante a lei, ao consagrar os referidos efeitos, estar a tutelar interesses do executado, estatuiu-se, para a opção pela restituição, um prazo curto, por razões de certeza e segurança jurídicas, com vista à, proporcional, defesa dos interesses do comprador, também merecedores de tutela.
A lei, geral e abstrata, ao consagrar os efeitos em causa dirige-se a todos os executados que consigam vencer a pretensão de a venda executiva ficar sem efeito, nenhuma razão havendo para criar situação especial para a executada pelo facto de ser interdita, que representada está, e prejudicar o comprador, cuja proteção, como vimos, o legislador também não descurou (tendo-o feito quer ao estatuir um prazo curto para que a restituição possa ser pedida quer ao consagrar direito de retenção até integral pagamento do preço e despesas).
Com efeito, apesar de não poder, por si, praticar atos no processo, a executada está representada e todos os atos praticados pelo representante e consequências de omissões se produzem na sua esfera jurídica, certo sendo que, a verificar-se responsabilidade do representante por atos causadores de danos à interdita, o meio próprio para o seu exercício não é a ação executiva, sequer a protutora é parte na execução para aí se apresentar a requerer o que quer que seja, sendo que o que tiver a acautelar o deve fazer em sede própria.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 7 de fevereiro de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Maria José Simões
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[1] José Lebre de Freitas, A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª Edição, Gestlegal, pág. 401
[2] José Alberto dos Reis, Processo de Execução, volume 2º, 1985, Coimbra Editora, pág. 434.
[3] Ibidem, pág. 434, e seg.
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág.260 e seg.
[5] Marco Carvalho Gonçalves, 2016, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, pág. 392.
[6] Rui Pinto, A ação executiva, 2018, AAFDL, pág. 924
[7] Ibidem, pág. 924
[8] Cfr. José Alberto dos Reis, Idem, pág. 435 e segs
[9] Ibidem, pág. 441.
[10] José Lebre de Freitas, Idem, pág. 401 e seg.
[11] Ac. do STJ de 20/12/2017, proc. 3018/14, in dgsi.pt e citado in António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 261.
[11] Ibidem, pág. 260 e seg.